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Os 100 Contos de Réis


                     Carlos Ney
         Publicitário – Jornalista – Cronista

                      Revisão:
              Livro 5 – Dejanir Cunha

                        Capa:
                    Clovis Brasil
             clovisteatro@hotmail.com

     Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica:
            Carlos Henrique Pimentel
                  CHP Designer
     http://projetolivropronto.blogspot.com/


Saiba mais a respeito do autor e do livro na internet,
    no Blog do Carlos Ney e conheça, também,
           o Livro Digital e o Áudiolivro:
      http://blogdocarlosney.blogspot.com/



 A reprodução parcial ou total de qualquer conto,
depoimento ou do livro é permitida desde que seja
       citado o nome do autor e a origem.
Sê sempre o mesmo.
      Sempre outro.
    Mas sempre alto.
      Sempre longe.
   E dentro de tudo.

    Cecília Meireles
O Contador de Histórias


Calcula-se que o hábito de ouvir e de contar histórias
venha acompanhando a humanidade em sua trajetória no
espaço e no tempo. Em que momento o primeiro
agrupamento humano se sentou ao redor da fogueira para
ouvir as narrativas fantásticas ou didáticas capazes de
atrair a atenção e o gosto dos presentes e de deixar, no
rastro de magia em que eram envolvidas, uma lição e/ou
um momento de prazer?

Conduzindo o leitor para o universo do seu estilo
individual em textos breves e concisos, o jornalista e
publicitário Carlos Ney apresenta seu primeiro livro,
intitulado “OS 100 CONTOS DE RÉIS” - um painel de
pequenas histórias que valem uma vida inteira.
E não pense você que poderá ficar indiferente ao enredo
dessas histórias, já que o grande gancho dos chamados
“contos mínimos” é a possibilidade que abre para a
interação entre o autor e o leitor, em face das situações e
dos personagens.
Palavras do Autor


     Não sei por que os outros escrevem. Nem mesmo sei qual
o gatilho que, num determinado instante, faz com que as pa-
lavras brotem e os textos, finalmente, comecem a ter sentido.
Mas sei que é um processo estranho, que envolve mais de uma
emoção, e que tem alguma parcela de sobrenatural, já que em
muitas das vezes o resultado surpreende até a mim.
     Este livro tem tudo a ver com Araruama – RJ, já que os
primeiros contos, em 2003, foram escritos para publicação em
jornais da cidade.
     Depois dos primeiros, não consegui mais parar.
     Se me perguntarem por que eu escrevo contos, direi que é
pelo desejo de envolver as pessoas nas mais diversas situa-
ções, com os personagens que eu imagino, e assim torná-las
cúmplices no processo de criação. E quero acreditar que, ape-
sar do conteúdo despretensioso, meu livro fará bem às pesso-
as. Pessoas comuns, das que realmente gostam de ler, mas que
não o fazem porque não lhes sobra tempo; ou porque a leitu-
ra é um hábito caro. E se elas forem comigo até ao final do
livro, e no correr das páginas eu conseguir arrancar delas uma
lágrima e um sorriso, terei alcançado meu objetivo. E poderei
então dizer que valeu a pena.
Sumário do Livro 5


  O espírito da coisa ................................................................... 11
  Em família ................................................................................ 13
  De mãos dadas ......................................................................... 15
  O reencontro ............................................................................ 17
  Minha rua .................................................................................. 19
  O anjo da noite ........................................................................ 21
  Quadrinhos ............................................................................... 23
  Negócios de família ................................................................. 25
  A escolha ................................................................................... 39
  Depois que você foi embora .................................................. 41
  O complexo de diógenes ........................................................ 43
  Um por todos e todos por um ............................................... 45
  Assim é, se lhe convém ........................................................... 48
  Azar ........................................................................................... 51
  O mistério do 7º elemento ..................................................... 55
  O crime não compensa ........................................................... 57
  O dia depois de amanhã ......................................................... 60
  Tarde demais ............................................................................ 63
  As vampiras .............................................................................. 64
  O lado escuro da rua ............................................................... 65
Livro 5
O espírito da coisa

    Acordei tossindo, com a sensação de que não podia mais
respirar. Meu coração cavalgava feito um potro louco, ameaçan-
do pular do meu peito, enquanto um frio glacial me congelava os
ossos. Mas o pior era o cheiro. Um cheiro insuportável de...

    – Enxofre!

     O grito que eu dei, veio junto com a certeza de que estava
vivendo o meu maior pesadelo. Ela estava ali, sentada na beira da
minha cama, no maior relax, como se não estivesse morta e en-
terrada debaixo de sete palmos de terra. A minha sogra. A pró-
pria visão do inferno. E nem adiantava eu tentar entender a lógi-
ca da coisa, já que minha mulher tivera de viajar às pressas para a
Paraíba – a mocreia estava morando lá com a outra filha, depois
de quase conseguir mandar para a cucuia o nosso casamento – só
para assistir ao enterro da velha. Ah, mas eu deveria ter imagina-
do que nem o coisa ruim iria aguentar este dragão por muito
tempo. Agora ela está aqui! A própria confirmação de que, real-
mente, existe vida após a morte. E que o inferno não é assim tão
longe. A jararaca voltou das profundezas, só para me roubar a
paz. E, pior ainda, ela foi logo dizendo, com voz de alma penada
e um bafo azedo de carniça, que veio para ficar. E eu nem posso
matá-la. Ah, isso não vai prestar. Muito mais do que apavorado,
eu estou indignado, me sentindo traído. Afinal, ou bem a pessoa
morre, ou não morre. Isso, de ficar indo e vindo, é a maior saca-
nagem. E a megera está se achando, passeando pelo meu quarto,
feita dona do pedaço. Será que cravar estaca no peito, adianta?
Ah, não! Ela está bebendo da minha cachaça mineira, direto na
garrafa. Agora emborcou, depois de secar o pote, atravessada na
minha cama. E pelos roncos, não vai acordar tão cedo. Mas que

                                                            [11]
vai acordar vai, porque a desinfeliz não faz nada pela metade,
quando o assunto é azucrinar este cristão. Enquanto ela está apa-
gada, eu vou espalhando estas velas acesas em volta da cama, e
me pegando com tudo que é santo que conheço. E como o mila-
gre é dos grandes, estou disposto a pagar qualquer promessa.

     – E você? Por acaso tem alguma ideia de como é que eu me
livro deste encosto?




   [12]
Em família

      Com passos cansados, Satanás atravessou toda a extensão da
imensa sala do trono, vazia naquela hora do dia. Das paredes,
aprisionados nas molduras, rostos de antepassados seus fitavam-
no com malignos olhos vermelhos. Um gemido escapou-lhe por
entre os lábios ressequidos, quando empurrou a pesada cadeira
de pedra para mais próximo da lareira. Com os cascos fendidos
bem junto às chamas crepitantes, deixou que o calor relaxasse
seus nervos. De uns tempos para cá, fazia cada vez mais frio. Era
o tal do efeito freezer que, segundo especialistas, estava reduzin-
do a camada de enxofre. Culpa das máquinas de picolé, de que os
jovens capetinhas tanto gostavam. Mais uma vez ele reconheceu
que não deveria ter permitido isso. Depois de tantas centenas de
anos infernais, lançando mão de todas as artimanhas para garan-
tir a supremacia do mal sobre o bem, a coroa já lhe pesava sobre
os chifres, e ele sentia que já não tinha o pulso forte de antes.
Claro que já deveria ter abandonado o barco no décimo século,
como o fizeram antes dele cada um de seus ancestrais. Mas, só de
imaginar seu filho reinando absoluto sobre todas as forças das
trevas, o pânico tomava conta dele. O garoto era um desastre!
Herdara da mãe, além dos traços finos, o sorriso que ficaria bem
melhor em um querubim. E desde que era só um diabinho mir-
rado, o moleque só se interessava por livros, música e poesia. O
fato é que Satanás sempre se culpou por ser um pai ausente. E,
depois que sua mulher morreu tão jovem, ele começou a mimar
demais o guri. Acordes dissonantes de uma melodia, chegando
até seus ouvidos, acabaram com o resto de paz que ainda tinha.
Afundando o rosto horrorizado nas mãos, ele abandonou-se ao
desespero. Lembrava-se agora que ontem, aqui mesmo nesta sala,
Deminho havia dito que estava tocando lira eletrônica, e que pre-
tendia formar uma banda de rock pesado: os Anjos do Inferno.

                                                            [13]
E a alegria do garoto era tão grande, que o velho Satã, contra
toda a lógica do universo, apenas balançou a cabeça assentindo,
incapaz de dizer a palavra que precisava ser dita. Não bastassem
aquelas roupas esquisitas e os cabelos compridos.

    Sem pensar, o velho ergueu os olhos e suspirou:

    – Deus, onde foi que eu errei?

    E apenas o estrondo assustador do maior dos trovões, fa-
zendo estremecer o palácio, respondeu a tamanha blasfêmia.




   [14]
De mãos dadas

     Quem nunca veio a um hospital durante a noite, quando o
silêncio é tão espesso que até assusta, não conseguirá imaginar a
sensação de tamanha solidão que cerca os compridos e frios cor-
redores. Mas, por instantes, esse silêncio foi quebrado pelo ruído
monótono das rodas da maca. Sobre ela, coberta até o pescoço,
uma criança de dez anos, da qual se vê apenas o rosto. Quando a
maca ultrapassou as portas de vai-e-vem da sala de cirurgia, mé-
dicos e auxiliares já esperavam por ela. Num canto afastado, lon-
ge o bastante para não atrapalhar, mas perto o suficiente para
que a menina possa sentir a sua presença, ele a observava. É a sua
filha que ali está, prestes a operar. A equipe médica movimenta-
se com a eficiência que só a longa prática proporciona. Mas, como
bom observador que é, percebe nos gestos de cada um deles, a
tensão de quem sabe que tem pela frente uma tarefa extrema-
mente difícil. Enquanto as horas passam, os movimentos deles,
bem como o ruído metálico dos instrumentos, vão tomando um
ritmo mais acelerado. De seu lugar, ignorado por todos, ele con-
segue pressentir o cansaço e a tensão que vão tomando conta de
cada profissional; o envolvimento deles, a sua determinação. Na
memória, ele revê os momentos que marcaram a vida de sua
filhinha nos cinco primeiros anos, quando ele esteve sempre tão
presente, acompanhando cada descoberta dela, e todas as suas
aventuras. Dando-lhe a mão, guiando seus passos, sabendo ouvi-
la. Eles sempre foram tão unidos...

      Era uma relação mágica, esta é a palavra, que transformava
cada momento que compartilhavam, numa ocasião muito espe-
cial. Entendiam-se, muitas vezes, sem a necessidade de palavras;
apenas por gestos e olhares. E conversavam sobre tudo, o que
sempre surpreendia a ele, já que ela era tão pequena. Até os cinco

                                                           [15]
anos, ele jamais deixou de estar junto com ela. Depois, repenti-
namente, teve de afastar-se. Claro, ele sabe que não teve culpa, já
que a escolha não foi sua. Mas ele tem certeza, e isso foi o que
mais o entristeceu, que o seu súbito desaparecimento magoou a
menina profundamente.

    O ruído do equipamento eletrônico, aumentando a intensi-
dade dos bips, trouxe-o de volta à sala de cirurgia. O movimento
da equipe era agora mais agitado. Nos rostos, parcialmente co-
bertos pelas máscaras, via-se o cansaço e a sensação da derrota
que se anunciava. Mesmo lutando uma batalha que sabiam ser
impossível, eles não se entregaram. Tentaram de tudo.

    Algum tempo depois, a criança levantou-se e veio até ele.
Abraçados, pai e filha foram embora. Um a um, os membros da
equipe de cirurgia deixaram a sala, exaustos e inconformados.

    Ali deitada, sozinha agora, a menina parecia dormir tranqui-
lamente, tendo no rosto uma expressão de puro contentamento.




   [16]
O reencontro

     Eram outros tempos, e as coisas eram feitas daquela forma.
Meu pai, rico proprietário de terras, levou-me até lá, na véspera
do meu aniversário de quinze anos. O casarão antigo, de dois
pavimentos, um pouco afastado do centro da cidade. Era, por
fora, igual aos outros tantos que por ali existiam. Um homem
negro, o mais bem vestido que jamais vi, abriu-nos a porta. Isola-
do por grossas cortinas que cobriam inteiramente seus janelões,
o salão imenso que tomava quase toda a extensão do andar infe-
rior, era iluminado por pesados lustres de cristal. Em toda a vol-
ta, mesas, sendo a maior parte delas ocupadas por casais. De al-
gum lugar, soavam os acordes suaves de um piano. Aos meus
olhos, aquele era um castelo que só existia nos livros. A mais
linda mulher que eu já havia visto caminhou até nós, cumpri-
mentando meu pai com respeitosa intimidade. Eu não conseguia
desgrudar os olhos do decote dela. Em atenção ao meu pai, asse-
gurou ela que mesma faria as honras da casa. Dando-me o braço,
levou-me até o bar, pedindo champanhe para nós dois. Sem pen-
sar, procurei a aprovação do meu pai. Percebendo meu embara-
ço, ela apertou meu braço e sorriu. Acho que foi naquele mo-
mento, que me apaixonei de verdade. Do resto, lembro-me pou-
co. O champanhe venceu meus receios, e eu abri meu coração.
Na certeza de ser correspondido, fiz amor com ela. Depois disso,
jamais tornei a vê-la; até hoje.

     Amanda e eu resolvemos nos casar, após um namoro de
dois intensos e loucos anos, numa cerimônia simples e sem con-
vidados. Hoje, em nossa lua-de-mel, ela me trouxe para conhe-
cer sua mãe. Olhando-as agora, uma ao lado da outra, pergun-
to-me como foi possível jamais haver percebido a extrema se-
melhança entre as duas.

                                                           [17]
Enquanto o sol se perdia por trás do horizonte, e um vento
outonal desprendia as folhas douradas das amendoeiras, o tempo
pareceu enlouquecer, e diante de mim, nos mesmos olhos e sor-
risos, passado e futuro tornaram-se uma coisa só. Depois, quan-
do o silêncio já ameaçava tornar-se acusador, tomei minha deci-
são. Por ser a única coisa a ser feita, abri o meu melhor sorriso.

     E, tomando entre as minhas a mão da minha primeira aman-
te, beijei-lhe respeitosamente as pontas dos dedos. Só a voz tre-
meu um pouco, quando eu exclamei as palavras de praxe:

    – Muito prazer!




   [18]
Minha rua

     Hoje, sem mais nem menos, me pego a caminhar sobre meus
próprios passos, desenhados num tempo em que era tudo tão
mais simples, e o mundo cabia inteiro nos limites da minha rua.
Com os olhos da memória, avalio cada muro e cada canteiro,
percebendo neles as marcas dos anos. Tudo tão igual, tudo tão
diferente. A começar pelos sons. Calaram-se os pássaros e tam-
bém as crianças. Existem muito mais carros e mais grades. Os
velhos sorrisos mudaram-se daqui. Portões, antes sempre tão
abertos, trancam-se agora, com uma desconfiança toda nova. Na
minha memória, o ano dividia-se em aulas e férias, numa simpli-
cidade que envolvia por inteiro as nossas vidas. E cada coisa no
seu tempo, já que existiam tempos e épocas. Tempos de soltar
pipa, de jogar bolinhas de gude, de soltar balão, e de fantásticas
corridas de carrinhos de rolimã. Todos eles religiosamente ob-
servados, sem que ninguém pensasse em alterar o calendário,
exercendo tais atividades em tempos impróprios. E mesmo hoje,
eu nem sequer sei quem nos dizia onde se iniciava um tempo e
terminava o outro. Já as épocas, eram determinadas pelas frutas.
Mamão, goiaba, manga, sapoti, jamelão, jabuticaba, amora, ca-
rambola e jaca, se ofereciam fartas, nos quintais da minha infân-
cia. Nas avenidas de árvores de tamarindo, crianças e frutos se
apinhavam nas tardes de intensa ventania. Passo pela casa do
Gordo, do Marcelo, do Pepe, esperando que a qualquer momen-
to algum deles apareça, ou grite meu nome. Em frente ao prédio
verde, olho para cima. A janela da Lia está fechada.

    – Deus, como eu amava aquela garota!

     Até conhecer Marina, com os maiores peitos que eu já tinha
visto. Marina foi a primeira mulher que eu levei para a cama,

                                                           [19]
embora ela jamais soubesse disso. E a sua presença era de tal
forma intensa nas minhas noites, que eu quase podia tocá-la, en-
charcando os lençóis de suor e de indecência.

     O porteiro do prédio, perguntando-me se eu estava procu-
rando alguém, despertou-me. Sem perceber, eu ficara ali parado,
olhando para cima, tendo no rosto o sorriso idiota dos apaixona-
dos. Claro que ali não morava mais nenhuma Lia; nem a Marina,
o Gordo, Marcelo ou o Pepe. Foram-se eles todos, como os dias
e as tardes da minha infância. Não existem mais, como as goia-
bas e os sapotis, dos quais eu ainda posso, às vezes, sentir o gosto
me adoçando a boca. No silêncio que restou, meus passos reper-
cutem na calçada, e são como uma canção triste que me acompa-
nha enquanto caminho de volta, no sentido inverso da felicidade.
E esta canção triste, ecoando naquela rua morta, é a prova do
quanto a vida deixou de fazer sentido.




   [20]
O anjo da noite

     Lá pelas tantas, Ranulfo despertou sobressaltado e com a
incômoda certeza de que havia alguém além dele no seu quarto.
À sua volta, a escuridão era total. Tentou apurar o ouvido, à cata
de algum som denunciador, mas o galope acelerado de seu cora-
ção tornava isso impossível. Tateando, buscou encontrar na me-
sinha de cabeceira, os óculos salvadores. Foi quando uma voz de
Cid Moreira reverberou pelas paredes, liquidando com o último
vestígio da sua já limitada coragem.

    – Volte a dormir, que você está sonhando!

    Talvez só por burrice, Ranulfo ainda perguntou:

    – Tem alguém aí?

    – Sim. Sou o seu anjo da guarda.

    Com olhos de puro êxtase, ouvindo emocionado os sinos
badalando sagrados cânticos, Ranulfo exclamava maravilhado:

    – Milagre, milagre!

    Mas, quando estava prestes a ajoelhar-se, rendendo ho-
menagem ao celestial visitante, Ranulfo se deu conta de que
estava inteiramente nu, por baixo da coberta. E sua vergonha
foi maior que a devoção.

    Enquanto isso, seus olhos míopes tentavam vislumbrar na
escuridão do quarto, aquele ser de luz, com seus cachinhos dou-
rados e asinhas prateadas. Mas, nada!

                                                           [21]
Apenas uma imensa mancha escura. Quando a mancha es-
cura se mexeu, Ranulfo não se conteve, e exclamou horrorizado:

    – Mas você é um negão!

     A ousadia da acusação, mesmo desmentida pela voz fina e
gaguejante, foi cortante como faca de açougueiro. Com movi-
mentos lentos, o gigante de ébano chegou-se mais para perto
dele. Com passadas rápidas, que repercutiam no pequeno apo-
sento como marretadas desferidas contra o chão, o visitante acer-
cou-se dele, e com o rosto tão próximo ao de Ranulfo, que este
pôde sentir- lhe o bafo alcoólico, respondeu secamente:

    – Tava esperando quem? Cada um tem o anjo da guarda
que merece!

     E, enquanto ensacava os objetos mais vistosos que suas gran-
des e ágeis mãos encontravam, o arcanjo Tião (foi assim que ele
disse chamar-se) fazia severo discurso contra o materialismo de
Ranulfo, e a favor da distribuição de renda. E não adiantou Ra-
nulfo argumentar por entre lágrimas, que morava num moquifo
(janela e porta conjugados), e que seu salário mal dava para che-
gar ao fim do mês. Por último, foram-se as derradeiras notas de
sua já magra carteira, engolidas por aquele saco que parecia não
ter fundo. Depois, já saindo, o anjo da noite deu um último aviso,
que aos ouvidos acovardados de Ranulfo, soou como ameaça:

    – De hoje em diante, eu não vou mais deixar você sozinho.

    Depois desta experiência mística, Ranulfo quer mais é que o
diabo o carregue.



   [22]
Quadrinhos

     Batman lançou o olhar treinado para o relógio, enquanto
colocava a lasanha ao molho siciliano, no forno para gratinar. O
prato favorito de Robin. Cinquenta minutos, ele pensou; o tem-
po exato para um banho e a loção hidratante. Depois, jantar à luz
de velas, dando o toque romântico. De passagem, revisou pela
centésima vez a mesa posta para dois. Outra vez ele sentiu falta
de Alfred (o mordomo dos Wayne, que esteve sempre ao seu
lado, desde os oito anos, quando assaltantes de rua mataram os
seus pais). Por conta desse crime, o Homem-morcego foi criado.
O justiceiro implacável que varreu o crime das ruas de Gotham
City. Agora, aposentado, vivia para o seu amor, feliz em ser ape-
nas o Bruce do Robin. Numa outra cidade, é claro, mais toleran-
te. Hoje, dez anos depois, ele espera por seu amado.

    – Ele esqueceu, com certeza, do nosso aniversário.

     E os dez anos desfilam por seu pensamento, arrancando um
sorriso nostálgico. Ultimamente, alegria e tristeza têm sido mais
frequentes, causando mudanças súbitas do seu humor. Isso, e a
insegurança. A diferença de idades, sempre ela, lembrando que
os relógios de ambos correm em velocidades diferentes. No iní-
cio, os vinte anos que os separavam sequer eram lembrados. Com
28 anos de idade, Bruce era um herói, aos olhos de menino de
Robin. Com carinho de tio, ele ensinou ao jovem pupilo – que
havia sido adotado por um primo seu, já falecido – todas as téc-
nicas de ataque e defesa que fizeram deles a dupla de mocinhos
mais famosos do mundo. Agora, Robin é quem administra o con-
glomerado Wayne. Há alguns anos, Bruce abriu mão disso, para
passar mais tempo em casa. Mas Robin foi à luta. Assim que se
formou, dedicou-se aos negócios com tanto empenho, que ago-

                                                          [23]
ra é o principal executivo do gigantesco empreendimento. Para
Bruce, sobrou a vida doméstica. Na cozinha, seguindo a orien-
tação de Alfred, descobriu uma nova forma de realização. Ado-
ro esta casa, ele pensa, enquanto os olhos pousam em cada peça
valiosa que foi colecionando no correr dos anos, nas viagens
que fizeram pelo mundo, numa lua-de-mel que parecia intermi-
nável. A vida é quase perfeita, faltando só um tantinho assim
para que o seu coração se aquiete. Olhando para o espelho do
banheiro, corre os dedos pelas rugas ao redor dos olhos. Os
cremes, caríssimos, já não estão funcionando. Depois, dando
um passo atrás, ele deixa cair a toalha, mostrando-se de corpo
inteiro. Um gemido involuntário escapa de seus lábios, ao cons-
tatar que a cintura está cada vez mais larga.

