3. SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Miriam Grossi, Anna Paula Uziel e Luiz Mello
–9–
CONJUGALIDADES
RESERVA E INVISIBILIDADE:
A CONSTRUÇÃO DA HOMOCONJUGALIDADE
NUMA PERSPECTIVA MICROPOLÍTICA
Antônio Crístian Saraiva Paiva
– 23 –
INFLUÊNCIA DO PRECONCEITO INTERNALIZADO NA
CONJUGALIDADE HOMOSSEXUAL MASCULINA
Adriana Nunan
– 47 –
ENCONTROS AMOROSOS, DESEJOS RESSIGNIFICADOS:
SOBRE A EXPERIÊNCIA DO ASSUMIR-SE GAY NA VIDA
DE HOMENS CASADOS E PAIS DE FAMÍLIA
Eduardo Saraiva
– 69 –
AMOR E ÓDIO EM RELAÇÕES ‘CONJUGAYS’
Rosangela de Barros Castro
– 89 –
UNIÕES HOMOSSEXUAIS: ADAPTAR-SE AO DIREITO DE
FAMÍLIA OU TRANSFORMÁ-LO? POR UMA NOVA
MODALIDADE DE COMUNIDADE FAMILIAR
Roger Raupp Rios
– 109 –
“ISTO É CONTRA A NATUREZA...”: ACÓRDÃOS JUDICIAIS E
ENTREVISTAS COM MAGISTRADOS SOBRE CONJUGALIDADES
HOMOERÓTICAS EM QUATRO ESTADOS BRASILEIROS
Rosa Maria Rodrigues de Oliveira
– 131 –
4. O CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO.
SOBRE “GENTES REMOTAS E ESTRANHAS”
NUMA “SOCIEDADE DECENTE”
.
Miguel Vale de Almeida
– 153 –
MATRIMÔNIO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO NA
ESPANHA. DO PERIGO SOCIAL À PLENA CIDADANIA,
EM QUATRO ESTAÇÕES
Luiz Mello
– 169 –
PARCERIA CIVIL E HOMOPARENTALIDADE: O DEBATE FRANCÊS
Anna Paula Uziel e Miriam Grossi
– 189 –
PARENTALIDADES
LA OTRA MAMÁ: MADRES NO BIOLÓGICAS
EN LA PAREJA LÉSBICA
Florencia Herrera
– 213 –
PERFORMATIVIDADES DE GÊNERO, PERFORMATIVIDADES DE
PARENTESCO: NOTAS DE UM ESTUDO COM TRAVESTIS E SUAS
FAMÍLIAS NA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS/SC
Fernanda Cardozo
– 233 –
POSSÍVEIS INTERLOCUÇÕES ENTRE PARENTESCO
E IDENTIDADE SEXUAL: PATERNIDADE VIVENCIADA
POR HOMENS HOMO/BISSEXUAIS
André Geraldo Ribeiro Diniz e Cláudia Andréa Mayorga Borges – 253 –
“NÃO PODEMOS FALHAR”: A BUSCA PELA
NORMALIDADE EM FAMÍLIAS HOMOPARENTAIS
Marcos Roberto Vieira Garcia; André Guimarães Wolf;
Eliane Vieira Oliveira, Janaína Tizeo Fernandes de Souza;
Luana de Oliveira Gonçalves; Mariana de Oliveira
– 277 –
5. A HOMOFOBIA NA REPRESENTAÇÃO DE MÃES
HETEROSSEXUAIS SOBRE A HOMOPARENTALIDADE
Fernando Silva Teixeira Filho, Lívia Gonsalves
Toledo e Pedro Henrique Godinho
– 301 –
DO PRIVADO AO PÚBLICO: A HOMOPARENTALIDADE
NA PAUTA DO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO
Elizabeth Zambrano
– 321 –
YO OPINO... CONSTRUCCIONES DISCURSIVAS SOBRE
LA HOMOPARENTALIDAD
Micaela Libson
– 341 –
IDENTIDADES LÉSBICAS
LESBIANIDADE NA TV: VISIBILIDADE
E “APAGAMENTO” EM TELENOVELAS BRASILEIRAS
Lenise Santana Borges
– 363 –
IDENTIDADES INTERSECCIONAIS E MILITÂNCIAS POLÍTICAS
Vanilda Maria de Oliveira
– 385 –
FORMAÇÃO DA IDENTIDADE LÉSBICA:
DO SILÊNCIO AO QUEER
Silvia Gomide
– 405 –
SOBRE OS AUTORES
– 423 –
6. INTRODUÇÃO
CONJUGALIDADES E PARENTALIDADES
NÃO-HEGEMÔNICAS: UM CAMPO EM CONSTRUÇÃO
Miriam Grossi, Anna Paula Uziel e Luiz Mello
