Anais do II Colóquio Vertentes do Fantástico na Literatura com os artigos dos participantes.
Artigo de Cesar Sinicio Marques a respeito de narratividade em video games na página 162.
Slides Lição 4, Betel, Ordenança quanto à contribuição financeira, 2Tr24.pptx
II Colóquio Fantástico Literatura
1. ANAIS
3, 4 e 5 de maio de 2011
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Câmpus de São José do Rio Preto
IBILCE – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
2. II Colóquio
“Vertentes do Fantástico na Literatura”
3, 4 e 5 de maio de 2011
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Câmpus de São José do Rio Preto
IBILCE – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas
ANAIS
APOIO:
Departamento de Letras Modernas
Programa de Pós-Graduação em Letras
3. Diretor
José Roberto Ruggiero
Vice-Diretor
Maria Tercília Vilela de Azeredo Oliveira
Chefe do Departamento de Letras Modernas
Peter James Harris
Programa de Pós-Graduação em Letras
Coordenação: Giséle Manganelli Fernandes
Vice-coordenação: Susanna Busato
Grupo de Pesquisa “Vertentes do Fantástico na Literatura” (CNPq)
Líder
Karin Volobuef (UNESP-Araraquara)
Vice-líder
Roxana Guadalupe Herrera Alvarez (UNESP-SJRP)
Comissão organizadora do evento:
Coordenadora Geral: Profa. Dra. Karin Volobuef (UNESP - Araraquara)
Presidente: Profa. Dra. Roxana Guadalupe Herrera Alvarez (UNESP - SJRP)
Vice-presidente: Profa. Dra. Norma Wimmer (UNESP - SJRP)
Coordenação geral da Programação: Prof. Dr. Álvaro Luiz Hattnher (UNESP - SJRP)
Secretária Geral: Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos (UNESP - SJRP)
Vice-secretária: Profa. Dra. Maria Cláudia Rodrigues Alves (UNESP - SJRP)
Organizadores dos Anais:, Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos (UNESP - SJRP), Profa. Dra. Maria
Claudia Rodrigues Alves (UNESP - SJRP), Prof. Dr. Álvaro Luiz Hattnher (UNESP - SJRP)
Suporte acadêmico: Márcio Santana da Silva, Soraya Maria Xavier Bastos
e Elton Luiz Jitiako (UNESP - SJRP)
Assessoria administrativa: Helena Luiza Buosi de Biagi (UNESP - SJRP)
Colóquio “Vertentes do fantástico na literatura” (2. : 2011 : São José do
Rio Preto, SP).
Anais [do] II Colóquio “Vertentes do fantástico na literatura “/
UNESP - IBILCE ; [organizadores dos Anais: Álvaro Luiz Hattnher,
Maria Celeste Tommasello Ramos, Maria Claudia Rodrigues Alves]. –
São José do Rio Preto : UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto,
2011.
|1 CD-ROM ; 4 3/4 pol.
ISBN 978-85-61152-33-8
1. Literatura fantástica. 2. Mito na literatura . 3. Contos de fadas.
I. Ramos, Maria Celeste Tommasello. II. Alves, Maria Claudia
Rodrigues. III. Hattnher, Álvaro Luiz. IV. Título.
CDU: 82-344
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE
UNESP - Campus de São José do Rio Preto -
4. SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO, 6
1. Adalberto Luis Vicente, 8
2. Adriana Lins Precioso, 17
3. Alexandra Britto da Silva Velásquez, 24
4. Amanda Lopes Pietrobom, 35
5. Amanda Pérez Montañés, 608
6. Ana Carolina Bianco Amaral, 41
7. Ana Maria Zanoni da Silva, 52
8. André Luis Rosa e Silva & Carlos Vinícius Teixeira Palhares, 63
9. Andrea Santurbano, 74
10. Angela das Neves, 84
11. Antônio César Frasseto & Alessandra Moreno Maestrelli, 100
12. Antônio Donizeti Pires, 109
13. Arnaldo Franco Junior, 123
14. Breno Anderson Souza de Miranda, 134
15. Breno Rodrigues de Paula, 145
16. Bruno da Silva Soares, 155
17. Cesar Augusto Sinicio Marques, 162
18. Cristiano Mello de Oliveira, 169
19. Denise Loreto de Souza, 183
20. Elaine Cristina Prado dos Santos & Maria Luiza Guarnieri Atik, 192
21. Emerson Ferreira Gomes, João Eduardo Fernandes Ramos & Luís Paulo de Carvalho
Piassi, 200
22. Érika Bergamasco Guesse, 209
23. Fabiana Rodrigues Santos & Luís Paulo de Carvalho Piassi, 220
24. Fernanda Aquino Sylvestre, 230
25. Fernando Henrique Crepaldi Cordeiro, 240
26. Isis Milreu, 259
27. João Eduardo Fernandes Ramos & Luís Paulo Piassi, 270
28. João Olinto Trindade Junior & Flavio García, 281
29. Juliana Vilar Rodrigues Cardoso, 289
30. Karin Volobuef, 296
5. 31. Karla Duarte Carvalho, 304
32. Karla Menezes Lopes Niels, 314
33. Kelli Mesquita Luciano, 326
34. Lígia Maria Pereira de Pádua, 334
35. Luciana Morais da Silva, 346
36. Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade, 354
37. Luís Francisco Martorano Martini, 364
38. Luiz Gonzaga Marchezan, 371
39. Maira Angélica Pandolfi, 379
40. Márcio Henrique Muraca, 386
41. Maria Celeste Tommasello Ramos, 392
42. Maria Cláudia Rodrigues Alves, 403
43. Maria de Fatima Alves de Oliveira Marcari, 416
44. María del Carmen Tacconi, 425
45. Maria Imaculada Cavalcante, 436
46. Maria Lucia M. Carvalho Vasconcelos & Marlise Vaz Bridi, 447
47. Matheus Victor Silva, 453
48. Mauro de Sousa Ribeiro, 458
49. Nanci do Carmo Alves, 469
50. Norma Domingos, 475
51. Norma Wimmer, 486
52. Patrícia Maia Quitschal & Luís Paulo de Carvalho Piassi, 492
53. Regiane Rafaela Roda, 501
54. Rodrigo de Freitas Faqueri, 509
55. Roxana Guadalupe Herrera Álvarez, 519
56. Silvana Augusta Barbosa Carrijo, 529
57. Stanis David Lacowicz & Antonio Roberto Esteves, 540
58. Thiago Miguel Andreu, 551
59. Tristan Guillermo Torriani, 561
60. Valdemir Boranelli, 572
61. Vitor Celso Salvador, 582
62. Viviane de Guanabara Mury, 589
63. Wanderlan da Silva Alves, 599
6. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 6
UNESP – Campus de São José do Rio Preto
APRESENTAÇÃO
O II Colóquio “Vertentes do fantástico na literatura”, realizado de 03 a 05 de
maio de 2011, na UNESP – IBILCE – São José do Rio Preto – SP, foi mais uma das
realizações do Grupo de Pesquisa Vertentes do Fantástico na Literatura (cadastrado no
CNPq e liderado pela Profa. Dra. Karin Volobuef) que já havia organizado o I
Colóquio, em 2009, na UNESP – FCL – Araraquara – SP e preparado a publicação de
dois livros Dimensões do fantástico: mítico e maravilhoso (2011) e Vertentes do
Fantástico na Literatura (no prelo). No II Colóquio, dois especialistas no estudo do
fantástico na literatura convidados proferiram as conferências “Lo fantástico como
problema de lenguaje” (Prof. Dr. David Roas, da Universidad Autónoma de Barcelona)
e “A literatura fantástica: alguns marcos referenciais” (Profa. Dra. Maria Cristina
Batalha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), além da apresentação de vinte e
dois trabalhos de pesquisa de membros do Grupo, distribuídos em sete Mesas-
Redondas, cento e vinte comunicações orais e dezesseis painéis de pesquisadores de
diversos estados brasileiros vindos de cidades e países diversos, que vão de Rondônia
ao Rio Grande Sul, no Brasil, e chegam à Argentina.
Os membros do Grupo de Pesquisa Vertentes do Fantástico na Literatura são
docentes de Universidades Brasileiras como a UNESP (Campus de Araraquara, Assis e
São José do Rio Preto), USP, UFPA, UFU, UFCG, UNEMAT, MACKENZIE, UERJ e
UNISUAM.
Todas as pesquisas apresentadas durante o evento foram voltadas a aspectos
conceituais que envolveram tanto o fantástico na acepção tradicional (baseada na
definição de Todorov), quanto as perspectivas nascidas da reconfiguração ocorrida no
séc. XX das vertentes sobre as obras fantásticas (neo-fantástico, realismo mágico,
Fantasy, etc.). Além de tratarem de variadas manifestações estéticas – como o gótico, o
mito, o macabro, o maravilhoso, o popular, o infantil, etc. foram também discutidos
aspectos como intertextualidade, tradução, recriação, ensino, leitura, entre outros. Além
disso, os trabalhos apresentados giraram em torno de um multifacetado leque de temas,
gêneros e obras: da Divina comédia à literatura contemporânea; do legado mítico e
lendário às ghost stories e à ficção científica; do fantástico em sala de aula ao fantástico
em transmedia storytelling, ou seja, construções narrativas que se manifestam em
múltiplos suportes textuais, e nas quais cada novo texto representa contribuição inédita
e valiosa para o todo. Entre os autores analisados estiveram os grandes mestres do
macabro e do insólito, mas também escritores das mais variadas tonalidades estéticas:
7. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 7
UNESP – Campus de São José do Rio Preto
John Barth, Angela Carter, Dante Alighieri, Aloysius Bertrand, Italo Calvino,
Guimarães Rosa, Honoré Balzac, Mia Couto, Machado de Assis, Maria Rosa Lojo,
Virgílio, Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Murilo Rubião, Edgar Allan Poe, Franz
Kafka, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, José Lezama Lima, Júlio Verne, entre outros.
O evento foi marcado pela curiosidade intelectual, o espírito de diálogo e a
generosidade no intercâmbio acadêmico de todos os trezentos e vinte e oito inscritos de
várias regiões geográficas brasileiras e do exterior. O II Colóquio reafirmou-se, como
em sua primeira edição, como meio de diálogo entre todos os pesquisadores
participantes, fato que marcou seu sucesso acadêmico e que levou à fixação da
realização de sua terceira edição, que acontecerá em 2013, na UNESP–FCL–Assis – SP.
