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Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio




                             69
               (Corresponde ao sétimo tópico do Capítulo 8,
               intitulado Os mantenedores do velho mundo)




                    Condutores de rebanhos

O modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do
líder de massas é uma sociopatia

Condutores de rebanhos são, em geral, os líderes que alcançaram
popularidade pelo broadcasting para guiar as massas. Algumas vezes esses
líderes são carismáticos e se dedicam a mesmerizar multidões em comícios,
reuniões e manifestações. Ou pela TV e pelo rádio. Quase sempre são
pessoas “pesadas”, que usam sua gravitatem em benefício próprio ou de
um grupo, para reter em suas mãos o poder pelo maior tempo que for
possível, transformando os outros em seus satélites. E odeiam os princípios
de rotatividade ou alternância democrática. Considere-se que, do ponto de
vista social (ou coletivo, da rede), o modo intransitivo de fluição que gera o
fenômeno da popularidade do líder de massas é uma sociopatia.

O liderancismo é uma praga que vem contaminando as organizações de
todos os setores: segundo tal ideologia, a liderança só é boa se não puder
ser exercida por todos, só por alguns. Assim, não se deve estimular a multi-
liderança, senão afirmar a precedência da mono-liderança, do líder
providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os
assuntos e atividades, como se essa – a liderança – fosse uma qualidade
rara, de origem genética ou fruto de uma unção extra-humana.

Condutores de rebanhos se dirigem sempre às massas – não às pessoas –
com o objetivo de comandá-las e controlá-las, sejam ditadores ou
manipuladores. São marqueteiros de si-mesmos e, como tais, vendedores
de ilusões (diga-se o que se quiser dizer, o marketing é uma atividade
muito problemática, que não visa formar novas identidades a partir da
construção de pactos com os stakeholders de uma determinada iniciativa e
sim disseminar, via de regra por broadcasting, alguma ilusão).

Sacerdotes (stricto sensu), pastores e políticos profissionais são também
vendedores de ilusões assim como todos os que prometem e não cumprem,
no sentido de que vendem e não-entregam (o que vendem). Mas reserva-se
a categoria de condutores de rebanhos para os que pretendem liderar
massas, comovê-las e mobilizá-las para que lhes sigam.

Na coletânea Histórias do Sr. Keuner, que reúne textos de Bertold Brecht
escritos entre 1926 e 1956, encontra-se a deliciosa parábola “Se os
Tubarões Fossem Homens” (17):

      “Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes
      caixas do mar, para os peixes pequenos... Aula principal seria
      naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados
      de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um
      peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões,
      sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos
      peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria
      garantido se aprendessem a obediência...

      Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra
      entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.
      Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da
      outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem
      das algas e receberia o título de herói...



                                      2
Também haveria uma religião ali. Se os tubarões fossem homens,
      eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que
      começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem
      homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os
      peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos
      outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive
      comer os menores... E os peixinhos maiores que deteriam os cargos
      valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a
      ser professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim
      por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os
      tubarões fossem homens”.

Não poderia haver um fecho melhor para a reflexão deste capítulo. Brecht,
provavelmente, criou a metáfora entre tubarões e peixinhos no contexto da
luta de classes entre patrões e trabalhadores. No entanto, ela é tomada
aqui para fazer referência aos mantenedores do velho mundo único que
surgem em configurações deformadas do campo social. Que tipos de
configurações ensejam a reprodução de tubarões em vez de, por exemplo,
golfinhos?

Como já foi dito, freqüentemente as características das funções
agenciadoras do velho mundo se misturam, incidindo, em maior ou menor
grau, em uma mesma configuração de pessoas. É assim que ensinadores
replicam ensinamentos forjados por codificadores de doutrinas que, por sua
vez, constroem pirâmides para aprisionar corpos e tudo isso é feito em
nome da necessidade de derrotar um inimigo que ameaça alguma
identidade imaginária que foi artificialmente construída, não raro exigindo
que grandes contingentes de pessoas fossem arrebanhadas (e
despersonalizadas) por condutores de rebanhos para enfrentar tal inimigo,
ele próprio construído sempre para justificar alguma hierarquia que foi
erigida. Tudo isso é usar a Força para enfrear e represar fluzz.

