11. Prólogo
A apenas algumas horas da madrugada de sexta-feira a raiva já do-
minava Catarina, mas isso não mais a preocupava. O que era uma leve
irritação no domingo se tornara uma ira indisfarçável. Antes mesmo de
sentir no espírito os sinais inequívocos da mudança os animais da roça
começavam a evitá-la. Porcos, marrecos e até o cachorro — acolhido pelo
falecido marido ainda filhote — debandavam ao menor sinal de sua pre-
sença. A reação que mais a incomodava, no entanto, era de Cigano, um
maltratado cavalo que servia a família havia oito anos. O animal assumia
uma postura agressiva sempre que Catarina se aproximava. Ela chegou a
ser derrubada duas vezes ao tentar montá-lo e desistira de selar o animal,
delegando a tarefa a Rosário.
Acreditava que sua ruína também contaminava a roça. As fileiras de
milho haviam secado, embora chovesse regularmente. As poucas raízes de
mandioca arrancadas da terra morta ao serem descascadas estavam tão pretas
que podiam ser tomadas por tocos de carvão. As bananeiras davam frutas
pequenas e murchas, e o leite amargo da única vaca já matara um bezerro.
Após o pôr do sol, quando se sentava só na soleira de seu casebre, passava
horas sem escutar um único pio ou coaxar.
Em muitas dessas noites ela empunhou a garrucha e a apontou
para o coração. Fechava os olhos, pressionando o gatilho por quase uma
hora, até os dedos endurecerem e o cano de ferro marcar a pele branca.
Então recuava, sem derramar uma única lágrima, e se deitava na esteira,
sonhando com ondas de fogo, gritos de dor e gemidos na sacristia. Os
rostos dos mortos também a visitavam durante o sono, enegrecidos pelas
chamas, olhos vazados e envoltos no cheiro enjoativo de carne queima-
da. Desistira de tirar a própria vida não apenas por medo do que lhe
aguardava no inferno dos suicidas — mas porque qualquer castigo seria
insignificante diante da sua danação.
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12. Desde a epidemia de cólera que lhe levara o marido dois anos an-
tes, sua existência era um lamento tedioso. Fora obrigada a administrar
a roça sozinha, contando apenas com a ajuda de sua escrava. As dívidas
cresciam, e raros eram os comerciantes com os quais ainda tinha algum
crédito. Habituara-se a ser assediada pelos homens da vila, que ora a
queriam como esposa, ora como concubina.
Admirou o corpo nu na noite sem lua, com orgulho e alguma ver-
gonha. Ainda era uma mulher atraente para a época e o lugar, embora
a jornada exaustiva no preparo da farinha de mandioca, a alimentação
pobre e a tristeza houvessem devorado parte de sua beleza. Os cabelos
loiros desgrenhados cresciam secos e sem viço. A pele branca estava po-
luída por manchas de sol e picadas de insetos. Um escorbuto mal curado
escurecera suas gengivas e levara alguns dentes; os que sobraram eram
pequenos e amarelados. No entanto, sonhava em ser mais uma vez bela,
para um homem igualmente vistoso e sem vícios. Há onze meses, esse
homem finalmente chegara à vila.
Ela prosseguiria até o amanhecer embalada por lembranças malditas
e inebriantes se a ira não reivindicasse a posse de seu corpo. Veio a dor
invencível, mas a certeza que em breve a partilharia a acalentou. Apertou
com força as pálpebras umedecidas e só as abriu quando pôde vislumbrar o
mundo com olhos que não existiam. A mata mudara. Silenciosa, encolhida
como um animal acuado que respirava em breves lufadas de ar, parecia
ansiar pela passagem da invasora.
Catarina não se importou com o protesto acovardado da natureza. Impôs
mais vigor aos músculos, que respondiam com maior velocidade, e aos pulmões,
que iluminavam o breu da madrugada. Agora não havia mais a escuridão de
uma noite sem lua, mas um mundo de chamas. Atravessou displicentemente
um córrego raso, e as águas frias ferveram à sua passagem. Envaidecida, sorriu, e
pôs-se a brincar com o borbulhar que produzia ao chapinhar no riacho.