A Comissão Organizadora, presidida pela Profa. Dra. Roxana Guadalupe
Herrera Álvarez, e composta também pelos Profs. Drs. Norma Wimmer, Maria Celeste
Tommasello Ramos, Maria Cláudia Rodrigues Alves e Álvaro Luiz Hattnher (todos da
UNESP – IBILCE – São José do Rio Preto) entende que o trabalho exigido na
organização do evento foi recompensado pelos resultados obtidos pois o intercâmbio de
idéias foi bastante profícuo e o terceiro livro do Grupo já está sendo organizado pela
reunião dos trabalhos de pesquisa apresentados nas conferências e mesas-redondas. Tal
livro contará, portanto, com o texto integral das conferências do Prof. Dr. David Roas e
da Profa. Dra. Maria Cristina Batalha, que não comparecem, desta forma, nestes Anais.
Estes Anais receberam para publicação sessenta e dois textos, dos cento e
quarenta e dois trabalhos que integraram a programação das mesas e sessões de
comunicação. Todos eles efetivamente apresentados por ocasião do colóquio e
posteriormente remetidos a nós por seus autores. Como anunciado previamente, dada a
natureza desta publicação, a Comissão Organizadora aceitou todos os textos que
estavam minimamente dentro das normas, uniformizou neles o título, as entradas para
resumo e palavras-chave, a entrada da nota de apresentação dos autores, o espaço
simples em todas as citações e eventuais e evidentes desconfigurações de alinhamento
de parágrafos e de tipo de letra advindas do envio em forma de arquivo atachado ou da
reunião dos arquivos, e não procedeu a nenhuma outra revisão dos arquivos enviados,
sendo o conteúdo de cada um deles de inteira responsabilidade de seus respectivos
autores.
Maria Celeste Tommasello Ramos
Maria Cláudia Rodrigues Alves
Álvaro Luiz Hattnher
Organizadores dos Anais
8. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 8
UNESP – Campus de São José do Rio Preto
ENTRE DOIS MUNDOS: O SONHO E O PESADELO EM GASPARD DE LA
NUIT DE ALOYSIUS BERTRAND
Adalberto Luis Vicente*
RESUMO
Entre os “pequenos românticos” franceses, Aloysius Bertrand ocupa lugar de destaque
como “inventor” de um gênero poético de bastante prestígio na história da poesia
francesa, o poema em prosa. Integrando a linhagem artística do romantismo francês,
esse criador de nova forma de expressão poética inspirou-se nos costumes, lendas e
mitos da Idade Média para compor cenas de uma vivacidade e de uma poeticidade raras.
Bertrand dedica uma seção do seu Gaspard de la Nuit, intitulada “La Nuit et ses
prestiges”, à criação de um clima de inspiração fantástica pela presença de fantasmas,
gnomos, bruxas, seres lendários, além de personagens e cenas associados ao horror,
vinculados, com freqüência, ao sonho e ao pesadelo. O objetivo deste trabalho é
analisar de que modo a própria estrutura narrativa do sonho e do pesadelo conformam
certos poemas de Gaspard de La Nuit.
PALAVRAS-CHAVE: poesia francesa; Aloysius Bertrand; sonho; pesadelo.
Aloysius Bertrand produziu sua obra no período romântico, época que viu
florescer o gênero fantástico na França. O poeta, nascido em Dijon, é também o criador
de uma forma moderna de poesia, o poema em prosa. Desconhecido em sua época, o
“petit romantique” de Dijon tornou-se modelo para poetas do quilate de Baudelaire e
Mallarmé, que adotaram o poema em prosa como forma de expressão poética. Neste
trabalho, detenho-me em dois textos terceira parte de Gaspard de la Nuit, que tem por
título “La nuit et ses prestiges”. Trata-se dos poemas: “La Chambre Gothique” e “Un
Rêve”, bastante característicos do modo como Bertrand configura seus textos a partir do
sonho e do pesadelo.
*
Doutor em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo. Professor assistente doutor na
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP, campus de Araraquara, área de Língua e Literatura Francesa.
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
Como lembra Max Milner, na introdução à sua edição de 1980 de Gaspard de
La Nuit, “é raro assistir ao nascimento de um gênero literário” e “mais raro ainda poder
relacioná-lo com um escritor particular” (BERTRAND, 1980, p. 7), como é o caso de
Louis Bertrand, “inventor incontestável do poema em prosa francês” (BERTRAND,
1980, p. 7). Escritos a partir de 1827, mas publicados em 1842, um ano após a morte do
autor, em uma edição precária que não vendeu mais do que 20 exemplares, foi preciso
esperar que Baudelaire evocasse os poemas em prosa de Bertrand como a principal
fonte de inspiração para compor os Petits poèmes en prose ou Spleen de Paris (1869)
para que seu nome do poeta fosse salvo do limbo a que o condenou a marginalidade
provincial e econômica. Na carta-prefácio dos Petits poèmes em prose, Baudelaire diz
ter uma confissão a fazer:
“Foi folheando, pela vigésima vez ao menos, o famoso Gaspard de La
Nuit de Aloysius Bertrand, que me veio a idéia de tentar algo análogo e de
aplicar à descrição da vida moderna, ou melhor, de uma vida moderna e mais
abstrata, o procedimento que ele aplicou à pintura da vida antiga, tão
estranhamente pitoresca” (BAUDELAIRE, 1958, p. 6).
Como se pode notar, Baudelaire está interessado em reter de Bertrand o
procedimento, a escritura poética em prosa, pois vê nela um instrumento apto para
exprimir a vida moderna. O autor dos Petits poèmes en prose, no entanto, rejeita o
medievalismo, os mitos e as lendas, o aspecto fantástico e grotesco dos textos de
Bertrand, que não se afinam com seu projeto de poesia moderna. No entanto, para certos
críticos, como Marvin Richards III, o poema em prosa de Bertrand é mais moderno do
que o de Baudelaire, pois este ainda mantém intacta a estrutura diegética da prosa: em
geral, Baudelaire conta uma história, com um narrador estável em primeira pessoa e
alterna tons líricos e prosaicos. Bertrand, ao contrário, tende a dispersar a diegese, a
fragmentá-la, a reduzi-la ao mínimo, a sugeri-la mais do que explicitá-la. Além disso,
Bertrand, antecipando a experiência de Um Lance de dados, dá grande importância ao
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
branco da página. Em nota deixada ao editor de Gaspard de La Nuit, Bertrand faz
algumas recomendações a respeito da forma como livro deveria ser impresso. Na
referida nota, dirige-se ao paginador afirmando: “paginar como se o texto fosse poesia
[...], o senhor paginador colocará grandes brancos entre as alíneas ou couplets como se
fossem estrofes” (1980, p. 9).
Em 1865, Mallarmé escreve ao editor de Bertrand, Victor Pavie, pedindo uma
cópia do Gaspard de La Nuit. Na missiva, afirma Mallarmé:
J’ai comme tous les poètes de notre jeune génération [... ] un culte profond
pour l’oeuvre exquis de Louis Bertrand [. . .] je souffre de voir ma
bibliothèque, qui renferme les merveilles du Romantisme, privée de ce cher
volume qui ne m’abandonnait pas quand je pouvais l’emprunter à un
confrère (apud RICHARDS III.
Recebida a cópia do livro, Mallarmé volta a escrever a Victor Pavie,
agradecendo e sugerindo uma nova edição do Gaspard, que seria prefaciada com
poemas dedicados a Bertrand, escritos pelo próprio Mallarmé e seus amigos:
Ce monument [. . .] à Louis Bertrand serait d’autant plus naturel qu’il est
vraiment, par sa forme condensée et précieuse, un de nos frères. Un
anachronisme a causé son oubli. Cette adorable bague jetée, comme celle
des doges, à la mer, pendant la furie des vagues romantiques, et engoufrée,
apparaît maintenant rapportée par les lames limpides de la marée [... ]
Mais comme on rêve, en parlant de ceux qu’on aime! ( apud RICHARDS
III)
Como se pode notar é a forma condensada e preciosa de Bertrand que interessa a
Mallarmé, recriada poeticamente pela imagem do anel jogado ao mar e que remete,
evidentemente, à concepção do poema como um “bijou”, uma jóia. No leito de morte,
Bertrand disse a seu amigo Victor Pavie que era preciso refazer o Gaspard de La Nuit,
eliminar algumas partes, tornar alguns poemas ainda mais sintéticos. A comparação
entre versões diferentes de alguns poemas publicados anteriormente em jornais,
comprovam a tendência de Bertrand a enxugar o mais possível o texto, a dar-lhe uma
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
forma estruturalmente refinada e a segmentá-lo na forma de alíneas. O desconhecido
poeta de Dijon torna-se assim um dos mais importantes representantes da linha
formalista do romantismo francês, ao lado de Théophile Gautier et do Victor Hugo de
Les Orientales.
Em geral, os poemas em prosa de Bertrand constituem uma sucessão de cenas
isoladas, unidas mais por recursos formais de natureza poética (aliterações, assonâncias,
anáforas, simetrias sintáticas) do que por uma ligação lógica do discurso. Trata-se,
como a define Max Milner de uma “estética do lacunar” (1980, p. 8).
Há uma forte ligação entre poemas em prosa de Bertrand com a pintura. O livro
tem como subtítulo “fantasias à maneira de Rembrandt e Callot”. No entanto, o que
mais nos importa aqui é que a coletânea foi projetada pelo autor para ser ilustrada e este
deixou um projeto de ilustração. As ilustrações sugeridas por Bertrand para a terceira
parte do livro, “La nuit et ses prestiges”, confirmam a idéia de que, para Bertrand, a
composição do poema se fazia de modo análogo a uma sucessão de quadros. No projeto
de ilustração, o livro III parece sob a rubrica “FANTASTIQUE MOYEN-AGE”. É
preciso notar que elementos fantásticos não aparecem nos poemas do autor antes de sua
primeira estada em Paris, entre 1828 e 1829. Na capital, Bertrand frequentou os salões
de Victor Hugo, Charles Nodier e Émile Deschamps. Era o momento em que Hoffmann
começava ser traduzido, a literatura fantástica ganhava espaço no cenário do
romantismo e o Dictionnaire de l’Académie oficializada a palavra fantástico na língua
francesa, definindo-o como: ‘quimérico, ele (o fantástico) significa também o que só
aparenta ser corporal, sem realidade” (apud BERTRAND, 1980, p. 12). Ao termo
fantástico, Bertrand apõe a expressão idade média, uma vez que a fonte de inspiração
mais importante para compor o livro como um todo é a Dijon medieval.