Conquanto resilientes, essas velhas funções do mundo único exercidas,
invariavelmente, para exterminar outros mundos, não têm conseguido
barrar os novos papéis-sociais-fluzz que começam a emergir.




                                     3
Nota

(17) BRECHT, Bertold (1926-1956). Histórias do Sr. Keuner. São Paulo: Editora 34,
2006.




                                       4

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  • 1. Em pílulas Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio 69 (Corresponde ao sétimo tópico do Capítulo 8, intitulado Os mantenedores do velho mundo) Condutores de rebanhos O modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do líder de massas é uma sociopatia Condutores de rebanhos são, em geral, os líderes que alcançaram popularidade pelo broadcasting para guiar as massas. Algumas vezes esses líderes são carismáticos e se dedicam a mesmerizar multidões em comícios, reuniões e manifestações. Ou pela TV e pelo rádio. Quase sempre são pessoas “pesadas”, que usam sua gravitatem em benefício próprio ou de um grupo, para reter em suas mãos o poder pelo maior tempo que for possível, transformando os outros em seus satélites. E odeiam os princípios de rotatividade ou alternância democrática. Considere-se que, do ponto de
  • 2. vista social (ou coletivo, da rede), o modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do líder de massas é uma sociopatia. O liderancismo é uma praga que vem contaminando as organizações de todos os setores: segundo tal ideologia, a liderança só é boa se não puder ser exercida por todos, só por alguns. Assim, não se deve estimular a multi- liderança, senão afirmar a precedência da mono-liderança, do líder providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades, como se essa – a liderança – fosse uma qualidade rara, de origem genética ou fruto de uma unção extra-humana. Condutores de rebanhos se dirigem sempre às massas – não às pessoas – com o objetivo de comandá-las e controlá-las, sejam ditadores ou manipuladores. São marqueteiros de si-mesmos e, como tais, vendedores de ilusões (diga-se o que se quiser dizer, o marketing é uma atividade muito problemática, que não visa formar novas identidades a partir da construção de pactos com os stakeholders de uma determinada iniciativa e sim disseminar, via de regra por broadcasting, alguma ilusão). Sacerdotes (stricto sensu), pastores e políticos profissionais são também vendedores de ilusões assim como todos os que prometem e não cumprem, no sentido de que vendem e não-entregam (o que vendem). Mas reserva-se a categoria de condutores de rebanhos para os que pretendem liderar massas, comovê-las e mobilizá-las para que lhes sigam. Na coletânea Histórias do Sr. Keuner, que reúne textos de Bertold Brecht escritos entre 1926 e 1956, encontra-se a deliciosa parábola “Se os Tubarões Fossem Homens” (17): “Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos... Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência... Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói... 2
  • 3. Também haveria uma religião ali. Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores... E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens”. Não poderia haver um fecho melhor para a reflexão deste capítulo. Brecht, provavelmente, criou a metáfora entre tubarões e peixinhos no contexto da luta de classes entre patrões e trabalhadores. No entanto, ela é tomada aqui para fazer referência aos mantenedores do velho mundo único que surgem em configurações deformadas do campo social. Que tipos de configurações ensejam a reprodução de tubarões em vez de, por exemplo, golfinhos? Como já foi dito, freqüentemente as características das funções agenciadoras do velho mundo se misturam, incidindo, em maior ou menor grau, em uma mesma configuração de pessoas. É assim que ensinadores replicam ensinamentos forjados por codificadores de doutrinas que, por sua vez, constroem pirâmides para aprisionar corpos e tudo isso é feito em nome da necessidade de derrotar um inimigo que ameaça alguma identidade imaginária que foi artificialmente construída, não raro exigindo que grandes contingentes de pessoas fossem arrebanhadas (e despersonalizadas) por condutores de rebanhos para enfrentar tal inimigo, ele próprio construído sempre para justificar alguma hierarquia que foi erigida. Tudo isso é usar a Força para enfrear e represar fluzz. Conquanto resilientes, essas velhas funções do mundo único exercidas, invariavelmente, para exterminar outros mundos, não têm conseguido barrar os novos papéis-sociais-fluzz que começam a emergir. 3
  • 4. Nota (17) BRECHT, Bertold (1926-1956). Histórias do Sr. Keuner. São Paulo: Editora 34, 2006. 4