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ensaio B I O L O G I A




Lamarck: fatos e boatos
Teorias do naturalista francês continuam sendo mal divulgadas




RODOLFO FERNANDES                   A ideia de que os seres vivos se modificam, em um processo que pode gerar novas
DA CUNHA RODRIGUES                  espécies, é em geral atribuída quase exclusivamente ao inglês Charles Darwin,
Instituto de Biologia,              até por alguns professores e livros didáticos. Essa atribuição, porém, desmerece
Universidade Federal Fluminense     o trabalho de Jean-Baptiste de Lamarck, naturalista francês que propôs, de modo
                                    pioneiro, a noção de transformação dos organismos, antes considerados imutáveis.
EDSON PEREIRA DA SILVA              Embora o próprio Darwin tenha utilizado, em seus livros, parte das ideias de
Departamento de Biologia Marinha,
Universidade Federal Fluminense     Lamarck, estas se revelaram incorretas. Seu trabalho inovador, porém, certamen-
                                    te contribuiu para a aceitação futura da teoria da evolução, hoje um dos pilares
                                    da biologia.



                                    O   francês Jean-Baptiste Pierre An-
                                        toine de Monet, Chevalier de La-
                                    marck (1744-1829), foi um importan-
                                                                                Os dois maiores boatos criados a
                                                                             respeito de Lamarck são: 1. suas ideias
                                                                             evolutivas se resumiam a duas leis, e
                                    te personagem na história da ciência.    2. o inglês Charles Darwin (1809-
                                    Sua contribuição para o desenvolvi-      1882), um dos autores da moderna
                                    mento do que conhecemos hoje como        teoria da evolução, se opôs a essas leis.
                                    teoria da evolução é bem divulgada,      Assim, diante da pergunta “Quem foi
                                    mas alguns autores, ao tentar resumir    Lamarck?”, um aluno de ensino médio
                                    as ideias desse naturalista, omitem      pode responder “Foi o cara do pescoço
                                    algumas informações e distorcem ou-
                                    tras, criando assim ‘boatos’ sobre seu
                                    verdadeiro papel.




68 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 48 | 285
da girafa”, ou até “Foi o cara que dizia            suas partes até um limite que seria       se referia a um ‘desejo’, porque ele
o contrário de Darwin”. Essas respos-               próprio de cada organismo. Lamarck,       mesmo afirmava que “nem todos os
tas, e outras com conteúdo semelhan-                tentando fornecer evidências empí-        animais têm a faculdade de sentir”
te, permanecem vivas não apenas na                  ricas para essa lei, fez uma analogia     (referindo-se a esponjas e águas-vivas,
boca dos alunos, mas também na de                   entre organismos mais simples e mais      que não têm sistema nervoso) – se não
certos professores e no texto de alguns             complexos e as fases de desenvolvi-       sentem, não podem ter desejo. Se, para
livros didáticos. Este ensaio, ao revi-             mento de um organismo (do ovo ao          Lamarck, a diferenciação dos animais
sitar o legado de Lamarck, tenta des-               adulto), visando demonstrar que, as-      mais simples não ocorria por desejo,
fazer esses boatos.                                 sim como um ovo se modifica e se tor-     mas por uma necessidade fisiológica,
                                                    na um embrião, evidenciando um            essa última tradução para volonté seria
TEORIA LAMARCKIANA A ‘progressão                    aumento da complexidade, os organis-      mais apropriada.