Por instantes imaginou que não haveria testemunhas do milagre ope-
rado a apenas uma légua da vila, até captar a presença do velho e de seu ca-
valo. Ele sim, verdadeiro intruso, violador de terras que não lhe pertenciam.
A montaria do homem relinchou em desespero, pressentindo a grandeza
da criatura no seu encalço, e Catarina respondeu em sua língua. A viúva
desembestou, certa da vitória no confronto iminente, levantando nuvens
de folhas secas e de terra. O medo no coração do velho chegou-lhe bafejado
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13. pela brisa da madrugada — um pavor de gosto ocre, que alimentou seus
músculos, levando-os ao limite. Outro rinchar e o cavalo do estranho derru-
bou o dono, embrenhando-se entre as árvores.
Ela surgiu diante do velho, magnífica. O homem disparou um mos-
quete e uma garrucha que trazia à cintura — uma reação instintiva, sem
apurar a pontaria. Dois tiros a atingiram, mas as esferas de chumbo não lhe
rasgaram a carne como esperado. Catarina respondeu à agressão, e apenas a
afoiteza impediu que seu inimigo fosse calcinado por uma longa labareda.
O velho valeu-se da aparente falha e correu atabalhoadamente pelo córrego.
Por diversas vezes ele tropeçou, ferindo o rosto e as mãos nos seixos afiados
do leito pedregoso. Catarina, ao contrário, impunha à perseguição um rit-
mo quase desinteressado. Ela persistiria na encenação por um tempo inter-
minável, mas a Ave-Maria murmurada pelo estranho a esbofeteou. Os lábios
apenas se moveram, sem que a garganta ressecada cantasse a oração. Mesmo
assim, o apelo ofensivo chegou aos seus ouvidos, e a reação foi imediata.
Antes de o fugitivo ficar de pé ela investiu com fúria sobre suas cos-
tas, acertando em cheio uma das clavículas, que se partiu num ruído seco.
Uma dor leitosa encobriu o moribundo. A visão enevoou-se, os pulmões
esgotaram o pouco ar que restava. Nos últimos segundos de sofrimento mal
conseguiu divisar os contornos do adversário, que agora se aproximava len-
tamente. O brilho forte e ao mesmo tempo difuso da chama — como uma
tocha empunhada na noite de lua nova — impedia que enxergasse com
clareza. Sem forças para se arrastar, virou-se e tentou sem sucesso levantar as
mãos. Não para implorar piedade, mas apenas cobrir o rosto.
Quando o fogo o envolveu, ele gritou.
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15. 1. Diogo
Diogo Durão de Meneses acordou com o grito — um chamado que
apenas ele ouviu. Embora os primeiros comerciantes e escravos já circulas-
sem pelo Aldeamento de São José e o dia acabasse de nascer, tinha certeza
que o berro não saíra das ruas lamacentas ou das casas ao redor da pensão
onde pernoitara. Neto de portugueses, levava os sobrenomes do pai, um
paulista assassinado na guerra pelo domínio das minas, trinta anos antes. Da
mãe, morta em uma emboscada de índios quando ainda engatinhava, não
trazia recordação alguma.
Era uma sexta-feira, manhã do dia sete de maio de 1734, embora ele
não soubesse disso. Há quatro anos perdera a noção do tempo. Reconhecia
o dia pela luz e a noite pelo breu, sem se importar com estações ou meses.
Apenas os olhares dos curiosos que evitavam o rosto barbado davam a Diogo
a impressão de estar vivo. Passava até dois dias sem comer, bebendo uma ca-
neca de água quando os lábios rachados e a garganta seca exigiam umidade.
As refeições se limitavam a nacos de charque desfiados com displicência pelos
dentes estragados, abandonados após algumas mordidas. Não se recordava
do último banho. O sustento vinha de uma pequena fortuna em dobrões e
pepitas de ouro, guardadas em uma algibeira e que Diogo trocava por con-
tos de réis quando havia necessidade. As horas de sono, cada vez mais raras.