Estamos felizes em, mais uma vez, trazer “a público” o intenso diálogo
que viemos produzindo na rede de pesquisadores “Parceria Civil, Conjugalidade e Homoparentalidade” ao longo dos últimos três anos1. Esta
coletânea tem sua origem em nosso desejo de ampliar o diálogo que já
realizávamos, entre os membros de nossos núcleos de pesquisa e outras
pessoas que quisessem compartilhá-lo, alimentando-o com seus próprios
saberes. Ao longo da construção da rede, não imaginávamos que encontraríamos e seríamos procurados por tantos pesquisadores, especialmente
jovens estudantes de mestrado e doutorado, que estavam trabalhando ou
queriam começar investigações sobre o tema. A rede vem permitindo,
portanto, a consolidação de um campo de pesquisas já em formação no
Brasil e na América Latina, sem que, no entanto, muitos de seus integrantes
estivessem em interlocução.
Em resposta à ampla chamada que fizemos para a elaboração
desta coletânea, recebemos 31 artigos, dos quais selecionamos os mais
originais, em suas abordagens oriundas das mais diversas disciplinas e,
1
A rede conta com apoio institucional de Projeto Universal CNPq para o período 2005/2007, o qual
prevê a organização da rede, pesquisas comparativas, encontros e publicações sobre a temática de conjugalidades de pessoas do mesmo sexo e parentalidades de pais e mães não heterossexuais.
9
7. homossexualidade e cultura
em particular, da Antropologia, do Direito, da Psicologia e da Sociologia. Centramos nossa seleção em torno dos temas da conjugalidade
homoerótica e da homoparentalidade, que são os dois grandes eixos de
nossas reflexões na rede.
Observamos que especialmente nos últimos anos tem crescido
significativamente a quantidade de trabalhos sobre estas temáticas no
Brasil e no mundo. Tradicionalmente, o movimento LGTB no século
XX, em sua maior parte formado por homens gays, valorizou a expressão
do desejo masculino livre, opondo-se à idéia de casal, que era entendida
como sinônimo de dominação heterossexual. A ampliação das lutas
deste movimento para o campo dos direitos civis no âmbito das famílias,
sobretudo em conseqüência da AIDS e do aumento da visibilidade da
maternidade lésbica, poderia significar submeter-se ao que muitas vezes
se denomina “imperativo heterossexual”. Apesar desta não ser a posição
hegemônica dos movimentos LGTB, plurais por excelência, convém
destacar que a tensão existente no interior da militância refere-se, com freqüência, aos riscos de reprodução acrítica da heteronormatividade, ainda
que no Brasil prevaleça uma luta política fortemente marcada por uma
perspectiva integracionista, com gays, lésbicas e travestis reivindicando
para si os mesmos direitos assegurados aos cidadãos heterossexuais, sem
que isso implique necessariamente um questionamento mais amplo dos
significados do modelo de sociedade em que vivemos.