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
Mas voltemos ao projeto de ilustração. Bertrand sugere ao ilustrador do Gaspard
algumas gravuras e as associa aos poemas. “La Chambre Gothique”, o primeiro poema
da terceira parte, é o texto para o qual o autor projetou o maior número de ilustrações, a
saber: a terra sob a forma de uma flor cujo cálice tem, no lugar dos pistilos e estames, a
lua e as estrelas; um gnomo que bebe o óleo de uma lâmpada; uma fada que embala
numa couraça uma criança morta; um cavaleiro que molha sua mão enluvada na pia de
água benta; um esqueleto de um soldado alemão preso no madeiramento; um espírito
sob a forma de uma vela que vai apagar-se.
Como se pode notar, para cada alínea do poema corresponde um quadro. Assim,
o poema teria um equivalente visual, formado pelas gravuras correspondentes a cada
alínea. Essa possibilidade de um correspondente visual ao poema é bastante reveladora
do processo de criação poética de Bertrand: o assunto do texto é fragmentado em alíneas
independentes, marcadas pela separação visual do branco da página. Assim, a estética
lacunar de Bertrand tende a eliminar a narração, o encadeamento lógico, as relações
causais. O material fantástico de que serve Bertrand, sonhos, sortilégios, malefícios,
gnomos, feiticeiros, fantasmas, criaturas de pesadelo não diferem muito o material
imaginário que lhe forneceu sua época. A originalidade de Bertrand está, sobretudo, na
forma como trabalha esses materiais dentro de uma estética lacunar.
A questão se coloca então é como essa estrutura lacunar contribui para criar
certos efeitos que se poderiam chamar genericamente de fantásticos. Neste trabalho em
particular, interessa-nos como tal estrutura pode gerar um “equivalente do sonho”. Max
Milner já havia apontado que tal equivalente é produzido, em Bertrand, pela falta de
uma “certa ligação lógica do discurso” (1980, p.41). No entanto, a estrutura lacunar dos
poemas não tem apenas função poética, é também utilizada por Bertrand para simular a
estrutura do relato de sonho, para dar ao leitor a impressão de que está penetrando em
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
um universo similar ao do sonho. Vejamos como isso se dá a partir de uma visada
estrutural das narrativas de sonho.
Segundo Guy Laflèche (1999, p. 119), a narrativa de sonho tem um uma
estrutura simples e pode ser melhor entendida quando comparada à estrutura da
narrativa factual:
História factual: Hé = Si + E1 + E2 + E3 + ... En + Sf
História de sonho: Hr = [Si] + Ex + Ey + Ez + ... Ei + [Sf]
A história factual é caracterizada por uma situação inicial (Si) que vai se
transformando a cada acontecimento (E) segundo leis temporais e causais, até se chegar
à situação final (Sf). Na história de sonho, a situação inicial e final é inexistente ou
pouco marcada (em geral uma breve referência espacial ou temporal), e os
acontecimentos (que podem constituir uma sequência) se sucedem de forma frouxa ou
sem ligação evidente. O pesadelo seria caracterizado por um acontecimento ou
sequência de acontecimentos que, em razão de sua carga emotiva, desperta o sonhador,
retirando-o bruscamente do mundo onírico, portanto eliminando a situação final.
O poema “La Chambre gothique” apresenta como epígrafe a frase latina “Nox et
solitudo plenae sunt diabolo” (BERTRAND, 1980, p. 78) atribuída aos Pais da Igreja. A
frase ecoa o título geral da terceira parte do Gaspard de la Nuit, “A noite e seus
prestígios”. Na primeira parte, composta de duas alíneas, o eu poético observa a noite
pela janela e seu murmúrio constitui uma comparação altamente lírica entre o céu e a
flor. Trata-se, portanto, daquele tipo de “fantástico” que é característico da linguagem
poética e que se fundamenta na analogia, na metáfora. No entanto, o eu poético fecha a
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
janela e afirma estar com sono, o que prepara o a segunda parte do poema, na qual o
aspecto gótico do quarto se manifesta.
Na segunda parte do texto, a noite manifesta seus prestígios. Entre eles estão os
seres fantasmagórios, lendários e maléficos que povoam o quarto obscuro e que o autor
evoca pela figura do gnomo, do esqueleto do soldado e de fantasmas (a ama, o
antepassado que desce do quadro). Cada um desses elementos ocupa uma alínea,
estando, portanto, isolados, constituindo um quadro independente. Uma breve referência
temporal à meia noite, na primeira alínea, marca a situação inicial do poema e um
aposto define-a como a hora “blasonada dos dragões e diabos”. Blasonner, em francês,
significa, descrever, mas também interpretar os brasões segundo as regras da heráldica.
Portanto, a palavra sugere que a meia noite traz, com suas ilusões, visões de seres
sobrenaturais e que tais visões dever ser interpretadas segundo regras que não são mais
aquelas válidas sob a luz diurna. Temos a seguir uma sucessão de quatro aparições: o
gnomo, a ama que embala uma criança morta, o esqueleto do soldado alemão preso no
madeiramento e por fim, Scarbo, o anão do pesadelo, o Smarra de Bertrand. As três
primeiras alíneas são introduzidas pela expressão “si c’était”. A conjunção condicional
seguida do verbo no imperfeito cria uma atmosfera de dúvida: ilusões que brotam da
escuridão? imagens oníricas? Não temos certeza. Na última alínea, no entanto, o verbo é
colocado no presente, “mais c’est Scarbo qui me mord le cou” (1980, p. 35). A presença
de Scarbo, personagem de três outros poemas de Bertrand, que o define como o anão do
pesadelo, marca a presença do horror que caracteriza essa forma onírica. O fim brusco
do poema com a imagem de Scarbo que morde o pescoço do eu poético e que cauteriza
a ferida com o dedo avermelhado na fornalha sugere o despertar abrupto que caracteriza
o pesadelo.
15. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 15
UNESP – Campus de São José do Rio Preto
Como se pode notar, Bertrand eliminou de seu poema todo encadeamento
narrativo, lógico. Apenas uma anáfora de caráter temporal une cada uma das visões,
cujo isolamento na página simula a disjunção de cenas que constituem, segundo
Laflèche, o relato de sonho.
Há, no entanto, casos em que o simples isolamento da imagem em alíneas não é
suficiente, como se pode notar no poema “Un Rêve”. O título, em que o substantivo
“revê” vem acompanhado pelo artigo definido, parece remeter a um único sonho. No
entanto, o poema é constituído pela fragmentação de três sequências oníricas em três
alíneas. A frase final “et je poursuivais d’autres songes vers le réveil” confirma que se
trata de sequências de sonhos que podem se estender até o despertar. Esse poema ilustra
de modo exemplar o modo como Bertrand utiliza a tensão entre construção e dissipação
do conteúdo onírico. Na primeira alínea o autor apresenta numa sequência simples,
marcada pelo travessão, três espaços distintos: uma abadia ao clarão da lua, uma
floresta, e Morimont, a praça de execuções de Dijon. Na segunda alínea, outras três
sequencias ecoam a primeira, o toque fúnebre de um sino ao qual respondem soluços
lúgubres numa cela, gritos cheios de lamento e a procissão dos penitentes negros que
conduzem um condenado ao suplício. A terceira alínea finaliza cada uma das
sequências: trata-se de um monge que expira na cela de uma abadia, uma moça que se
enforca nos ramos de um carvalho e, horror dos horrores, o próprio eu lírico sendo atado
pelo carrasco à roda das execuções em Morimont. Fecham-se assim as três sequências
oníricas apresentas pelo autor de modo sintético e fragmentado, mas que, por ocuparem
posições simétricas dentro das alíneas, apresentam-se de modo altamente elaborado e
construído. Com esse procedimento, Bertrand parece sugerir, que os sonhos noturnos
contínuos são construídos a partir de sequências fragmentárias, aparentemente sem
nenhuma ligação, mas que acabam por ser reconstruídas na mente do sonhador. Embora
16. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 16
UNESP – Campus de São José do Rio Preto
unidas pelo tema da morte, a relação de independência de casa cena onírica permanece
intacta.
Os exemplos acima analisados são representativos do fascínio que o sonho
exerce no imaginário de Bertrand e também do modo como o poeta reelabora
poeticamente o conteúdo onírico. No entanto, essa técnica de escritura, fundamentada
em uma estética lacunar, é também é utilizada em textos em que o sonho não constitui o
tema privilegiado. Neste caso, a utilização dessa forma cria uma espécie de
“impregnação onírica” que causa no leitor um estranhamento e constituem um dos
elementos originais da obra de Bertrand.
Referências bibliográficas
BAUDELAIRE, C. Petits poèmes en prose (Le Spleen de Paris). Introduction, notes,
bibliographie et variants par Henri Lemaître. Paris: Classiques Garnier, 1958.
BERTRAND, A. Gaspard de La Nuit. Édition présentée, établie et annotée par Max
Milner. Paris: Gallimard, 1980.
LAFLECHE, Guy. Matériaux pour une Grammaire narrative. Montréal: Presses
universitaires de Montreal, 1999.
RICHARDS III, M. The Demon of Criticism: Mallarmé and the Prose Poem.
Disponível em http://tell.fll.purdue.edu/RLA-Archive/1995/French-
html/Richards,Marvin.htm. Acesso em 20/06/2011.
17. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 17
UNESP – Campus de São José do Rio Preto
A PARÓDIA DO MITO DO LABIRINTO EM “A CASA DE ASTÉRION” DE
JORGE LUIS BORGES
Adriana Lins Precioso†
RESUMO
A tradição literária consagra a figura de Teseu como o grande herói que, auxiliado por
Ariadne, consegue entrar no labirinto, matar o inimigo e dele sair. A narrativa
mitológica delineia a configuração do herói, constitui seus passos de vencedor e
estabelece sua superioridade frente ao seu oponente: um monstro com corpo de homem
e cabeça de touro. Jorge Luis Borges, encantado pela temática do labirinto, o faz
dispersar em diferentes formatos ao longo da coletânea de contos curtos intituilada O
Aleph (1949). Todavia, é no conto “A casa de Astérion”, que Borges atualiza o mito e o
reinventa por meio de uma versão paródica, subvertendo os valores instituídos pela
enunciação clássica, cedendo a voz ao Minotauro e proporcionando ao leitor um
mergulho na visão dos vários acontecimentos através do olhar e dos sentimentos dessa
personagem. A figura do labirinto pode representar duas funções literárias: uma
temática e a outra estrutural; ambas exploradas e desenvolvidas no texto. A proposta
deste trabalho é buscar as relações de contrariedade estabelecidas junto ao processo
intertextual do texto-base que é o mito com o texto ressignificado da contra-história que
é o conto. O aporte teórico dessa análise se pautará no percurso de geração de sentido
estabelecido pela semiótica greimasiana.
PALAVRAS-CHAVE: Paródia; Mito do Labirinto; Jorge Luis Borges.
O mito do labirinto
A tradição conta que Minos foi escolhido por Posseidon para governar Creta e
recebeu um lindo touro branco que emergiu do mar como forma de apoio do deus,
contudo, ele deveria ser sacrificado. O rei, todavia, sacrificou outro touro no lugar e
como condenação Posseidon fez com que sua esposa Pasífae se apaixonasse pelo animal
†
Doutora em Teoria da Literatura, na Universidade Estadual Paulista – UNESP - IBILCE – Campus de
São José do Rio Preto - Professora Doutora na UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso,
campus de Sinop na área de Literatura.
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
gerando assim o Minotauro (monstro metade homem – metade touro). Para confinar o
Minotauro em um lugar longe da população, Minos convocou Dédalo para que ele
construísse um espaço para alocar o monstro. O engenheiro, então, construiu o
Labirinto. Anos depois, o jovem Teseu chega à Atenas depois de descobrir ser filho do
rei Egeu. O desejo de ser herói o fez oferecer-se como um dos quatorze jovens virgens
que cumpriu a condenação de Minos por ter perdido seu filho em terras atenienses e sob
os cuidados de Egeu. Teseu, então, com o auxílio da jovem Ariadne, consegue entrar no
labirinto, matar o Minotauro e sair com vida.
Outras versões atribuem uma dupla paternidade a Teseu, sendo ele filho de
Posseidon e Etra, sem que Egeu soubesse a sua verdadeira origem, o rei de Atenas
sempre pensou que Teseu fosse seu filho legítimo. Daí a explicação para a força e a
determinação do jovem herói.
O processo de reinvenção na literatura mobiliza deslocamentos de retorno,
recuperando, assim, as figuras míticas consagradas pela tradição. A figura do labirinto e
seus personagens apresentam configurações e funções diferenciadas ao longo do tempo.
Jorge Luis Borges e sua paixão pelo labirinto
O escritor argentino Jorge Luis Borges apresenta como traço distintivo de sua
poética, uma obsessão delirante por labirintos em suas inúmeras facetas. Para Tavares:
A ideia de um espaço infinitamente divisível é a matriz abstrata
de uma das imagens preferidas de Borges: o labirinto. O que
aterroriza o indivíduo que vaga no labirinto é, mais do que a
morte às mãos do Minotauro, a possibilidade de nunca sair dali,
de passar o resto da eternidade vagando sem descanso por uma
arquitetura sem sentido...” (2005, p. 265)
Os textos borgianos parecem explicitar em seu processo de construção,
elementos muito semelhantes aos labirintos, são, em sua maioria, enigmas textuais,
habitados por seres imaginários em universos insondáveis. Já as temáticas parecem
19. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 19
UNESP – Campus de São José do Rio Preto
refletir a metáfora do labirinto, pois discutem filosofia, matemática, metafísica,
mitologia e teologia.
O Aleph (1949) é uma compilação de dezessete contos curtos que apresentam a
imortalidade, o tempo, o infinito, a metafísica, como temas, tudo isso relacionado com
textos clássicos, como: A Divina Comédia, de Dante Alighieri, O Castelo, de Franz
Kakfa e Os Lusíadas, de Camões. Dentre os contos dessa obra, encontra-se o texto “A
casa de Astérion”, escolhido para esta análise.
A atualização do mito: a paródia
Um dos processos de revisitação do mito e sua atualização é a paródia. De
acordo com Hutcheon,
... a paródia é, neste século, um dos modos maiores da
construção formal e temática dos textos. E, para além disto, tem
uma função hermenêutica com implicações simultaneamente
culturais e ideológicas.
A paródia é uma das formas mais importantes da
moderna auto-reflexividade; é uma forma de discurso
interatístico. (1985, 13)
Assim, o interesse contemporâneo pela paródia tangencia tanto a auto-
representação como a intertextualidade. Hutcheon afirma que desse “centro de interesse,
surgiu uma estética do processo, da actividade dinâmica da percepção, interpretação e
produção de obras de arte” (1985, p. 12).
Segundo Sant’Anna (1988, p. 12), “O dicionário de literatura de Brewer, por
exemplo, nos dá uma definição curta e funcional: ‘paródia significa uma ode que
perverte o sentido de outra ode (grego: para- ode)”. Tal como Hutcheon, Sant’Anna
associa a paródia com a intertextualidade: “Modernamente a paródia se define através
de um jogo intertextual.” (1988, p. 12). Desse modo, ao subverter o sentido de um texto,
a paródia precisa dialogar com um texto-base. Seu procedimento dialógico traz a
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“Intertextualidade [que] é a retomada consciente, intencional da palavra do outro,
mostrada, mas não demarcada no discurso da variante.” (DISCINI, 2004, p. 11)
O conto “A casa de Astérion” faz a retomada do mito do labirinto pelo viés
paródico, ou seja, há uma perversão dos valores instituídos pela tradição mitológica. A
debreagem da enunciação do texto é enunciativa (eu / aqui / agora), assim, o nível
discursivo propõe um sentido de subjetividade, tal como observa-se no início da
narrativa:
SEI QUE ME ACUSAM DE SOBERBA, e talvez de
misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei
no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de
minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo
número é infinito) estão abertas dia e noite aos homens e
também aos animais. (2001, p. 75)
Em tom de um de desabafo, Astérion declara: “Não em vão foi uma rainha
minha mãe” (p. 76) e “O fato é que sou único” (p. 76). Ao expor sua origem, percebe-se
a intertextualidade com o mito do labirinto. O espaço também reafirma essa referência:
Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é
outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um
pesebre; são catorze [são infinitos] os pesebres, bebedouros,
pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o
mundo” (2001, p. 77)
Apesar de ser um texto curto, além do mito do labirinto, outras temáticas
perpassam a narrativa, como o duplo, a solidão, a teologia, o insólito, entre outros.
Contudo, é apenas nos últimos parágrafos que se registra a evidente relação intertextual:
Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os
liberte de todo o mal. Ouço seus passos ou sua voz no fundo das
galerias de pedra e corro alegremente para procurá-los. A
cerimônia dura poucos minutos. Um após outro, caem, sem que
eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres
ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam,
mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um dia
chegaria meu redentor. Desde esse momento a solidão não me
magoa, porque sei que vive meu redentor e que por fim se
levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do
mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar
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com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? –
me pergunto. Será um touro ou um homem? Será talvez um
touro com cara de homem? Ou será como eu?
O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava
qualquer vestígio de sangue.
- Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro mal se
defendeu.” (2001, p. 77-8)
Reconhece-se, na fala de Teseu, que Astérion é, na verdade, o Minotauro.
Todavia, não aquele monstro sem voz da tradição e, sim, um sujeito inocente, que ganha
a fragilidade como traço de humanidade. Portanto, os valores entre herói e anti-herói
surgem subvertidos no texto.
Ao examinar as relações intertextuais do conto “A casa de Astérion” com o Mito
do Labirinto, nota-se que o primeiro é o texto paródico e o segundo o texto-base. “Na
verdade, a paródia contém uma diferença em relação ao texto-base, na medida em que
subverte seu enunciado e desqualifica sua enunciação, propondo uma outra enunciação
substituta, contrária, diferente.” (DISCINI, 2004, p. 26). Pode-se esquematizar essas
relações, de acordo com o quadrado semiótico proposto por Norma Discini (2004, p.
24):
PROTO-HISTÓRIA CONTRA-HISTÓRIA
TEXTO-BASE PARÓDIA
TRANS-HISTÓRIA DESISTÓRIA
ESTILIZAÇÃO POLÊMICA
Relação de contrariedade
Relação de contraditoriedade
Relação de complementariedade
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Dessa forma, em consonância com as relações propostas pelo quadrado
semiótico, o conto “A casa de Astérion” configura-se como uma contra-história. “A
contra-história, a paródia, constrói outro sentido, mas para a mesma história, do texto-
base. A paródia constrói outro texto para e pela mudança de sentido do texto-base.”
(DISCINI, 2004, p. 27). A subversão dos valores consagrados pela tradição é a marca da
paródia.
Considerações Finais
Em consonância com a obsessão de Borges, “A casa de Astérion” revisita e
atualiza o Mito do Labirinto pelo viés da paródia, renomeando o Minotauro para
Astérion. Esse personagem que, na tradição, aparece como um monstro, na narrativa
borgeana lhe é doado à voz, é ele quem conta sua própria história, carregada de solidão,
reflexões, religião e fé. Filho de uma rainha, tal como o mito, Astérion não entende o
motivo que, ao sair nas ruas, provoca consternação no povo.
A configuração espacial da casa de Astérion recupera os muitos caminhos
tortuosos e múltiplos, às vezes, infinitos do labirinto. A ausência da porta, fechadura e
móveis reconstroem o vazio e a imensidão desse local marcado pelo medo.
Contudo, vale a pena ressaltar que essas relações só se evidenciam nos três
últimos parágrafos, quando, em um salto temporal, instaura-se a marca de um espaço no
corpo do texto, evidenciando uma passagem de tempo. O discurso direto que finaliza a
narrativa dá voz a Teseu, identificando Astérion como o Minotauro e afirmando que ele
“mal se defendeu” no momento da luta final.
Nota-se, portanto que a paródia de Borges também proporciona a perda do leitor,
mas no desfecho, providencia um “fio de Ariadne” para que se possa entrar no texto,
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sair e recuperar o sentido, paródico, subversivo, questionador da tradição e renovado
por meio da visitação do mito.
