O documento descreve os acontecimentos da Revolução dos Cravos em Portugal em 1974 através de trechos literários. Relata a surpresa e emoção do autor ao ouvir no rádio no dia 25 de Abril que havia ocorrido uma revolução, e a vitória no dia seguinte. O último parágrafo é um poema celebrando a liberdade e renascimento do país após o fim do regime fascista.
2. lembrar… 25- Abril (quinta) … Às sete da manhã, um amigo telefona-me: “Ouça o rádio.” Ouço sem entender: rebentou a Revolução. A Revolução? Que Revolução? Por fim lá vou compreendendo. Toda a manhã a rádio nos vai esclarecendo com notícias. Passamos o dia à escuta. Será possível? Vergílio Ferreira, Conta-Corrente I (1974) Biblioteca da ESAF
3. lembrar… 26- Abril (sexta ) Vitória. Sublinha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir. Vergílio Ferreira, Conta-Corrente I (1974) Biblioteca da ESAF
4. lembrar… “ Contarás de Abril, aos meus filhos, que os meus olhos ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes: como amor, liberdade. Contarás de Abril os idos e os que voltaram, os que ficaram e ficam. Contarás de Abril pequenas pilhas de palavras, armazenadas numa necessidade que inventei; e as nossas almas ledas e limpas: e os braços que se estendem a outros abraços; e a cordialidade de anotarmos um nome, um número, uma flor: e os balaios sem reticências de mágoas, cheios de trissos de aves, de pássaros remotos de que ignorávamos a voz ou havíamos esquecido o toque e a fímbria. Contarás de Abril que na nossa terra já não apodrecem as raízes e que já não adiamos o coração; que já não nos dói a velhice e que os rios são todos nossos e íntimos e que já não perdemos a infância e que nascem crianças insubmissas e claras e livres. Contarás de Abril a espessura mágica, o punho reflexo, o dia de água, a lágrima, a vontade de sermos e de estarmos, o lípido grito, a forma inconsútil, o vermelhor e a brisa, o livor das coisas, a maravilha discreta de assear a vida, o caminhar, os restos nesta dócil pausa e neste imenso perdão. Contarás de Abril as casas de mil sóis, a imponderável descoberta dos sussurros, a brancura inadiável da perseverança, o resplandecente varar dos dias, a feira alvoroçada das horas. Contarás de Abril as mãos dadas. Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.” Baptista-Bastos, in O DIÁRIO, 25.04.90 Biblioteca da ESAF