Quando o corpo esgotado perdia as forças após dias sem descanso, buscava
uma rede ou a sombra de uma árvore e praticamente desfalecia. Foi dessa
modorra sem sonhos que o grito o tirou.
Boatos sobre a riqueza misteriosa do forasteiro atiçaram por duas
vezes a sanha de bandidos em São José, onde ele passara os últimos três
meses. Os primeiros planejaram uma emboscada às margens do rio Buqui-
ra, logo após o pôr do sol. Dos cinco, três fugiram, deixando para trás os
corpos dos comparsas. O fracasso reforçou a tropa que encampou a segun-
da tentativa. Sete o atacaram em uma noite de lua nova nos arredores na
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16. vila. Um deles não chegou sequer a disparar as garruchas, e um segundo
agonizou com os intestinos abertos por uma semana.
No formigueiro em que os povoados do sertão se transformaram após
a descoberta do ouro apenas duas pessoas acompanhavam a vida morta de
Diogo: seu escravo João e o filho do cativo, Inácio.
Havia, no entanto, uma terceira testemunha.
A criança dos dentes pretos.
Nos quatro últimos anos ela seguia Diogo em muitas das noites insones
e dos dias tediosos. Por vezes, passava uma semana sem aparecer, em uma
planejada e ilusória tranquilidade. Quando o jovem se arriscava a pensar que
sua presença era um pesadelo ou delírio, a criança surgia novamente. Calada
em princípio, saboreava o desalento que corroía o rosto da presa ao perceber
o inimigo surgir em um canto sombrio. Depois abandonava o silêncio e dis-
parava o rastilho de provocações, insultos e lembranças dolorosas. Ninguém
mais a via, apesar de seguir Diogo nas ruas, casas e pátios das vilas como um
filho rejeitado. Andava descalça e mancava de uma perna. Vestia somente
uma calça curta e esfarrapada, deixando as canelas expostas. Os cabelos eram
engordurados, a pele, suja. As pessoas ignoravam sua presença, embora os
animais se sentissem irrequietos na companhia do forasteiro.
Quando o berro o despertou, Diogo acreditou tratar-se de mais uma
zombaria da criança dos dentes pretos. Estava deitado em uma rede no quar-
to e por pouco não caiu ao ser arrancado do sono. Demorou até que os
olhos se acostumassem à penumbra do aposento. No cômodo, além da rede,
um baú e uma cadeira quebrada usada como escora da porta. Manteve-se
imóvel por alguns segundos, tentando discernir ecos do chamado em meio
ao burburinho de risadas, relinchos e sons difusos que atravessavam a janela
fechada. Talvez o grito tivesse partido de alguém agredido nas imediações ou
assustado com o movimento brusco de um animal.
Ainda atentava aos ruídos da rua quando teve certeza de não estar mais
sozinho. Os pelos do corpo se eriçaram, e os testículos encolheram.
— Vosmecê acordou cedo hoje.
O comentário, vindo de algum ponto do cômodo escuro, não transpa-
recia preocupação autêntica, apenas curiosidade. A voz misturava aspereza a
um enganoso tom infantil, como um falsete grotesco e inquietante. Diogo
a ignorou, tentando disfarçar o mal-estar. A criança farejou o desconforto e
soltou uma risada esganiçada. O jovem desceu da rede e se vestiu lentamente.
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17. Calçou as botas longas, colocou a algibeira e ajustou uma garrucha no cinto
de couro. Após cobrir os cabelos sujos com o chapéu, caminhou em direção à
porta, dando tempo para que a criança se esvaísse da cabeceira da cama onde
estava empoleirada e aparecesse na sua frente. Mirrada, porém intimidadora.