Os trabalhos sobre parentalidade e conjugalidade entre pessoas
do mesmo sexo contemplam aspectos bastante variados. As pesquisas
envolvendo homens gays, por um lado, privilegiam a conjugalidade. Já
os estudos sobre mulheres lésbicas têm seguidamente a conjugalidade
atrelada à maternidade. Talvez a maior invisibilidade social das relações
homoeróticas entre mulheres, aliada à naturalização da maternidade para
o gênero feminino, seja uma pista para a compreensão dessa diferença. Os
artigos que recebemos assemelham-se, neste sentido, aos da bibliografia
mais geral sobre maternidade e paternidade heterossexuais, uma vez que
a construção da feminilidade continua bastante associada à maternidade,
mesmo quando se considera a maternidade lésbica, tardia ou a opção por
não ter filhos. São recentes os textos sobre masculinidade que incluem
a paternidade como um aspecto importante a ser considerado, acompa-
10
8. CONJUGALIDADES, PARENTALIDADES E IDENTIDADES LÉSBICAS, GAYS E TRAVESTIS
nhando o lento movimento das estatísticas que mostram o crescimento
dos casos de guarda compartilhada ou concedida apenas a pais.
O livro é dividido em três grandes eixos vinculados aos objetivos de
investigação de nossa rede: conjugalidades, parentalidades e identidades.
Em cada um deles, reunimos artigos de reflexão mais ampla sobre a
temática, bem como resultados de pesquisas de campo.
Discutir a conjugalidade LGBT por si só não cria realidades, mas
seguramente põe em pauta situações diversas que precisam ser vistas em
sua singularidade, ao mesmo tempo em que precisam ser reconhecidas
como fenômeno social típico das sociedades contemporâneas, resultado
de uma luta política importante que vem sendo travada cotidianamente
por milhões de pessoas em todo o mundo. A falta de visibilidade, cada
vez mais combatida, a dificuldade com a nomeação do casal e do vínculo
mãe (pai)-filh@s2, o incômodo com a reprodução das normas de gênero,
o preconceito e as experiências cotidianas dos sujeitos sustentam a importância da temática. Os quatro primeiros artigos do livro atualizam
preocupações no que se refere às conjugalidades que poderíamos reunir
sob a rubrica de ‘não-hegemônicas’, refletindo sobre os mecanismos
utilizados por homens gays na gestão de suas parcerias amorosas.
Em Reserva e invisibilidade: a construção da homoconjugalidade numa
perspectiva micropolítica, Antonio Crístian Saraiva Paiva, a partir de sua
tese de doutorado em sociologia, traz uma caracterização do ethos íntimo
das parcerias homoeróticas masculinas. O autor, ao tratar das regras
de convivência amorosa, mostra como se constrói uma ética conjugal.
Esse trabalho de confecção da convivência é artesanal e constitui-se da
promoção de vínculos que contornam, por exemplo, a escassez de um
vocabulário socialmente disponível para codificar a conjugalidade e o
amor, bem como a necessidade social de exposição quando se fala da
gestão da intimidade dos casais de mesmo sexo. O trabalho aponta,
enfim, para a insuficiência da lógica binarista para abordar a territorialidade dessas parcerias.
2
Vários autores desta coletânea optaram por utilizar o @ com objetivo de reunir as desinências de gênero. Apesar de a língua portuguesa fazer seu plural no masculino, alguns autores consideram importante
não validar a desigualdade de gênero presente também no idioma.
11
9. homossexualidade e cultura
Com base em sua tese de doutorado no campo da Psicologia, Adriana
Nunan problematiza, no artigo Influência do preconceito internalizado na
conjugalidade homossexual masculina, os conflitos potenciais entre desejo
e norma social e suas conseqüências no âmbito das relações amorosas
estáveis entre homens. Para a autora, casais gays e casais heterossexuais
seriam, em princípio, indistinguíveis no tocante aos níveis de satisfação
proporcionada pela relação e às alegrias e problemas típicos do vínculo
conjugal, mas, a partir de entrevistas com homens da cidade do Rio de
Janeiro, ela discute se a internalização da culpa ou da vergonha de “ser
gay” pode afetar de maneira drástica a qualidade do laço afetivo-sexual
e da relação do casal com o entorno social.