    – E Robin que não chega...




   [24]
Negócios de família

     Eu só soube quem era o pai dela muito tempo depois. Aí,
quando o assunto veio à tona, eu já estava tão envolvido que não
tinha mais como fazer o caminho de volta. Na verdade, com o
correr dos anos eu fui criando tantos muros em torno de mim
mesmo, que as mulheres costumavam sair da minha vida igno-
rando mais coisas, do que antes do nosso relacionamento. Afinal,
como poderia dividir segredos que não eram apenas meus, sa-
bendo que, pelo simples conhecimento deles, eu poderia estar
condenando esta pessoa à morte? E agora, quando passado e
futuro abrem-se à minha frente, que caminho escolher? Devo,
conforme o desejo de minha mãe, romper de vez com uma vida
que jamais foi a minha e que, de uma só vez, arrancou dos braços
dela o marido e o filho? Ou, assim como meu pai, cumprir com o
meu destino, fazendo aquilo que se espera de um Gambini?

                               1

Agosto de 1980

    Eu não conseguiria descrever os pensamentos que ocupa-
vam minha mente quando, naquela quarta-feira, desci do trem
depois de quatro anos ausente da minha cidade. Meu avô man-
dara me chamar, com urgência. O velho Tony, com aquele sorri-
so que sempre guardou só para mim, estava à minha espera. O
abraço foi demorado, e o silêncio de ambos foi mais eloquente
que qualquer palavra. Já no carro, eu ia correndo meus olhos pela
paisagem, tentando descobrir qualquer mudança. Mas, mesmo
após os anos decorridos, tudo parecia exatamente igual. O ran-
cho do meu avô, onde nós sempre moramos, tinha terras que se
perdiam na distância, e era, aos meus olhos de menino, do tama-

                                                          [25]
nho do mundo. Próximas a nós existiam outras propriedades.
Mas nenhuma delas se comparava ao nosso rancho. E de uma
forma ou de outra, todos os vizinhos dependiam do meu avô.
Mas ele era um homem duro, de olhar hostil e poucas palavras.
Que me lembre, eu jamais o vi sorrir. E com a morte prematura
de meu pai, minha mãe isolou-se em seu quarto, afastando-me
assim do convívio com ela. No início, quando perguntava por
ela, os empregados diziam que ela não estava bem de saúde. De-
pois de um tempo, já não perguntava mais. Só muito mais tarde,
ao tomar conhecimento da história toda, eu pude compreender
os motivos dela. Graças ao Tony, que no rancho desempenhava a
função de motorista de meu avô, eu jamais me senti sozinho. Ele
esteve sempre próximo de mim em todas as horas dos meus dias,
até o momento em que, dez anos atrás, eu fui posto no trem,
para completar os meus estudos na capital.

                                2

Abril de 1976

     O telegrama me alcançou quando havia terminado o meu
sexto ano de colégio. Minha mãe havia falecido, e eu estava sen-
do chamado para o enterro dela. Eu não sabia como lidar com
aquela perda. Junto com os bens que ela me legava, deixou para
mim o diário dela. Atendendo a seu desejo expresso, eu só o abri
quando já estava de volta ao colégio. E só então, através daquelas
páginas, eu pude descobrir quem realmente eram os personagens
mais importantes da minha vida. Segundo minha mãe, a família
Gambini, uma das mais tradicionais da Sicília, sempre esteve li-
gada a Cosa Nostra. Quando o primeiro navio trazendo imigran-
tes italianos aportou nos Estados Unidos, tinha entre eles dois
jovens Gambini. Poucos anos depois, em plena vigência da lei
seca, a família Gambini já participava da quase totalidade dos

   [26]
negócios ilegais que prosperavam nas grandes cidades norte ame-
ricanas. Além do abastecimento de bebidas alcoólicas, jogo, pros-
tituição e receptação de cargas roubadas, eles também estavam
infiltrados nos principais sindicatos. Mediante suborno, eles con-
trolavam políticos, policiais e até alguns juízes. Meu avô foi o
último dos grandes mafiosos que atuaram nos Estados Unidos, e
embora tivesse conquistado fama como o mais violento deles,
não conseguiu impedir que a maré negativa impulsionada por
um jovem e destemido promotor (que, ironicamente, também
descendia de família italiana), Francesco Gatuzzo, que depois veio
a se tornar juiz, fosse desmontando, tijolo por tijolo, o império
tão duramente construído através dos anos. E a cada golpe des-
ferido, ele falava através dos jornais que estava chegando cada
vez mais perto de colocar algemas no poderoso cabeça da Ca-
morra americana. Vendo-se cada vez mais acuado, meu avô deci-
diu eliminar o seu principal inimigo. E vários foram os atentados
contra o magistrado. De dia ou de noite, locais por ele frequenta-
dos eram explodidos, deixando feridos e mortos espalhados pe-
las calçadas. Mais de uma vez, o carro em que ele se encontrava
foi fuzilado. Mas, milagrosamente, Gatuzzo sobreviveu a todas
essas ações. E longe de se deixar abater, parecia ganhar mais alento
para destruir meu avô.

                                 3

     Apesar de independentes, com áreas de interesse bastante
definidas, as cinco famílias, Albernazi, Capobianco, Malatesta,
Carmona e Gambini, compunham uma organização única, a qual
cabia intermediar eventuais associações e, quando necessário,
arbitrar divergências. Meu avô era o capo di tuti capo, na organi-
zação americana. Por conta dessa função, ele fazia jus a uma por-
centagem de todos os negócios que eram executados pelas de-
mais famílias. Em contrapartida, cabia a ele impedir que as ativi-

                                                             [27]
dades ilegais fossem prejudicadas pela ação de terceiros. Assim,
preocupados com a perseguição que vinham sofrendo, chefes de
três famílias propuseram uma reunião, exigindo que meu avô se
declarasse incapaz de resolver a situação e abdicasse do cargo que
ocupava. Depois de muita discussão, ficou combinado um prazo
final de trinta dias. Por conta disso, numa atitude que só poderia ter
sido ditada pelo mais absoluto desespero, meu avô conseguiu,
mediante régio pagamento, incluir meu pai entre os poucos convi-
dados a uma recepção na qual estaria presente o juiz Gatuzo. Meu
pai havia sido escolhido apenas pelo fato de que era o único rosto
desconhecido pelos federais que serviam a Gatuzo. Neste momento
de sua narração, e para que eu pudesse entender bem os fatos,
minha mãe descreveu meu pai como um homem maravilhoso, que
jamais quis participar dos “negócios” da família Gambini. De tal
forma que, como forma de mostrar sua independência, não hesi-
tou em trocar o sobrenome Gambini, pelo de sua avó materna.
Primeiro como estudante de Artes, e depois como pintor, ele pas-
sou dois anos em Paris, e outros dois em Madri, onde conheceu
minha mãe. O casamento deles foi ignorado por meu avô, que
sequer respondeu ao convite que lhe fizeram. Mas, minha mãe
sempre soube disso, ele ansiava pela aprovação de meu avô. E essa
necessidade de provar seu valor, seria a explicação para o fato de
meu pai, assim que foi chamado por meu avô, ter aceitado, indife-
rente aos riscos decorrentes, matar friamente o juiz. Só que, não se
sabe como, o plano foi descoberto, e meu pai, tendo caído na ar-
madilha que lhe foi armada, foi fuzilado, e teve seu corpo jogado
na rua para que todos vissem. Dias depois, meu avô exigiu de mi-
nha mãe (que para ele jamais fez parte da família) que ela não
tornasse a se aproximar de mim. Como viúva de seu filho, ele per-
mitiria que ela continuasse vivendo ali, confinada em seu quarto.
Se descumprisse suas ordens, ele a expulsaria de casa e ela jamais
tornaria a me ver. E encarregou Tony, seu pistoleiro de maior con-
fiança, da tarefa de proteger o futuro chefe da família Gambini.

   [28]
4

     Depois de ler o diário de minha mãe, e apesar de todas
as coisas horríveis que ali eram descritas, pouca coisa mu-
dou em mim. Talvez se ainda estivesse vivendo no rancho,
ou se fosse alguns anos mais novo, o resultado pudesse ter
sido diferente. Mas não hoje.
     Eu estava de tal forma integrado à vida escolar, que era como
se jamais tivesse existido alguma outra. Estudos, esportes e di-
versão tomavam todas as minhas horas, em perfeita organização.
Nas férias anuais, minha dificuldade era ter de escolher, dentre
tantos convites feitos por meus colegas de colégio, para que lu-
gar eu iria. Dessa forma, tudo o que envolvesse o rancho, ou
qualquer das pessoas que ali moravam, de tão distante, ocupava
um lugar pouco expressivo em meus pensamentos. Após medi-
tar por uns três dias, queimei o diário, preocupado em que ele
pudesse cair em mãos erradas. Com aquele gesto, eu tinha certe-
za de deixava para trás um passado ao qual eu jamais me senti
ligado. Mas o que eu ainda não sabia, era que o destino já havia
traçado outros planos para mim.
     Na festa de encerramento do ano, antes do período das férias,
era tradição receber, para um grande baile, as alunas de um colégio
tão renomado quanto o nosso. Foi quando eu conheci Fiorella. Nas
férias, mudando totalmente de planos, decidi aceitar o convite de
um colega com quem eu tinha pouca intimidade, apenas pelo fato
de que a família dele tinha casa em um dos mais luxuosos condomí-
nios de Malibu, onde Fiorella estaria hospedada com suas amigas.
     Quando nos separamos, ao final de pouco mais de vinte dias,
eu e ela já havíamos combinado que nos casaríamos. Nos meses
que se seguiram, sempre que nossas licenças de final de semana
combinavam, nos encontrávamos na cidade. E, claro, já tínha-
mos feito nossos planos para que após o encerramento das aulas,
passássemos as férias juntos.

                                                            [29]
5

Agosto de 1980

     Enquanto o carro em que nós íamos reduzia velozmente a
distância que separava passado e presente, eu tomava consciên-
cia do quão diferentes eram as duas metades da minha vida. Do
garotinho que um dia se viu jogado no mundo, tendo de apren-
der a dividir os espaços com outros de sua idade, havia restado
muito pouco. Por nunca ter tido uma família, diferentemente dos
demais, a adaptação aos novos tempos foi relativamente fácil.
Agora, se ocorresse o inverso, e ele se visse obrigado a trocar o
presente pelo passado, como se comportaria? Tony, caladão como
sempre, mantinha-se atento ao volante, dando-me o tempo que
eu precisava para organizar as coisas em minha mente. Desde os
mais remotos dias de minha infância, as histórias que Tony con-
tava sobre as nossas famílias, desde a Sicília, eram guardadas como
tesouros em minha memória. Assim como aconteceu com ele,
quando tinha a mesma idade que eu, as histórias despertaram um
amor profundo pela terra e por nossos antepassados, que valori-
zavam a honra e a coragem acima de qualquer outra coisa.
     A família de Tony, na Sicília, sempre serviu aos poderosos
Gambini, e isto, para eles, era motivo de grande orgulho. O avô
dele veio para a América, com o pai de meu avô, que Tony me
disse, foi o maior de todos os Gambini. Assim, não deve ser difí-
cil imaginar o conflito que existia dentro de mim ao confrontar
os dois lados da moeda, já que para minha mãe, aqueles que eu
conheci como heróis, através das histórias contadas por Tony,
não passavam de reles criminosos. E agora, prestes a me encon-
trar com meu avô, eu tinha certeza de que teria de decidir por um
ou por outro lado, sabendo que seria essa decisão que iria deter-
minar todo o resto da minha vida.


   [30]
6

     Meu avô me aguardava na varanda. E se eu estivesse espe-
rando por algum gesto de carinho dele, teria me decepcionado.
Ele estava muito velho, e os anos haviam curvado um pouco
aquela figura imponente. Mas eu podia ver bem definida naquela
expressão, toda força que ali existiu. Durante alguns minutos, ele
apenas me olhou. Depois, fez um gesto para que eu me sentasse.
Só muito tempo depois ele perguntou o que eu havia achado do
diário de minha mãe. Por mais incrível que me parecesse, eu esta-
va absolutamente tranquilo. Por maior que fosse o poder daquele
homem, habituado a fazer prevalecer sua vontade, ele não con-
seguia me alcançar. E esta segurança ficou clara nas respostas
que eu dei a ele. Tentando poupar tempo, eu expliquei que não
tinha muita ligação afetiva com minha mãe, meu pai e com ele,
uma vez que jamais participaram da minha vida. Assim, amar ou
odiar qualquer um deles, pelo que fizeram ou deixaram de fazer
em seu passado, seria absurdo.
     Então, ele me contou quem eu era. E como a minha vida
começara com os primeiros Gambini, numa das aldeias sicilianas.
E embora fosse a mesma história que eu havia escutado de Tony,
ela soava diferente na voz do meu avô, já que ele ajudara a escrevê-
la. Muitos dos nossos orgulhosos antepassados viveram e morre-
ram para conquistar o direito de jamais serem escravos de outros
homens. E quando a Sicília foi invadida por estrangeiros, eles orga-
nizaram a resistência, formando grupos de guerrilheiros em cada
uma das aldeias, que atacavam de emboscada, com punhais e as
temíveis luparas, e que jamais faziam prisioneiros.
     Com o fim da guerra, os Gambini eram o poder a quem o
povo prestava obediência. E juntamente com outras poucas fa-
mílias abastadas, os homens de honra criaram uma organização
que oferecia justiça igual para todos os sicilianos. E que conside-
rava como inimigos o governo e todas as suas autoridades. As-

                                                             [31]
sim sendo, qualquer assunto da aldeia deveria ser discutido com
o Padrinho, e a decisão por ele tomada seria definitiva. Quem
comentasse tais assuntos com as autoridades de governo, estaria
quebrando a omertá, e pagaria por isso com a própria vida.
     Esta organização veio a ficar mundialmente famosa como a
Máfia (Cosa Nostra ou Camorra). Meu avô falou por quase qua-
tro horas. Depois, mandou que eu fosse me trocar, avisando que
o jantar seria servido pontualmente às dezenove horas.
     À mesa, ele não conversou mais comigo. No dia seguinte, fui
arrancado da cama pelo Tony, como fazia nas manhãs de minha
infância, que me convidou para andarmos a cavalo. Era como
uma volta no tempo. E como sempre fazíamos, terminamos o
passeio com um mergulho no lago de águas transparentes. Quando
voltei para casa, meu avô me esperava na varanda. Sem qualquer
preâmbulo, me perguntou por Fiorella Gatuzzo. Foi como se eu
tivesse recebido um soco no estômago. E antes que eu pudesse
me recobrar, ele foi categórico: queria que eu matasse o pai de
Fiorella. Não importava de que forma, mas teria de ser logo. Eu
devia isso a ele. Eu devia isso ao meu pai, como forma de apagar
de sua memória o fracasso que tanto envergonhou nossa família.
Enfim, era o que ele exigia de mim, por tudo o que eu havia
recebido dele até hoje, e pelo tanto que viria a ser meu, depois
que ele morresse. Tony conversaria comigo sobre os detalhes. E
quando eu ia argumentar, ele levantou-se, e subiu para o quarto
dele. Mas antes que chegasse ao meio da escadaria, sem se voltar,
ele avisou que se eu não desse o assunto por resolvido em seis
meses, o juiz seria informado de quem eu era, e do “verdadeiro”
motivo pelo qual me havia aproximado da neta dele. E, claro,
como eu não era oficialmente um Gambini, perderia qualquer
direito à herança dele. Depois disso, eu nunca mais vi o meu avô.




   [32]
7

Janeiro de 1990

      A mansão dos Gatuzzo, totalmente iluminada, se destacava
em meio ao verde dos magníficos jardins que a cercavam. O pre-
texto para a festa que ali se realizava, era o aniversário de dezoito
anos da única neta do juiz Gatuzzo. Mas, eles estariam apresen-
tando para a sociedade o noivo de Fiorella. Neste momento da
narrativa, eu devo esclarecer alguns pontos que ainda permane-
cem obscuros. Por imposição de minha mãe, que orgulhosa de
sua origem nobre, manteve como casada o sobrenome Fanini, eu
fui batizado com o sobrenome dela. E em meus registros escola-
res nada constava que pudesse me ligar aos Gambini. Na época
do casamento dos meus pais, o cerco imposto pelos Intocáveis (a
força-tarefa formada por agentes federais sob o comando do
promotor Gatuzzo) ameaçava de tal forma os assuntos da famí-
lia, que meu pai se aproveitou disso como motivo, e ao se casar
em Madri, terra de minha mãe, utilizou o sobrenome de solteira
da avó materna dele. E como Leonardo di Pietro, meu pai inves-
tiu grande parte da considerável fortuna de família da minha mãe,
na construção do mais moderno shopping center da capital es-
panhola. Por conseguinte, qualquer investigação que se fizesse
sobre mim, chegaria até o rico empresário, Leonardo di Pietro, já
falecido. Por conseguinte, quando meu pai foi fuzilado no aten-
tado contra o juiz Gatuzzo, documentos falsos obtidos na Sicília,
davam a ele um outro nome, nada havendo que o ligasse a famí-
lia Gambini; e por esse motivo, seu corpo jamais foi reclamado.

                                 8

     Na véspera do aniversário de Fiorella, eu fui chamado à bi-
blioteca do juiz, para que tivéssemos uma conversa reservada,

                                                              [33]
antes do jantar no qual eu estaria formalizando o meu pedido de
noivado. Não havia qualquer semelhança entre os dois homens
que, durante duas décadas foram os principais personagens de
uma guerra urbana sem precedentes. O juiz era simpático e fa-
lante. De uma gaveta perfeitamente camuflada na imensa escri-
vaninha de madeira maciça, tirou uma garrafinha de cristal, ser-
vindo em copinhos de cerâmica duas doses de um excelente licor
italiano, de menta. Durante quase duas horas, e eu confesso que
nem percebi a passagem do tempo, ele me fez falar sobre mim, e
meus projetos para o futuro. Quando eu disse a ele que pretendia
convencer Fiorella a ir para a Espanha comigo, onde um empre-
endimento imobiliário me havia sido legado por meus falecidos
pais, ele festejou a ideia.
      Horas mais tarde, eu e Fiorella ficamos noivos, com as
bênçãos da mãe e do avô dela, ambos viúvos. O toque de hu-
mor ficou por conta do convite feito pelo juiz, prontamente
aceito por mim, para que participasse com ele de uma pesca-
ria em alto mar, no barco de sua propriedade, o La Fiore. Eu
tenho certeza de que meu avô, apesar do imenso esforço que
isso lhe custaria, iria se engasgar de tanto rir, se viesse a tomar
conhecimento desse convite.

                                9

Outubro de 1994

    O iate singrava as douradas águas do Pacífico, rumo ao sol
que ameaçava esconder-se no horizonte. No convés superior,
abraçados, Fiorella e eu desfrutávamos da melhor das solidões.
Para trás ficavam todos os acontecimentos que transformaram,
no último ano, ambas as nossas vidas.
    A morte do juiz, na biblioteca de sua casa, vítima de um
ataque cardíaco fulminante, atraiu para a família Gatuzzo uma

   [34]
notoriedade incômoda. Durante semanas, furgões de reportagens
e jornalistas acampavam nos jardins da mansão, abordando em-
pregados e expondo a dor da família nos jornais de todo o país.
E durante todo o tempo, eu estive junto com Fiorella, não ape-
nas confortando, mas auxiliando ela e sua mãe nos procedimen-
tos legais decorrentes do falecimento, e que compreendiam exaus-
tivas reuniões com advogados. Como procurador da única her-
deira, cabia a mim aprovar ou não os consideráveis investimen-
tos de meu falecido sogro, em papéis e imóveis.
     Pouco mais de dois meses depois do juiz Gatuzzo, suicida-
va-se o velho Leonardo Gambini. Segundo as notícias, ele sofria
de uma doença degenerativa, conforme os exames que se espa-
lhavam junto ao corpo, e era orgulhoso demais para aceitar viver
o restante de seus dias na dependência de terceiros.
     O velho Tony cumprira a parte dele. Depois, previamente
orientado por mim – já que eu não poderia ter nenhuma partici-
pação nesses procedimentos – ele determinara a transferência
para uma conta numerada que eu abrira na Suíça, de todo o ouro
que compunha o espólio de meu avô (o velho não confiava em
nenhum outro investimento).