dos animais’ é o nome da teoria que                 mos mais complexos também teriam              A terceira lei da teoria lamarckista
Lamarck desenvolveu. No livro Phi-                  surgido a partir dos mais simples. Por-   (‘desenvolvimento e atrofia de órgãos
losophie zoologique (Filosofia zoológica,           tanto, segundo o naturalista, a vida      em função de seu emprego’, ou ‘uso e
de 1809), ele fundamentou sua teoria                tinha o poder de aumentar o volume        desuso’) tinha sido apresentada como
em duas leis, conhecidas como ‘uso e                e as estruturas do corpo.                 primeira na Filosofia. Lamarck disse
desuso’ e ‘herança dos caracteres ad-                                                         que essa lei seria inútil, assim como a
quiridos’. Já em Histoire naturelle des                                                       segunda, se os animais estivessem
animaux sans vertèbres (História na-                A contradição entre Lamarck               sempre nas mesmas condições. No
tural dos animais invertebrados, lança-              e Darwin, tão propalada em               entanto, se em determinado local ocor-
do em partes de 1815 a 1822), as leis                                                         ressem mudanças e estas criassem,
passaram a ser quatro. Para melhor
                                                    textos didáticos, é um boato,             para os indivíduos que viviam ali, a
compreender a teoria lamarckiana, é                    tanto do ponto de vista                necessidade de modificar seu compor-
preciso analisar essa última versão.                  histórico quanto do ponto               tamento, então esses indivíduos te-
    A primeira das quatro leis (‘ten-                                                         riam que usar mais ou menos certas
dência para o aumento da complexi-
                                                           de vista teórico                   estruturas e isso levaria a alterações
dade’) surgiu apenas no segundo livro                                                         físicas. Nesse caso, indivíduos da mes-
e foi enunciada como uma tendência,                     Sobre a segunda lei (‘surgimento      ma espécie que habitassem ambientes
de todos os corpos, para aumentar de                de órgãos em função de necessidades       diferentes, nos quais as mudanças fos-
volume, estendendo as dimensões de                  que se fazem sentir e que se mantêm’),    sem desiguais, não teriam as mesmas
                                                    Lamarck disse, em Filosofia zoológica,    necessidades, o que levaria à formação
                                                    que os hábitos e as circunstâncias da     de grupos também diferentes, gerando
                                  ILUSTRAÇÃO LULA




                                                    vida de um animal eram capazes de         as raças. Portanto, essa lei explicaria
                                                    moldar a forma de seu corpo. Em His-      como as mudanças no ambiente pro-
                                                    tória natural, afirmou que as antenas     duziriam a diversidade observada nos
                                                    dos gastrópodes (como os caracóis)        seres vivos.
                                                    teriam surgido por ação dessa lei. Gas-       Evidências da operação dessa lei
                                                    trópodes mais simples, explicou, dian-    foram apontadas por Lamarck. A au-
                                                    te da necessidade de sentir os objetos    sência de dentes nos tamanduás, por
                                                    à sua frente, teriam concentrado ‘flui-   exemplo, seria explicada pela falta de
                                                    dos nervosos’ na região anterior do       uso e consequente atrofia e desapare-
                                                    corpo, e estes, juntamente com outros     cimento, assim como os vestígios de
                                                    fluidos corporais, estimularam a for-     dentes em fetos de baleias (exemplos
                                                    mação de novas estruturas, tecidos e      de ‘desuso’). Já as girafas, que passam
                                                    órgãos.                                   longos períodos se alimentando de fo-
                                                        Essa segunda lei gerou uma discus-    lhas das copas de árvores altas, estica-
                                                    são sobre o sentido em que Lamarck        riam as pernas e o pescoço para alcan-
                                                    usou a palavra francesa volonté. Esta     çar seu alimento, o que teria levado ao
                                                    é muitas vezes traduzida como ‘dese-      crescimento dessas estruturas, e os
                                                    jo’, mas uma melhor tradução seria        quadrúpedes que pastam por longos
                                                    algo como ‘ação gerada por uma ne-        períodos de tempo adquiririam cascos
                                                    cessidade’, e não ‘ação gerada por um     para sustentar um corpo muito pesado
                                                    desejo’. Parece claro que Lamarck não     (exemplos de ‘uso’).                                     >>>

                                                                                                              285 | SETEMBRO 2011 | CIÊNCIAHOJE | 69
ensaio




    Quanto à quarta lei (‘he-                                                                                                espaço. Assim, para ele, o
rança do adquirido’), Lamarck                                                                                                processo de especiação é a
não se empenhou em sua de-                                                                                                   transformação de variação
monstração ou defesa, já que                                                                                                 intrapopulacional em inter-
essa ideia, muito comum no                                                                                                   populacional. Se a formação
meio filosófico-científico des-                                                                                              de novas espécies se dá des-
de Hipócrates (460-377 a.C.),                                                                                                sa maneira, a regressão des-
era aceita entre os naturalistas                                                                                             se processo nos leva a conce-
do século 19. Ele não se preo-                                                                                               ber uma origem comum para
cupou em propor um mecanis-                                                                                                  todos os seres vivos. A evo-
mo alternativo para a herança,                                                                                               lução, portanto, não teria um
apenas aceitando o que era o                                                                                                 propósito: seria um processo
senso comum sobre heredita-                                                                                                  de leis simples, no qual não
riedade em seu tempo.                                                                                                        existe espaço para a ideia de
    Lamarck foi o primeiro pes-                                                                                              progresso, mas apenas de
quisador a elaborar um siste-                                                                                                mudança ao longo do tempo.