A partir de uma “etnografia psicanalítica”, Eduardo Saraiva traz, em
Encontros amorosos, desejos ressignificados: sobre a experiência do assumir-se
gay na vida de homens casados e pais de família, uma leitura estimulante
sobre o trânsito identitário e sexual de homens, residentes em Porto
Alegre, que passaram a viver suas homossexualidades depois de rupturas
legais, simbólicas e afetivo-sexuais com o universo da norma heterocêntrica. Como eixos centrais de sua análise, destacam-se os significados do
casamento heterossexual para os entrevistados, o lugar que as categorias
paixão e amor têm nos processos de assumir-se homossexual e as formas
de construção identitária que permitem aos sujeitos orientar suas vidas a
partir de outra inteligibilidade na ordem da masculinidade.
Amor e ódio em relações “conjugays”, de Rosangela de Barros Castro, descreve os modos de interação presentes nos relacionamentos
íntimos entre parceiros do sexo masculino, focalizando episódios de
violência, tema de sua dissertação de mestrado em saúde coletiva.
A autora identifica a violência como um fenômeno constitutivo
dos laços familiares mas, a partir da análise de oito histórias de
vida reunidas em um personagem fictício, aponta a existência de
especificidades do universo por ela nomeado como “conjugay”. No
âmbito destes relacionamentos afetivos, as análises dos significados de
construções identitárias que reproduzem a dicotomia macho-fêmea
e das hierarquizações de raça, classe e geração seriam um caminho
produtivo para a compreensão das formas de manifestação da violência física e simbólica.
12
10. CONJUGALIDADES, PARENTALIDADES E IDENTIDADES LÉSBICAS, GAYS E TRAVESTIS
Particularmente no campo jurídico, desperta a atenção o aumento
do número de trabalhos que versam sobre direitos de homossexuais, seja
por meio de análises de processos, leis ou acórdãos, seja refletindo sobre
os significados das lutas de gays e lésbicas pela redefinição dos marcos
legais que os excluem do universo da cidadania. Como se observa nos
dois artigos seguintes, quando se trata de pesquisa sobre conjugalidade
ou família de homossexuais, a tentativa inicial tem sido compreender o
formato dessas famílias ainda constituídas à revelia da lei, em geral por
meio da análise de suas possibilidades de inserção nos formatos previstos
na legislação vigente ou apontando a necessidade de uma redefinição
legal que rompa com as categorias heterocentradas que estão nos princípios estruturadores da concepção hegemônica de família.
Neste sentido, o artigo de Roger Raupp Uniões homossexuais: adaptar-se ao direito de família ou transformá-lo? Por uma nova modalidade
de comunidade familiar provoca e instiga novo debate, ao convidar o
leitor a pensar sobre os princípios que caracterizam a família e ao refletir sobre as implicações da eleição das categorias jurídicas ‘casamento’,
‘união estável’ ou ‘pacto de solidariedade’ para a regulamentação das
relações entre pessoas do mesmo sexo. O autor destaca o machismo e
o heterossexismo intrínsecos às definições tradicionais de casamento e
união estável, mas, também, ressalta os riscos de uma opção de regulamentação de terceira classe. Todavia, em seu entendimento, uma nova
figura jurídica a regular as uniões entre pessoas do mesmo sexo pode ser
um caminho promissor na transformação do direito de família.