Defrontaram-se por alguns segundos — o homem evitando mirar o
rosto sujo do inimigo, o menino buscando os olhos que se escondiam sob
a aba do chapéu. Diogo nunca o encarara, nem uma única vez. Não sabe-
ria dizer se seus olhos eram castanhos ou negros, embora suspeitasse que
não tivessem cor alguma. Nesse dia usou a mesma estratégia desenvolvida
após incontáveis confrontos. Desviar a atenção seria um sinal de fraqueza
que o inimigo certamente identificaria — e se deleitaria. Ao invés disso,
dirigiu o rosto para a face pequenina e suja, mas sem fixar-se em detalhe
algum. Apenas um olhar morto e vazio, como ele próprio. Em seguida
alcançou a porta, de maneira determinada. A criança dos dentes pretos
dissolveu-se e deu passagem.
A luz matinal do sol furou-lhe os olhos, e ele recuou alguns passos até
se habituar à claridade. Ficou parado por um instante na porta da hospe-
daria, vasculhando o horizonte em busca de João. Quando o encontrou, o
escravo já vinha arrastando os chinelos, corpo curvado como de costume,
ao lado do filho.
— Nhô?
— Que horas são essas? — O desdém na voz rouca tornou a pergunta
um resmungo.
— O sino da igreja bateu faz pouco. Seis e um bocado.
— Carregue os animais. Partimos logo.
Deu as costas para pai e filho e voltou-se para a entrada da pensão.
Chamou o proprietário, um português gordo e amedrontado, e pediu o
que comer. O homem trouxe um beiju e uma caneca com leite fresco.
Diogo deu apenas duas mordidas, tomou alguns goles e minutos mais
tarde já deixava a casa. Sentou-se em um tronco aos pés do sobrado e
esperou por João, que apareceu puxando um cavalo e três mulas. Inácio
montava uma delas. As outras traziam alforjes com o necessário para os
longos e imprevisíveis deslocamentos pelo interior: carne seca, toucinho,
feijão, marmelada e farinha. Uma numerosa coleção de remédios de pau-
listas — na forma de cascas de árvores e raízes — para tratar os males
que certamente encontrariam no caminho. Um pequeno caldeirão para
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18. as refeições quentes. Armas e munição enroladas em um tecido grosso.
Vários metros de pano dobrados, que debaixo de chuva transformavam-se
em eficiente cobertura.
Sua montaria ostentava pelo marrom e brilhoso. O nome do cavalo
— Brabo — refletia bem o temperamento diante de estranhos e fora dado
pelo filho de Diogo. Ele puxou-o gentilmente pelas rédeas, acarinhou o
rosto grande e anguloso e o montou. Antes mesmo que Brabo relinchasse
inquieto já tinha certeza que a criança dos dentes pretos estava de pé, ao
lado da tropa.
— Já escolheu o próximo pouso? Ou decidiu seguir o mapa? É o vosso
destino, e vosmecê bem sabe. É o que pediu e recebeu.
Diogo desviou o rosto, embora reconhecesse que a criança tinha razão.
O inimigo percebeu e sorriu, um cacarejo repulsivo. O cavalo ergueu-se
sobre as patas traseiras, visivelmente nervoso. A tropa permaneceu parada
por um instante, aguardando a direção a seguir. Por quatro anos, o ritual se
repetira. Após subir em Brabo, o jovem abaixava a cabeça como se rezasse
e assim permanecia durante um tempo que, na percepção passiva de João
e Inácio, beirava horas, mas limitava-se a alguns segundos. Então, cutucava
a barriga de sua montaria com a bota e começava mais uma jornada cega.
Dessa vez, no entanto, algo havia mudado. Passaram-se minutos sem
que a ordem viesse.
Ele mantinha a cabeça abaixada e os olhos cerrados. Pensava no grito
que o despertara no começo da manhã. Ainda ouvia na sua cabeça o eco
produzido em aparente desespero, sem conseguir decifrar se tudo não pas-
sara de um sonho ou apenas uma perturbação vinda das ruas barulhentas.
Alguma coisa o inquietava desde a manhã. Alguma coisa difusa, imprecisa.
Uma sensação de desconforto, como se algo se alojasse em sua cabeça —
uma lembrança soterrada e que agora lutava para emergir. Pensou novamen-
te na criança dos dentes pretos.
Subitamente, berrou para o escravo:
— Descubra que dia é hoje!