                                   © MICHAEL NICHOLSON/CORBIS//LATINSTOCK




ma teórico completo para de-                                                                                                 Essas conclusões eram revo-
fender e tentar explicar a evo-                                                                                              lucionárias e, certamente,
lução biológica. Fez isso com                                                                                                contrariavam a noção lamar-
base apenas em fenômenos                                                                                                     ckiana de uma progressão
naturais (leis físicas), sem lan-                                                                                            dos seres vivos.
çar mão de forças imateriais
(como ‘alma’, ‘princípio ativo’                                                                                              FALSA CONTRADIÇÃO Lamarck
e outras) ou entidades trans-                                                                                                 foi um dos primeiros a elabo-
cendentais como um deus. Mais que                                           ckianas de uso e desuso e herança dos    rar um sistema teórico completo para
isso, ele lançaria mão, a partir de 1800                                    caracteres adquiridos, inclusive dan-    tentar explicar a variação das espé-
(quando trabalhava com fósseis de                                           do exemplos (em animais domestica-       cies ao longo do tempo. Ele defendeu
moluscos), de dados paleontológicos                                         dos). Mais tarde, em The variation of    sua teoria da progressão dos animais
para justificar suas ideias, o que faz                                      animals and plants under domestication   ao longo de vários trabalhos, e a últi-
dele um dos primeiros a usar esse tipo                                      (Variação de animais e plantas sob do-   ma e mais completa versão dessa te-
de evidência em favor da evolução dos                                       mesticação, de 1868), Darwin reafir-     oria, composta de quatro leis, foi ex-
seres vivos.                                                                maria seu compromisso com essas leis     posta no livro História natural. No
    Portanto, Lamarck era um meca-                                          em sua teoria da pangênese, segundo      entanto, Filozofia zoológica, trabalho
nicista, materialista e empirista, em                                       a qual todo o corpo contribuiria para    que traz a versão com apenas duas
sintonia com o pensamento científico-                                       a formação de um novo ser: o sêmen       leis, é quase sempre citado como a
-filosófico de seu tempo e, em alguns                                       seria constituído de minúsculas par-     maior e a única referência do natu-
casos, em sua vanguarda. Entretanto,                                        tículas (as gêmulas) vindas das diver-   ralista – puro boato.
sua ideia de progressão da complexi-                                        sas partes do corpo. Assim, como po-        Mais ainda, as duas leis apresen-
dade nos seres vivos – lei fundamental                                      de ser facilmente deduzido, modifica-    tadas na Filosofia (‘uso e desuso’ e
do seu sistema – e suas explicações                                         ções ocorridas no corpo poderiam ser     ‘herança dos caracteres adquiridos’)
para a origem da variação dentro da                                         transmitidas aos descendentes.           não eram originais. Lamarck as incor-
mesma espécie e para a origem de es-                                           A contradição entre Lamarck e         porou ao seu sistema teórico quase
pécies novas eram equivocadas.                                              Darwin encontra-se, de fato, nas         como um conhecimento consensual
                                                                            duas primeiras leis da teoria lamar-     da época. Portanto, a contradição en-
ACEITO POR DARWIN No livro Origin                                           ckista – ‘tendência para o aumento       tre Lamarck e Darwin, tão propalada
of species (A origem das espécies, de                                       da complexidade’ e ‘surgimento de        em textos didáticos, é outro boato,
1859), Darwin lançou sua teoria da                                          órgãos em função de necessidades’.       tanto do ponto de vista histórico
descendência com modificação guiada                                         A grande revolução da teoria darwi-      quanto do ponto de vista teórico, já
por seleção natural. Ele apontou que                                        niana foi entender a especiação co-      que Darwin, com a teoria da ‘pangê-
os descendentes de um indivíduo                                             mo processo de conversão da varia-       nese’, investiu muito mais nesse
apresentam características diferentes                                       ção entre indivíduos, dentro de uma      conhecimento ‘consensual’ que La-
(variações), mas explicou a origem                                          população, em variação entre po-         marck com sua teoria da progressão
dessas variações usando as leis lamar-                                      pulações diferentes, no tempo e no       dos animais.