                              10

Agosto de 1980

    Depois que meu avô me deu o ultimato, fui procurar Tony.
Ele não fez qualquer comentário, enquanto eu narrava os acon-
tecimentos. Eu estava furioso. Disse a ele que iria matar o meu
avô. Ficamos os dois ali fora, sentados num dos bancos do jar-
dim, tomando cerveja e olhando as estrelas. E só muito tempo
depois, suavemente, Tony me falou que, de novo, eu não estava
pensando como a truta. E foi como se eu mergulhasse em um
redemoinho, enquanto os ponteiros do relógio do tempo gira-

                                                         [35]
vam alucinadamente no sentido inverso.
     Por trás, as terras de meu avô eram limitadas por uma mon-
tanha escarpada que abrigava a nascente do rio de águas muito
geladas que cortava toda a extensão do rancho. Num certo tre-
cho, havia se formado um lago natural de pouca largura, mas
bastante profundo, que todavia não impedia a progressão do rio
que, logo em seguida, tornava a correr velozmente, aproveitando
o declive do terreno. Era naquele lago, que Tony e eu pescáva-
mos. Um dia, para meu deslumbramento, uma imensa truta pra-
teada saltou, parecendo manter-se parada no ar. Tony me disse
que aquela era a mãe de todas as trutas. A partir desse dia, eu
fiquei obcecado em pegar aquela truta. Dias, semanas, meses se
passaram, e nem sinal dela. Enquanto eu voltava de mãos vazias,
Tony trazia para casa o seu peixe no balde (ele só admitia que
pescássemos um peixe, cada um). Tony não era de ficar dando
conselhos. E só opinava quando isso lhe era pedido. Mas, talvez
por ter visto o meu desespero, ele perguntou se eu sabia por qual
motivo eu ainda não havia conseguido pescar a grande truta pra-
teada. Como eu nada dissesse, ele respondeu que era porque eu
não estava pensando como a truta. Então, ele me explicou que
aquela espécie de peixe era muito inteligente. E a “minha” truta,
pelo tamanho que tinha, era a mais inteligente de todas. Durante
centenas de anos os peixes viveram naquele rio, e não precisa-
vam das nossas iscas para se alimentar. Os que eram pescados
por nós, não estavam com fome; eram curiosos. Uma truta, por
ser peixe de rio, jamais viveria naquele lago. Esperta como ela
era, poderia até passear por ali, mas buscaria segurança na parte
mais profunda do lago. Depois deste dia, mudamos nossas iscas,
e utilizamos linhas mais fortes. De barco, ficávamos os dois, ho-
ras a fio, imóveis e em silêncio. Quase um mês depois, eu pesquei
a grande truta prateada. Conforme havia prometido a Tony, que
só aceitara me ajudar sob essa condição, eu a devolvi ao lago.
     Agora, tantos anos depois, a história me voltava com todas

   [36]
as cores daquele verão passado. E por causa dela, eu sabia o que
deveria fazer. Mas, para isso, eu iria precisar mais ainda de Tony.
E foi o que eu disse a ele.
     Ele havia me falado do sonho que tinha. Quando meu avô
morresse, e se eu não viesse mais morar aqui, ele gostaria de
viver na Sicília. Se tivesse algum dinheiro, só o bastante para
comprar um pequeno sítio na terra de seus avós, ele seria o
homem mais feliz do mundo.
     Agora, eu falei do sonho dele e também do meu, que nada
tinha a ver com a família Gambini. Meu avô havia encaminhado
meu pai para a morte, e agora estava querendo fazer a mesma
coisa comigo. E não adiantava eu abrir mão da fortuna dele, já
que meus pais haviam garantido meu futuro. Se eu não cumpris-
se a sua ordem, ele afastaria de mim a mulher da minha vida. E
isso, eu não iria permitir. Conversamos durante a noite toda. Tony
manteve-se inflexível em um ponto: o velho juiz deveria morrer
pelas minhas mãos. Eu era um homem de honra, e não poderia
fugir ao meu destino. Ao contrário do que eu pudesse estar pen-
sando, meu pai não era um tolo. Ele fez o que fez, de forma
consciente, porque sabia do seu dever de sangue. Matando o juiz,
aí sim, eu estaria liberado para fazer qualquer outra coisa. Quan-
to ao sonho dele, ele me disse, viria sempre depois do dever de
cuidar de mim, enquanto eu precisasse dele. Porque ele também
era um homem de honra, e havia se comprometido com isso.
Depois, olhando dentro dos meus olhos, finalizou com as pala-
vras que selaram o nosso acordo:
     – Pelo seu sonho, qualquer homem deve estar disposto a
fazer o que for preciso.
     Depois disso, conforme meu avô havia determinado, Tony e
eu conversamos sobre “os detalhes”. Quando o sol já se mostra-
va, nós nos separamos com um abraço demorado.



                                                            [37]
Final

      Sem outros parentes conhecidos, o herdeiro legal de meu
avô era, no papel, o irmão mais novo dele, Carlo, residente na
Sicília. Meu avô tinha um documento assinado por ele, me
nomeando procurador. Mas, esta procuração só passaria às
minhas mãos se eu matasse o juiz.
      Por esse motivo, a vida de meu avô teria de ser preservada
até que ele, conforme a promessa feita, entregasse a procuração
nas mãos de Tony, que a traria para mim. Pelos planos que eu
havia traçado, tão logo tivesse a posse do rancho – e já que meu
avô não estaria mais vivo – eu o venderia, entregando a Tony,
conforme os desejos de meu avô, metade do valor apurado. A
outra metade seria dividida entre os outros mais de vinte empre-
gados, todos italianos, que durante quase trinta anos serviram
lealmente aos Gambini, aqui na América. Antes de deixar o ran-
cho pela última vez, Tony me deu o frasco com um poderoso
veneno que seria acrescentado ao licor de menta que o juiz, con-
trariando ordem expressa de seu médico, bebia reservadamente.
Essa foi a forma que eu encontrei de harmonizar passado e pre-
sente, sem comprometer o futuro que eu escolhi para mim. Quis
o destino que eu, para deixar de ser definitivamente um Gambi-
ni, tivesse de agir exatamente como um.




   [38]
A escolha

     Desde que a lembrança alcança, nós estávamos sempre jun-
tos. Dois garotos da mesma idade, vivendo dias despreocupados,
numa época em que a maldade ainda não havia sido inventada. A
semana inteira, eu ia para casa dele, imensa, e com um quintal
que abrigava mangueiras generosas. Mocinhos e bandidos das
nossas brincadeiras, nem percebemos que o tempo passava à nossa
volta. Até que, adolescentes, ele rumou para outra vida, em São
Paulo, quando seu pai assumiu a direção da fabrica do sogro, e eu
tive de meter a cara nos livros, brigando por uma vaga difícil na
universidade pública. Nas férias, nos dois primeiros anos, eu ia
para o sítio deles, no interior paulista. Depois, tendo de conciliar
estudo e trabalho, só nos comunicávamos por cartas. E mesmo
essas, na medida em que o tempo me faltava, foram escasseando.
Faz quinze anos que não nos vemos. Claro que eu tinha como
certeza o fato de que ele estaria numa boa, tocando os negócios
da família. Jamais imaginei que alguma coisa pudesse sair errada
para ele. Por isto, é tão difícil acreditar no que vejo agora. Mas é
ele. Eu o reconheço, mesmo com os cabelos desgrenhados, a
barba imensa e as roupas imundas. Logo ele que sempre foi tão
vaidoso. Sentado na calçada, com olhar vazio, indiferente ao
movimento das pessoas, a imagem do meu amigo de infância é
um grito desesperado de socorro. Meses antes, eu teria atravessa-
do a rua – atravessado o tempo – e o levantaria da calçada imun-
da, abraçando-o sem qualquer constrangimento. Meses antes...

    A verdade é que a vida nunca foi fácil para mim. A luta pela
sobrevivência sempre foi acirrada, e este processo consumiu meus
sonhos e toda a minha energia. O casamento com a mulher da
minha vida foi bom só no início. Agora, nos odiamos mais do
que nos amamos. Meses atrás, larguei a Defensoria Pública –

                                                             [39]
minha última tentativa de mudar o mundo. Decidido a ganhar
dinheiro, ingressei num grande escritório de advocacia. Lá, eu e
os outro vinte e quatro litigantes pisamos uns nos outros, na ten-
tativa de nos mantermos à tona.

    Então, o que eu posso fazer por este meu amigo?

     O apartamento em que moramos, é pago pela minha mu-
lher; e ela faz questão de me lembrar disso quase todos os dias.
Um amigo fracassado é tudo do que eu não preciso para con-
sertar o meu casamento. Por outro lado, que bem faria para as
minhas aspirações profissionais, ser visto abraçado a um men-
digo, quase na portaria da empresa? Assim, viro as costas para
o meu amigo de infância, e para o cara que eu um dia fui, tor-
nando a me juntar às pessoas que, como eu, precisam desespe-
radamente continuar vivendo.




   [40]
Depois que você foi embora

     Agora eu já consigo ver o dia que começa a apontar por trás
da linha de montanhas. Agora eu sei que, daqui a pouco, o vento
cortante que encrespa a superfície do mar, vai serenar, e os pri-
meiros pássaros, com seu canto suave, irão saudar a nova manhã
que virá. Agora eu sei que por trás de toda a imensa tristeza da
longa noite, existe sempre a certeza de um novo amanhecer. Em
meu rosto, a lágrima secou. Mas, como um cristal que o tempo
endureceu e que a lembrança preserva, ela está guardada, ainda,
como cada um dos nossos dias. Assim como todas as palavras e
os silêncios mais eloquentes. Eu preciso dizer que, mesmo quan-
do nosso amor era tanto que até doía, e o nosso mundinho pare-
cia nos proteger da vida lá de fora, às vezes eu me pegava olhan-
do para a porta, com medo do que poderia se esconder por trás
dela. E eu não estava tão errado, você concorda? Depois, tudo se
transformou numa eterna noite, cercada de frio, dor e irrealida-
de. E a noite foi tão longa, que eu julguei que seria eterna. Hoje,
eu já consigo caminhar por esta estrada que não tem fim nem
começo e, sozinho como jamais me lembro de ter sido um dia,
não sentir pena de mim mesmo. E mesmo quando olho o mar
quebrar-se nas pedras lá embaixo, já não ouço o apelo das ondas
me oferecendo paz e insistindo para que eu mergulhe nelas, be-
bendo delas, respirando delas.

    Na verdade, foi quando eu comecei a ouvir sua voz, repetin-
do vezes sem conta que esta não era a saída, que desse jeito ja-
mais tornaria a encontrar você. Por isso, e só por isso, eu tive
forças para lutar contra mim essa batalha de todos os dias, no
desespero de todas as horas. Até que pudesse ver, desenhando-se
no horizonte distante, os primeiros raios do sol. E assim, eu vou
caminhando por esta estrada sem fim nem começo, e mesmo

                                                            [41]
que a vontade de desistir seja ainda tão forte, eu sigo adiante.
E não vou parar nunca enquanto puder sentir em meus dedos
a suavidade da sua pele, a luz dos seus olhos guiar a minha
vontade, e a doçura da sua voz sussurrar em meus ouvidos
que você ainda me ama.




   [42]
O complexo de diógenes

     Quando Diógenes recebeu do patrão a notícia de que es-
tava despedido, correu para casa, ansioso que estava em aba-
far, nos carinhosos braços da amada, a dor da ingratidão. Mas,
chegou atrasado.

     Com o braço negro e musculoso sobre a mulher que era de
Diógenes, Chicão, o mecânico, roncava desavergonhadamente
na cama que era de Diógenes. A indignação queria que ele gritas-
se bem alto a sua revolta. Mas, a cautela o manteve calado. Afi-
nal, vai que o negão acorda mal-humorado?

     Percebendo que sobrava naquele quadro familiar, decidiu
abandonar a casa. Na saída, ainda trôpego pelo susto, pisou no
rabo do cachorro que, como um tapete peludo, espalhava-se jun-
to à porta. Levou uma mordida. E isto, na cabeça conturbada de
Diógenes, foi a gota d’água.

    Sentindo-se perseguido pela humanidade, decidiu isolar-se
dela. Só com a roupa do corpo, tomando como norte a monta-
nha mais distante que a vista alcançava, iniciou a jornada sem
volta. E conforme os dias iam virando semanas, um fervor místi-
co começou a tomar conta dele.

     Enquanto as semanas iam virando meses, a extrema solidão
agia naquele cérebro doente, criando nele um cego fanatismo.

    Por isso, quando se viu diante da montanha que ele escolhe-
ra como destino, teve a ilusão de que era o próprio Deus. E na
crença de que subia os degraus para o céu, iniciou a penosa esca-
lada. Quase no topo, encontrou uma gruta. Nela, preservadas da

                                                          [43]
chuva e do sol de anos a fio, as quinquilharias deixadas por
algum outro que, como ele agora, resolvera dar uma banana
para o mundo material. Dentre tudo, uma lamparina a óleo
chamou sua atenção.

    Agora, noite após noite, ele caminha até o ponto mais
alto da montanha, e com a lanterna erguida sobre a cabeça,
contempla com olhos de pai a cidade que se espalha sobre
seus pés, cumprindo a sina dos deuses, que é de velar o
sono de seus filhos.

   Lá de baixo, as pessoas olhando a chama que desafia o
negrume da noite, divertem-se com a obstinação do louco
da montanha.




  [44]
Um por todos e todos por um

   – Dartagnan, sou eu... – A voz que hesita, demonstra clara-
mente o enorme conflito entre ligar e não ligar.

     – Eu sei que não deveria estar telefonando para você. Eu
jurei que jamais faria isso. Não depois daquela noite.

    – ...

    – Espere, me deixe falar. Você acha que se não fosse tão
importante, eu estaria falando com você? Estaria passando
por cima do meu orgulho, depois das coisas horríveis que você
me disse?

    – ...

    – Você pode escutar, Dart? Tem um bicho nojento me acu-
ando na minha cozinha – o gorducho Porthus falava aos berros,
enquanto grossas lágrimas corriam dos seus olhos.
    Eu estou trepado numa cadeira, armado com uma ridícula
colher de pau, à mercê deste... deste...

    – ...

    – Você não entende? Este animal horroroso está preparan-
do o bote. Ele está esperando eu descer. Mas eu não vou, nunca.
– Porthus, agora, chorava copiosamente.
    Bem próximo à cadeira onde Porthus se equilibrava, um mi-
núsculo camundongo, indiferente ao pânico que causava, senta-
va-se sobre as patas traseiras, devorando com gula os sucrilhos
que se espalhavam pelo chão.

                                                        [45]
– ...

    – Você quer saber de Athos e Aramis? Eles estão viajando.
Alguma surpresa? Agora, eles quase não têm tempo para vir aqui.
Estou só. Eu contra o mundo.

    – ...

     – É um rato! Será que você não me ouve? Um rato imenso e
feio. – Porthus estava histérico agora.
     O bicho está olhando fixo para mim, com seus olhinhos
malévolos, só esperando que eu adormeça ou morra.

     O apartamento, de quatro quartos, na cobertura de um pré-
dio de poucos andares na Lagoa Rodrigo de Freitas, fora herança
dos pais de Porthus. Nos bons tempos, quando ele ainda estava
casado com Dartagnan, todo dia era uma festa. Athos e Aramis,
um casal que ele conhecera logo no primeiro ano de faculdade,
eram artistas talentosos e loucos. Pintavam e esculpiam num ate-
liê em Jacarepaguá, mas viviam ali, transformando o apartamen-
to em um circo. Era o início dos anos noventa, e mesmo na zona
sul do Rio os quatro gays, morando juntos, criavam uma silenci-
osa hostilidade por parte dos demais condôminos. Mas eles, jo-
vens e felizes, nem se importavam com isso.
     Na cozinha, ainda aboletado sobre a cadeira, com o telefone
sem fio grudado no ouvido, Porthus, dividido entre o pavor e o
despeito, continuava fazendo o seu número.

     – Está bem, doutor Dartagnan. Não vou mais desperdiçar o
seu tempo. Não é preciso ficar me lembrando que você tem mi-
lhares de clientes aguardando por você. Claro, um psicólogo tão
famoso. Eu vejo você na tevê, às vezes. Sempre muito pondera-
do, demonstrando imensa sabedoria. Parecendo estar muito bem.

   [46]
No final das contas, eu deveria ser um obstáculo na sua vida. Um
trambolho gordo e ridículo. Sempre tirando mais do que dando.

    – ...

      – Como? Você me pergunta o que é que eu quero? Eu que-
ro... eu quero... sua atenção, merda! Que você se importe. Ou
pelo menos finja que se importa. Que venha até aqui, merda!
Ridículo! Ridículo! Ai, como eu sou ridículo em pensar que você
se abalaria; que viria até aqui.

    – ...

    – E daí que você esteja em São Paulo? Não é de marte que
nós estamos falando. É de São Paulo. Antes, você nem pensaria
duas vezes. Mas, agora é agora, certo? Não está nem aí. Que se
exploda! Vou desligar, Dart.

    – ...

     – Não, doutor. Seu tempo é precioso demais. Volte para o
que é realmente importante para você. Desculpe por eu ter
telefonado.

     Com tanto ódio que esqueceu o motivo de sua aflição, Por-
thus desceu da cadeira, aos prantos, e saiu da cozinha, pisando
forte. Se não tivesse fugido bastante rápido, o camundonguinho
teria sido esmagado por aqueles pés imensos.




                                                         [47]
Assim é, se lhe convém

     Pompilho aspirou com gosto o cheiro doce dos mana-
cás, que vinha de seu canteiro. Depois, fechou as janelas. Os
olhos argutos vistoriaram cada cômodo de seu pequeno cas-
telo. Era detalhista, o que se há de fazer? Compulsivo, diri-
am os modernos, como se diagnosticassem uma patologia.
Virtude, isso sim, argumenta ele.

    – Das minhas raras virtudes, sendo a modéstia a princi...

    A campainha, tocada insistentemente, arrancou-o do seu
monólogo. Sim, porque Pompilho era dos que se bastavam,
convivendo em doce harmonia consigo próprio. – Afinal, não
se diz que...
    A campainha tocou de novo, ainda mais nervosa. Lá estava
ele de novo a conversar com seus botões; fazer o quê, se o
hábito faz o...
    À porta, emoldurada como uma pintura renascentista, ten-
do ao fundo a rua que despertava para o novo dia, estava o
amor da vida dele.
    Lucineide.
    Que no dia mais negro da sua existência, escafedeu-se mun-
do afora, sem qualquer...

    – Cacete, Pompilho, vai ficar aí parado como um dois
de paus?

    Era Lucineide.
    Deus, como sonhara com aquele momento. Como fantasia-
ra em suas noites sem sono, o doce instan...


  [48]
– Sai da frente, homem, que estou apertada.

     Era Lucineide. Loura e linda. E não estava sozinha, já que
trazia pela mão um garotinho de no máximo dois anos, da cor de
chocolate. E ela chispou para o banheiro, deixando os dois ali,
olhando-se constrangidos. Pompilho e o pimpolho; o pimpolho
e o Pompilho. É claro que Pompilho amava as crianças, assim
como amava todos os animaizinhos da natureza. Mas, ele tem de
confessar, preferia as plantas, por uma questão de afini...

    – Pombas, Pompilho, você já saiu do ar, de novo. Deixa eu te
apresentar. Este é o Júnior, seu filho.

    – Filho, meu Deus. Um filho de quase..., quase...

    – Quantos anos tem o garoto?

    Era uma pergunta banal, sem qualquer outra intenção que
não a de estreitar, através do conhecimento, os laços da pater-
nidade recém adquirida. Mas, Lucineide, sensível como era,
levou a mal.

    – Viu só? Você já está duvidando que o Ariclenes seja
seu filho...

    – Ariclenes? Mas ele não é o Júnior?

    – É Júnior por parte de pai; você! Ariclenes é por causa de
um sonho que eu tive com o vovô, que Deus o tenha – os dois
se persignaram.

    – O velho pedia que eu colocasse no neto, o nome do me-
lhor amigo dele. Você acha que eu fiz mal?

                                                         [49]
Claro que Pompilho não achava. Lucineide sabia melhor do
que ninguém, que Pompilho era espiritualista convicto, tendo pelas
coisas do além um respeito que beirava o medo. E para mostrar
que não iria brigar com a verdade, Pompilho abraçou o guri, pre-
ferindo ignorar que o moleque demorara bastante para nascer, já
que ele e Lucineide estavam separados há mais de quatro anos. E
dava gosto de ver aqueles dois assim abraçados, alheios às dife-
renças, uma vez que Pompilho era mais branco que consciência
de anjo, enquanto o garoto – por certo graças a mediunidade da
mãe – havia puxado ao melhor amigo do avô dela, que com cer-
teza, tinha os dois pés no continente africano. A vida é repleta
desses pequenos milagres. Não vê o caso deles? Ontem mesmo,
Pompilho tinha apenas a si próprio. Agora, tinha esposa e filho,
de uma só tacada. E nesta hora, como deixar de lembrar da dor
que sentira, dias depois de Lucineide ter ido embora, quando leu,
pichada na parede de sua casa, a frese terrível:

          TODO CASTIGO PARA CORNO É POUCO!

    Humilhado, buscara conselho com o padrinho, missioná-
rio de uma obscura ordem religiosa. E desse homem santo,
ouvira as palavras reconfortantes:

    – Chifre é coisa que não existe. Tire isso da sua cabeça.




   [50]
Azar

     Aquela era uma pequena cidade, pouco mais do que uma
vila de pescadores, no interior de Portugal do ano da graça de
1901. As casas ali eram pequenas, e muito próximas umas das
outras. Construções simples, descoloridas, todas no mesmo esti-
lo, como se feitas de uma só vez. Nas manhãs, as mulheres apro-
veitavam o bom tempo, e iam até a bica, no centro, onde um
enorme tanque circular era usado para lavagem de roupas. E ali,
naquele território só delas, vidas alheias eram, como as roupas
sujas, lavadas em público.

    – A rapariga, numa outra vida, jogou pedra na cruz. E ago-
ra vive para expiar as culpas passadas. Pior, que me arrastou
nesse calvário.

     Distante dali algumas quadras, a tal rapariga bordava delica-
das florezinhas, numa das peças do seu enxoval de casamento. A
sorte jamais sorrira para a doce e ingênua Popônia. Nascera tar-
de, quando os pais já tinham mais com que se preocupar, e dez
anos depois do irmão, que vendo-se deposto da condição de fi-
lho único, jamais lhe perdoou tal afronta. Eram abastados, por
ser o pai dono de um dos poucos barcos de pesca, da vila. Mas,
isso só durou até o dia do primeiro aniversário de Popônia. Uma
tempestade tão terrível quanto inesperada, impediu o retorno do
barco. Ninguém escapou. A mãe, com a saúde abalada desde o
parto tardio, viu agravado o seu estado, falecendo poucos meses
após. O irmão, culpando-a pelos infortúnios, deixou a cidade para
sempre, embarcando num cargueiro de bandeira espanhola. Para
fazer face às dívidas acumuladas, a casa teve de ser vendida.