Referências Bibliográficas
BORGES, J. L. O Aleph. Tradução de Flávio José Cardoso). São Paulo: Globo, 2011.
BULFINCH,T. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução de
David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
DISCINI, N. Intertextualidade e conto maravilhoso. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas, 2004.
FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São
Paulo: Ática, 2001.
HAMILTON, E. Mitologia. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Rio de
Janeiro: Edições 70, 1985.
SANT’ANNA, A.F. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo: Ática, 1988.
SEABRA, Z. Deuses e heróis. Rio de Janeiro: Record, 2002.
TAVARES, B. Contos fantásticos no labirinto de Borges. Tradução de Julio Silveira et
al. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
O DUPLO NA LITERATURA FANTÁSTICA - ANÁLISE COMPARATIVA
ENTRE OS CONTOS DE ALLAN POE, RUBENS FIGUEIREDO E SÉRGIO
SANT'ANNA SEGUNDO TZEVAN TODOROV EM "INTRODUÇÃO À
LITERATURA FANTÁSTICA" E CLÉMENT ROSSET EM
"O REAL E SEU DUPLO"
Alexandra Britto da Silva Velásquez‡
RESUMO
Nas narrativas “William Wilson” de Allan Poe, “Nos olhos do Intruso” de Rubens
Figueiredo e “O vôo da madrugada” de Sérgio Sant’Anna, observamos o conceito de
duplo em relação à literatura fantástica delineada por Tzevan Todorov e como um
problema filosófico para Clément Rosset. Em Todorov, o duplo aparece como um
elemento comum à metamorfose dentro do “tema do eu” através da multiplicação da
personalidade e possibilita o contato com o sobrenatural, o que provoca uma espécie de
hesitação no narrador e no leitor. Por outro lado, para Rosset a partir do encontro
insólito com o duplo vem à tona o problema existencial, pois diante do outro duplicado
o sujeito tem a identidade e a existência confrontadas e se torna incapaz de provar quem
é a cópia e quem é o original. Sendo assim, o duplo colabora com a visão ambígua e
necessária à literatura fantástica e parece constituir um problema para o homem
moderno que vê no outro o substituto.
PALAVRAS-CHAVE: Duplo; Fantástico; Hesitação; Existência; Original; Cópia.
O tema do duplo é recorrente na história da literatura, o duplo pode se referir a
uma dupla personalidade, na qual o sujeito vivencia o conflito entre o bem e o mal,
pode estar presente no pacto demoníaco, no qual o homem perde a alma e o reflexo no
espelho em troca do amor e/ou da juventude, e pode ser como expõe Borges em O
Livro dos Seres Imaginários:
Sugerido ou estimulado pelos espelhos, pelas águas e pelos
irmãos gêmeos, o conceito de duplo é comum a muitas
nações.[...] Na Alemanha, chamaram-no Doppelgänger; na
Escócia, fetch, porque vem buscar (fetch) os homens para levá-
los para a morte. Encontrar-se consigo mesmo é, por
conseguinte, funesto (Opus cit, 2008, p.85).
‡
Mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
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Mas o encontro consigo mesmo pode não significar a morte, e sim, a
perpetuação. O próprio Borges escreve “O outro”, e vemos o velho Borges em
Cambridge num encontro insólito com o jovem Borges em Genebra. Em “As ruínas
circulares” a ideia de substituição, simulacro e perpetuação também estão presentes. Na
psicanálise, o duplo pode ainda ser o alter-ego, e Freud dedica em “O Estranho” suas
observações sobre o desdobramento da personalidade e as relações entre o estranho e o
familiar. Sem dúvida, há várias formas de tratar o duplo na história da literatura, mas na
literatura fantástica, trataremos o duplo sob dois aspectos: o da metamorfose e da
relação entre o real e o sobrenatural que geram uma espécie de hesitação no narrador
e/ou personagem e no leitor ideal.
O duplo nas obras “William Wilson”, de Allan Poe, “Nos Olhos do Intruso”, de
Rubens Figueiredo e “O vôo da madrugada”, de Sérgio Sant’Anna, objeto de nossa
investigação, contribui com a transgressão dos limites da natureza – limites entre a
matéria e o espírito -, que são evocados na literatura fantástica. Com o duplo, o narrador
e/ou personagem e o leitor hesitam entre o universo fantástico, onde o que se imagina
pode acontecer, e, o limite imposto pela realidade.
A multiplicação da personalidade está dentro do fenômeno da metamorfose que
colabora com as transgressões das leis naturais e para Todorov, a metamorfose está
presente no que ele chama de “tema do eu”. Vale ressaltar que Todorov faz uma espécie
de classificação dos textos fantásticos e divide os temas em “tema do eu”(tema do olhar)
e “tema do tu”(tema do discurso). Dessa forma, as narrativas aqui selecionadas tratam
do tema do olhar, da aparição.
Todavia, se por um lado, temos uma espécie sistematização de Todorov acerca
do fantástico, na qual cabe a multiplicação da personalidade, do outro, temos o olhar
filosófico de Clément Rosset, que observa no duplo o problema da cópia e da
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originalidade, e tal questionamento parece ecoar em “William Wilson” e “Nos olhos do
intruso.”
Apesar de distintos, encontramos nos três contos a narrativa de memória, em
primeira pessoa, como o único testemunho do evento ocorrido. Em “William Wilson”, o
narrador-personagem no leito de morte dá o testemunho de memória de como encontrou
o duplo ainda na escola e como este o perseguiu por toda a vida denunciando seus atos
vis, o que culmina no enfrentamento e desfecho fatal para os dois. Para Borges, neste
conto “o duplo é a consciência do herói. Este o mata e morre.” (2008, p.85).
Rubens Figueiredo, em “Nos olhos do intruso”, nos traz um narrador-
personagem que encontra um sósia no teatro, e que aos poucos ao ser confundido com o
duplo assume para si parte da vida do outro. Quando o outro morre, se vê desprezado e
viaja para a cidade do futuro, na qual, encontra outro sósia um pouco mais velho.
Em “O vôo da madrugada”, nos deparamos com o relato de um homem que viaja
para Boa Vista a trabalho e na volta para casa faz um voo especial com mortos num
acidente e apenas alguns parentes das vítimas que retornam também a São Paulo. O
homem bebe e se encanta por uma passageira que possivelmente é uma das mortas e
depois ao chegar a sua casa encontra outro de si no quarto. O homem então resolve
relatar o fato e deixa a dúvida para o leitor se quem o narra está vivo ou não.
Os três contos se iniciam de forma realista ainda que inspirem dúvida, e só mais
adiante o leitor é levado ao encontro insólito, uma característica que contribui com o
fantástico de acordo com Todorov, pois para o mesmo a realidade falseada é o que
permite a transgressão pelo sobrenatural. Além disso, o leitor ideal precisa acreditar em
parte da narrativa para depois duvidar. “A fé absoluta como a incredulidade total nos
levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida.” (2008, p.36).
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Ressaltemos que o fantástico depende de uma visão ambígua e para Todorov,
diante do evento sobrenatural o personagem hesita e o leitor ao se identificar com este
também hesita.
O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das
personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o
próprio leitor dos acontecimentos narrados.[...] A hesitação do
leitor é pois a primeira condição do fantástico. Mas será
necessário que o leitor se identifique com uma personagem.
(TODOROV, 2008, p.37).
Observemos adiante que o início das três narrativas incita à dúvida e o leitor já
vislumbra um terreno escorregadio que contribui ao relato marcado pela ambiguidade.
PERMITI QUE, POR ENQUANTO, me chame William
Wilson. A página virgem que agora se estende diante de mim
não precisa ser manchada com meu nome verdadeiro. Esse
nome já foi por demais objeto de desprezo, de horror, de
abominação para minha família [...] Não quereria, mesmo que o
pudesse, aqui ou hoje, reunir as lembranças de meus últimos
anos de indizível miséria e um imperdoável crime. (Apud
COSTA, 2006, p.289).
Não lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir
comentários: Aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas
acontecem, o futuro fugiu para lá. Advertências que repetiam a
verdade mais simples, não há como negar. Hoje, parecem
ressoar a voz de um oráculo. Mas era uma verdade que entendi
mal, que me apressei em traduzir totalmente errado, nos termos
da euforia de um menino, ou até de um tolo.
Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda
dormisse bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido
ao teatro.(Apud MORICONI, 2001, p.540).
Se alguma coisa digna aconteceu em minha vida dura e insípida
foi estar entre os passageiros daquele voo extra, de Boa Vista
para São Paulo. (SANT’ANNA, 2003, p.9).
Aos poucos, os cenários das narrativas, que parecem realistas, colaboram para
instaurar o incômodo e a desconfiança por parte do leitor ideal. Em “William Wilson”, a
escola é uma casa estilo elisabetano na Inglaterra com salas de aula que inspiram o
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terror; em “Nos olhos do intruso”, o teatro – lugar de ilusão e metamorfose –, é o
primeiro local no qual o narrador-personagem encontra o seu duplo; e n’ “O vôo da
madrugada”, após viajar com mortos, o narrador-personagem chega a casa, e encontra
em seu quarto (local isolado) o duplo.
Minhas remotas recordações da vida escolar estão ligadas a uma
grande extravagante casa de estilo elisabetano numa nevoenta
aldeia da Inglaterra, onde havia grande quantidade de árvores
gigantescas e nodosas e onde todas as casas eram extremamente
antigas. Na verdade aquela venerável e velha cidade era um
lugar de sonho e repouso para o espírito. (Apud COSTA, 2006,
p.290)
A sala de aulas era a mais vasta da casa e do mundo, não podia
eu deixar de pensar. Era muito comprida, estreita e
sombriamente baixa, com janelas em ogivas e o forro de
carvalho. A um canto distante, e que inspirava terror, havia um
recinto quadrado de dois a três metros, abrangendo o sanctum
"durante as horas de estudo" do nosso diretor, o Reverendo Dr.
Bransby. Era uma sólida construção, de porta maciça; e, a abri-
la na ausência do Mestre Escola, teríamos todos preferido
morrer de la peine forte et dure. (Apud COSTA, 2006, p.292)
Talvez eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda
dormisse bem longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido
ao teatro. Três atores representavam vários papéis e a história da
peça quase não importava. O espetáculo consistia muito mais na
velocidade e na perfeição das metamorfoses dos atores. Em
poucos minutos, eles trocavam de roupa, peruca e maquiagem,
encarnavam outra voz, outra personalidade, e tudo com um
vigor que só podia nascer de um tipo de vida. (Apud
MORICONI, 2001, p.540).