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Lamarck

  • 1. ensaio B I O L O G I A Lamarck: fatos e boatos Teorias do naturalista francês continuam sendo mal divulgadas RODOLFO FERNANDES A ideia de que os seres vivos se modificam, em um processo que pode gerar novas DA CUNHA RODRIGUES espécies, é em geral atribuída quase exclusivamente ao inglês Charles Darwin, Instituto de Biologia, até por alguns professores e livros didáticos. Essa atribuição, porém, desmerece Universidade Federal Fluminense o trabalho de Jean-Baptiste de Lamarck, naturalista francês que propôs, de modo pioneiro, a noção de transformação dos organismos, antes considerados imutáveis. EDSON PEREIRA DA SILVA Embora o próprio Darwin tenha utilizado, em seus livros, parte das ideias de Departamento de Biologia Marinha, Universidade Federal Fluminense Lamarck, estas se revelaram incorretas. Seu trabalho inovador, porém, certamen- te contribuiu para a aceitação futura da teoria da evolução, hoje um dos pilares da biologia. O francês Jean-Baptiste Pierre An- toine de Monet, Chevalier de La- marck (1744-1829), foi um importan- Os dois maiores boatos criados a respeito de Lamarck são: 1. suas ideias evolutivas se resumiam a duas leis, e te personagem na história da ciência. 2. o inglês Charles Darwin (1809- Sua contribuição para o desenvolvi- 1882), um dos autores da moderna mento do que conhecemos hoje como teoria da evolução, se opôs a essas leis. teoria da evolução é bem divulgada, Assim, diante da pergunta “Quem foi mas alguns autores, ao tentar resumir Lamarck?”, um aluno de ensino médio as ideias desse naturalista, omitem pode responder “Foi o cara do pescoço algumas informações e distorcem ou- tras, criando assim ‘boatos’ sobre seu verdadeiro papel. 68 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 48 | 285
  • 2. da girafa”, ou até “Foi o cara que dizia suas partes até um limite que seria se referia a um ‘desejo’, porque ele o contrário de Darwin”. Essas respos- próprio de cada organismo. Lamarck, mesmo afirmava que “nem todos os tas, e outras com conteúdo semelhan- tentando fornecer evidências empí- animais têm a faculdade de sentir” te, permanecem vivas não apenas na ricas para essa lei, fez uma analogia (referindo-se a esponjas e águas-vivas, boca dos alunos, mas também na de entre organismos mais simples e mais que não têm sistema nervoso) – se não certos professores e no texto de alguns complexos e as fases de desenvolvi- sentem, não podem ter desejo. Se, para livros didáticos. Este ensaio, ao revi- mento de um organismo (do ovo ao Lamarck, a diferenciação dos animais sitar o legado de Lamarck, tenta des- adulto), visando demonstrar que, as- mais simples não ocorria por desejo, fazer esses boatos. sim como um ovo se modifica e se tor- mas por uma necessidade fisiológica, na um embrião, evidenciando um essa última tradução para volonté seria TEORIA LAMARCKIANA A ‘progressão aumento da complexidade, os organis- mais apropriada. dos animais’ é o nome da teoria que mos mais complexos também teriam A terceira lei da teoria lamarckista Lamarck desenvolveu. No livro Phi- surgido a partir dos mais simples. Por- (‘desenvolvimento e atrofia de órgãos losophie zoologique (Filosofia zoológica, tanto, segundo o naturalista, a vida em função de seu emprego’, ou ‘uso e de 1809), ele fundamentou sua teoria tinha o poder de aumentar o volume desuso’) tinha sido apresentada como em duas leis, conhecidas como ‘uso e e as estruturas do corpo. primeira na Filosofia. Lamarck disse desuso’ e ‘herança dos caracteres ad- que essa lei seria inútil, assim como a quiridos’. Já em Histoire naturelle des segunda, se os animais estivessem