— O dia, nhô?
— O dia, preto miserável! O dia!
João debandou em direção ao centro da vila, onde três viajantes acomo-
davam cargas no lombo de mulas. Diante da negativa do grupo, abordou um
homem que trajava um hábito preto empoeirado, acompanhado de um jovem
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senhor, já impaciente com a demora:
— Hoje é sete de maio, nhô. Sete de maio.
— Está certo disso?
— Falei com o padre. — A carreira roubou-lhe o fôlego e o obri-
gou a respirar fundo antes de repetir — Sete de maio.
Diogo voltou a cerrar os olhos. João pôde entrever um leve sorriso
no rosto sombreado pela longa aba do chapéu — algo que não presenciava
havia anos.
— Vosmecês não sabem que dia é hoje, não?
João encolheu-se junto à mula de onde Inácio acompanhava a cena
amedrontado.
— Hoje é aniversário de Tiago. — Ergueu a cabeça para o sol ainda
fraco da manhã e tirou o chapéu. — Do meu Tiago.
Um sinal, pensou Diogo. Não de Deus, que o abandonara à cobiça dos
homens. Nem de Satanás, que se aproveitara de suas fraquezas. Mas de seu fi-
lho, um anjo acima de ambos e de todas as forças na Terra. O sorriso contido
transformou-se em uma risada aberta e daí, em uma gargalhada que assustou
João e Inácio. O escravo não teve dúvidas. A loucura, uma companheira
discreta e comportada durante os últimos anos, resolvera mostrar as unhas,
tomando posse do corpo e da alma de seu senhor.
Diogo riu por muito tempo, como há dez anos, quando retirou o filho
ainda sujo de sangue das mãos da parteira e o levou até a varanda da casa
grande — uma alegria que logo deu lugar à frustração. De nada valeria um
sinal de Tiago se sua mente entorpecida e embrutecida não fosse capaz de
decifrá-lo. Perguntou-se para onde ir e o que significava a mensagem. Nun-
ca, desde a partida do engenho da família, deparara-se com uma encruzilha-
da como a que agora zombava de suas dúvidas.
Da sela avistava duas rotas distintas brotando da praça. Dois extremos
do Caminho dos Paulistas, a trilha que começava em São Paulo de Pirati-
ninga e terminava nas minas das Geraes. O rumo do sudoeste levava até
Itaquá passando por Mogi, distante cerca de dez léguas. No outro extremo,
sete léguas a nordeste, a vila de Taubaté. Diogo poderia chegar a Itaquá em
menos de quatro dias, conduzindo a tropa em ritmo lento, sem fatigar os
animais. Já a segunda alternativa, mais curta, prenunciava-se menos con-
vidativa. Relatos de ataques de guaianás entre os rios Buquira e das Almas
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20. assustavam muitos viajantes. A rota para Taubaté, com a vila de Caassapaba
a meio caminho, também era empestada de bandidos, que saqueavam e
matavam quem encontrassem.
Diogo olhou para os dois lados, detendo-se demoradamente em
cada extremidade. Repetiu o movimento inúmeras vezes, buscando ou-
tra manifestação do filho, um rastro oculto, alguma marca que indicasse
a melhor direção.
Foi então que voltou a ver a falsa criança. Sorria de modo provocador,
lábios rachados emoldurando a horrenda fileira de dentes escuros que tanto
o afligiam. Depois de tanto tempo acreditava ter aprendido a reconhecer as
artimanhas do adversário. A eterna dissimulação. O engodo em cada gesto.
E as mentiras — ditas ou não.
O inimigo o aguardava imóvel no caminho de Taubaté.
Respirou a plenos pulmões, revigorado como se despertasse de um
sono reconfortante, e conduziu Brabo na direção nordeste. Com o canto dos
olhos jurou ter vislumbrado perplexidade no rosto intimidador da criança
dos dentes pretos quando ela desvaneceu-se para dar passagem à tropa.
Pela primeira vez em quatro anos, sentiu-se em vantagem diante do
Diabo.
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