Rosa Maria Rodrigues de Oliveira, em “Isto é contra a natureza...”: uma
observação de acórdãos judiciais e entrevistas com magistrados sobre conjugalidades homoeróticas em quatro Estados brasileiros, traz resultados preliminares
de sua pesquisa de doutorado e aponta que o judiciário brasileiro, apesar de
avanços pontuais, não tem assegurado um avanço contundente e inequívoco no reconhecimento legal da dimensão familiar das uniões amorosas
entre pessoas do mesmo sexo. A partir de um exaustivo trabalho de campo
em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, a autora
observa como ainda há uma forte influência da moral cristã nas decisões
judiciais e nos posicionamentos de magistrados, o que revela uma urgente
necessidade de consolidação de uma justiça efetivamente laica.
13
11. homossexualidade e cultura
Se no campo do judiciário ou da lógica jurídica essas são algumas das
questões em efervescência, convém destacar as negociações políticas que se
dão em torno da elaboração e da aprovação das leis. No Brasil, ainda estamos às voltas com os debates em torno da aprovação do Projeto de Lei nº
1151/1995, da então deputada Marta Suplicy, que institui a parceria civil
registrada entre pessoas do mesmo sexo, tramitando no Congresso Nacional há 12 anos e sob forte oposição de grupos ligados a fundamentalismos
religiosos. Por outro lado, desde 2005 a Espanha é um país que tem uma
legislação exemplar, ao assegurar direito ao casamento e à adoção a todos os
casais, independentemente dos sexos de seus integrantes. Apesar das tensões
ainda existentes no cotidiano da vida civil e na aplicação da lei, trata-se de
uma mudança significativa de olhar sobre a conjugalidade homossexual,
quando comparada à realidade brasileira e da maior parte do mundo, onde
a homossexualidade ainda é definida como crime em mais de oitenta países3
São dois os textos que discutem o processo espanhol.
O antropólogo Miguel Vale de Almeida, em O casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Sobre “Gentes remotas e estranhas” numa “sociedade
decente” analisa o casamento entre pessoas do mesmo sexo como um
símbolo disputado por diferentes campos políticos, a partir da idéia de
que a exigência da igualdade no acesso ao casamento constitui um caso
original no campo da política sexual. O autor apresenta posicionamentos
favoráveis e contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem
como os que são favoráveis ao direito ao casamento, mas contrários ao
casamento em si. Da mesma forma, reflete sobre como essa nova demanda política pode ser pensada a partir dos debates relativos às culturas
de relatedness, dos supostos limites da ordem simbólica e do lugar da
criança nos processos de reprodução social.
Em Matrimônio entre pessoas do mesmo sexo na Espanha. Do perigo
social à plena cidadania, em quatro estações, Luiz Mello apresenta resultados preliminares de sua pesquisa comparativa sobre novas famílias e
uniões homossexuais na Espanha, Portugal e Brasil. Neste artigo, o autor
detalha como se deu o processo de discussão e aprovação da alteração do
3
Notícia de 17/05/2007 http://www.gaybrasil.com.br/notas.asp?Categoria=Radar&Codigo=1845,
último acesso em 9 de junho de 2007.
14
12. CONJUGALIDADES, PARENTALIDADES E IDENTIDADES LÉSBICAS, GAYS E TRAVESTIS
Código Civil espanhol, que assegura aos casais de gays e lésbicas acesso
a direitos conjugais e parentais em igualdade de condições com os casais
heterossexuais. Destaca, ainda, o posicionamento dos movimentos LGBT
e de organizações ligadas à Igreja Católica nos debates, o papel decisivo
do Governo Zapatero, na Espanha, e as disputas partidárias e judiciais,
assim como apresenta os principais documentos, estudos e investigações
acadêmicas produzidas no âmbito do processo de discussão da nova lei.
Ao analisarem o percurso legislativo francês, em Parceria Civil e
Homoparentalidade: o debate francês, Anna Paula Uziel e Miriam Grossi
põem em evidência os principais impasses e dificuldades que compuseram
o cenário da discussão sobre o reconhecimento da união entre pessoas do
mesmo sexo no final da década de noventa. Em seu texto, analisam os
debates parlamentares e as discussões políticas em torno da lei do pacto
de solidariedade (PaCS), aprovada em 1999. Destacam o papel dos intelectuais neste debate, apontando diferentes posições teóricas em torno da
questão da conjugalidade, da família e da reprodução social.