animaux sans vertèbres (História na- A contradição entre Lamarck sempre nas mesmas condições. No tural dos animais invertebrados, lança- e Darwin, tão propalada em entanto, se em determinado local ocor- do em partes de 1815 a 1822), as leis ressem mudanças e estas criassem, passaram a ser quatro. Para melhor textos didáticos, é um boato, para os indivíduos que viviam ali, a compreender a teoria lamarckiana, é tanto do ponto de vista necessidade de modificar seu compor- preciso analisar essa última versão. histórico quanto do ponto tamento, então esses indivíduos te- A primeira das quatro leis (‘ten- riam que usar mais ou menos certas dência para o aumento da complexi- de vista teórico estruturas e isso levaria a alterações dade’) surgiu apenas no segundo livro físicas. Nesse caso, indivíduos da mes- e foi enunciada como uma tendência, Sobre a segunda lei (‘surgimento ma espécie que habitassem ambientes de todos os corpos, para aumentar de de órgãos em função de necessidades diferentes, nos quais as mudanças fos- volume, estendendo as dimensões de que se fazem sentir e que se mantêm’), sem desiguais, não teriam as mesmas Lamarck disse, em Filosofia zoológica, necessidades, o que levaria à formação que os hábitos e as circunstâncias da de grupos também diferentes, gerando ILUSTRAÇÃO LULA vida de um animal eram capazes de as raças. Portanto, essa lei explicaria moldar a forma de seu corpo. Em His- como as mudanças no ambiente pro- tória natural, afirmou que as antenas duziriam a diversidade observada nos dos gastrópodes (como os caracóis) seres vivos. teriam surgido por ação dessa lei. Gas- Evidências da operação dessa lei trópodes mais simples, explicou, dian- foram apontadas por Lamarck. A au- te da necessidade de sentir os objetos sência de dentes nos tamanduás, por à sua frente, teriam concentrado ‘flui- exemplo, seria explicada pela falta de dos nervosos’ na região anterior do uso e consequente atrofia e desapare- corpo, e estes, juntamente com outros cimento, assim como os vestígios de fluidos corporais, estimularam a for- dentes em fetos de baleias (exemplos mação de novas estruturas, tecidos e de ‘desuso’). Já as girafas, que passam órgãos. longos períodos se alimentando de fo- Essa segunda lei gerou uma discus- lhas das copas de árvores altas, estica- são sobre o sentido em que Lamarck riam as pernas e o pescoço para alcan- usou a palavra francesa volonté. Esta çar seu alimento, o que teria levado ao é muitas vezes traduzida como ‘dese- crescimento dessas estruturas, e os jo’, mas uma melhor tradução seria quadrúpedes que pastam por longos algo como ‘ação gerada por uma ne- períodos de tempo adquiririam cascos cessidade’, e não ‘ação gerada por um para sustentar um corpo muito pesado desejo’. Parece claro que Lamarck não (exemplos de ‘uso’). >>> 285 | SETEMBRO 2011 | CIÊNCIAHOJE | 69
  • 3. ensaio Quanto à quarta lei (‘he- espaço. Assim, para ele, o rança do adquirido’), Lamarck processo de especiação é a não se empenhou em sua de- transformação de variação monstração ou defesa, já que intrapopulacional em inter- essa ideia, muito comum no populacional. Se a formação meio filosófico-científico des- de novas espécies se dá des- de Hipócrates (460-377 a.C.), sa maneira, a regressão des- era aceita entre os naturalistas se processo nos leva a conce- do século 19. Ele não se preo- ber uma origem comum para cupou em propor um mecanis- todos os seres vivos. A evo- mo alternativo para a herança, lução, portanto, não teria um apenas aceitando o que era o propósito: seria um processo senso comum sobre heredita- de leis simples, no qual não riedade em seu tempo. existe espaço para a ideia de Lamarck foi o