    Castorina, alegando razões de coração, mas na verdade de

                                                           [51]
olho gordo no pequeno capital que restara, assumiu a guarda da
criança. A partir desse dia, jamais deixou de referir-se à sobrinha,
como um fardo. Não satisfeita de tê-la como criada sem paga, a
pérfida Castorina fazia questão de tornar-lhe a vida, um suplício.
Assim, os anos foram passando, todos iguais. Até que um dia,
bateram à porta. Estando sozinha, já que a tia, como de hábito,
saíra a bater pernas pelo comércio, teve um momento de indeci-
são. O desconhecido procurava um quarto para alugar. Ora, na-
quele fim de mundo, alugar um quarto para um viajante, era sem-
pre um excelente negócio. Qualquer das casas, ela tinha certeza,
acolheria com entusiasmo tão distinto cavalheiro. Vencendo pela
primeira vez o velho medo, decidiu fazer entrar o desconhecido,
para que esperasse pela tia. E ainda serviu-lhe café e bolachas,
ignorando a sovinice da megera. Os passos pesados da Castori-
na, ressoando no alpendre, interromperam a agradável prosa dos
dois. Ao ouvir-lhes as risadas, a megera trancou a cara. Mas foi
quando viu o almofadinha aboletado em sua poltrona, com ares
de dono, que o vermelhão da raiva subiu-lhe do colo ao rosto.
Percebendo os já tão conhecidos sinais, Popônia apressou-se a
explicar-lhe que o gentil senhor viera alugar um quarto. Santa
medicina! Animada com a possibilidade de embolsar uns escu-
dos, a agora toda gentil Castorina abriu um de seus raros sorri-
sos, pondo à mostra os dentes estragados. Sorriso que quase vi-
rou um engasgo, quando soube que a tonta da sobrinha dobrou
o valor que ela própria pediria. E qual não foi sua surpresa quan-
do o estranho, com aquele gesto de mãos que só os muito ricos
sabem fazer, aceitou sem regatear.

   – Será que pedi pouco? – a interesseira pensou consigo
mesma.

    E conforme o tempo passava, a Castorina melhor conhecia
os detalhes da vida do inquilino. Era comerciante, e ausentava-se

   [52]
por conta dos negócios, a cada quinze dias. Mas, ao retornar,
sempre trazia mimos valiosos para ela e para a sobrinha. A casa,
graças a generosidade dele, começou a dar sinais dos bons fados.
Pintada de novo, exibia vistosas cortinas em suas janelas, e uma
infinidade de flores multicoloridas, arranjadas em vasos e jardi-
neiras, pelas caprichosas mãos de Popônia. Anfilófio – este era o
nome do rapaz – tratava a ambas com tão gentis maneiras, que a
Castorina logo encasquetou que o gajo estava a lhe fazer a corte,
já que era das que julgam que o mundo gira em torno de seu
próprio umbigo. Assim, quando ele solicitou uma entrevista em
particular, esmerou-se em fazer caras e bocas, apertada em rou-
pas que lhe amassavam as carnes, na tentativa de mostrar-se mais
sedutora. O golpe só não foi maior porque a manhosa tinha sete
vidas. E cada uma delas, era mais calculista que a outra. Ora, se o
parvo apaixonara-se pela desmilinguida da sobrinha, deixe-se es-
tar, que nem tudo estava perdido.

     Afivelando às fuças um sorriso que mais parecia um esgar,
fingiu-se contente, aceitando que noivassem. Mas fez exigências.
Todas muito justas, dizia a pérfida mulher, já que abrira mão de
todo o pequeno patrimônio de uma vida, para que a sobrinha
tivesse dias de princesa. Outro, menos apaixonado, teria recusa-
do tamanho despautério. Anfilófio, contudo, sequer protestou.
Assim, toda desmanchada em salamaleques e rapapés, a Castori-
na viu Anfilófio colocar no delicado dedo da amada, o anel do
compromisso, que a broaca avaliou como caríssimo.

     Mas, cinco meses depois, uma carta endereçada a Popônia,
foi interceptada pelas ágeis mãos de Castorina. Um advogado
informava que Anfilófio havia sido preso, e que rogava que a
noiva o visitasse no presídio da Capital. Queria pedir que ela o
perdoasse, e explicar-lhe o que acontecera. Lívida, a Castorina
despachou a sobrinha para que fosse ao herbanário aviar-lhe uma

                                                            [53]
receita. Vendo-se sozinha, invadiu o quarto do hóspede. Ao can-
to, o imenso baú de couro negro, sempre trancado, que tanto lhe
despertara a curiosidade e a cobiça. Com ferramentas adequadas
e muito esforço, arrebentou as fechaduras. Dentro, uma monta-
nha de cédulas estalando de novas. Eram libras esterlinas. Mas,
para a Castorina, que apesar da pose era uma rematada idiota,
eram notas falsas, dinheiro de meliante, já que não tinham qual-
quer semelhança com "cédulas de verdade", que ela tão bem co-
nhecia. Por conta disso, acovardada em se imaginar cúmplice do
delito, já que acoitara o bandido em sua casa, decidiu tirar de lá a
prova do crime. Amontoando a dinheirama no quintal, ateou-lhe
fogo. Na pressa, não reparou na carta que agora queimava junto
com as cédulas. Nela, Anfilófio dizia que se Popônia estivesse
lendo aquela carta, seria porque algo de muito ruim acontecera
com ele. Se assim fosse, todo aquele dinheiro, que era fruto da
venda das terras de sua família, em Londres, deveria ser usado
por ela, para começar uma nova vida.




   [54]
O mistério do 7º elemento

     Desde que ela mudou-se para cá, eu a venho observando
atentamente. Pelo fato de estar preso a esta cadeira de rodas,
tendo de abrir mão dos meus esportes preferidos e das longas
caminhadas, tornei-me um espectador atento das coisas, já que
para mim o mundo ficou do tamanho desta janela. Assim, fui
adestrando minha percepção a tal ponto que, com a câmera digi-
tal nas mãos, capturo detalhes que a visão comum jamais regis-
traria. Por isso pude anotar cada peça do pesado mobiliário que
compunha a mudança da nova vizinha: 13 caixotes imensos.

    Pela posição das persianas, eu julgava que não seria notado,
mas o gato preto, que iria dividir com ela a nova residência,
fixou em mim seus olhos malévolos por um longo tempo, de
forma a não deixar dúvida de que eu fora descoberto. Nos dias
que se seguiram, nada aconteceu. Portas e janelas do casarão
permaneciam fechadas, e as grossas cortinas impediam que se
olhasse através delas. Quando eu estava prestes a desistir, vie-
ram as noites de lua cheia.

     Por volta da meia-noite, carros negros começaram a estacio-
nar em frente ao portão, deles descendo homens e mulheres ele-
gantemente trajados, mas chegando sozinhos. Eram sempre sete
os visitantes que entravam. No entanto, antes do amanhecer, so-
mente seis carros retornavam, para buscar seus passageiros. O
mesmo fato repetiu-se em cada uma dessas noites de lua cheia.
Depois, tudo voltou a ser como antes, a casa permanecendo va-
zia e silenciosa, como se não fosse habitada.

    Graças ao meu fabuloso equipamento, transportei as ima-
gens obtidas com a câmera, para a tela do computador, e pude,

                                                         [55]
utilizando o recurso de aproximação das imagens, tornar nítidos
os rostos de cada visitante. Totalmente obcecado, eu dividia o
meu tempo entre a tela e a janela, aguardando pela primeira noite
de lua cheia. Quando isso se deu, eu comparei as fotos que tinha,
com cada um dos novos visitantes. Então, dei-lhes nomes: Abel,
Brena, Cloé, Dante, Elmer, Franz e Gertrude, chegaram na pri-
meira noite; Elmer não retornou. Depois, foi a vez de Brena.
Nessa altura, já haviam vindo para o grupo, Ianis, Jéssica, Keila e
Licurgo. Abel e Gertrude não foram mais vistos.

     Agora eu vivia para esse mistério, envolvido de tal forma
que sequer dormia, consumindo leite de caixa e biscoitos, ali
mesmo, próximo à janela, temendo perder o detalhe que explica-
ria o desaparecimento, a cada noite, do sétimo elemento. Os meses
foram passando, e em cada uma das noites de lua cheia, sete pes-
soas entravam e apenas seis saíam. Estranho era que, apesar dos
desaparecimentos, os jornais nada publicavam. Mais estranho ain-
da, era o fato de que os visitantes demonstravam estar alegres,
tanto quando chegavam, quanto quando partiam. Só que a cons-
tante agitação das noites em claro, e a alimentação precária, co-
meçaram a cobrar seu preço. Não percebi quando ferrei no sono.

     Ao acordar, estava no centro da imensa sala, toda vermelha,
discretamente iluminada por velas, em candelabros de ouro fixa-
dos às paredes. Muito mais deslumbrado do que temeroso, eu ob-
servava fascinado cada detalhe do salão. Sob a minha cadeira de
rodas, um imenso pentagrama, com elaborados símbolos cabalísti-
cos. Sentada num imenso trono de rocha bruta, trajando um man-
to dourado, tendo o gato negro no colo, a dona da casa tinha o
porte de uma rainha. Senti uma enorme alegria, fruto talvez da
mais absoluta loucura. Agora, eu não era apenas o observador dis-
tante. Eu estava ali, fazia parte de tudo aquilo, e era um deles. Fi-
nalmente iria descobrir o mistério do sétimo elemento.

   [56]
O crime não compensa

     Quando a jurássica secretária da presidência adentrou o
recinto, o silêncio que se fez foi mortal. Ela acabara de igno-
rar o primeiro mandamento da ancestral empresa ZAMBRO-
VI, PUSKAS e CARRANZA – IMPORTAÇÃO E EXPOR-
TAÇÃO, que rezava que jamais se interromperia uma reunião
da Diretoria. Mas, o silêncio logo foi quebrado pelo sofrido
uivo do meu estômago, quando ela, com os olhinhos brilhan-
tes de uma ratazana sádica, apontou-me o dedo longo e ossu-
do, e ordenou que eu fosse atender a um telefonema u-r-g-e-
n-t-e. E logo passei do medo ao terror, quando ela, sem dis-
farçar a alegria, completou:

    – É da polícia.

     Sem essa de cidadão cumpridor das leis. Eu estava gruda-
do à cadeira, vitimado por um tremelique vergonhoso e in-
controlável. A culpa estampava-se na minha cara, por qual-
quer crime que fosse. Quando a autoridade, do outro lado da
linha, informou que minha sogra havia sido sequestrada, lá-
grimas me correram dos olhos. E a gargalhada, a custo conti-
da, jorrou como cachoeira. Claro que para o investigador, eu
disse que era uma crise de nervos. Ainda tonto, eu só conse-
guia pensar: quem é que iria querer pegar aquela tribufu? Nada
contra os meliantes, é claro; eu dou a maior força. O policial,
cortando a animada conversa que eu tinha comigo mesmo,
aconselhou-me a contratar um profissional, para negociar os
termos do resgate. Foi aí que a ficha caiu. Tinha de ser pega-
dinha. Não é que eu ainda teria de pagar para trazer aquela
velha de volta? Mesmo que eu, na verdade, estivesse disposto
a fazer qualquer sacrifício, só para me ver livre da jararaca,

                                                        [57]
por causa da minha mulher que – e nem me pergunte por quê
– adorava a mãe dela, eu ia ter de chutar contra meu próprio
gol. Problemas, problemas... Então, eu mandei e-mails para
os meus comparsas da C.O.R.J.A. (CAMBADA DOS ONZE
RENEGADOS DO JARDIM DE ALAH), convocando uma
reunião de emergência, para aquela noite. A turma do antigo
bairro, com devoção franciscana, bate ponto toda sexta-feira
no bar do Araújo. Só que, por causa da urgência do ocorrido,
não dava para esperar sequer um dia. Na hora combinada,
estávamos todos lá.

     Eu nem consegui acabar de expor os fatos. A galera rola-
va no chão de tanto rir. E nem adiantou eu ficar repetindo
que a coisa era grave, pedindo seriedade. Imagine só quando
eu soltei a bomba: o Palhares seria o profissional que eu con-
trataria para lidar com os sequestradores da minha sogra. A
birosca do Araújo quase veio abaixo, com as gargalhadas dos
caras. Sérios, ali, só eu e o Palhares.

    Agora, eu devo explicar a quem não o conhece, quem é
o Palhares. O cara é um asno. Você acredita que o panaca
jogou para o alto, assim, na maior, um salário de marajá
numa empresa multinacional, para abrir uma agência de
detetive particular?

    Mas, mesmo que ele jamais tenha passado da palavra à
ação, ele é um profissional, pombas; tem de ser respeitado.
Era esse o meu discurso. Mas, no meu plano perfeito, do Pa-
lhares eu só esperava uma coisa: nada!

    O que aconteceu depois, saiu em todos os jornais. Em
seu primeiro telefonema, os sequestradores mandaram o Pa-
lhares ir buscar a velhota de volta. Assim, sem mais nem me-

  [58]
nos; deram o endereço e tudo. Tremenda sacanagem dos ca-
ras. E o babaca do Palhares, foi. E mais, resolvendo usar a
cabeça pela primeira vez na vida, convocou a imprensa, deci-
dido a surfar nessa onda. Por isso, todo mundo viu no Jornal
Nacional, o Palhares resgatando a “simpática vovozinha”.

    Hoje faz dois anos que tudo aconteceu. A turma, agora
com dez, continua se reunindo toda sexta-feira, na birosca do
Araújo. Menos o Palhares, é claro, que agora virou celebrida-
de. Você quer saber da minha sogra? Está morando lá na mi-
nha casa. Diz que ainda não conseguiu se recuperar do cho-
que, e por isso não pode mais ficar sozinha. Minha mulher,
com os olhos lacrimosos, perguntou se podia, já que não lhe
restam muitos anos de vida. Só que a surucucu tem saúde de
ferro. Fuma, bebe, e come como uma porca. Pelo jeito, a ve-
lha vai durar mil anos. Fazer o quê, se eu nasci sem sorte?
Feliz era o Adão, que não tinha sogra.




                                                      [59]
O dia depois de amanhã

     Estava um dia perfeito, daqueles em que a gente fica se per-
guntando o que pode sair errado. Caminhando pelo calçadão, na
orla da lagoa, deixei meus olhos se perderem no infinito. Por isso,
demorei a perceber a moça ao meu lado. Linda, com longos ca-
belos negros escorrendo por seus ombros, e sem qualquer ma-
quiagem. De diferente, só o vestido branco, enfeitado com fiti-
nhas multicoloridas; além dos dentes, é claro, todos eles de ouro.
Queria ler minha mão. Normalmente, eu não dou assunto; igno-
ro e sigo em frente. Mas hoje, tocado pela extrema beleza da
manhã, brinquei com ela:

   – Se você adivinhasse mesmo, saberia que não sou um
bom cliente.

    A resposta vem rápida:

    – Pelo contrário, só me aproximei porque sei que o que te-
nho a dizer, irá mudar sua vida.

    Não tanto pelo que ela falou. Mas foi a forma com que ela
falou, que despertou minha curiosidade. Mesmo assim, não dei o
braço a torcer. Mais brincando do que falando sério, eu a desafiei:

    – Diga o meu primeiro nome, e o ano do meu aniversário, só
para me convencer.

    Com os olhos muito sérios, ela disse que a origem do seu
povo remonta a muitos milhares de anos. Apesar de estarem es-
palhados pelos quatro cantos do mundo, não possuem o seu pró-
prio país. E mesmo nos países dos outros, vivem apartados, em

   [60]
acampamentos, fiéis às suas origens e aos seus costumes.

    – Os deuses nos abençoaram com o dom de prever o futuro.
E esta é a única forma de garantir o sustento da nossa gente, já
que não plantamos, não temos criações de animais, não fabrica-
mos e nem comercializamos nada.
    Eu não sei o seu nome ou o ano do seu nascimento. Mas
posso dizer coisas sobre você, que apenas você sabe. Além de
outras, de que você nem desconfia.

    Dei a ela os cinquenta reais. Pegando minha mão, ela falou
de alguns fatos e de pessoas da minha infância e adolescência.
Depois, durante alguns minutos, manteve-se em silêncio. Quan-
do tornou a falar, sua voz estava diferente.

    – Você não irá realizar qualquer dos seus sonhos. Não terá
esposa e nem filhos. É só o que eu devo lhe dizer.

    Ela conseguiu me tirar do sério, e eu estava prestes a ofendê-
la de alguma forma. Mas, a tristeza que eu vi nos olhos dela,
calou minha revolta.

    – Eu sinto muito. Mas, você pagou para ouvir a verdade.

    E quando eu, virando-lhe as costas, já me afastava, ela gritou:

    – Você irá morrer no ano que vem, no dia 18 de setembro.

     Mesmo com a voz de bom senso repetindo vezes sem conta
nos meus ouvidos, que aquilo era bobagem, uma certeza me fa-
zia acreditar que a profecia se realizaria. Nem sei como cheguei
até em casa. Deitado na minha cama, eu pude ver toda a minha
vida passar diante dos meus olhos. E só quando os primeiros

                                                            [61]
raios de sol chegaram até minha janela, eu compreendi que só
tinha uma coisa a fazer.
      Criei para mim um plano de onze meses. Pediria demissão
do meu emprego, para pegar a grana da rescisão. Venderia o apar-
tamento, e o carro novinho. Depois, sem nada que me prendes-
se, iria viver intensamente a pouca vida que ainda me restava.
      E é exatamente o que eu venho fazendo desde então. Dor-
mia em uma cidade e acordava em outra. Saltei de pára-que-
das, voei de asa-delta, fiz pesca submarina, escalei montanhas,
e pratiquei canoagem. Só que para viver a vida que eu pedi a
Deus, gastei até o meu último centavo. Desde o mês passado,
estou usando o limite do meu cheque especial. Não tinha al-
ternativa, depois que estourei todos os meus quatro cartões
de crédito. Preocupado, eu?
      Da varanda da suíte presidencial deste hotel cinco estrelas,
observo as ondas do mar quebrando nas pedras, doze andares
abaixo. Soprando a fumaça azulada do meu charuto cubano, bebo
mais um gole da carézima champanhe francesa. Definitivamen-
te, estou em paz com o mundo. Afinal, se tudo correr bem, eu
vou morrer amanhã. Sem casa, emprego ou automóvel, e deven-
do uma nota preta, o azar vai ser se, no dia depois de amanhã, eu
ainda estiver vivo.




   [62]
Tarde demais

    Antes que soasse o alarme do relógio, ele levantou-se, certo
de que, se não o fizesse agora, o sono arredio iria nocauteá-lo.

    – Tarde demais companheiro.

     Enquanto olhava, oito andares abaixo, a rua ainda deserta
àquela hora da madrugada, acendeu o primeiro cigarro do dia. E
a velha vontade de jogar tudo para o alto, bateu ainda mais forte.

    – Tarde demais companheiro.

     Vinte anos de trabalho policial gritavam nos seus ouvidos
que os mocinhos estavam perdendo a guerra. Foi até o quarto do
filho. Ele não dormira em casa. Lembrou quando sua esposa le-
vou o garoto para ele. Dias antes ela ligara, dizendo que já não
conseguia mais controlar o filho. E ele, que abandonara o lar há
mais de sete anos, se viu às voltas com aquele rapaz que ele co-
nhecia tão pouco. Mas, é aquela revolta muda, a mesma que ele
tantas vezes viu nos olhos de garotos que ele vinha prendendo,
que faz com que ele se preocupe tanto. Na ânsia de provar que
são livres, os jovens escravizam-se, tornando-se peças descartá-
veis da criminalidade. E o resultado disso, ele testemunha todos
os dias nas ruas. E por achar que na próxima ocorrência poderá
defrontar-se com seu filho, morto ou preso, é que ele agora vive
com medo. E esse medo está lhe tirando o sono, noite após noi-
te, e prejudicando seu trabalho como policial. Isso, e a culpa de
saber que, ao falhar como pai, condenou o filho irremediavel-
mente. E dentre todas as dúvidas que povoam o seu mundo, ele
tem apenas uma certeza: tanto para ele quanto para o filho, agora
já é tarde demais.

                                                           [63]
As vampiras

     Depois de horas preso no trânsito comum das noites de sexta-
feira, vindo de uma chatíssima reunião de negócios na Barra da
Tijuca, tudo o que eu queria era chegar logo em minha casa, e cair
nos braços macios e carinhosos da minha mulher. Mas o destino
tinha outros planos para esta noite. As duas estavam ali paradas,
com ar desolado, acenando em vão para os táxis que passavam em
disparada. Mesmo eu sendo um cara legal, sempre pronto a um ato
de generoso desprendimento, não teria parado. Mas, começava a
chover, e todo carioca sabe que, quando chove, os táxis somem
como que por encanto. Isso e o fato de que, estando ali quentinho,
o desconforto delas começou a fazer com que eu me sentisse cul-
pado. Já no carro, elas apresentaram-se como universitárias, indo
para sua festa de formatura, em Botafogo. Realmente, as duas esta-
vam deslumbrantes em seus vestidos de noite. Jovens, lindas e in-
teligentes, fizeram com que eu me sentisse um herói, encantadas
por meu gesto de bondade. Eu poderia tê-las deixado no prédio,
em Copacabana, onde apanhariam outra colega, e seguido o meu
caminho, ao invés de aceitar subir para um drinque de comemora-
ção. Mas, afinal, elas insistiram tanto...

    Só voltei para casa, cinco dias depois. Totalmente desmemo-
riado, não soube dizer o que tinha acontecido depois de uma taça
de vinho tinto. Ou melhor, antes de “apagar”, eu acho que ouvi
uma voz rouca, sussurrando no meu ouvido:

    – Seja bem-vindo ao ninho das vampiras!

     Eu posso ver pelo seu sorriso, que você não acreditou nesta
história. Infelizmente, minha mulher também não. E agora, eu
vou morar onde?

   [64]
O lado escuro da rua

     Foi por causa da sexta-feira, dia sagrado para a turma do
escritório que, num barzinho ali perto, festejava o final de se-
mana. Apesar dos convites insistentes dos colegas, ele nunca
ia. Mas hoje, sem mais nem menos, resolveu ir. Beberia ape-
nas um chope, decidiu, e jogaria um pouco de conversa fora.
Só para não bancar o chato.