As discussões sobre parentalidade de gays, lésbicas e travestis vêm
recebendo grande destaque nas pesquisas recentes e têm sido um dos
pontos fulcrais nos debates políticos e teóricos sobre direitos civis de
gays, lésbicas e transgêneros. Para muitos defensores de uma concepção
de família centrada na norma heterossexual, a adoção de crianças por
casais de pessoas do mesmo sexo seria uma ameaça à sociedade e, no
extremo, à própria espécie, por colocar em xeque valores supostamente
fundantes da noção de humanidade, ancorados na ordem de gênero.
Por outro lado, são exaustivos os estudos e pesquisas que mostram como
crianças socializadas por casais de pessoas do mesmo sexo não são em
praticamente nada diferentes daquelas socializadas por casais de pessoas
de sexos diferentes, o que levou a Associação Americana de Psicologia
(APsA) e Antropologia (AAA), fundadas em farta bibliografia, a aprovar
resoluções em que afirmam a oposição a qualquer discriminação baseada
na orientação sexual dos pais em assuntos relativos à adoção, custódia de
filhos, regime de visitas e serviços de saúde reprodutiva. Neste contexto,
a segunda seção do livro, integrada por sete artigos, traz reflexões sobre
questões ligadas ao cotidiano de famílias homoparentais, acompanhando
a tecitura de suas tramas por meio dos olhares de seus próprios pro-
15
13. homossexualidade e cultura
tagonistas, particularmente mães lésbicas, e também de outros atores
sociais, como mães heterossexuais e mídia impressa.
Na perspectiva comparativa antropológica, o artigo de Florencia
Herrera, La Otra Mamá: madres no biológicas en la pareja lésbica, aborda
duas pesquisas de campo, no Chile e na Espanha, sobre mães lésbicas.
A autora mostra como as questões que emergem na maternidade lésbica
raramente se constituem como tal na heterossexualidade, que naturaliza
a maternidade. Apesar da vulnerabilidade do lugar da “outra mamãe”,
visto que sua existência não encontra amparo legal, sobretudo quando
há separação conjugal, as entrevistadas vivenciam experiências intensas
de maternidade. Apesar de viverem em conjugalidade homoerótica,
entre as entrevistadas não é unânime a idéia de que a maternidade possa
ser exercida pelas duas parceiras. Herrera constata que o contato mais
ou menos precoce com a criança, ter responsabilidade sobre o seu cuidado e o reconhecimento familiar contribuem para a maior ou menor
participação de ambas no lugar de maternidade.
Com Performatividades de gênero, performatividades de parentesco: notas de um estudo com travestis e suas famílias na cidade de Florianópolis/SC,
Fernanda Cardozo traz, com base em sua monografia de graduação em
antropologia, reflexões referentes à sua pesquisa antropológica a respeito das
relações familiares e das formas de parentalidades e de conjugalidades presentes entre travestis da cidade de Florianópolis. A pesquisa buscou identificar
os lugares que as travestis ocupam na trama familiar segundo a distribuição
de papéis sociais por gênero, visto sua corporificação ser marcada por uma
ambigüidade de gênero. A autora chama a atenção, ainda, para a necessidade
de um olhar para além da tensão masculino/feminino, que condenaria as
travestis a um universo do desconhecido, tamanhas as semelhanças nos seus
cotidianos conjugal e familiar em relação aos “não-travestis”.