primeiro pes- progresso, mas apenas de quisador a elaborar um siste- mudança ao longo do tempo. © MICHAEL NICHOLSON/CORBIS//LATINSTOCK ma teórico completo para de- Essas conclusões eram revo- fender e tentar explicar a evo- lucionárias e, certamente, lução biológica. Fez isso com contrariavam a noção lamar- base apenas em fenômenos ckiana de uma progressão naturais (leis físicas), sem lan- dos seres vivos. çar mão de forças imateriais (como ‘alma’, ‘princípio ativo’ FALSA CONTRADIÇÃO Lamarck e outras) ou entidades trans- foi um dos primeiros a elabo- cendentais como um deus. Mais que ckianas de uso e desuso e herança dos rar um sistema teórico completo para isso, ele lançaria mão, a partir de 1800 caracteres adquiridos, inclusive dan- tentar explicar a variação das espé- (quando trabalhava com fósseis de do exemplos (em animais domestica- cies ao longo do tempo. Ele defendeu moluscos), de dados paleontológicos dos). Mais tarde, em The variation of sua teoria da progressão dos animais para justificar suas ideias, o que faz animals and plants under domestication ao longo de vários trabalhos, e a últi- dele um dos primeiros a usar esse tipo (Variação de animais e plantas sob do- ma e mais completa versão dessa te- de evidência em favor da evolução dos mesticação, de 1868), Darwin reafir- oria, composta de quatro leis, foi ex- seres vivos. maria seu compromisso com essas leis posta no livro História natural. No Portanto, Lamarck era um meca- em sua teoria da pangênese, segundo entanto, Filozofia zoológica, trabalho nicista, materialista e empirista, em a qual todo o corpo contribuiria para que traz a versão com apenas duas sintonia com o pensamento científico- a formação de um novo ser: o sêmen leis, é quase sempre citado como a -filosófico de seu tempo e, em alguns seria constituído de minúsculas par- maior e a única referência do natu- casos, em sua vanguarda. Entretanto, tículas (as gêmulas) vindas das diver- ralista – puro boato. sua ideia de progressão da complexi- sas partes do corpo. Assim, como po- Mais ainda, as duas leis apresen- dade nos seres vivos – lei fundamental de ser facilmente deduzido, modifica- tadas na Filosofia (‘uso e desuso’ e do seu sistema – e suas explicações ções ocorridas no corpo poderiam ser ‘herança dos caracteres adquiridos’) para a origem da variação dentro da transmitidas aos descendentes. não eram originais. Lamarck as incor- mesma espécie e para a origem de es- A contradição entre Lamarck e porou ao seu sistema teórico quase pécies novas eram equivocadas. Darwin encontra-se, de fato, nas como um conhecimento consensual duas primeiras leis da teoria lamar- da época. Portanto, a contradição en- ACEITO POR DARWIN No livro Origin ckista – ‘tendência para o aumento tre Lamarck e Darwin, tão propalada of species (A origem das espécies, de da complexidade’ e ‘surgimento de em textos didáticos, é outro boato, 1859), Darwin lançou sua teoria da órgãos em função de necessidades’. tanto do ponto de vista histórico descendência com modificação guiada A grande revolução da teoria darwi- quanto do ponto de vista teórico, já por seleção natural. Ele apontou que niana foi entender a especiação co- que Darwin, com a teoria da ‘pangê- os descendentes de um indivíduo mo processo de conversão da varia- nese’, investiu muito mais nesse apresentam características diferentes ção entre indivíduos, dentro de uma conhecimento ‘consensual’ que La- (variações), mas explicou a origem população, em variação entre po- marck com sua teoria da progressão dessas variações usando as leis lamar- pulações diferentes, no tempo e no dos animais. 70 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 48 | 285