     Depois, ainda teve a chuva fina, colando a camisa no corpo,
enquanto o paletó, distraído, descansava no ombro. Passos incer-
tos o levaram através da viela. Ele, que jamais passava por ali,
preferindo o caminho mais longo, até o lugar onde estacionava o
carro. Mesmo com a cabeça zonza e os pensamentos confusos,
uma sensação de quase-perigo tentava acordar seus sentidos. Era
um beco estreito e pouco iluminado. A maior parte dos postes,
inúteis, com lâmpadas quebradas. De cada lado, casas que as som-
bras ocultavam podiam ser adivinhadas, como presenças amea-
çadoras. E, mais que tudo, o silêncio denso e frio. Pensou em
voltar. Afinal, quanto já caminhara? Talvez já estivesse quase no
final da ruela. De repente, o negro da noite o envolveu, como em
um abraço indesejado. Neste trecho, não havia lâmpadas. Pen-
sando ouvir um ruído às suas costas, voltou-se. Rodou em volta
de si mesmo, sentindo-se ameaçado, buscando compreender a
origem do seu medo. Agora, já não sabia sequer de onde viera ou
para onde iria, com o início e o fim da viela embaralhados defini-
tivamente. Neste momento, imóvel, encharcando-se de chuva,
ele teve certeza que a sua vida terminaria ali. Quando sentiu que
mãos sem corpo o tocavam, deixou que um grito lhe escapasse
da garganta. Depois, nada.



                                                           [65]
Este livro foi produzido em Araruama – RJ, pelo
Projeto Livro Pronto que permite ao escritor iniciante
  todas as condições para a publicação de sua obra.
      http://projetolivropronto.blogspot.com/
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Os 100 Contos de Reis - livro 5