Em Possíveis interlocuções entre parentesco e identidade sexual: paternidade vivenciada por homens homo/bissexuais André Geraldo Ribeiro
Diniz e Cláudia Andréa Mayorga Borges buscam conhecer os fatores
psicossocias presentes na construção da identidade paterna em homens
que mantêm relações sexuais com outros homens. Com esse objetivo,
fazem uma crítica à patologização da homossexualidade e discorrem
sobre a dimensão cultural da sua construção. Ao refletirem sobre o lugar
16
14. CONJUGALIDADES, PARENTALIDADES E IDENTIDADES LÉSBICAS, GAYS E TRAVESTIS
central da paternidade nas representações da masculinidade, @s autor@s
relatam estratégias utilizadas por pais homossexuais nas relações com
seus filhos com vistas a diminuir a carga de preconceito que lhes atinge.
Ao mesmo tempo, apontam que esses pais, apesar das representações
sociais negativas da homopaternidade, vivenciam seu papel parental
como uma experiência gratificante e maravilhosa.
Marcos Roberto Vieira Garcia, André G. Wolf, Eliane V. de Oliveira,
Janaína Tizeo F. Souza, Luana Oliveira e Mariana de Oliveira apresentam
uma pesquisa com casais de lésbicas que criam filhos em “Não podemos
falhar”: a busca pela normalidade em famílias homoparentais, destacando as formas pelas quais as mesmas lidam com as pressões sociais para
reproduzirem o modelo de família hegemônico. A discussão sobre a
normalidade das famílias homoparentais instaura uma linha divisória
entre aquelas que estariam e as que não estariam aptas a educar crianças.
Fenômenos muito semelhantes aos que acontecem com casais heteros
foram evidenciados, como, por exemplo, a centralidade da parentalidade
na vida dos sujeitos, deixando de lado outros aspectos de sua existência.
Por outro lado, a temática da discriminação e da revelação da orientação
homossexual também apareceram com certa ênfase.
Em uma perspectiva do campo da psicologia, A homofobia na representação de mães heterossexuais sobre a homoparentalidade, de Fernando
Silva Teixeira-Filho, Lívia Gonsalves Toledo e Pedro Henrique Godinho,
é uma pesquisa realizada por meio de questionários aplicados a mães de
crianças de escolas particulares em uma cidade do interior do Estado de
São Paulo. O objetivo da pesquisa foi compreender como essas mulheres
heterossexuais vêem a maternidade lésbica. Para isso, foram colhidas
informações sobre orientação sexual, entrada na vida sexual, papéis de
gênero na família de origem e compreensão a respeito da homossexualidade. Com esses dados, foi possível cruzar informações sobre seus valores,
marcas religiosas, sociais, culturais e o aparecimento de homofobia, a falta
de conhecimento sobre o tema e a incorporação de sentidos difundidos
no senso comum sobre homossexualidade e parentalidade.
Do privado ao público: a homoparentalidade na pauta do jornal Folha
de São Paulo, de Elizabeth Zambrano, trata da construção da “homoparentalidade” enquanto uma questão social, a partir da análise de matérias
17
15. homossexualidade e cultura
publicadas no jornal Folha de São Paulo. Evidenciando a transformação
no tratamento dado pelo jornal à temática da homossexualidade de um
modo geral, o texto mostra, mais especificamente, onde e como se situam as discussões sobre conjugalidade e parentalidade na relação com o
movimento social. O trabalho analisa a legitimidade concedida a diversos
atores que dão parecer sobre o assunto, discutindo aspectos técnicos e
morais dos argumentos, tendo como pano de fundo a importância da
mídia na construção do debate sobre temas sociais.
Escrito por Micaela Libson, “Yo opino...” Construcciones discursivas
sobre la homoparentalidad traz uma análise do discurso sobre homoparentalidade, a partir das cartas dos leitores do jornal argentino La
Nación, entre 2002 e 2005, período de emergência da lei que reconhece
a relação entre pessoas do mesmo sexo em Buenos Aires e de discussão
do projeto de lei de união civil, em nível nacional, que versa, entre seus
temas, sobre herança e adoção. A autora mostra como o modelo da heteronormatividade obrigatória gera um sistema hierárquico de valor sexual
e marca o pensamento daqueles que expressam suas crenças no jornal.