Sentado em minha cama, a fitar-me com uma placidez
sorridente, na qual julguei detectar uma ponta de ironia, estava
um homem – se assim devo nomeá-lo – que, pela absoluta
implausibilidade da situação e pela indefinição etária de seus
traços, demorei alguns segundos – se é que podia medir o tempo
– para identificar como sendo eu próprio. Como se fosse
possível eu me repartir em dois: aquele que viajara e aquele que
aguardava tranquilamente em casa, ou, talvez, num espaço fora
do tempo. ( SANT’ANNA, 2003, P.26).
O caráter imaginativo e excitável do herói em “William Wilson” faz par com o
herói de “O vôo da madrugada” e desperta também à dúvida no leitor ideal que não tem
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certeza se o evento de fato ocorreu ou não passa de uma fantasia, de uma invenção dos
narradores-personagens. Os próprios narradores colocam em cheque se o que veem é
ilusão ou não.
Não teria eu na verdade, vivido em sonho? E não estarei agora
morrendo vítima do horror e do mistério da mais estranha de
todas as visões sublunares?
Descendo de uma raça que assinalou, em todos os tempos, pelo
seu temperamento imaginativo e facilmente excitável. (Apud
COSTA, 2006, p.290).
Posso imaginar, em meus devaneios noturnos, cenas de um
sofrimento agudo que, em geral, prefiro não materializá-las em
peças escritas [...] Mas garanto que sou capaz de conjeturar as
piores coisas. [...] Como a imaginação pode ser muito mais
aterrorizante do que a realidade para um insone.
( SANT’ANNA, 2003, p.10).
O entorpecimento, a bebida ou oscilação entre o estado de sono e vigília também
podem ser observados na ficção fantástica como elementos que contribuem à visão
ambígua na narrativa.
Uma alucinação, dirão os céticos, levando em conta, ainda mais,
que eu misturara aos comprimidos tomados no hotel o vinho
servido a bordo. Sim, uma alucinação, tudo é possível, talvez
naquele estágio intermediário entre a vigília e o sono. Mas no
meu caso, se assim tiver sido, com uma duração especial e uma
materialidade que fizeram dessa alucinação uma experiência
mais marcante do que todas as outras em minha existência; um
acontecimento também exterior a mim mesmo e, como já disse,
uma coisa física.( SANT’ANNA, 2003, p.25).
Mas o encontro com o duplo, ponto principal da inquietação do leitor ideal nos
contos, é o marco para observamos não apenas a multiplicação do ser como um aspecto
da metamorfose comum à literatura fantástica, mas como um problema do sujeito em
relação à originalidade, à unicidade e à existência. O duplo não representa apenas o
gêmeo, o sósia, o desdobramento do ser, mas também aponta para o fim do sujeito
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único e original segundo Clément Rosset. E o sujeito passar a hesitar entre a
perpetuação e a morte.
Sua réplica, que era perfeita imitação de mim mesmo, consistia
em palavras e gestos, e desempenhava admiravelmente seu
papel. Minha roupa era coisa fácil de copiar; meu andar e
maneiras foram, sem dificuldade, assimilados e, a despeito de
seu defeito constitucional, até mesmo minha voz não lhe
escapava. Natural, não alcançava ele meus tons mais elevados,
mas o timbre era idêntico e seu sussurro característico tornou-se
o verdadeiro eco do meu. (Apud COSTA, 2006, p. 296).
Pensava-se tratar como original, mas na realidade só se havia
visto o seu duplo enganador e tranquilizador; eis de súbito o
original em pessoa, que zomba e se revela ao mesmo tempo
como o outro e o verdadeiro. Talvez o fundamento da angústia,
aparentemente ligado aqui à simples descoberta que o outro
visível não era o outro real, deva ser procurado num terror mais
profundo: de eu mesmo não ser aquele que pensava ser. E, mais
profundamente ainda, de suspeitar nesta ocasião que talvez não
seja alguma coisa, mas nada. (ROSSET, 2008, p.92).
Nestas narrativas é possível olhar para o duplo como o fetch, como o
doppelgänger, como um alter-ego, mas este duplo, segundo Clément Rosset, aponta
para a não-existência do sujeito.
É verdade que o duplo é sempre intuitivamente compreendido
como tendo uma realidade “melhor” do que o próprio sujeito – e
ele pode aparecer neste sentido como representando uma espécie
de instância imortal em relação à mortalidade do sujeito. Mas o
que angustia o sujeito, muito mais do que a sua morte próxima,
é antes de tudo a sua não–realidade, a sua não-existência.
(ROSSET, 2008, p.88).
A presença do outro desestabiliza o sujeito que questiona se é a cópia do outro
ou o original, se é o duplo ou o duplicado. “No par maléfico que une o eu a um outro
fantasmático, o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma: não é o outro
que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro.” ( ROSSET, 2008, p.88).
Talvez a gradação de sua cópia não o tornasse prontamente
perceptível, ou mais provavelmente, devia eu minha segurança
ao ar dominador do copista que, desdenhando a letra (coisa que
os espíritos obtusos logo percebem numa pintura), dava apenas
31. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 31
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o espírito completo de seu original para meditação minha,
individual, e pesar meu. .”(Apud COSTA, 2006, p.297).
Com o desdobramento da personalidade, de acordo com Rosset, o sujeito
procura no espelho a simetria perfeita do seu duplo embora não possa alcançá-la, pois o
espelho oferece o inverso, e o sujeito jamais alcança o duplo de si. No fim de “William
Wilson” podemos pensar no desfacelamento do espelho, na busca inacessível pelo ser
em si mesmo e nos recordamos também do mito de Narciso. Quando William Wilson
atravessa o espelho, não mata apenas o outro, mas a si mesmo.
Um grande espelho - assim a princípio me pareceu na confusão
em que me achava - erguia-se agora ali, onde nada fora visto
antes, e como eu caminhasse para ele, no auge do terror, minha
própria imagem, mas com as feições lívidas e manchadas de
sangue, adiantava-se ao meu encontro, com um andar fraco e
cambaleante. (Apud COSTA, 2006, p.308).
Era Wilson, mas ele falava, não mais num sussurro, e eu podia
imaginar que era eu próprio quem estava falando, enquanto ele
dizia: Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora por diante, tu
também estás morto... morto para o Mundo, para o Céu e para a
Esperança! Em mim tu vivias... e, na minha morte, vê por esta
imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente
assassinaste a ti mesmo! (Apud COSTA, 2006, p.308).
Em “Nos olhos do intruso” o espelho aponta para a ideia de sucessão e de
substituição, mas não sabemos quem é de fato a réplica, o duplicado, o intruso, e quem
é o original.
Mas os espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo,
pude notar que o sujeito era extraordinariamente parecido
comigo. Apenas um pouco mais velho.Fui para a rua. Forcei
minhas pernas a caminhar e vi a calçada fugindo para trás sob os
meus passos. Sei agora por que vim para esta cidade. O olhar
admirado do homem na barbearia foram as boas-vindas e
também uma despedida para mim. Já posso sentir o calor das
chamas estalando. Mas, até que chegue a minha vez, esse sujeito
ainda vai ouvir falar muito de mim. (Apud MORICONI, 2001,
p.543).
32. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 32
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Em “O vôo da madrugada”, não sabemos se os encontros do narrador-
personagem com a morta no avião e com o seu duplo em casa foram de fato reais ou não
passaram de uma alucinação. É o próprio narrador que questiona junto ao leitor se o
encontro com a mulher não passou de um sonho. Por fim, o leitor permanece na
indecisão e o narrador colabora para isso, colocando em dúvida sua condição
existencial. Quem é o narrador - um homem vivo ou seu fantasma? “E, antes de ser esta
uma história de espectros – acrescento com uma gargalhada, pois uma súbita hilaridade
me predispõe a isso - , é uma história escrita por um deles.”(SANT’ANNA, 2003, p.28).
Ao fim das narrativas continuamos, pois, no terreno do inexplicável, fundamental
à ficção fantástica, e diante de um dilema existencial provocado pelo desdobramento do
sujeito, já que não é possível provar a existência do outro na superfície do espelho. O
espelho para Rosset causa apenas a ilusão de uma visão, “me mostra não eu, mas um
inverso, um outro; não meu corpo, mas uma superfície, um reflexo. Ele é, em suma,
apenas uma chance de me apreender, que sempre acabará por decepcionar-me.” (2008,
p. 90). Narciso se encanta com a imagem de si mesmo, o outro, pois nunca verá a si
mesmo, é a imagem que o leva a fatalidade, pois ele imerge no que é impenetrável.
Caminhamos assim numa espécie de labirinto sem fim onde nos resta olhar para
o insólito, posto, que pelo viés do fantástico, o que parece angústia diante do real é o
que permite a hesitação, a sensação de estranhamento, e a experiência com o
inexplicável, com o sobrenatural.
Conclusão
Ao que parece, podemos identificar a partir do duplo nas narrativas aqui
investigadas, ainda que de forma sucinta: o caráter ambíguo que gera a hesitação, o
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efeito fantástico, as ideias de cópia, originalidade e a inexplicável existência do outro,
que ora parece um fantasma, ora um prenúncio da morte ou perpetuação da espécie.
Percebemos que tanto em Todorov quanto em Rosset, embora as leituras sobre o
desdobramento da personalidade sejam distintas - uma pelo viés do gênero fantástico, e
outra relacionada ao problema existencialista -, é possível enxergar o homem moderno
em sua angústia frente ao duplo como um substituto, basta recordarmos da condição de
Goliádkin em “O Duplo” de Dostoiévski.
Sem que tentemos definir ou restringir as narrativas aqui apresentadas como
alegorias, longe de nos aproximarmos de um significado, percebemos, no entanto, que o
tema do duplo é muito complexo tanto para a filosofia quanto para a literatura, sendo
que esta última acaba por fazer emergir questões da condição humana que assim como
uma obra fantástica, nos fazem hesitar entre o real e o sobrenatural, entre o que parece
tangível, compreensível e o inexplicável.