  • 1. In éd ito -L iv ro 5
  • 2.
  • 3.
  • 4. Os 100 Contos de Réis Carlos Ney Publicitário – Jornalista – Cronista Revisão: Livro 5 – Dejanir Cunha Capa: Clovis Brasil clovisteatro@hotmail.com Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carlos Henrique Pimentel CHP Designer http://projetolivropronto.blogspot.com/ Saiba mais a respeito do autor e do livro na internet, no Blog do Carlos Ney e conheça, também, o Livro Digital e o Áudiolivro: http://blogdocarlosney.blogspot.com/ A reprodução parcial ou total de qualquer conto, depoimento ou do livro é permitida desde que seja citado o nome do autor e a origem.
  • 5. Sê sempre o mesmo. Sempre outro. Mas sempre alto. Sempre longe. E dentro de tudo. Cecília Meireles
  • 6. O Contador de Histórias Calcula-se que o hábito de ouvir e de contar histórias venha acompanhando a humanidade em sua trajetória no espaço e no tempo. Em que momento o primeiro agrupamento humano se sentou ao redor da fogueira para ouvir as narrativas fantásticas ou didáticas capazes de atrair a atenção e o gosto dos presentes e de deixar, no rastro de magia em que eram envolvidas, uma lição e/ou um momento de prazer? Conduzindo o leitor para o universo do seu estilo individual em textos breves e concisos, o jornalista e publicitário Carlos Ney apresenta seu primeiro livro, intitulado “OS 100 CONTOS DE RÉIS” - um painel de pequenas histórias que valem uma vida inteira. E não pense você que poderá ficar indiferente ao enredo dessas histórias, já que o grande gancho dos chamados “contos mínimos” é a possibilidade que abre para a interação entre o autor e o leitor, em face das situações e dos personagens.
  • 7. Palavras do Autor Não sei por que os outros escrevem. Nem mesmo sei qual o gatilho que, num determinado instante, faz com que as pa- lavras brotem e os textos, finalmente, comecem a ter sentido. Mas sei que é um processo estranho, que envolve mais de uma emoção, e que tem alguma parcela de sobrenatural, já que em muitas das vezes o resultado surpreende até a mim. Este livro tem tudo a ver com Araruama – RJ, já que os primeiros contos, em 2003, foram escritos para publicação em jornais da cidade. Depois dos primeiros, não consegui mais parar. Se me perguntarem por que eu escrevo contos, direi que é pelo desejo de envolver as pessoas nas mais diversas situa- ções, com os personagens que eu imagino, e assim torná-las cúmplices no processo de criação. E quero acreditar que, ape- sar do conteúdo despretensioso, meu livro fará bem às pesso- as. Pessoas comuns, das que realmente gostam de ler, mas que não o fazem porque não lhes sobra tempo; ou porque a leitu- ra é um hábito caro. E se elas forem comigo até ao final do livro, e no correr das páginas eu conseguir arrancar delas uma lágrima e um sorriso, terei alcançado meu objetivo. E poderei então dizer que valeu a pena.
  • 8.
  • 9. Sumário do Livro 5 O espírito da coisa ................................................................... 11 Em família ................................................................................ 13 De mãos dadas ......................................................................... 15 O reencontro ............................................................................ 17 Minha rua .................................................................................. 19 O anjo da noite ........................................................................ 21 Quadrinhos ............................................................................... 23 Negócios de família ................................................................. 25 A escolha ................................................................................... 39 Depois que você foi embora .................................................. 41 O complexo de diógenes ........................................................ 43 Um por todos e todos por um ............................................... 45 Assim é, se lhe convém ........................................................... 48 Azar ........................................................................................... 51 O mistério do 7º elemento ..................................................... 55 O crime não compensa ........................................................... 57 O dia depois de amanhã ......................................................... 60 Tarde demais ............................................................................ 63 As vampiras .............................................................................. 64 O lado escuro da rua ............................................................... 65
  • 11. O espírito da coisa Acordei tossindo, com a sensação de que não podia mais respirar. Meu coração cavalgava feito um potro louco, ameaçan- do pular do meu peito, enquanto um frio glacial me congelava os ossos. Mas o pior era o cheiro. Um cheiro insuportável de... – Enxofre! O grito que eu dei, veio junto com a certeza de que estava vivendo o meu maior pesadelo. Ela estava ali, sentada na beira da minha cama, no maior relax, como se não estivesse morta e en- terrada debaixo de sete palmos de terra. A minha sogra. A pró- pria visão do inferno. E nem adiantava eu tentar entender a lógi- ca da coisa, já que minha mulher tivera de viajar às pressas para a Paraíba – a mocreia estava morando lá com a outra filha, depois de quase conseguir mandar para a cucuia o nosso casamento – só para assistir ao enterro da velha. Ah, mas eu deveria ter imagina- do que nem o coisa ruim iria aguentar este dragão por muito tempo. Agora ela está aqui! A própria confirmação de que, real- mente, existe vida após a morte. E que o inferno não é assim tão longe. A jararaca voltou das profundezas, só para me roubar a paz. E, pior ainda, ela foi logo dizendo, com voz de alma penada e um bafo azedo de carniça, que veio para ficar. E eu nem posso matá-la. Ah, isso não vai prestar. Muito mais do que apavorado, eu estou indignado, me sentindo traído. Afinal, ou bem a pessoa morre, ou não morre. Isso, de ficar indo e vindo, é a maior saca- nagem. E a megera está se achando, passeando pelo meu quarto, feita dona do pedaço. Será que cravar estaca no peito, adianta? Ah, não! Ela está bebendo da minha cachaça mineira, direto na garrafa. Agora emborcou, depois de secar o pote, atravessada na minha cama. E pelos roncos, não vai acordar tão cedo. Mas que [11]
  • 12. vai acordar vai, porque a desinfeliz não faz nada pela metade, quando o assunto é azucrinar este cristão. Enquanto ela está apa- gada, eu vou espalhando estas velas acesas em volta da cama, e me pegando com tudo que é santo que conheço. E como o mila- gre é dos grandes, estou disposto a pagar qualquer promessa. – E você? Por acaso tem alguma ideia de como é que eu me livro deste encosto? [12]
  • 13. Em família Com passos cansados, Satanás atravessou toda a extensão da imensa sala do trono, vazia naquela hora do dia. Das paredes, aprisionados nas molduras, rostos de antepassados seus fitavam- no com malignos olhos vermelhos. Um gemido escapou-lhe por entre os lábios ressequidos, quando empurrou a pesada cadeira de pedra para mais próximo da lareira. Com os cascos fendidos bem junto às chamas crepitantes, deixou que o calor relaxasse seus nervos. De uns tempos para cá, fazia cada vez mais frio. Era o tal do efeito freezer que, segundo especialistas, estava reduzin- do a camada de enxofre. Culpa das máquinas de picolé, de que os jovens capetinhas tanto gostavam. Mais uma vez ele reconheceu que não deveria ter permitido isso. Depois de tantas centenas de anos infernais, lançando mão de todas as artimanhas para garan- tir a supremacia do mal sobre o bem, a coroa já lhe pesava sobre os chifres, e ele sentia que já não tinha o pulso forte de antes. Claro que já deveria ter abandonado o barco no décimo século, como o fizeram antes dele cada um de seus ancestrais. Mas, só de imaginar seu filho reinando absoluto sobre todas as forças das trevas, o pânico tomava conta dele. O garoto era um desastre! Herdara da mãe, além dos traços finos, o sorriso que ficaria bem melhor em um querubim. E desde que era só um diabinho mir- rado, o moleque só se interessava por livros, música e poesia. O fato é que Satanás sempre se culpou por ser um pai ausente. E, depois que sua mulher morreu tão jovem, ele começou a mimar demais o guri. Acordes dissonantes de uma melodia, chegando até seus ouvidos, acabaram com o resto de paz que ainda tinha. Afundando o rosto horrorizado nas mãos, ele abandonou-se ao desespero. Lembrava-se agora que ontem, aqui mesmo nesta sala, Deminho havia dito que estava tocando lira eletrônica, e que pre- tendia formar uma banda de rock pesado: os Anjos do Inferno. [13]
  • 14. E a alegria do garoto era tão grande, que o velho Satã, contra toda a lógica do universo, apenas balançou a cabeça assentindo, incapaz de dizer a palavra que precisava ser dita. Não bastassem aquelas roupas esquisitas e os cabelos compridos. Sem pensar, o velho ergueu os olhos e suspirou: – Deus, onde foi que eu errei? E apenas o estrondo assustador do maior dos trovões, fa- zendo estremecer o palácio, respondeu a tamanha blasfêmia. [14]
  • 15. De mãos dadas Quem nunca veio a um hospital durante a noite, quando o silêncio é tão espesso que até assusta, não conseguirá imaginar a sensação de tamanha solidão que cerca os compridos e frios cor- redores. Mas, por instantes, esse silêncio foi quebrado pelo ruído monótono das rodas da maca. Sobre ela, coberta até o pescoço, uma criança de dez anos, da qual se vê apenas o rosto. Quando a maca ultrapassou as portas de vai-e-vem da sala de cirurgia, mé- dicos e auxiliares já esperavam por ela. Num canto afastado, lon- ge o bastante para não atrapalhar, mas perto o suficiente para que a menina possa sentir a sua presença, ele a observava. É a sua filha que ali está, prestes a operar. A equipe médica movimenta- se com a eficiência que só a longa prática proporciona. Mas, como bom observador que é, percebe nos gestos de cada um deles, a tensão de quem sabe que tem pela frente uma tarefa extrema- mente difícil. Enquanto as horas passam, os movimentos deles, bem como o ruído metálico dos instrumentos, vão tomando um ritmo mais acelerado. De seu lugar, ignorado por todos, ele con- segue pressentir o cansaço e a tensão que vão tomando conta de cada profissional; o envolvimento deles, a sua determinação. Na memória, ele revê os momentos que marcaram a vida de sua filhinha nos cinco primeiros anos, quando ele esteve sempre tão presente, acompanhando cada descoberta dela, e todas as suas aventuras. Dando-lhe a mão, guiando seus passos, sabendo ouvi- la. Eles sempre foram tão unidos... Era uma relação mágica, esta é a palavra, que transformava cada momento que compartilhavam, numa ocasião muito espe- cial. Entendiam-se, muitas vezes, sem a necessidade de palavras; apenas por gestos e olhares. E conversavam sobre tudo, o que sempre surpreendia a ele, já que ela era tão pequena. Até os cinco [15]
  • 16. anos, ele jamais deixou de estar junto com ela. Depois, repenti- namente, teve de afastar-se. Claro, ele sabe que não teve culpa, já que a escolha não foi sua. Mas ele tem certeza, e isso foi o que mais o entristeceu, que o seu súbito desaparecimento magoou a menina profundamente. O ruído do equipamento eletrônico, aumentando a intensi- dade dos bips, trouxe-o de volta à sala de cirurgia. O movimento da equipe era agora mais agitado. Nos rostos, parcialmente co- bertos pelas máscaras, via-se o cansaço e a sensação da derrota que se anunciava. Mesmo lutando uma batalha que sabiam ser impossível, eles não se entregaram. Tentaram de tudo. Algum tempo depois, a criança levantou-se e veio até ele. Abraçados, pai e filha foram embora. Um a um, os membros da equipe de cirurgia deixaram a sala, exaustos e inconformados. Ali deitada, sozinha agora, a menina parecia dormir tranqui- lamente, tendo no rosto uma expressão de puro contentamento. [16]
  • 17. O reencontro Eram outros tempos, e as coisas eram feitas daquela forma. Meu pai, rico proprietário de terras, levou-me até lá, na véspera do meu aniversário de quinze anos. O casarão antigo, de dois pavimentos, um pouco afastado do centro da cidade. Era, por fora, igual aos outros tantos que por ali existiam. Um homem negro, o mais bem vestido que jamais vi, abriu-nos a porta. Isola- do por grossas cortinas que cobriam inteiramente seus janelões, o salão imenso que tomava quase toda a extensão do andar infe- rior, era iluminado por pesados lustres de cristal. Em toda a vol- ta, mesas, sendo a maior parte delas ocupadas por casais. De al- gum lugar, soavam os acordes suaves de um piano. Aos meus olhos, aquele era um castelo que só existia nos livros. A mais linda mulher que eu já havia visto caminhou até nós, cumpri- mentando meu pai com respeitosa intimidade. Eu não conseguia desgrudar os olhos do decote dela. Em atenção ao meu pai, asse- gurou ela que mesma faria as honras da casa. Dando-me o braço, levou-me até o bar, pedindo champanhe para nós dois. Sem pen- sar, procurei a aprovação do meu pai. Percebendo meu embara- ço, ela apertou meu braço e sorriu. Acho que foi naquele mo- mento, que me apaixonei de verdade. Do resto, lembro-me pou- co. O champanhe venceu meus receios, e eu abri meu coração. Na certeza de ser correspondido, fiz amor com ela. Depois disso, jamais tornei a vê-la; até hoje. Amanda e eu resolvemos nos casar, após um namoro de dois intensos e loucos anos, numa cerimônia simples e sem con- vidados. Hoje, em nossa lua-de-mel, ela me trouxe para conhe- cer sua mãe. Olhando-as agora, uma ao lado da outra, pergun- to-me como foi possível jamais haver percebido a extrema se- melhança entre as duas. [17]
  • 18. Enquanto o sol se perdia por trás do horizonte, e um vento outonal desprendia as folhas douradas das amendoeiras, o tempo pareceu enlouquecer, e diante de mim, nos mesmos olhos e sor- risos, passado e futuro tornaram-se uma coisa só. Depois, quan- do o silêncio já ameaçava tornar-se acusador, tomei minha deci- são. Por ser a única coisa a ser feita, abri o meu melhor sorriso. E, tomando entre as minhas a mão da minha primeira aman- te, beijei-lhe respeitosamente as pontas dos dedos. Só a voz tre- meu um pouco, quando eu exclamei as palavras de praxe: – Muito prazer! [18]
  • 19. Minha rua Hoje, sem mais nem menos, me pego a caminhar sobre meus próprios passos, desenhados num tempo em que era tudo tão mais simples, e o mundo cabia inteiro nos limites da minha rua. Com os olhos da memória, avalio cada muro e cada canteiro, percebendo neles as marcas dos anos. Tudo tão igual, tudo tão diferente. A começar pelos sons. Calaram-se os pássaros e tam- bém as crianças. Existem muito mais carros e mais grades. Os velhos sorrisos mudaram-se daqui. Portões, antes sempre tão abertos, trancam-se agora, com uma desconfiança toda nova. Na minha memória, o ano dividia-se em aulas e férias, numa simpli- cidade que envolvia por inteiro as nossas vidas. E cada coisa no seu tempo, já que existiam tempos e épocas. Tempos de soltar pipa, de jogar bolinhas de gude, de soltar balão, e de fantásticas corridas de carrinhos de rolimã. Todos eles religiosamente ob- servados, sem que ninguém pensasse em alterar o calendário, exercendo tais atividades em tempos impróprios. E mesmo hoje, eu nem sequer sei quem nos dizia onde se iniciava um tempo e terminava o outro. Já as épocas, eram determinadas pelas frutas. Mamão, goiaba, manga, sapoti, jamelão, jabuticaba, amora, ca- rambola e jaca, se ofereciam fartas, nos quintais da minha infân- cia. Nas avenidas de árvores de tamarindo, crianças e frutos se apinhavam nas tardes de intensa ventania. Passo pela casa do Gordo, do Marcelo, do Pepe, esperando que a qualquer momen- to algum deles apareça, ou grite meu nome. Em frente ao prédio verde, olho para cima. A janela da Lia está fechada. – Deus, como eu amava aquela garota! Até conhecer Marina, com os maiores peitos que eu já tinha visto. Marina foi a primeira mulher que eu levei para a cama, [19]
  • 20. embora ela jamais soubesse disso. E a sua presença era de tal forma intensa nas minhas noites, que eu quase podia tocá-la, en- charcando os lençóis de suor e de indecência. O porteiro do prédio, perguntando-me se eu estava procu- rando alguém, despertou-me. Sem perceber, eu ficara ali parado, olhando para cima, tendo no rosto o sorriso idiota dos apaixona- dos. Claro que ali não morava mais nenhuma Lia; nem a Marina, o Gordo, Marcelo ou o Pepe. Foram-se eles todos, como os dias e as tardes da minha infância. Não existem mais, como as goia- bas e os sapotis, dos quais eu ainda posso, às vezes, sentir o gosto me adoçando a boca. No silêncio que restou, meus passos reper- cutem na calçada, e são como uma canção triste que me acompa- nha enquanto caminho de volta, no sentido inverso da felicidade. E esta canção triste, ecoando naquela rua morta, é a prova do quanto a vida deixou de fazer sentido. [20]
  • 21. O anjo da noite Lá pelas tantas, Ranulfo despertou sobressaltado e com a incômoda certeza de que havia alguém além dele no seu quarto. À sua volta, a escuridão era total. Tentou apurar o ouvido, à cata de algum som denunciador, mas o galope acelerado de seu cora- ção tornava isso impossível. Tateando, buscou encontrar na me- sinha de cabeceira, os óculos salvadores. Foi quando uma voz de Cid Moreira reverberou pelas paredes, liquidando com o último vestígio da sua já limitada coragem. – Volte a dormir, que você está sonhando! Talvez só por burrice, Ranulfo ainda perguntou: – Tem alguém aí? – Sim. Sou o seu anjo da guarda. Com olhos de puro êxtase, ouvindo emocionado os sinos badalando sagrados cânticos, Ranulfo exclamava maravilhado: – Milagre, milagre! Mas, quando estava prestes a ajoelhar-se, rendendo ho- menagem ao celestial visitante, Ranulfo se deu conta de que estava inteiramente nu, por baixo da coberta. E sua vergonha foi maior que a devoção. Enquanto isso, seus olhos míopes tentavam vislumbrar na escuridão do quarto, aquele ser de luz, com seus cachinhos dou- rados e asinhas prateadas. Mas, nada! [21]
  • 22. Apenas uma imensa mancha escura. Quando a mancha es- cura se mexeu, Ranulfo não se conteve, e exclamou horrorizado: – Mas você é um negão! A ousadia da acusação, mesmo desmentida pela voz fina e gaguejante, foi cortante como faca de açougueiro. Com movi- mentos lentos, o gigante de ébano chegou-se mais para perto dele. Com passadas rápidas, que repercutiam no pequeno apo- sento como marretadas desferidas contra o chão, o visitante acer- cou-se dele, e com o rosto tão próximo ao de Ranulfo, que este pôde sentir- lhe o bafo alcoólico, respondeu secamente: – Tava esperando quem? Cada um tem o anjo da guarda que merece! E, enquanto ensacava os objetos mais vistosos que suas gran- des e ágeis mãos encontravam, o arcanjo Tião (foi assim que ele disse chamar-se) fazia severo discurso contra o materialismo de Ranulfo, e a favor da distribuição de renda. E não adiantou Ra- nulfo argumentar por entre lágrimas, que morava num moquifo (janela e porta conjugados), e que seu salário mal dava para che- gar ao fim do mês. Por último, foram-se as derradeiras notas de sua já magra carteira, engolidas por aquele saco que parecia não ter fundo. Depois, já saindo, o anjo da noite deu um último aviso, que aos ouvidos acovardados de Ranulfo, soou como ameaça: – De hoje em diante, eu não vou mais deixar você sozinho. Depois desta experiência mística, Ranulfo quer mais é que o diabo o carregue. [22]
  • 23. Quadrinhos Batman lançou o olhar treinado para o relógio, enquanto colocava a lasanha ao molho siciliano, no forno para gratinar. O prato favorito de Robin. Cinquenta minutos, ele pensou; o tem- po exato para um banho e a loção hidratante. Depois, jantar à luz de velas, dando o toque romântico. De passagem, revisou pela centésima vez a mesa posta para dois. Outra vez ele sentiu falta de Alfred (o mordomo dos Wayne, que esteve sempre ao seu lado, desde os oito anos, quando assaltantes de rua mataram os seus pais). Por conta desse crime, o Homem-morcego foi criado. O justiceiro implacável que varreu o crime das ruas de Gotham City. Agora, aposentado, vivia para o seu amor, feliz em ser ape- nas o Bruce do Robin. Numa outra cidade, é claro, mais toleran- te. Hoje, dez anos depois, ele espera por seu amado. – Ele esqueceu, com certeza, do nosso aniversário. E os dez anos desfilam por seu pensamento, arrancando um sorriso nostálgico. Ultimamente, alegria e tristeza têm sido mais frequentes, causando mudanças súbitas do seu humor. Isso, e a insegurança. A diferença de idades, sempre ela, lembrando que os relógios de ambos correm em velocidades diferentes. No iní- cio, os vinte anos que os separavam sequer eram lembrados. Com 28 anos de idade, Bruce era um herói, aos olhos de menino de Robin. Com carinho de tio, ele ensinou ao jovem pupilo – que havia sido adotado por um primo seu, já falecido – todas as téc- nicas de ataque e defesa que fizeram deles a dupla de mocinhos mais famosos do mundo. Agora, Robin é quem administra o con- glomerado Wayne. Há alguns anos, Bruce abriu mão disso, para passar mais tempo em casa. Mas Robin foi à luta. Assim que se formou, dedicou-se aos negócios com tanto empenho, que ago- [23]
  • 24. ra é o principal executivo do gigantesco empreendimento. Para Bruce, sobrou a vida doméstica. Na cozinha, seguindo a orien- tação de Alfred, descobriu uma nova forma de realização. Ado- ro esta casa, ele pensa, enquanto os olhos pousam em cada peça valiosa que foi colecionando no correr dos anos, nas viagens que fizeram pelo mundo, numa lua-de-mel que parecia intermi- nável. A vida é quase perfeita, faltando só um tantinho assim para que o seu coração se aquiete. Olhando para o espelho do banheiro, corre os dedos pelas rugas ao redor dos olhos. Os cremes, caríssimos, já não estão funcionando. Depois, dando um passo atrás, ele deixa cair a toalha, mostrando-se de corpo inteiro. Um gemido involuntário escapa de seus lábios, ao cons- tatar que a cintura está cada vez mais larga. – E Robin que não chega... [24]
  • 25. Negócios de família Eu só soube quem era o pai dela muito tempo depois. Aí, quando o assunto veio à tona, eu já estava tão envolvido que não tinha mais como fazer o caminho de volta. Na verdade, com o correr dos anos eu fui criando tantos muros em torno de mim mesmo, que as mulheres costumavam sair da minha vida igno- rando mais coisas, do que antes do nosso relacionamento. Afinal, como poderia dividir segredos que não eram apenas meus, sa- bendo que, pelo simples conhecimento deles, eu poderia estar condenando esta pessoa à morte? E agora, quando passado e futuro abrem-se à minha frente, que caminho escolher? Devo, conforme o desejo de minha mãe, romper de vez com uma vida que jamais foi a minha e que, de uma só vez, arrancou dos braços dela o marido e o filho? Ou, assim como meu pai, cumprir com o meu destino, fazendo aquilo que se espera de um Gambini? 1 Agosto de 1980 Eu não conseguiria descrever os pensamentos que ocupa- vam minha mente quando, naquela quarta-feira, desci do trem depois de quatro anos ausente da minha cidade. Meu avô man- dara me chamar, com urgência. O velho Tony, com aquele sorri- so que sempre guardou só para mim, estava à minha espera. O abraço foi demorado, e o silêncio de ambos foi mais eloquente que qualquer palavra. Já no carro, eu ia correndo meus olhos pela paisagem, tentando descobrir qualquer mudança. Mas, mesmo após os anos decorridos, tudo parecia exatamente igual. O ran- cho do meu avô, onde nós sempre moramos, tinha terras que se perdiam na distância, e era, aos meus olhos de menino, do tama- [25]
  • 26. nho do mundo. Próximas a nós existiam outras propriedades. Mas nenhuma delas se comparava ao nosso rancho. E de uma forma ou de outra, todos os vizinhos dependiam do meu avô. Mas ele era um homem duro, de olhar hostil e poucas palavras. Que me lembre, eu jamais o vi sorrir. E com a morte prematura de meu pai, minha mãe isolou-se em seu quarto, afastando-me assim do convívio com ela. No início, quando perguntava por ela, os empregados diziam que ela não estava bem de saúde. De- pois de um tempo, já não perguntava mais. Só muito mais tarde, ao tomar conhecimento da história toda, eu pude compreender os motivos dela. Graças ao Tony, que no rancho desempenhava a função de motorista de meu avô, eu jamais me senti sozinho. Ele esteve sempre próximo de mim em todas as horas dos meus dias, até o momento em que, dez anos atrás, eu fui posto no trem, para completar os meus estudos na capital. 2 Abril de 1976 O telegrama me alcançou quando havia terminado o meu sexto ano de colégio. Minha mãe havia falecido, e eu estava sen- do chamado para o enterro dela. Eu não sabia como lidar com aquela perda. Junto com os bens que ela me legava, deixou para mim o diário dela. Atendendo a seu desejo expresso, eu só o abri quando já estava de volta ao colégio. E só então, através daquelas páginas, eu pude descobrir quem realmente eram os personagens mais importantes da minha vida. Segundo minha mãe, a família Gambini, uma das mais tradicionais da Sicília, sempre esteve li- gada a Cosa Nostra. Quando o primeiro navio trazendo imigran- tes italianos aportou nos Estados Unidos, tinha entre eles dois jovens Gambini. Poucos anos depois, em plena vigência da lei seca, a família Gambini já participava da quase totalidade dos [26]
  • 27. negócios ilegais que prosperavam nas grandes cidades norte ame- ricanas. Além do abastecimento de bebidas alcoólicas, jogo, pros- tituição e receptação de cargas roubadas, eles também estavam infiltrados nos principais sindicatos. Mediante suborno, eles con- trolavam políticos, policiais e até alguns juízes. Meu avô foi o último dos grandes mafiosos que atuaram nos Estados Unidos, e embora tivesse conquistado fama como o mais violento deles, não conseguiu impedir que a maré negativa impulsionada por um jovem e destemido promotor (que, ironicamente, também descendia de família italiana), Francesco Gatuzzo, que depois veio a se tornar juiz, fosse desmontando, tijolo por tijolo, o império tão duramente construído através dos anos. E a cada golpe des- ferido, ele falava através dos jornais que estava chegando cada vez mais perto de colocar algemas no poderoso cabeça da Ca- morra americana. Vendo-se cada vez mais acuado, meu avô deci- diu eliminar o seu principal inimigo. E vários foram os atentados contra o magistrado. De dia ou de noite, locais por ele frequenta- dos eram explodidos, deixando feridos e mortos espalhados pe- las calçadas. Mais de uma vez, o carro em que ele se encontrava foi fuzilado. Mas, milagrosamente, Gatuzzo sobreviveu a todas essas ações. E longe de se deixar abater, parecia ganhar mais alento para destruir meu avô. 3 Apesar de independentes, com áreas de interesse bastante definidas, as cinco famílias, Albernazi, Capobianco, Malatesta, Carmona e Gambini, compunham uma organização única, a qual cabia intermediar eventuais associações e, quando necessário, arbitrar divergências. Meu avô era o capo di tuti capo, na organi- zação americana. Por conta dessa função, ele fazia jus a uma por- centagem de todos os negócios que eram executados pelas de- mais famílias. Em contrapartida, cabia a ele impedir que as ativi- [27]