Para Libson, tais crenças podem ser classificadas a partir de diferenciados
graus de negatividade associados à família homoparental e a cada uma
delas corresponde um núcleo argumentativo diferenciado.
Tradicionalmente, os trabalhos sobre homossexualidade discutem a
questão da identidade, largamente complexificada a partir dos estudos que
privilegiam uma perspectiva de análise queer. Os artigos escolhidos para
compor esta seção trazem reflexões de pesquisador@s da rede que, desde
seu início, compartilharam conosco suas pesquisas, enriquecendo o debate
mais específico sobre conjugalidade e parentalidade entre mulheres.
Lenise Santana Borges, em Lesbianidade na TV: visibilidade e “apagamento”
em telenovelas brasileiras, analisa as representações da lesbianidade na mídia
televisiva no Brasil, com base em quatro telenovelas exibidas pela Rede Globo,
a partir de uma perspectiva analítica da psicologia social discursiva de base
construcionista e dos estudos de gênero. Interessa à autora investigar como a
lesbianidade passa de tema proscrito, indizível e transgressor ao universo das
questões para as quais se atribui uma relativa visibilidade e busca-se o estatuto
de normalização. Borges situa as representações televisivas da lesbianidade na
fronteira entre a estratégia política e o espetáculo. Por outro lado, destaca a não
18
16. CONJUGALIDADES, PARENTALIDADES E IDENTIDADES LÉSBICAS, GAYS E TRAVESTIS
univocidade da mídia e, ao mesmo tempo, seu importante papel na construção
de repertórios homossexuais para públicos variados, com ênfase crescente em
representações positivas dos vínculos amorosos entre mulheres.
Vanilda Maria de Oliveira, em Identidades interseccionais e militâncias políticas, discute os significados que a militância feminista negra de
Goiânia concede à lesbianidade, analisando as tensões que o encontro
com mulheres lésbicas produz. A autora destaca a “intersecção identitária” para ressaltar a importância de se considerar a interação entre
dois ou mais eixos de subordinação, sob risco de reforçar a subinclusão.
Para isso, percorre as principais questões do debate LGBT no Brasil,
bem como se alimenta das discussões sobre racismo e outras tão caras
ao campo do movimento feminista e do movimento de mulheres. O
paradoxo que se expressa nas lutas entre a submissão ao estabelecido
e os discursos de resistência no tocante às identidades atravessam este
campo de trabalho, militância e reflexão.
Por fim, Silvia Gomide, em Formação da identidade lésbica: do silêncio ao queer, discute percursos da construção da identidade lésbica, a
partir de sua dissertação de mestrado em comunicação. A autora mostra
como a constituição desta identidade parte de um padrão heterossexista
e passa por diversas interpretações até chegar aos estudos gays e lésbicos
e à teoria queer, a qual propõe a mudança de uma “política de identidade por uma política da diferença”, apostando na complexidade da
sexualidade. É instigante a argumentação construída por Gomide, que
dialoga com autoras centrais do pensamento lésbico-feminista e mostra a complexidade de questões que estão longe de serem respondidas
consensualmente, por mais que aparentemente sejam óbvias, como
por exemplo: O que é ser lésbica? Quais as vantagens e desvantagens
sociais de adotar uma identidade lésbica? Seria politicamente importante
assumir uma identidade lésbica?
A leitura desta coletânea é um convite e um desafio. Por um lado,
apresenta um panorama do que vem sendo pesquisado no Brasil, na
Argentina, no Chile, na Espanha e na França, estimulando o leitor a
conhecer como este campo está se constituindo. Por outro, um dos
principais desafios é ampliar pesquisas e debates conceituais que façam o
campo amadurecer e avançar.
19