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35. II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. 35
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ÂNGELO NO MUNDO DOS MORTOS: O FANTÁSTICO NA OBRA DE
ALUÍSIO AZEVEDO
Amanda Lopes Pietrobom ∗
RESUMO
Aluísio Azevedo é conhecido por suas obras naturalistas que retratam a sociedade
brasileira do século XIX. Nelas, ele denuncia a corrupção da burguesia e do clero bem
como problemas enfrentados pelos escravos, pobres e imigrantes. Mas Aluísio Azevedo
escreveu também obras menores, mas não menos significativas, onde questões relativas
à ciência e à religião são os temas principais.
Em A Mortalha de Alzira, seu oitavo romance, a personagem Ângelo, criado em
claustro após ter sido abandonado às portas de um mosteiro, vive vampirizado por
Alzira, uma condessa que nutre uma intensa paixão pelo padre, mesmo depois de morta.
Diariamente, a alma de Ângelo é levada para o mundo dos mortos por Alzira, assim que
ele adormece.
Nesta obra de caráter ao mesmo tempo (e contraditoriamente) naturalista e fantástico de
Aluísio Azevedo, as figuras do cientista e do padre aparecem para explicar os fatos
insólitos vivenciados pela personagem Ângelo e esclarecer ao hesitante leitor (conforme
Tzvetan Todorov em sua obra Introdução à Literatura Fantástica), os acontecimentos
ocorridos com a personagem. Para Todorov, um evento fantástico só ocorre quando há a
dúvida se esse evento é real, explicado pela lógica, ou sobrenatural, ou seja, regido por
outras leis que desconhecemos. E é dentro da atmosfera do fantástico que ocorre o
enredo de A Mortalha de Alzira.
PALAVRAS-CHAVE: Fantástico; Tzvetan Todorov; naturalismo; sobrenatural.
A Mortalha de Alzira, o oitavo romance escrito por Aluísio de Azevedo, foi
publicado em 1893 e filia-se à literatura de caráter fantástico. Esta obra foi apresentada
inicialmente, assim como outras de faceta romântica, sob forma de folhetim, em 1891.
Aluísio de Azevedo, obrigado a viver de sua produção literária, acaba produzindo obras
pouca divulgadas que, no entanto, não deixam de ser significativas para a formação de
todo um substrato literário do século XIX brasileiro.
∗
Mestranda em Letras na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José
do Rio Preto, na área de Literatura Brasileira.
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A Mortalha de Alzira passa-se no século XVIII, na França, no reino de Luís XV,
nos arredores de Paris. Neste romance a intriga tem papel secundário e o objetivo do
autor é o de retratar uma época devassa. A questão do celibato clerical e suas
consequências para o indivíduo constituem um dos pontos centrais abordados pelo
ficcionista. Por tratar-se de uma ficção filiada ao mesmo tempo ao fantástico e aos
preceitos do naturalismo, o autor acabou abordando, também, a questão das doenças
nervosas decorrentes de um tipo de vida por ele considerada pouco saudável,
notadamente da histeria e de suas manifestações.
Embora a narrativa não se passe no Brasil, nem no século XIX, ela nos coloca em
contato com o tempo do autor, no contexto social brasileiro. No Brasil, o
comportamento devasso e corrupto do clero provocava uma posição anticlerical nos
autores do século XIX. Aluísio de Azevedo viveu, assim, em um período no qual a fé
lutava contra o livre pensamento e a confiança no progresso nas ciências. O autor
denuncia em alguns de seus livros a injustiça e a corrupção da Igreja, por exemplo, e
mostra comportamentos doentios e perturbados decorrentes do condicionamento
causado pelo meio sobre o indivíduo. Esse tipo de condicionamento é muito evidente no
romance A Mortalha de Alzira.
A narrativa começa com uma descrição de Paris e sua sociedade libertina. Um
fato rompe a descrição: o pregador La Rose, acometido por um ataque de asma, não
poderia pregar seu sermão de quinta-feira santa. Outro religioso deveria substituí-lo.
Surge no enredo a personagem Ângelo, criado em claustro por Ozéas, frei devasso que,
temendo o castigo divino, resolve fazer de Ângelo um novo messias para salvar a
França dos pecados da carne. Ângelo, em um de seus sermões, avista Alzira, mulher
aristocrática, aventuresca, rica cortesã de Paris. A partir desse fato, a vida de Ângelo
começa a mudar. Mesmo sendo um homem casto e puro, ele começa a sentir uma
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angústia sem saber ao certo o que aquilo significava. Ozéas, pressentindo que o jovem
padre estava caindo em perdição por causa de uma mulher, alertou-o para o mal que
aquilo poderia fazer a ele:
“ E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te
leve a sonhar estranhas venturas... bate com os punhos cerrados
contra o peito, dilacera as tuas carnes com as unhas, até
sangrares de todo o veneno da tua mocidade! Esmaga, à força de
penitência, toda a animalidade que em ti exista! Aperta os teus
sentidos dentro do voto de ferro da tua castidade, até lhes
espremeres toda a seiva vital! Fecha-te, enfim, dentro do teu
voto de castidade, como se te fechasses dentro de um túmulo!”
(AZEVEDO, p.67)
Com a morte de Alzira, o fantástico se instaura no texto. Alzira volta do mundo
dos mortos, todas as noites, para levar Ângelo consigo. Com o passar do tempo, Ângelo
não distingue mais o real do sonho. Passa a ter dúvidas de sua existência: não sabe mais
se sua vida real é a do claustro ou a do mundo de leviandades e devassidão ao lado de
Alzira.
Este romance de Aluísio de Azevedo filia-se ao texto La Morte Amoureuse de
Théophile Gautier, escritor francês do século XIX. No texto de Gautier, o sagrado e o
diabólico se cruzam também na figura de um padre, que busca por meio dos sonhos a
realização de seus desejos. Romuald (padre) faz um pacto e resgata a vampira
Clarimonde do reino das sombras e isso determina a fragmentação de sua personalidade
nos limites do sonho-pesadelo. Em A Mortalha de Alzira o padre Ângelo tem sua
personalidade fragmentada nos sonhos, após a morte da condessa Alzira; ele é
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“vampirizado” por ela durante os sonhos. Aluísio de Azevedo deixa explícita essa
filiação no início de seu romance, escrevendo
“Ao leitor
Este romance é nada mais do que um vasto jardim
artificial feito de frias, perpétuas e secas margaridas, mas todo
ele embalsamado pelo aroma de uma flor, uma só, que é a sua
alma – “La Morte Amoureuse”, de Théophile Gautier.
O AUTOR” (A Mortalha de Alzira)
Tzvetan Todorov cita em Introdução à Literatura Fantástica, que dentro da nossa
realidade regida por leis, ocorrências inexplicáveis por essas leis incidem na incerteza
de serem reais ou imaginárias. Para Todorov, um evento fantástico só ocorre quando há
a dúvida se esse evento é real, explicado pela lógica, ou sobrenatural, ou seja, regido por
outras leis que desconhecemos. Porém, este fato não pode sugerir a alegoria, pois, se o
leitor ou espectador interpretar o sobrenatural como uma metáfora, num primeiro
momento, ele perde o sentido fantástico. Deve haver uma pré-disposição do leitor para
negar a alegoria e hesitar quanto à realidade do fato.
A personagem Ângelo, vampirizado por Alzira durante o sono, vive uma vida
dupla: a de padre na vida real§ e a de homem boêmio, vida esta que ele vive no mundo
dos mortos. O padre deseja a extinção de seu rival e, por sua vez, o boêmio deseja a
extinção do padre:
“Com o correr dos sonhos, formou-se uma secreta
rivalidade entre o padre casto e o licencioso boêmio. Odiavam-
se. Cada qual desejava a extinção do seu rival. O presbítero,
entretanto, a ninguém confiara até aí o segredo das escápulas do
§
Realidade esta que conhecemos, regida pelas leis naturais.
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seu espírito, e principiava a habituar-se àquele duplo viver de
sacerdote virtuoso e de folião profano” (AZEVEDO, 2005,
p.209)
A própria personagem questiona a experiência que tem, hesita em acreditar (ou
não) nos fatos que vivencia e já não consegue mais distinguir em qual “realidade” ele
existe:
“ – Eu vivo nos meus sonhos, e mentiria se dissesse que os não
desejo... Desejo-os ardentemente; volto deles com a consciência
aflita e dolorida, mas durante as longas horas do dia, nada mais
faço que chamar pela noite, para poder correr aos braços de
Alzira!... Sonhar! Será vida o sonho?... E por que não?... Por que
supor que esta é vida verdadeira e a outra não? ... Por que, se
ambas têm a mesma razão de ser? (...) Qual das duas será a
verdadeira? Poderei afirmar que vivo nesta?” (AZEVEDO,
2005, p.229)
Segundo Todorov, há um fenômeno que pode ser explicado de duas formas, uma
pelas leis naturais e outra pelas leis sobrenaturais. Quando há a possibilidade de se
hesitar entre estas duas formas, é onde se cria o efeito do fantástico. E é dentro desta
atmosfera de hesitação que ocorre A Mortalha de Alzira.
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UNESP – Campus de São José do Rio Preto
O FANTÁSTICO E A LOUCURA NO SÉCULO XIX: DUAS PERSPECTIVAS
PARA O LEITOR IMPLÍCITO EM O CORAÇÃO DENUNCIADOR, DE POE E
EM O HORLA, DE MAUPASSANT
Ana Carolina Bianco Amaral*
RESUMO
O tema da loucura na literatura fantástica é vigente nas narrativas do século XIX. Em os
contos O coração denunciador, de Edgar Allan Poe e em O Horla, de Maupassant, a
instabilidade mental é revelada, por vezes, nos comportamentos dos personagens
centrais. O presente trabalho destacará os pontos narrativos que revelam duas tensões:
de um lado, a possibilidade da loucura do narrador em primeira pessoa, do outro, a
instauração do sobrenatural. Utilizaremos a teoria proposta por Todorov teórico para
salientar a maneira pela qual o leitor implícito pode preencher as lacunas textuais que
tendem ao módulo da interpretação.
PALAVRAS-CHAVE: Fantástico; Loucura; O coração denunciador; O Horla.