  • 28. dades ilegais fossem prejudicadas pela ação de terceiros. Assim, preocupados com a perseguição que vinham sofrendo, chefes de três famílias propuseram uma reunião, exigindo que meu avô se declarasse incapaz de resolver a situação e abdicasse do cargo que ocupava. Depois de muita discussão, ficou combinado um prazo final de trinta dias. Por conta disso, numa atitude que só poderia ter sido ditada pelo mais absoluto desespero, meu avô conseguiu, mediante régio pagamento, incluir meu pai entre os poucos convi- dados a uma recepção na qual estaria presente o juiz Gatuzo. Meu pai havia sido escolhido apenas pelo fato de que era o único rosto desconhecido pelos federais que serviam a Gatuzo. Neste momento de sua narração, e para que eu pudesse entender bem os fatos, minha mãe descreveu meu pai como um homem maravilhoso, que jamais quis participar dos “negócios” da família Gambini. De tal forma que, como forma de mostrar sua independência, não hesi- tou em trocar o sobrenome Gambini, pelo de sua avó materna. Primeiro como estudante de Artes, e depois como pintor, ele pas- sou dois anos em Paris, e outros dois em Madri, onde conheceu minha mãe. O casamento deles foi ignorado por meu avô, que sequer respondeu ao convite que lhe fizeram. Mas, minha mãe sempre soube disso, ele ansiava pela aprovação de meu avô. E essa necessidade de provar seu valor, seria a explicação para o fato de meu pai, assim que foi chamado por meu avô, ter aceitado, indife- rente aos riscos decorrentes, matar friamente o juiz. Só que, não se sabe como, o plano foi descoberto, e meu pai, tendo caído na ar- madilha que lhe foi armada, foi fuzilado, e teve seu corpo jogado na rua para que todos vissem. Dias depois, meu avô exigiu de mi- nha mãe (que para ele jamais fez parte da família) que ela não tornasse a se aproximar de mim. Como viúva de seu filho, ele per- mitiria que ela continuasse vivendo ali, confinada em seu quarto. Se descumprisse suas ordens, ele a expulsaria de casa e ela jamais tornaria a me ver. E encarregou Tony, seu pistoleiro de maior con- fiança, da tarefa de proteger o futuro chefe da família Gambini. [28]
  • 29. 4 Depois de ler o diário de minha mãe, e apesar de todas as coisas horríveis que ali eram descritas, pouca coisa mu- dou em mim. Talvez se ainda estivesse vivendo no rancho, ou se fosse alguns anos mais novo, o resultado pudesse ter sido diferente. Mas não hoje. Eu estava de tal forma integrado à vida escolar, que era como se jamais tivesse existido alguma outra. Estudos, esportes e di- versão tomavam todas as minhas horas, em perfeita organização. Nas férias anuais, minha dificuldade era ter de escolher, dentre tantos convites feitos por meus colegas de colégio, para que lu- gar eu iria. Dessa forma, tudo o que envolvesse o rancho, ou qualquer das pessoas que ali moravam, de tão distante, ocupava um lugar pouco expressivo em meus pensamentos. Após medi- tar por uns três dias, queimei o diário, preocupado em que ele pudesse cair em mãos erradas. Com aquele gesto, eu tinha certe- za de deixava para trás um passado ao qual eu jamais me senti ligado. Mas o que eu ainda não sabia, era que o destino já havia traçado outros planos para mim. Na festa de encerramento do ano, antes do período das férias, era tradição receber, para um grande baile, as alunas de um colégio tão renomado quanto o nosso. Foi quando eu conheci Fiorella. Nas férias, mudando totalmente de planos, decidi aceitar o convite de um colega com quem eu tinha pouca intimidade, apenas pelo fato de que a família dele tinha casa em um dos mais luxuosos condomí- nios de Malibu, onde Fiorella estaria hospedada com suas amigas. Quando nos separamos, ao final de pouco mais de vinte dias, eu e ela já havíamos combinado que nos casaríamos. Nos meses que se seguiram, sempre que nossas licenças de final de semana combinavam, nos encontrávamos na cidade. E, claro, já tínha- mos feito nossos planos para que após o encerramento das aulas, passássemos as férias juntos. [29]
  • 30. 5 Agosto de 1980 Enquanto o carro em que nós íamos reduzia velozmente a distância que separava passado e presente, eu tomava consciên- cia do quão diferentes eram as duas metades da minha vida. Do garotinho que um dia se viu jogado no mundo, tendo de apren- der a dividir os espaços com outros de sua idade, havia restado muito pouco. Por nunca ter tido uma família, diferentemente dos demais, a adaptação aos novos tempos foi relativamente fácil. Agora, se ocorresse o inverso, e ele se visse obrigado a trocar o presente pelo passado, como se comportaria? Tony, caladão como sempre, mantinha-se atento ao volante, dando-me o tempo que eu precisava para organizar as coisas em minha mente. Desde os mais remotos dias de minha infância, as histórias que Tony con- tava sobre as nossas famílias, desde a Sicília, eram guardadas como tesouros em minha memória. Assim como aconteceu com ele, quando tinha a mesma idade que eu, as histórias despertaram um amor profundo pela terra e por nossos antepassados, que valori- zavam a honra e a coragem acima de qualquer outra coisa. A família de Tony, na Sicília, sempre serviu aos poderosos Gambini, e isto, para eles, era motivo de grande orgulho. O avô dele veio para a América, com o pai de meu avô, que Tony me disse, foi o maior de todos os Gambini. Assim, não deve ser difí- cil imaginar o conflito que existia dentro de mim ao confrontar os dois lados da moeda, já que para minha mãe, aqueles que eu conheci como heróis, através das histórias contadas por Tony, não passavam de reles criminosos. E agora, prestes a me encon- trar com meu avô, eu tinha certeza de que teria de decidir por um ou por outro lado, sabendo que seria essa decisão que iria deter- minar todo o resto da minha vida. [30]
  • 31. 6 Meu avô me aguardava na varanda. E se eu estivesse espe- rando por algum gesto de carinho dele, teria me decepcionado. Ele estava muito velho, e os anos haviam curvado um pouco aquela figura imponente. Mas eu podia ver bem definida naquela expressão, toda força que ali existiu. Durante alguns minutos, ele apenas me olhou. Depois, fez um gesto para que eu me sentasse. Só muito tempo depois ele perguntou o que eu havia achado do diário de minha mãe. Por mais incrível que me parecesse, eu esta- va absolutamente tranquilo. Por maior que fosse o poder daquele homem, habituado a fazer prevalecer sua vontade, ele não con- seguia me alcançar. E esta segurança ficou clara nas respostas que eu dei a ele. Tentando poupar tempo, eu expliquei que não tinha muita ligação afetiva com minha mãe, meu pai e com ele, uma vez que jamais participaram da minha vida. Assim, amar ou odiar qualquer um deles, pelo que fizeram ou deixaram de fazer em seu passado, seria absurdo. Então, ele me contou quem eu era. E como a minha vida começara com os primeiros Gambini, numa das aldeias sicilianas. E embora fosse a mesma história que eu havia escutado de Tony, ela soava diferente na voz do meu avô, já que ele ajudara a escrevê- la. Muitos dos nossos orgulhosos antepassados viveram e morre- ram para conquistar o direito de jamais serem escravos de outros homens. E quando a Sicília foi invadida por estrangeiros, eles orga- nizaram a resistência, formando grupos de guerrilheiros em cada uma das aldeias, que atacavam de emboscada, com punhais e as temíveis luparas, e que jamais faziam prisioneiros. Com o fim da guerra, os Gambini eram o poder a quem o povo prestava obediência. E juntamente com outras poucas fa- mílias abastadas, os homens de honra criaram uma organização que oferecia justiça igual para todos os sicilianos. E que conside- rava como inimigos o governo e todas as suas autoridades. As- [31]
  • 32. sim sendo, qualquer assunto da aldeia deveria ser discutido com o Padrinho, e a decisão por ele tomada seria definitiva. Quem comentasse tais assuntos com as autoridades de governo, estaria quebrando a omertá, e pagaria por isso com a própria vida. Esta organização veio a ficar mundialmente famosa como a Máfia (Cosa Nostra ou Camorra). Meu avô falou por quase qua- tro horas. Depois, mandou que eu fosse me trocar, avisando que o jantar seria servido pontualmente às dezenove horas. À mesa, ele não conversou mais comigo. No dia seguinte, fui arrancado da cama pelo Tony, como fazia nas manhãs de minha infância, que me convidou para andarmos a cavalo. Era como uma volta no tempo. E como sempre fazíamos, terminamos o passeio com um mergulho no lago de águas transparentes. Quando voltei para casa, meu avô me esperava na varanda. Sem qualquer preâmbulo, me perguntou por Fiorella Gatuzzo. Foi como se eu tivesse recebido um soco no estômago. E antes que eu pudesse me recobrar, ele foi categórico: queria que eu matasse o pai de Fiorella. Não importava de que forma, mas teria de ser logo. Eu devia isso a ele. Eu devia isso ao meu pai, como forma de apagar de sua memória o fracasso que tanto envergonhou nossa família. Enfim, era o que ele exigia de mim, por tudo o que eu havia recebido dele até hoje, e pelo tanto que viria a ser meu, depois que ele morresse. Tony conversaria comigo sobre os detalhes. E quando eu ia argumentar, ele levantou-se, e subiu para o quarto dele. Mas antes que chegasse ao meio da escadaria, sem se voltar, ele avisou que se eu não desse o assunto por resolvido em seis meses, o juiz seria informado de quem eu era, e do “verdadeiro” motivo pelo qual me havia aproximado da neta dele. E, claro, como eu não era oficialmente um Gambini, perderia qualquer direito à herança dele. Depois disso, eu nunca mais vi o meu avô. [32]
  • 33. 7 Janeiro de 1990 A mansão dos Gatuzzo, totalmente iluminada, se destacava em meio ao verde dos magníficos jardins que a cercavam. O pre- texto para a festa que ali se realizava, era o aniversário de dezoito anos da única neta do juiz Gatuzzo. Mas, eles estariam apresen- tando para a sociedade o noivo de Fiorella. Neste momento da narrativa, eu devo esclarecer alguns pontos que ainda permane- cem obscuros. Por imposição de minha mãe, que orgulhosa de sua origem nobre, manteve como casada o sobrenome Fanini, eu fui batizado com o sobrenome dela. E em meus registros escola- res nada constava que pudesse me ligar aos Gambini. Na época do casamento dos meus pais, o cerco imposto pelos Intocáveis (a força-tarefa formada por agentes federais sob o comando do promotor Gatuzzo) ameaçava de tal forma os assuntos da famí- lia, que meu pai se aproveitou disso como motivo, e ao se casar em Madri, terra de minha mãe, utilizou o sobrenome de solteira da avó materna dele. E como Leonardo di Pietro, meu pai inves- tiu grande parte da considerável fortuna de família da minha mãe, na construção do mais moderno shopping center da capital es- panhola. Por conseguinte, qualquer investigação que se fizesse sobre mim, chegaria até o rico empresário, Leonardo di Pietro, já falecido. Por conseguinte, quando meu pai foi fuzilado no aten- tado contra o juiz Gatuzzo, documentos falsos obtidos na Sicília, davam a ele um outro nome, nada havendo que o ligasse a famí- lia Gambini; e por esse motivo, seu corpo jamais foi reclamado. 8 Na véspera do aniversário de Fiorella, eu fui chamado à bi- blioteca do juiz, para que tivéssemos uma conversa reservada, [33]
  • 34. antes do jantar no qual eu estaria formalizando o meu pedido de noivado. Não havia qualquer semelhança entre os dois homens que, durante duas décadas foram os principais personagens de uma guerra urbana sem precedentes. O juiz era simpático e fa- lante. De uma gaveta perfeitamente camuflada na imensa escri- vaninha de madeira maciça, tirou uma garrafinha de cristal, ser- vindo em copinhos de cerâmica duas doses de um excelente licor italiano, de menta. Durante quase duas horas, e eu confesso que nem percebi a passagem do tempo, ele me fez falar sobre mim, e meus projetos para o futuro. Quando eu disse a ele que pretendia convencer Fiorella a ir para a Espanha comigo, onde um empre- endimento imobiliário me havia sido legado por meus falecidos pais, ele festejou a ideia. Horas mais tarde, eu e Fiorella ficamos noivos, com as bênçãos da mãe e do avô dela, ambos viúvos. O toque de hu- mor ficou por conta do convite feito pelo juiz, prontamente aceito por mim, para que participasse com ele de uma pesca- ria em alto mar, no barco de sua propriedade, o La Fiore. Eu tenho certeza de que meu avô, apesar do imenso esforço que isso lhe custaria, iria se engasgar de tanto rir, se viesse a tomar conhecimento desse convite. 9 Outubro de 1994 O iate singrava as douradas águas do Pacífico, rumo ao sol que ameaçava esconder-se no horizonte. No convés superior, abraçados, Fiorella e eu desfrutávamos da melhor das solidões. Para trás ficavam todos os acontecimentos que transformaram, no último ano, ambas as nossas vidas. A morte do juiz, na biblioteca de sua casa, vítima de um ataque cardíaco fulminante, atraiu para a família Gatuzzo uma [34]
  • 35. notoriedade incômoda. Durante semanas, furgões de reportagens e jornalistas acampavam nos jardins da mansão, abordando em- pregados e expondo a dor da família nos jornais de todo o país. E durante todo o tempo, eu estive junto com Fiorella, não ape- nas confortando, mas auxiliando ela e sua mãe nos procedimen- tos legais decorrentes do falecimento, e que compreendiam exaus- tivas reuniões com advogados. Como procurador da única her- deira, cabia a mim aprovar ou não os consideráveis investimen- tos de meu falecido sogro, em papéis e imóveis. Pouco mais de dois meses depois do juiz Gatuzzo, suicida- va-se o velho Leonardo Gambini. Segundo as notícias, ele sofria de uma doença degenerativa, conforme os exames que se espa- lhavam junto ao corpo, e era orgulhoso demais para aceitar viver o restante de seus dias na dependência de terceiros. O velho Tony cumprira a parte dele. Depois, previamente orientado por mim – já que eu não poderia ter nenhuma partici- pação nesses procedimentos – ele determinara a transferência para uma conta numerada que eu abrira na Suíça, de todo o ouro que compunha o espólio de meu avô (o velho não confiava em nenhum outro investimento). 10 Agosto de 1980 Depois que meu avô me deu o ultimato, fui procurar Tony. Ele não fez qualquer comentário, enquanto eu narrava os acon- tecimentos. Eu estava furioso. Disse a ele que iria matar o meu avô. Ficamos os dois ali fora, sentados num dos bancos do jar- dim, tomando cerveja e olhando as estrelas. E só muito tempo depois, suavemente, Tony me falou que, de novo, eu não estava pensando como a truta. E foi como se eu mergulhasse em um redemoinho, enquanto os ponteiros do relógio do tempo gira- [35]
  • 36. vam alucinadamente no sentido inverso. Por trás, as terras de meu avô eram limitadas por uma mon- tanha escarpada que abrigava a nascente do rio de águas muito geladas que cortava toda a extensão do rancho. Num certo tre- cho, havia se formado um lago natural de pouca largura, mas bastante profundo, que todavia não impedia a progressão do rio que, logo em seguida, tornava a correr velozmente, aproveitando o declive do terreno. Era naquele lago, que Tony e eu pescáva- mos. Um dia, para meu deslumbramento, uma imensa truta pra- teada saltou, parecendo manter-se parada no ar. Tony me disse que aquela era a mãe de todas as trutas. A partir desse dia, eu fiquei obcecado em pegar aquela truta. Dias, semanas, meses se passaram, e nem sinal dela. Enquanto eu voltava de mãos vazias, Tony trazia para casa o seu peixe no balde (ele só admitia que pescássemos um peixe, cada um). Tony não era de ficar dando conselhos. E só opinava quando isso lhe era pedido. Mas, talvez por ter visto o meu desespero, ele perguntou se eu sabia por qual motivo eu ainda não havia conseguido pescar a grande truta pra- teada. Como eu nada dissesse, ele respondeu que era porque eu não estava pensando como a truta. Então, ele me explicou que aquela espécie de peixe era muito inteligente. E a “minha” truta, pelo tamanho que tinha, era a mais inteligente de todas. Durante centenas de anos os peixes viveram naquele rio, e não precisa- vam das nossas iscas para se alimentar. Os que eram pescados por nós, não estavam com fome; eram curiosos. Uma truta, por ser peixe de rio, jamais viveria naquele lago. Esperta como ela era, poderia até passear por ali, mas buscaria segurança na parte mais profunda do lago. Depois deste dia, mudamos nossas iscas, e utilizamos linhas mais fortes. De barco, ficávamos os dois, ho- ras a fio, imóveis e em silêncio. Quase um mês depois, eu pesquei a grande truta prateada. Conforme havia prometido a Tony, que só aceitara me ajudar sob essa condição, eu a devolvi ao lago. Agora, tantos anos depois, a história me voltava com todas [36]
  • 37. as cores daquele verão passado. E por causa dela, eu sabia o que deveria fazer. Mas, para isso, eu iria precisar mais ainda de Tony. E foi o que eu disse a ele. Ele havia me falado do sonho que tinha. Quando meu avô morresse, e se eu não viesse mais morar aqui, ele gostaria de viver na Sicília. Se tivesse algum dinheiro, só o bastante para comprar um pequeno sítio na terra de seus avós, ele seria o homem mais feliz do mundo. Agora, eu falei do sonho dele e também do meu, que nada tinha a ver com a família Gambini. Meu avô havia encaminhado meu pai para a morte, e agora estava querendo fazer a mesma coisa comigo. E não adiantava eu abrir mão da fortuna dele, já que meus pais haviam garantido meu futuro. Se eu não cumpris- se a sua ordem, ele afastaria de mim a mulher da minha vida. E isso, eu não iria permitir. Conversamos durante a noite toda. Tony manteve-se inflexível em um ponto: o velho juiz deveria morrer pelas minhas mãos. Eu era um homem de honra, e não poderia fugir ao meu destino. Ao contrário do que eu pudesse estar pen- sando, meu pai não era um tolo. Ele fez o que fez, de forma consciente, porque sabia do seu dever de sangue. Matando o juiz, aí sim, eu estaria liberado para fazer qualquer outra coisa. Quan- to ao sonho dele, ele me disse, viria sempre depois do dever de cuidar de mim, enquanto eu precisasse dele. Porque ele também era um homem de honra, e havia se comprometido com isso. Depois, olhando dentro dos meus olhos, finalizou com as pala- vras que selaram o nosso acordo: – Pelo seu sonho, qualquer homem deve estar disposto a fazer o que for preciso. Depois disso, conforme meu avô havia determinado, Tony e eu conversamos sobre “os detalhes”. Quando o sol já se mostra- va, nós nos separamos com um abraço demorado. [37]
  • 38. Final Sem outros parentes conhecidos, o herdeiro legal de meu avô era, no papel, o irmão mais novo dele, Carlo, residente na Sicília. Meu avô tinha um documento assinado por ele, me nomeando procurador. Mas, esta procuração só passaria às minhas mãos se eu matasse o juiz. Por esse motivo, a vida de meu avô teria de ser preservada até que ele, conforme a promessa feita, entregasse a procuração nas mãos de Tony, que a traria para mim. Pelos planos que eu havia traçado, tão logo tivesse a posse do rancho – e já que meu avô não estaria mais vivo – eu o venderia, entregando a Tony, conforme os desejos de meu avô, metade do valor apurado. A outra metade seria dividida entre os outros mais de vinte empre- gados, todos italianos, que durante quase trinta anos serviram lealmente aos Gambini, aqui na América. Antes de deixar o ran- cho pela última vez, Tony me deu o frasco com um poderoso veneno que seria acrescentado ao licor de menta que o juiz, con- trariando ordem expressa de seu médico, bebia reservadamente. Essa foi a forma que eu encontrei de harmonizar passado e pre- sente, sem comprometer o futuro que eu escolhi para mim. Quis o destino que eu, para deixar de ser definitivamente um Gambi- ni, tivesse de agir exatamente como um. [38]
  • 39. A escolha Desde que a lembrança alcança, nós estávamos sempre jun- tos. Dois garotos da mesma idade, vivendo dias despreocupados, numa época em que a maldade ainda não havia sido inventada. A semana inteira, eu ia para casa dele, imensa, e com um quintal que abrigava mangueiras generosas. Mocinhos e bandidos das nossas brincadeiras, nem percebemos que o tempo passava à nossa volta. Até que, adolescentes, ele rumou para outra vida, em São Paulo, quando seu pai assumiu a direção da fabrica do sogro, e eu tive de meter a cara nos livros, brigando por uma vaga difícil na universidade pública. Nas férias, nos dois primeiros anos, eu ia para o sítio deles, no interior paulista. Depois, tendo de conciliar estudo e trabalho, só nos comunicávamos por cartas. E mesmo essas, na medida em que o tempo me faltava, foram escasseando. Faz quinze anos que não nos vemos. Claro que eu tinha como certeza o fato de que ele estaria numa boa, tocando os negócios da família. Jamais imaginei que alguma coisa pudesse sair errada para ele. Por isto, é tão difícil acreditar no que vejo agora. Mas é ele. Eu o reconheço, mesmo com os cabelos desgrenhados, a barba imensa e as roupas imundas. Logo ele que sempre foi tão vaidoso. Sentado na calçada, com olhar vazio, indiferente ao movimento das pessoas, a imagem do meu amigo de infância é um grito desesperado de socorro. Meses antes, eu teria atravessa- do a rua – atravessado o tempo – e o levantaria da calçada imun- da, abraçando-o sem qualquer constrangimento. Meses antes... A verdade é que a vida nunca foi fácil para mim. A luta pela sobrevivência sempre foi acirrada, e este processo consumiu meus sonhos e toda a minha energia. O casamento com a mulher da minha vida foi bom só no início. Agora, nos odiamos mais do que nos amamos. Meses atrás, larguei a Defensoria Pública – [39]
  • 40. minha última tentativa de mudar o mundo. Decidido a ganhar dinheiro, ingressei num grande escritório de advocacia. Lá, eu e os outro vinte e quatro litigantes pisamos uns nos outros, na ten- tativa de nos mantermos à tona. Então, o que eu posso fazer por este meu amigo? O apartamento em que moramos, é pago pela minha mu- lher; e ela faz questão de me lembrar disso quase todos os dias. Um amigo fracassado é tudo do que eu não preciso para con- sertar o meu casamento. Por outro lado, que bem faria para as minhas aspirações profissionais, ser visto abraçado a um men- digo, quase na portaria da empresa? Assim, viro as costas para o meu amigo de infância, e para o cara que eu um dia fui, tor- nando a me juntar às pessoas que, como eu, precisam desespe- radamente continuar vivendo. [40]
  • 41. Depois que você foi embora Agora eu já consigo ver o dia que começa a apontar por trás da linha de montanhas. Agora eu sei que, daqui a pouco, o vento cortante que encrespa a superfície do mar, vai serenar, e os pri- meiros pássaros, com seu canto suave, irão saudar a nova manhã que virá. Agora eu sei que por trás de toda a imensa tristeza da longa noite, existe sempre a certeza de um novo amanhecer. Em meu rosto, a lágrima secou. Mas, como um cristal que o tempo endureceu e que a lembrança preserva, ela está guardada, ainda, como cada um dos nossos dias. Assim como todas as palavras e os silêncios mais eloquentes. Eu preciso dizer que, mesmo quan- do nosso amor era tanto que até doía, e o nosso mundinho pare- cia nos proteger da vida lá de fora, às vezes eu me pegava olhan- do para a porta, com medo do que poderia se esconder por trás dela. E eu não estava tão errado, você concorda? Depois, tudo se transformou numa eterna noite, cercada de frio, dor e irrealida- de. E a noite foi tão longa, que eu julguei que seria eterna. Hoje, eu já consigo caminhar por esta estrada que não tem fim nem começo e, sozinho como jamais me lembro de ter sido um dia, não sentir pena de mim mesmo. E mesmo quando olho o mar quebrar-se nas pedras lá embaixo, já não ouço o apelo das ondas me oferecendo paz e insistindo para que eu mergulhe nelas, be- bendo delas, respirando delas. Na verdade, foi quando eu comecei a ouvir sua voz, repetin- do vezes sem conta que esta não era a saída, que desse jeito ja- mais tornaria a encontrar você. Por isso, e só por isso, eu tive forças para lutar contra mim essa batalha de todos os dias, no desespero de todas as horas. Até que pudesse ver, desenhando-se no horizonte distante, os primeiros raios do sol. E assim, eu vou caminhando por esta estrada sem fim nem começo, e mesmo [41]
  • 42. que a vontade de desistir seja ainda tão forte, eu sigo adiante. E não vou parar nunca enquanto puder sentir em meus dedos a suavidade da sua pele, a luz dos seus olhos guiar a minha vontade, e a doçura da sua voz sussurrar em meus ouvidos que você ainda me ama. [42]
  • 43. O complexo de diógenes Quando Diógenes recebeu do patrão a notícia de que es- tava despedido, correu para casa, ansioso que estava em aba- far, nos carinhosos braços da amada, a dor da ingratidão. Mas, chegou atrasado. Com o braço negro e musculoso sobre a mulher que era de Diógenes, Chicão, o mecânico, roncava desavergonhadamente na cama que era de Diógenes. A indignação queria que ele gritas- se bem alto a sua revolta. Mas, a cautela o manteve calado. Afi- nal, vai que o negão acorda mal-humorado? Percebendo que sobrava naquele quadro familiar, decidiu abandonar a casa. Na saída, ainda trôpego pelo susto, pisou no rabo do cachorro que, como um tapete peludo, espalhava-se jun- to à porta. Levou uma mordida. E isto, na cabeça conturbada de Diógenes, foi a gota d’água. Sentindo-se perseguido pela humanidade, decidiu isolar-se dela. Só com a roupa do corpo, tomando como norte a monta- nha mais distante que a vista alcançava, iniciou a jornada sem volta. E conforme os dias iam virando semanas, um fervor místi- co começou a tomar conta dele. Enquanto as semanas iam virando meses, a extrema solidão agia naquele cérebro doente, criando nele um cego fanatismo. Por isso, quando se viu diante da montanha que ele escolhe- ra como destino, teve a ilusão de que era o próprio Deus. E na crença de que subia os degraus para o céu, iniciou a penosa esca- lada. Quase no topo, encontrou uma gruta. Nela, preservadas da [43]
  • 44. chuva e do sol de anos a fio, as quinquilharias deixadas por algum outro que, como ele agora, resolvera dar uma banana para o mundo material. Dentre tudo, uma lamparina a óleo chamou sua atenção. Agora, noite após noite, ele caminha até o ponto mais alto da montanha, e com a lanterna erguida sobre a cabeça, contempla com olhos de pai a cidade que se espalha sobre seus pés, cumprindo a sina dos deuses, que é de velar o sono de seus filhos. Lá de baixo, as pessoas olhando a chama que desafia o negrume da noite, divertem-se com a obstinação do louco da montanha. [44]
  • 45. Um por todos e todos por um – Dartagnan, sou eu... – A voz que hesita, demonstra clara- mente o enorme conflito entre ligar e não ligar. – Eu sei que não deveria estar telefonando para você. Eu jurei que jamais faria isso. Não depois daquela noite. – ... – Espere, me deixe falar. Você acha que se não fosse tão importante, eu estaria falando com você? Estaria passando por cima do meu orgulho, depois das coisas horríveis que você me disse? – ... – Você pode escutar, Dart? Tem um bicho nojento me acu- ando na minha cozinha – o gorducho Porthus falava aos berros, enquanto grossas lágrimas corriam dos seus olhos. Eu estou trepado numa cadeira, armado com uma ridícula colher de pau, à mercê deste... deste... – ... – Você não entende? Este animal horroroso está preparan- do o bote. Ele está esperando eu descer. Mas eu não vou, nunca. – Porthus, agora, chorava copiosamente. Bem próximo à cadeira onde Porthus se equilibrava, um mi- núsculo camundongo, indiferente ao pânico que causava, senta- va-se sobre as patas traseiras, devorando com gula os sucrilhos que se espalhavam pelo chão. [45]
  • 46. – ... – Você quer saber de Athos e Aramis? Eles estão viajando. Alguma surpresa? Agora, eles quase não têm tempo para vir aqui. Estou só. Eu contra o mundo. – ... – É um rato! Será que você não me ouve? Um rato imenso e feio. – Porthus estava histérico agora. O bicho está olhando fixo para mim, com seus olhinhos malévolos, só esperando que eu adormeça ou morra. O apartamento, de quatro quartos, na cobertura de um pré- dio de poucos andares na Lagoa Rodrigo de Freitas, fora herança dos pais de Porthus. Nos bons tempos, quando ele ainda estava casado com Dartagnan, todo dia era uma festa. Athos e Aramis, um casal que ele conhecera logo no primeiro ano de faculdade, eram artistas talentosos e loucos. Pintavam e esculpiam num ate- liê em Jacarepaguá, mas viviam ali, transformando o apartamen- to em um circo. Era o início dos anos noventa, e mesmo na zona sul do Rio os quatro gays, morando juntos, criavam uma silenci- osa hostilidade por parte dos demais condôminos. Mas eles, jo- vens e felizes, nem se importavam com isso. Na cozinha, ainda aboletado sobre a cadeira, com o telefone sem fio grudado no ouvido, Porthus, dividido entre o pavor e o despeito, continuava fazendo o seu número. – Está bem, doutor Dartagnan. Não vou mais desperdiçar o seu tempo. Não é preciso ficar me lembrando que você tem mi- lhares de clientes aguardando por você. Claro, um psicólogo tão famoso. Eu vejo você na tevê, às vezes. Sempre muito pondera- do, demonstrando imensa sabedoria. Parecendo estar muito bem. [46]
