O autor descreve como seria uma religião que ele fundaria, que (1) não exigiria a inclusão de pessoas em grupos fechados ou declararia ser o único caminho verdadeiro, (2) não teria doutrina, dogma, símbolos, igrejas ou sacerdotes, e (3) seria uma rede aberta onde as pessoas compartilhariam experiências espirituais sem hierarquias ou líderes.
1. SE EU FUNDASSE UMA RELIGIÃO
Augusto de Franco
12/03/2013
Se eu fundasse uma religião ela não exigiria a inclusão das pessoas em
clusters fechados dos que professam a mesma fé. E nem invalidaria todas
as conversações místicas diferentes das suas. Não se declararia como único
caminho verdadeiro, apavorando os outros com a sentença de que fora dela
não há salvação.
Se eu fundasse uma religião ela não teria doutrina oficial, dogma ou
símbolo. Não erigiria igrejas e, assim, não separaria uma igreja docente
2. (um corpo sacerdotal) de uma igreja discente (composta pelo rebanho de
fiéis, os leigos). Porque ela não teria sacerdotes, nem qualquer burocracia
de intermediários.
Se eu fundasse uma religião, ela não pavimentaria com a crença um
caminho para o futuro alheio. Nem se constituiria como um artifício para
proteger as pessoas da experiência de deus.
Sim, se eu fundasse uma religião haveria deuses, claro, qual o problema?
Mas seriam mais ou menos assim, mal comparando, como aqueles deuses
da democracia grega, deuses da conversação, quer dizer, deuses-fluzz,
deuses da interação, como talvez tenha sido prefigurado pelo Zeus Agoraios
(divindade tutelar que protegia as conversações na praça do mercado de
Atenas) e a deusa Peitho (a persuasão deificada).
Que fique bem claro! Minha religião inventada não teria deuses pré-
patriarcais (naturais) e muitos menos deuses patriarcais (sobrenaturais)
mas, quem sabe, poderia ter deuses pós-patriarcais (sociais), desde que
incapazes de exigir culto dos humanos e, sobretudo de escravizá-los ou
submetê-los à servidão. Seriam deuses humanizados, mais-humanos
porque sociais e não mais-que-humanos, super-humanos, extra-humanos,
antissociais. Não seriam tais deuses potestades unitárias criadoras de
qualquer ordem pré-existente e sim entidades compostas pela interação,
simbiontes constelados fractalmente por nós.
Se eu fundasse uma religião um cara como Paulo de Tarso estaria fora.
Nada de codificadores de doutrina. E um cara como Inácio de Antioquia
estaria fora: nada de supervisores (ou episcopos). E nada de padres: todos
seriam diáconos. Seria uma religião de garçons: uns servindo aos outros
animados pelo espírito santo (que seria santo a não ser enquanto estivesse
expressando essa emoção amorosa).
Se eu fundasse uma religião ela não teria templos, nem ritos, rituais,
liturgias... e também nada de muros, escadas, portas, colunas, altares,
lugares mais sagrados e outros símbolos templários. Não teria cerimônias
3. de iniciação, ordenação, sagração, consagração ou qualquer outro script
maligno que pudesse programar as pessoas lesionando suas almas.
Mas uma coisa exigiria minha religião: que as pessoas que a ela se
conectassem apostassem na democracia como movimento de
desconstituição de autocracia. Sim, seria uma religião para quem não aceita
a autocracia, para quem está disposto a desobedecer e, portanto, para
quem não acata nem reproduz hierarquia de nenhum tipo, sobretudo
espiritual. Uma religião para quem não segue líderes, não se deixa
arrebanhar em massas de filiados, nem compõe quadros de sequazes ou
militantes de uma causa. Sim, é isto mesmo: uma religião para quem não
quer ser cavalgado.
É claro que você já percebeu que minha religião inventada seria uma não-
religião. Seria uma simples rede aberta de pessoas dispostas a polinizar
mutuamente os modos pelos quais experimentam sua mística ou sua
espiritualidade, compartilhando as formas semelhantes como vivem um
domínio mais amplo de relações de existência e celebrando suas afinidades
e amorosidades mutuas.
Se eu fundasse uma religião... 'Se' é una hipótese especulativa, não um
projeto. Como não vou mesmo fundar uma religião e nem uma não-religião,
não serei fundador de nada.
Mas ninguém me impeça de provocar.