Sobre a loucura no fantástico e o leitor implícito
O tema da loucura na literatura fantástica é tipicamente representado, no século
XIX, por publicações que circundaram a transição do século das Luzes à visão
Romântica do mundo ocidental. O fantástico, compreendido como um gênero narrativo
que concatena, em uma única estrutura, o verossímil e o sobrenatural, é amalgamado
também, com outros recursos literários. A caracterização do desequilíbrio mental, por
exemplo, é um desses aspectos que o gênero tematiza. Algumas obras publicadas no
século XIX como O homem da areia (1817), de Hoffman, Aurélia (1854), de Nerval,
Vera (1874), de L’Isle-Adam, e O sonho (1876), de Ivan Turgueniev remetem, muitas
vezes, o publico leitor à margem de especulações entre uma explicação lógica ou de
*
Mestranda em Letras, Teoria da Literatura, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, UNESP/IBILCE, campus de São José do Rio Preto. FAPESP 2010/03566-7;
carol17letras@yahoo.com.br
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ordem irracional para os horizontes propostos na trama. O amor do jovem Natanael pelo
autômato Olímpia, o credo sustentado pelo narrador da revivificação da presença Vera,
já falecida, Aurélia, com as visões de um mundo desconhecido, e o sonho premonitório
que resgatou o pai do personagem turguenieviano tece, à primeira vista, a instabilidade
mental no comportamento do personagem fantástico.
Em O mundo maravilhoso do inexplicado: o fantástico como mise-em-scène da
modernidade, Batalha (2003) afirma que o louco recria o mundo, e gera uma nova
verdade, o que obriga a sociedade a pensar e a relativizar aquilo que torna a lógica da
prática humana comum. Por comportar um material de origens em zonas ainda não
exploradas na mente humana, o tratado da alucinação, do delírio e da instabilidade
mental é recorrente na literatura em questão, pois propõe questionar a racionalização, e
objetivar a compreensão das construções mentais do indivíduo defronte ao legado
ideológico instaurado pela sociedade temporal. Até o final do século XVIII, nos ares da
Revolução Francesa, e no início do século XIX, a loucura era tida como uma doença
física, genética, e não havia distinção entre o estado mental do ser humano e do físico.
A loucura desvenda as camadas mais obscuras do ser.
A literatura fantástica, ao atualizar a experiência do personagem mentecapto,
atua no espaço limítrofe da linguagem literária, pois, cedendo voz ao desvario, recria a
possibilidade de compreensão da doença silenciada pela sociedade em nome da razão.
Assim, esse desatino mental não é mais compreendido como parte negativa do homem,
mas como outro domínio de verdade, e contesta uma cultura dominada pela plenitude
do racional.
Mas qual processo de criação do fantástico conduz o leitor a compreender os
personagens da história como alucinados por presenciarem fenômenos estranhos, ou
estes serem de origem insólita? Encontramos em Todorov (2003) uma definição para o
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gênero em questão que prevê a participação do ledor no texto fantástico. Após realizar
um levantamento de obras do século XIX, especificamente nas produções narrativas, o
teórico enfatiza que o foco similar entre os contos e as novelas selecionadas é o
simulacro de realidade, designado, por ele, de verossimilhança. Ocorrendo a ruptura do
verossímil pela introdução de algum elemento sobrenatural e a condução do texto por
uma sequência de estratégias textuais, o narrador em primeira pessoa se questionaria
acerca da natureza dessa ocorrência inverossímil, e outorgaria suas dúvidas para o leitor
implícito que, anuente a essas proporções do texto, dialogaria, em reciprocidade com o
narrador, sobre a procedência do insólito. Tal processo é denominado de hesitação.
O leitor implícito todoroviano é designado por uma possível participação do
leitor real na narrativa que ocorreria quando o narrador em primeira pessoa persuadisse
esse destinatário a hesitar acerca da procedência dos eventos dispostos no enredo. No
entanto, utilizaremos a definição proposta pelo alemão Wolfgang Iser de leitor
implícito, por compreendermos que o ledor não só participa a convite do narrador, mas
preenche as lacunas cedidas pelo texto, a fim de atingir o grau de interpretação. O
teórico acredita que a estrutura discursiva, articulada em um escrito que projeta a
presença do receptor é denominada de leitor implícito, e destitui-se dessa forma, do
conceito de leitor ideal. Este estabelece que a leitura plena da obra é concretizada por
meio de um receptor adequado para cada texto. Assim, o escritor precisaria desenvolver
a literatura visando a um ledor que a compreendesse e a interpretasse como foi pensada
ao ser elaborada.
A arbitrariedade interpretativa do leitor implícito, como já dita, é parcial, pois a
aceitação das estratégias textuais, como sinalizadoras da leitura, implica no
desprendimento fracionário da liberdade dessa interpretação. Sendo, dessa maneira, por
meio do contexto situacional da história, que o receptor decifra os estratagemas pré-
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estabelecidos, e exercendo sua lógica conceitual, compara as premissas do texto com o
contexto.
Análise dos contos O coração denunciador, de Poe e O Horla, de Maupassant
Para explorarmos a atuação do tema da loucura no século XIX, selecionamos
dois contos: o Coração denunciador, de Edgar Allan Poe e a primeira versão de O
Horla, de Guy de Maupassant. O primeiro foi publicado nos Estados Unidos, em 1843,
enquanto o segundo, na França, em 1886, pós Revolução Francesa. O conto
maupassaniano discorre sobre um paciente clínico que relata sua experiência insólita
para alguns doutores. O homem conta sobre uma presença invisível, chamada por ele de
Horla, que o acompanhava em alguns períodos. O conto de Poe também apresenta o
discurso de um narrador-personagem que prestava serviços a um idoso. Furioso com a
catarata situada em um dos olhos do senhor, comete assassinato, mas afirma ouvir as
batidas do coração defunto. Ambos os contos demonstram o esforço do narrador, em
primeira pessoa, em convencer, no primeiro caso, outros personagens da trama, no
segundo, o narratário, que os eventos estranhos decorrentes no enredo são de ordem
sobrenatural, e que por isso, não sofrem alucinações, são mentalmente estáveis.
A narração de O Horla é iniciada por um narrador em terceira pessoa que
descreve o caso de um dos pacientes do doutor Marrande. O personagem que anunciará
os fenômenos insólitos aos colegas de trabalho do doutor toma a voz, transformando-se
em um narrador em primeira pessoa. A narrativa é descrita a partir da visão do paciente
possivelmente insano, como alega os outros personagens do enredo.
Senhores, sei por que vos reuniram aqui e estou disposto a
contar-vos minha história, conforme me pediu o meu amigo
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doutor Marrande. Durante muito tempo êle me julgou louco.
Hoje, duvida. Dentro em pouco vereis que tenho o espírito tão
sadio, tão lúcido, tão clarividente como o vosso, infelizmente
para mim, e para vós e para a humanidade inteira.
(MAUPASSANT, s/d, p.337)
Neste trecho, o preâmbulo do processo de preenchimento das lacunas discursivas
é iniciado. Não podemos responder por uma coletividade interpretativa de leitores, mas
o conto, com a elaboração das estratégias textuais pode tender o leitor implícito a um
tipo de interpretação. Esse parágrafo constitui dois pólos. De um lado, a negação de
qualquer tipo de instabilidade mental, e do outro, a hipótese de loucura. Da mesma
forma, o conto O coração denunciador abarca esses dois processos:
É verdade! sou - nervoso - , eu estava assustadoramente nervoso
e ainda estou; mas por que você diria que estou louco? A doença
tinha aguçado os meus sentidos - não destruído - , não
amortecido. Acima de tudo, aguçado estava o sentido da
audição. Eu escutava todas as coisas no céu e na terra. Eu
escutava muitas coisas do inferno. Como posso estar louco?
Ouça com atenção! E veja com que sanidade, com que calma
sou capaz de contar a história inteira. (POE, 2004, p.280)
Os dois personagens centrais dos contos norteiam a razão e a loucura, iniciando
os relatos de forma segura e estável, e intentam moldar um caráter lúcido para seus
comportamentos. Em Poe, o narrador instila o narratário acreditar que não sofre de
insanidade mental: “loucos não sabem de nada”. (POE, 2004: 280). Como não há
menção de reciprocidade de diálogo com outros personagens, os rebates sobre essa
loucura podem ser uma projeção do próprio inconsciente desequilibrado, ou até mesmo
a iteração da negação de insânia pode derivar da necessidade de expressão das suas
emoções, uma vez que o texto aborda a existência solitária dessa primeira pessoa. Em O
Horla:
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Mas quero começar pelos próprios fatos, os fatos sem
comentários. Eis-los: Tenho quarenta e dois anos. Não sou
casado, minha fortuna é suficiente para eu viver com um certo
luxo. Habitava, pois, uma propriedade à beira do Sena, em
Biessard, perto do Ruão. (MAUPASSANT, s/d, p.338)
o narrador anuncia que não opinará sobre fatos do relato, sugerindo um distanciamento
opinativo. Esse afastamento tende a justificar a veracidade do fenômeno sobrenatural
que ocorrerá. Da mesma forma, o narrador do segundo conto revela:
É impossível dizer como a idéia entrou primeiro no meu
cérebro; mas, uma vez concebida, perseguia-me dia e noite.
Objeto, não havia nenhum. Paixão, não havia nenhuma. Eu
amava o velho. Ele nunca me fizera mal. Ele nunca me insultara.
Pelo ouro dele eu não nutria desejo. Penso que foi o olho dele!
Sim, foi isso! Tinha o olho de um abutre – um olho azul pálido
recoberto por uma película. Sempre que pousava sobre mim,
meu sangue congelava; e assim, por etapas – muito
gradualmente -, decidi tirar a vida do velho e, dessa forma
livrar-me do olho para sempre. (POE, 2004, p.280)
O personagem central tenta convencer o narratário de sua inculpabilidade, não
sabendo explicar o porquê foi inspirado pelo desejo de assassinar o senhor que prestava
serviços. Todas essas justificativas formam, também, o cenário que as premissas
textuais criam a fim de influenciar a opinião do leitor implícito, num exercício de
raciocínio lógico, e que tende, na perspectiva do narrador em primeira pessoa, a
promulgar sua inocência. Devemos salientar que a narrativa é sopesada pela pessoa que
vivencia os fatos, e que todas as informações nos são cedidas pelo olhar do narrador que
pode estar equivocado acerca da procedência dos acontecimentos do enredo, os
omitindo ou os dissimulando. Em O Horla:
Fez um ano no último outono, invadiu-me de repente uma
espécie de inquietude nervosa que me mantinha acordado noites