  • 47. No final das contas, eu deveria ser um obstáculo na sua vida. Um trambolho gordo e ridículo. Sempre tirando mais do que dando. – ... – Como? Você me pergunta o que é que eu quero? Eu que- ro... eu quero... sua atenção, merda! Que você se importe. Ou pelo menos finja que se importa. Que venha até aqui, merda! Ridículo! Ridículo! Ai, como eu sou ridículo em pensar que você se abalaria; que viria até aqui. – ... – E daí que você esteja em São Paulo? Não é de marte que nós estamos falando. É de São Paulo. Antes, você nem pensaria duas vezes. Mas, agora é agora, certo? Não está nem aí. Que se exploda! Vou desligar, Dart. – ... – Não, doutor. Seu tempo é precioso demais. Volte para o que é realmente importante para você. Desculpe por eu ter telefonado. Com tanto ódio que esqueceu o motivo de sua aflição, Por- thus desceu da cadeira, aos prantos, e saiu da cozinha, pisando forte. Se não tivesse fugido bastante rápido, o camundonguinho teria sido esmagado por aqueles pés imensos. [47]
  • 48. Assim é, se lhe convém Pompilho aspirou com gosto o cheiro doce dos mana- cás, que vinha de seu canteiro. Depois, fechou as janelas. Os olhos argutos vistoriaram cada cômodo de seu pequeno cas- telo. Era detalhista, o que se há de fazer? Compulsivo, diri- am os modernos, como se diagnosticassem uma patologia. Virtude, isso sim, argumenta ele. – Das minhas raras virtudes, sendo a modéstia a princi... A campainha, tocada insistentemente, arrancou-o do seu monólogo. Sim, porque Pompilho era dos que se bastavam, convivendo em doce harmonia consigo próprio. – Afinal, não se diz que... A campainha tocou de novo, ainda mais nervosa. Lá estava ele de novo a conversar com seus botões; fazer o quê, se o hábito faz o... À porta, emoldurada como uma pintura renascentista, ten- do ao fundo a rua que despertava para o novo dia, estava o amor da vida dele. Lucineide. Que no dia mais negro da sua existência, escafedeu-se mun- do afora, sem qualquer... – Cacete, Pompilho, vai ficar aí parado como um dois de paus? Era Lucineide. Deus, como sonhara com aquele momento. Como fantasia- ra em suas noites sem sono, o doce instan... [48]
  • 49. – Sai da frente, homem, que estou apertada. Era Lucineide. Loura e linda. E não estava sozinha, já que trazia pela mão um garotinho de no máximo dois anos, da cor de chocolate. E ela chispou para o banheiro, deixando os dois ali, olhando-se constrangidos. Pompilho e o pimpolho; o pimpolho e o Pompilho. É claro que Pompilho amava as crianças, assim como amava todos os animaizinhos da natureza. Mas, ele tem de confessar, preferia as plantas, por uma questão de afini... – Pombas, Pompilho, você já saiu do ar, de novo. Deixa eu te apresentar. Este é o Júnior, seu filho. – Filho, meu Deus. Um filho de quase..., quase... – Quantos anos tem o garoto? Era uma pergunta banal, sem qualquer outra intenção que não a de estreitar, através do conhecimento, os laços da pater- nidade recém adquirida. Mas, Lucineide, sensível como era, levou a mal. – Viu só? Você já está duvidando que o Ariclenes seja seu filho... – Ariclenes? Mas ele não é o Júnior? – É Júnior por parte de pai; você! Ariclenes é por causa de um sonho que eu tive com o vovô, que Deus o tenha – os dois se persignaram. – O velho pedia que eu colocasse no neto, o nome do me- lhor amigo dele. Você acha que eu fiz mal? [49]
  • 50. Claro que Pompilho não achava. Lucineide sabia melhor do que ninguém, que Pompilho era espiritualista convicto, tendo pelas coisas do além um respeito que beirava o medo. E para mostrar que não iria brigar com a verdade, Pompilho abraçou o guri, pre- ferindo ignorar que o moleque demorara bastante para nascer, já que ele e Lucineide estavam separados há mais de quatro anos. E dava gosto de ver aqueles dois assim abraçados, alheios às dife- renças, uma vez que Pompilho era mais branco que consciência de anjo, enquanto o garoto – por certo graças a mediunidade da mãe – havia puxado ao melhor amigo do avô dela, que com cer- teza, tinha os dois pés no continente africano. A vida é repleta desses pequenos milagres. Não vê o caso deles? Ontem mesmo, Pompilho tinha apenas a si próprio. Agora, tinha esposa e filho, de uma só tacada. E nesta hora, como deixar de lembrar da dor que sentira, dias depois de Lucineide ter ido embora, quando leu, pichada na parede de sua casa, a frese terrível: TODO CASTIGO PARA CORNO É POUCO! Humilhado, buscara conselho com o padrinho, missioná- rio de uma obscura ordem religiosa. E desse homem santo, ouvira as palavras reconfortantes: – Chifre é coisa que não existe. Tire isso da sua cabeça. [50]
  • 51. Azar Aquela era uma pequena cidade, pouco mais do que uma vila de pescadores, no interior de Portugal do ano da graça de 1901. As casas ali eram pequenas, e muito próximas umas das outras. Construções simples, descoloridas, todas no mesmo esti- lo, como se feitas de uma só vez. Nas manhãs, as mulheres apro- veitavam o bom tempo, e iam até a bica, no centro, onde um enorme tanque circular era usado para lavagem de roupas. E ali, naquele território só delas, vidas alheias eram, como as roupas sujas, lavadas em público. – A rapariga, numa outra vida, jogou pedra na cruz. E ago- ra vive para expiar as culpas passadas. Pior, que me arrastou nesse calvário. Distante dali algumas quadras, a tal rapariga bordava delica- das florezinhas, numa das peças do seu enxoval de casamento. A sorte jamais sorrira para a doce e ingênua Popônia. Nascera tar- de, quando os pais já tinham mais com que se preocupar, e dez anos depois do irmão, que vendo-se deposto da condição de fi- lho único, jamais lhe perdoou tal afronta. Eram abastados, por ser o pai dono de um dos poucos barcos de pesca, da vila. Mas, isso só durou até o dia do primeiro aniversário de Popônia. Uma tempestade tão terrível quanto inesperada, impediu o retorno do barco. Ninguém escapou. A mãe, com a saúde abalada desde o parto tardio, viu agravado o seu estado, falecendo poucos meses após. O irmão, culpando-a pelos infortúnios, deixou a cidade para sempre, embarcando num cargueiro de bandeira espanhola. Para fazer face às dívidas acumuladas, a casa teve de ser vendida. Castorina, alegando razões de coração, mas na verdade de [51]
  • 52. olho gordo no pequeno capital que restara, assumiu a guarda da criança. A partir desse dia, jamais deixou de referir-se à sobrinha, como um fardo. Não satisfeita de tê-la como criada sem paga, a pérfida Castorina fazia questão de tornar-lhe a vida, um suplício. Assim, os anos foram passando, todos iguais. Até que um dia, bateram à porta. Estando sozinha, já que a tia, como de hábito, saíra a bater pernas pelo comércio, teve um momento de indeci- são. O desconhecido procurava um quarto para alugar. Ora, na- quele fim de mundo, alugar um quarto para um viajante, era sem- pre um excelente negócio. Qualquer das casas, ela tinha certeza, acolheria com entusiasmo tão distinto cavalheiro. Vencendo pela primeira vez o velho medo, decidiu fazer entrar o desconhecido, para que esperasse pela tia. E ainda serviu-lhe café e bolachas, ignorando a sovinice da megera. Os passos pesados da Castori- na, ressoando no alpendre, interromperam a agradável prosa dos dois. Ao ouvir-lhes as risadas, a megera trancou a cara. Mas foi quando viu o almofadinha aboletado em sua poltrona, com ares de dono, que o vermelhão da raiva subiu-lhe do colo ao rosto. Percebendo os já tão conhecidos sinais, Popônia apressou-se a explicar-lhe que o gentil senhor viera alugar um quarto. Santa medicina! Animada com a possibilidade de embolsar uns escu- dos, a agora toda gentil Castorina abriu um de seus raros sorri- sos, pondo à mostra os dentes estragados. Sorriso que quase vi- rou um engasgo, quando soube que a tonta da sobrinha dobrou o valor que ela própria pediria. E qual não foi sua surpresa quan- do o estranho, com aquele gesto de mãos que só os muito ricos sabem fazer, aceitou sem regatear. – Será que pedi pouco? – a interesseira pensou consigo mesma. E conforme o tempo passava, a Castorina melhor conhecia os detalhes da vida do inquilino. Era comerciante, e ausentava-se [52]
  • 53. por conta dos negócios, a cada quinze dias. Mas, ao retornar, sempre trazia mimos valiosos para ela e para a sobrinha. A casa, graças a generosidade dele, começou a dar sinais dos bons fados. Pintada de novo, exibia vistosas cortinas em suas janelas, e uma infinidade de flores multicoloridas, arranjadas em vasos e jardi- neiras, pelas caprichosas mãos de Popônia. Anfilófio – este era o nome do rapaz – tratava a ambas com tão gentis maneiras, que a Castorina logo encasquetou que o gajo estava a lhe fazer a corte, já que era das que julgam que o mundo gira em torno de seu próprio umbigo. Assim, quando ele solicitou uma entrevista em particular, esmerou-se em fazer caras e bocas, apertada em rou- pas que lhe amassavam as carnes, na tentativa de mostrar-se mais sedutora. O golpe só não foi maior porque a manhosa tinha sete vidas. E cada uma delas, era mais calculista que a outra. Ora, se o parvo apaixonara-se pela desmilinguida da sobrinha, deixe-se es- tar, que nem tudo estava perdido. Afivelando às fuças um sorriso que mais parecia um esgar, fingiu-se contente, aceitando que noivassem. Mas fez exigências. Todas muito justas, dizia a pérfida mulher, já que abrira mão de todo o pequeno patrimônio de uma vida, para que a sobrinha tivesse dias de princesa. Outro, menos apaixonado, teria recusa- do tamanho despautério. Anfilófio, contudo, sequer protestou. Assim, toda desmanchada em salamaleques e rapapés, a Castori- na viu Anfilófio colocar no delicado dedo da amada, o anel do compromisso, que a broaca avaliou como caríssimo. Mas, cinco meses depois, uma carta endereçada a Popônia, foi interceptada pelas ágeis mãos de Castorina. Um advogado informava que Anfilófio havia sido preso, e que rogava que a noiva o visitasse no presídio da Capital. Queria pedir que ela o perdoasse, e explicar-lhe o que acontecera. Lívida, a Castorina despachou a sobrinha para que fosse ao herbanário aviar-lhe uma [53]
  • 54. receita. Vendo-se sozinha, invadiu o quarto do hóspede. Ao can- to, o imenso baú de couro negro, sempre trancado, que tanto lhe despertara a curiosidade e a cobiça. Com ferramentas adequadas e muito esforço, arrebentou as fechaduras. Dentro, uma monta- nha de cédulas estalando de novas. Eram libras esterlinas. Mas, para a Castorina, que apesar da pose era uma rematada idiota, eram notas falsas, dinheiro de meliante, já que não tinham qual- quer semelhança com "cédulas de verdade", que ela tão bem co- nhecia. Por conta disso, acovardada em se imaginar cúmplice do delito, já que acoitara o bandido em sua casa, decidiu tirar de lá a prova do crime. Amontoando a dinheirama no quintal, ateou-lhe fogo. Na pressa, não reparou na carta que agora queimava junto com as cédulas. Nela, Anfilófio dizia que se Popônia estivesse lendo aquela carta, seria porque algo de muito ruim acontecera com ele. Se assim fosse, todo aquele dinheiro, que era fruto da venda das terras de sua família, em Londres, deveria ser usado por ela, para começar uma nova vida. [54]
  • 55. O mistério do 7º elemento Desde que ela mudou-se para cá, eu a venho observando atentamente. Pelo fato de estar preso a esta cadeira de rodas, tendo de abrir mão dos meus esportes preferidos e das longas caminhadas, tornei-me um espectador atento das coisas, já que para mim o mundo ficou do tamanho desta janela. Assim, fui adestrando minha percepção a tal ponto que, com a câmera digi- tal nas mãos, capturo detalhes que a visão comum jamais regis- traria. Por isso pude anotar cada peça do pesado mobiliário que compunha a mudança da nova vizinha: 13 caixotes imensos. Pela posição das persianas, eu julgava que não seria notado, mas o gato preto, que iria dividir com ela a nova residência, fixou em mim seus olhos malévolos por um longo tempo, de forma a não deixar dúvida de que eu fora descoberto. Nos dias que se seguiram, nada aconteceu. Portas e janelas do casarão permaneciam fechadas, e as grossas cortinas impediam que se olhasse através delas. Quando eu estava prestes a desistir, vie- ram as noites de lua cheia. Por volta da meia-noite, carros negros começaram a estacio- nar em frente ao portão, deles descendo homens e mulheres ele- gantemente trajados, mas chegando sozinhos. Eram sempre sete os visitantes que entravam. No entanto, antes do amanhecer, so- mente seis carros retornavam, para buscar seus passageiros. O mesmo fato repetiu-se em cada uma dessas noites de lua cheia. Depois, tudo voltou a ser como antes, a casa permanecendo va- zia e silenciosa, como se não fosse habitada. Graças ao meu fabuloso equipamento, transportei as ima- gens obtidas com a câmera, para a tela do computador, e pude, [55]
  • 56. utilizando o recurso de aproximação das imagens, tornar nítidos os rostos de cada visitante. Totalmente obcecado, eu dividia o meu tempo entre a tela e a janela, aguardando pela primeira noite de lua cheia. Quando isso se deu, eu comparei as fotos que tinha, com cada um dos novos visitantes. Então, dei-lhes nomes: Abel, Brena, Cloé, Dante, Elmer, Franz e Gertrude, chegaram na pri- meira noite; Elmer não retornou. Depois, foi a vez de Brena. Nessa altura, já haviam vindo para o grupo, Ianis, Jéssica, Keila e Licurgo. Abel e Gertrude não foram mais vistos. Agora eu vivia para esse mistério, envolvido de tal forma que sequer dormia, consumindo leite de caixa e biscoitos, ali mesmo, próximo à janela, temendo perder o detalhe que explica- ria o desaparecimento, a cada noite, do sétimo elemento. Os meses foram passando, e em cada uma das noites de lua cheia, sete pes- soas entravam e apenas seis saíam. Estranho era que, apesar dos desaparecimentos, os jornais nada publicavam. Mais estranho ain- da, era o fato de que os visitantes demonstravam estar alegres, tanto quando chegavam, quanto quando partiam. Só que a cons- tante agitação das noites em claro, e a alimentação precária, co- meçaram a cobrar seu preço. Não percebi quando ferrei no sono. Ao acordar, estava no centro da imensa sala, toda vermelha, discretamente iluminada por velas, em candelabros de ouro fixa- dos às paredes. Muito mais deslumbrado do que temeroso, eu ob- servava fascinado cada detalhe do salão. Sob a minha cadeira de rodas, um imenso pentagrama, com elaborados símbolos cabalísti- cos. Sentada num imenso trono de rocha bruta, trajando um man- to dourado, tendo o gato negro no colo, a dona da casa tinha o porte de uma rainha. Senti uma enorme alegria, fruto talvez da mais absoluta loucura. Agora, eu não era apenas o observador dis- tante. Eu estava ali, fazia parte de tudo aquilo, e era um deles. Fi- nalmente iria descobrir o mistério do sétimo elemento. [56]
  • 57. O crime não compensa Quando a jurássica secretária da presidência adentrou o recinto, o silêncio que se fez foi mortal. Ela acabara de igno- rar o primeiro mandamento da ancestral empresa ZAMBRO- VI, PUSKAS e CARRANZA – IMPORTAÇÃO E EXPOR- TAÇÃO, que rezava que jamais se interromperia uma reunião da Diretoria. Mas, o silêncio logo foi quebrado pelo sofrido uivo do meu estômago, quando ela, com os olhinhos brilhan- tes de uma ratazana sádica, apontou-me o dedo longo e ossu- do, e ordenou que eu fosse atender a um telefonema u-r-g-e- n-t-e. E logo passei do medo ao terror, quando ela, sem dis- farçar a alegria, completou: – É da polícia. Sem essa de cidadão cumpridor das leis. Eu estava gruda- do à cadeira, vitimado por um tremelique vergonhoso e in- controlável. A culpa estampava-se na minha cara, por qual- quer crime que fosse. Quando a autoridade, do outro lado da linha, informou que minha sogra havia sido sequestrada, lá- grimas me correram dos olhos. E a gargalhada, a custo conti- da, jorrou como cachoeira. Claro que para o investigador, eu disse que era uma crise de nervos. Ainda tonto, eu só conse- guia pensar: quem é que iria querer pegar aquela tribufu? Nada contra os meliantes, é claro; eu dou a maior força. O policial, cortando a animada conversa que eu tinha comigo mesmo, aconselhou-me a contratar um profissional, para negociar os termos do resgate. Foi aí que a ficha caiu. Tinha de ser pega- dinha. Não é que eu ainda teria de pagar para trazer aquela velha de volta? Mesmo que eu, na verdade, estivesse disposto a fazer qualquer sacrifício, só para me ver livre da jararaca, [57]
  • 58. por causa da minha mulher que – e nem me pergunte por quê – adorava a mãe dela, eu ia ter de chutar contra meu próprio gol. Problemas, problemas... Então, eu mandei e-mails para os meus comparsas da C.O.R.J.A. (CAMBADA DOS ONZE RENEGADOS DO JARDIM DE ALAH), convocando uma reunião de emergência, para aquela noite. A turma do antigo bairro, com devoção franciscana, bate ponto toda sexta-feira no bar do Araújo. Só que, por causa da urgência do ocorrido, não dava para esperar sequer um dia. Na hora combinada, estávamos todos lá. Eu nem consegui acabar de expor os fatos. A galera rola- va no chão de tanto rir. E nem adiantou eu ficar repetindo que a coisa era grave, pedindo seriedade. Imagine só quando eu soltei a bomba: o Palhares seria o profissional que eu con- trataria para lidar com os sequestradores da minha sogra. A birosca do Araújo quase veio abaixo, com as gargalhadas dos caras. Sérios, ali, só eu e o Palhares. Agora, eu devo explicar a quem não o conhece, quem é o Palhares. O cara é um asno. Você acredita que o panaca jogou para o alto, assim, na maior, um salário de marajá numa empresa multinacional, para abrir uma agência de detetive particular? Mas, mesmo que ele jamais tenha passado da palavra à ação, ele é um profissional, pombas; tem de ser respeitado. Era esse o meu discurso. Mas, no meu plano perfeito, do Pa- lhares eu só esperava uma coisa: nada! O que aconteceu depois, saiu em todos os jornais. Em seu primeiro telefonema, os sequestradores mandaram o Pa- lhares ir buscar a velhota de volta. Assim, sem mais nem me- [58]
  • 59. nos; deram o endereço e tudo. Tremenda sacanagem dos ca- ras. E o babaca do Palhares, foi. E mais, resolvendo usar a cabeça pela primeira vez na vida, convocou a imprensa, deci- dido a surfar nessa onda. Por isso, todo mundo viu no Jornal Nacional, o Palhares resgatando a “simpática vovozinha”. Hoje faz dois anos que tudo aconteceu. A turma, agora com dez, continua se reunindo toda sexta-feira, na birosca do Araújo. Menos o Palhares, é claro, que agora virou celebrida- de. Você quer saber da minha sogra? Está morando lá na mi- nha casa. Diz que ainda não conseguiu se recuperar do cho- que, e por isso não pode mais ficar sozinha. Minha mulher, com os olhos lacrimosos, perguntou se podia, já que não lhe restam muitos anos de vida. Só que a surucucu tem saúde de ferro. Fuma, bebe, e come como uma porca. Pelo jeito, a ve- lha vai durar mil anos. Fazer o quê, se eu nasci sem sorte? Feliz era o Adão, que não tinha sogra. [59]
  • 60. O dia depois de amanhã Estava um dia perfeito, daqueles em que a gente fica se per- guntando o que pode sair errado. Caminhando pelo calçadão, na orla da lagoa, deixei meus olhos se perderem no infinito. Por isso, demorei a perceber a moça ao meu lado. Linda, com longos ca- belos negros escorrendo por seus ombros, e sem qualquer ma- quiagem. De diferente, só o vestido branco, enfeitado com fiti- nhas multicoloridas; além dos dentes, é claro, todos eles de ouro. Queria ler minha mão. Normalmente, eu não dou assunto; igno- ro e sigo em frente. Mas hoje, tocado pela extrema beleza da manhã, brinquei com ela: – Se você adivinhasse mesmo, saberia que não sou um bom cliente. A resposta vem rápida: – Pelo contrário, só me aproximei porque sei que o que te- nho a dizer, irá mudar sua vida. Não tanto pelo que ela falou. Mas foi a forma com que ela falou, que despertou minha curiosidade. Mesmo assim, não dei o braço a torcer. Mais brincando do que falando sério, eu a desafiei: – Diga o meu primeiro nome, e o ano do meu aniversário, só para me convencer. Com os olhos muito sérios, ela disse que a origem do seu povo remonta a muitos milhares de anos. Apesar de estarem es- palhados pelos quatro cantos do mundo, não possuem o seu pró- prio país. E mesmo nos países dos outros, vivem apartados, em [60]
  • 61. acampamentos, fiéis às suas origens e aos seus costumes. – Os deuses nos abençoaram com o dom de prever o futuro. E esta é a única forma de garantir o sustento da nossa gente, já que não plantamos, não temos criações de animais, não fabrica- mos e nem comercializamos nada. Eu não sei o seu nome ou o ano do seu nascimento. Mas posso dizer coisas sobre você, que apenas você sabe. Além de outras, de que você nem desconfia. Dei a ela os cinquenta reais. Pegando minha mão, ela falou de alguns fatos e de pessoas da minha infância e adolescência. Depois, durante alguns minutos, manteve-se em silêncio. Quan- do tornou a falar, sua voz estava diferente. – Você não irá realizar qualquer dos seus sonhos. Não terá esposa e nem filhos. É só o que eu devo lhe dizer. Ela conseguiu me tirar do sério, e eu estava prestes a ofendê- la de alguma forma. Mas, a tristeza que eu vi nos olhos dela, calou minha revolta. – Eu sinto muito. Mas, você pagou para ouvir a verdade. E quando eu, virando-lhe as costas, já me afastava, ela gritou: – Você irá morrer no ano que vem, no dia 18 de setembro. Mesmo com a voz de bom senso repetindo vezes sem conta nos meus ouvidos, que aquilo era bobagem, uma certeza me fa- zia acreditar que a profecia se realizaria. Nem sei como cheguei até em casa. Deitado na minha cama, eu pude ver toda a minha vida passar diante dos meus olhos. E só quando os primeiros [61]
  • 62. raios de sol chegaram até minha janela, eu compreendi que só tinha uma coisa a fazer. Criei para mim um plano de onze meses. Pediria demissão do meu emprego, para pegar a grana da rescisão. Venderia o apar- tamento, e o carro novinho. Depois, sem nada que me prendes- se, iria viver intensamente a pouca vida que ainda me restava. E é exatamente o que eu venho fazendo desde então. Dor- mia em uma cidade e acordava em outra. Saltei de pára-que- das, voei de asa-delta, fiz pesca submarina, escalei montanhas, e pratiquei canoagem. Só que para viver a vida que eu pedi a Deus, gastei até o meu último centavo. Desde o mês passado, estou usando o limite do meu cheque especial. Não tinha al- ternativa, depois que estourei todos os meus quatro cartões de crédito. Preocupado, eu? Da varanda da suíte presidencial deste hotel cinco estrelas, observo as ondas do mar quebrando nas pedras, doze andares abaixo. Soprando a fumaça azulada do meu charuto cubano, bebo mais um gole da carézima champanhe francesa. Definitivamen- te, estou em paz com o mundo. Afinal, se tudo correr bem, eu vou morrer amanhã. Sem casa, emprego ou automóvel, e deven- do uma nota preta, o azar vai ser se, no dia depois de amanhã, eu ainda estiver vivo. [62]
  • 63. Tarde demais Antes que soasse o alarme do relógio, ele levantou-se, certo de que, se não o fizesse agora, o sono arredio iria nocauteá-lo. – Tarde demais companheiro. Enquanto olhava, oito andares abaixo, a rua ainda deserta àquela hora da madrugada, acendeu o primeiro cigarro do dia. E a velha vontade de jogar tudo para o alto, bateu ainda mais forte. – Tarde demais companheiro. Vinte anos de trabalho policial gritavam nos seus ouvidos que os mocinhos estavam perdendo a guerra. Foi até o quarto do filho. Ele não dormira em casa. Lembrou quando sua esposa le- vou o garoto para ele. Dias antes ela ligara, dizendo que já não conseguia mais controlar o filho. E ele, que abandonara o lar há mais de sete anos, se viu às voltas com aquele rapaz que ele co- nhecia tão pouco. Mas, é aquela revolta muda, a mesma que ele tantas vezes viu nos olhos de garotos que ele vinha prendendo, que faz com que ele se preocupe tanto. Na ânsia de provar que são livres, os jovens escravizam-se, tornando-se peças descartá- veis da criminalidade. E o resultado disso, ele testemunha todos os dias nas ruas. E por achar que na próxima ocorrência poderá defrontar-se com seu filho, morto ou preso, é que ele agora vive com medo. E esse medo está lhe tirando o sono, noite após noi- te, e prejudicando seu trabalho como policial. Isso, e a culpa de saber que, ao falhar como pai, condenou o filho irremediavel- mente. E dentre todas as dúvidas que povoam o seu mundo, ele tem apenas uma certeza: tanto para ele quanto para o filho, agora já é tarde demais. [63]
  • 64. As vampiras Depois de horas preso no trânsito comum das noites de sexta- feira, vindo de uma chatíssima reunião de negócios na Barra da Tijuca, tudo o que eu queria era chegar logo em minha casa, e cair nos braços macios e carinhosos da minha mulher. Mas o destino tinha outros planos para esta noite. As duas estavam ali paradas, com ar desolado, acenando em vão para os táxis que passavam em disparada. Mesmo eu sendo um cara legal, sempre pronto a um ato de generoso desprendimento, não teria parado. Mas, começava a chover, e todo carioca sabe que, quando chove, os táxis somem como que por encanto. Isso e o fato de que, estando ali quentinho, o desconforto delas começou a fazer com que eu me sentisse cul- pado. Já no carro, elas apresentaram-se como universitárias, indo para sua festa de formatura, em Botafogo. Realmente, as duas esta- vam deslumbrantes em seus vestidos de noite. Jovens, lindas e in- teligentes, fizeram com que eu me sentisse um herói, encantadas por meu gesto de bondade. Eu poderia tê-las deixado no prédio, em Copacabana, onde apanhariam outra colega, e seguido o meu caminho, ao invés de aceitar subir para um drinque de comemora- ção. Mas, afinal, elas insistiram tanto... Só voltei para casa, cinco dias depois. Totalmente desmemo- riado, não soube dizer o que tinha acontecido depois de uma taça de vinho tinto. Ou melhor, antes de “apagar”, eu acho que ouvi uma voz rouca, sussurrando no meu ouvido: – Seja bem-vindo ao ninho das vampiras! Eu posso ver pelo seu sorriso, que você não acreditou nesta história. Infelizmente, minha mulher também não. E agora, eu vou morar onde? [64]
  • 65. O lado escuro da rua Foi por causa da sexta-feira, dia sagrado para a turma do escritório que, num barzinho ali perto, festejava o final de se- mana. Apesar dos convites insistentes dos colegas, ele nunca ia. Mas hoje, sem mais nem menos, resolveu ir. Beberia ape- nas um chope, decidiu, e jogaria um pouco de conversa fora. Só para não bancar o chato. Depois, ainda teve a chuva fina, colando a camisa no corpo, enquanto o paletó, distraído, descansava no ombro. Passos incer- tos o levaram através da viela. Ele, que jamais passava por ali, preferindo o caminho mais longo, até o lugar onde estacionava o carro. Mesmo com a cabeça zonza e os pensamentos confusos, uma sensação de quase-perigo tentava acordar seus sentidos. Era um beco estreito e pouco iluminado. A maior parte dos postes, inúteis, com lâmpadas quebradas. De cada lado, casas que as som- bras ocultavam podiam ser adivinhadas, como presenças amea- çadoras. E, mais que tudo, o silêncio denso e frio. Pensou em voltar. Afinal, quanto já caminhara? Talvez já estivesse quase no final da ruela. De repente, o negro da noite o envolveu, como em um abraço indesejado. Neste trecho, não havia lâmpadas. Pen- sando ouvir um ruído às suas costas, voltou-se. Rodou em volta de si mesmo, sentindo-se ameaçado, buscando compreender a origem do seu medo. Agora, já não sabia sequer de onde viera ou para onde iria, com o início e o fim da viela embaralhados defini- tivamente. Neste momento, imóvel, encharcando-se de chuva, ele teve certeza que a sua vida terminaria ali. Quando sentiu que mãos sem corpo o tocavam, deixou que um grito lhe escapasse da garganta. Depois, nada. [65]
  • 66.
  • 67. Este livro foi produzido em Araruama – RJ, pelo Projeto Livro Pronto que permite ao escritor iniciante todas as condições para a publicação de sua obra. http://projetolivropronto.blogspot.com/