1) O naturalista francês Lamarck foi um pioneiro na proposta da evolução dos organismos e mudança de espécies, mas suas ideias são frequentemente mal compreendidas.
2) Lamarck desenvolveu uma teoria completa da evolução com quatro leis, não apenas duas, e Darwin reconheceu parte de suas ideias.
3) A oposição entre Lamarck e Darwin é um boato, pois Darwin aceitou algumas ideias de Lamarck e ambos se basearam em evidências empíricas.
1. ensaio B I O L O G I A
Lamarck: fatos e boatos
Teorias do naturalista francês continuam sendo mal divulgadas
RODOLFO FERNANDES A ideia de que os seres vivos se modificam, em um processo que pode gerar novas
DA CUNHA RODRIGUES espécies, é em geral atribuída quase exclusivamente ao inglês Charles Darwin,
Instituto de Biologia, até por alguns professores e livros didáticos. Essa atribuição, porém, desmerece
Universidade Federal Fluminense o trabalho de Jean-Baptiste de Lamarck, naturalista francês que propôs, de modo
pioneiro, a noção de transformação dos organismos, antes considerados imutáveis.
EDSON PEREIRA DA SILVA Embora o próprio Darwin tenha utilizado, em seus livros, parte das ideias de
Departamento de Biologia Marinha,
Universidade Federal Fluminense Lamarck, estas se revelaram incorretas. Seu trabalho inovador, porém, certamen-
te contribuiu para a aceitação futura da teoria da evolução, hoje um dos pilares
da biologia.
O francês Jean-Baptiste Pierre An-
toine de Monet, Chevalier de La-
marck (1744-1829), foi um importan-
Os dois maiores boatos criados a
respeito de Lamarck são: 1. suas ideias
evolutivas se resumiam a duas leis, e
te personagem na história da ciência. 2. o inglês Charles Darwin (1809-
Sua contribuição para o desenvolvi- 1882), um dos autores da moderna
mento do que conhecemos hoje como teoria da evolução, se opôs a essas leis.
teoria da evolução é bem divulgada, Assim, diante da pergunta “Quem foi
mas alguns autores, ao tentar resumir Lamarck?”, um aluno de ensino médio
as ideias desse naturalista, omitem pode responder “Foi o cara do pescoço
algumas informações e distorcem ou-
tras, criando assim ‘boatos’ sobre seu
verdadeiro papel.
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2. da girafa”, ou até “Foi o cara que dizia suas partes até um limite que seria se referia a um ‘desejo’, porque ele
o contrário de Darwin”. Essas respos- próprio de cada organismo. Lamarck, mesmo afirmava que “nem todos os
tas, e outras com conteúdo semelhan- tentando fornecer evidências empí- animais têm a faculdade de sentir”
te, permanecem vivas não apenas na ricas para essa lei, fez uma analogia (referindo-se a esponjas e águas-vivas,
boca dos alunos, mas também na de entre organismos mais simples e mais que não têm sistema nervoso) – se não
certos professores e no texto de alguns complexos e as fases de desenvolvi- sentem, não podem ter desejo. Se, para
livros didáticos. Este ensaio, ao revi- mento de um organismo (do ovo ao Lamarck, a diferenciação dos animais
sitar o legado de Lamarck, tenta des- adulto), visando demonstrar que, as- mais simples não ocorria por desejo,
fazer esses boatos. sim como um ovo se modifica e se tor- mas por uma necessidade fisiológica,
na um embrião, evidenciando um essa última tradução para volonté seria
TEORIA LAMARCKIANA A ‘progressão aumento da complexidade, os organis- mais apropriada.
dos animais’ é o nome da teoria que mos mais complexos também teriam A terceira lei da teoria lamarckista
Lamarck desenvolveu. No livro Phi- surgido a partir dos mais simples. Por- (‘desenvolvimento e atrofia de órgãos
losophie zoologique (Filosofia zoológica, tanto, segundo o naturalista, a vida em função de seu emprego’, ou ‘uso e
de 1809), ele fundamentou sua teoria tinha o poder de aumentar o volume desuso’) tinha sido apresentada como
em duas leis, conhecidas como ‘uso e e as estruturas do corpo. primeira na Filosofia. Lamarck disse
desuso’ e ‘herança dos caracteres ad- que essa lei seria inútil, assim como a
quiridos’. Já em Histoire naturelle des segunda, se os animais estivessem
animaux sans vertèbres (História na- A contradição entre Lamarck sempre nas mesmas condições. No
tural dos animais invertebrados, lança- e Darwin, tão propalada em entanto, se em determinado local ocor-
do em partes de 1815 a 1822), as leis ressem mudanças e estas criassem,
passaram a ser quatro. Para melhor
textos didáticos, é um boato, para os indivíduos que viviam ali, a
compreender a teoria lamarckiana, é tanto do ponto de vista necessidade de modificar seu compor-
preciso analisar essa última versão. histórico quanto do ponto tamento, então esses indivíduos te-
A primeira das quatro leis (‘ten- riam que usar mais ou menos certas
dência para o aumento da complexi-
de vista teórico estruturas e isso levaria a alterações
dade’) surgiu apenas no segundo livro físicas. Nesse caso, indivíduos da mes-
e foi enunciada como uma tendência, Sobre a segunda lei (‘surgimento ma espécie que habitassem ambientes
de todos os corpos, para aumentar de de órgãos em função de necessidades diferentes, nos quais as mudanças fos-
volume, estendendo as dimensões de que se fazem sentir e que se mantêm’), sem desiguais, não teriam as mesmas
Lamarck disse, em Filosofia zoológica, necessidades, o que levaria à formação
que os hábitos e as circunstâncias da de grupos também diferentes, gerando
ILUSTRAÇÃO LULA
vida de um animal eram capazes de as raças. Portanto, essa lei explicaria
moldar a forma de seu corpo. Em His- como as mudanças no ambiente pro-
tória natural, afirmou que as antenas duziriam a diversidade observada nos
dos gastrópodes (como os caracóis) seres vivos.
teriam surgido por ação dessa lei. Gas- Evidências da operação dessa lei
trópodes mais simples, explicou, dian- foram apontadas por Lamarck. A au-
te da necessidade de sentir os objetos sência de dentes nos tamanduás, por
à sua frente, teriam concentrado ‘flui- exemplo, seria explicada pela falta de
dos nervosos’ na região anterior do uso e consequente atrofia e desapare-
corpo, e estes, juntamente com outros cimento, assim como os vestígios de
fluidos corporais, estimularam a for- dentes em fetos de baleias (exemplos
mação de novas estruturas, tecidos e de ‘desuso’). Já as girafas, que passam
órgãos. longos períodos se alimentando de fo-
Essa segunda lei gerou uma discus- lhas das copas de árvores altas, estica-
são sobre o sentido em que Lamarck riam as pernas e o pescoço para alcan-
usou a palavra francesa volonté. Esta çar seu alimento, o que teria levado ao
é muitas vezes traduzida como ‘dese- crescimento dessas estruturas, e os
jo’, mas uma melhor tradução seria quadrúpedes que pastam por longos
algo como ‘ação gerada por uma ne- períodos de tempo adquiririam cascos
cessidade’, e não ‘ação gerada por um para sustentar um corpo muito pesado
desejo’. Parece claro que Lamarck não (exemplos de ‘uso’). >>>
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