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                  AFONSO BEZERRA




                  CONTOS SERTANEJOS




FONTE: BEZERRA, Afonso. Ensaios, contos e crônicas. Pesquisa, Introdução e
Notas de Manuel Rodrigues de Melo. Rio de Janiero: Pongetti, 1967. p. 31-74.
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                          PRIMEIRA COMUNHÃO

        O sol nascera alegremente!... Joãozinho, que ficara órfão aos 7 anos,
despertado pelo trinar dos passarinhos, levantou-se pressuroso, correu à mamãe,
que fazia o café, e lhe pediu a roupa branca da primeira Comunhão, a fim de
preparar-se antecipadamente para receber a Jesus, como tanto desejava.
        A mãe, jubilosa, foi à mala e tirou a roupa, que havia sido um presente de
seu padrinho.
        Joãozinho vestiu-se cuidadosamente e foi de novo à sua mãe, pedir-lhe
consentimento para sair.
        Esta lhe disse:
        – Quando estiveres em forma, não converses e observa todo o respeito na
igreja, para seres elogiado por Jesus; e, se assim fizeres, não sairás da escola.
        Joãozinho prometeu-lhe o melhor comportamento naquele dia, em que uma
alegria desconhecida dele se apoderava.
        Quando chegou à igreja, aprecia-lhe estar realmente no céu, a contemplar o
Criador do mundo; o soar compassado do velho órgão, com a voz agradável das
cantoras, iam perder-se na floresta que circundava a decadente aldeia e depois
vinham consolidar-se com os pensamentos de Joãozinho, para ainda mais o
alegrarem.
        Enquanto Joãozinho estava na igreja, ansioso de receber Jesus pela
primeira vez, sua mãe lembrava tristemente o marido que a deixara ainda moça,
levado pela mão assassina de um cossaco da linha férrea, ficando limitada a viver
dos parcos vinténs que lhe rendia um sitiozinho que herdara.
        No meio dessas imaginações foi sentar-se ao limiar da cabana, deslizando-
lhe nas faces, entristecidas pelo rigor da viuvez, as primeiras lágrimas do dia,
chorando o esposo que tranquilamente jazia sob a fria lousa, no cemitério da
aldeia. Calou-se, depois começou a olhar a movimentação das águas do rio, que
se desenrolavam céleres, em demanda do oceano.
        Pôde libertar-se daquela tristeza lembrando a felicidade que visitaria sua
casa com a primeira Comunhão do filho.
        Correu ao oratório, já velho, que tinha apenas duas imagens muito
enfeitadas e, depois de uma prece fervorosa, exclamou:
        – Não sou ainda tão infeliz, porque tenho o consolo da Religião Católica.
Sem isto me julgaria infeliz ao extremo.
        O sol já se achava no meio do céu, quando Joãozinho, depois de terminada
a missa, dirigiu-se para casa, jubiloso, com a alma cheia das cerimônias religiosas
do dia.
        O caminho, marginado de carnaubeiras, parecia-lhe adrede preparado.
Nesse arroubo avistou sua humilde casinha, que também não lhe pareceu menos
bela!...
        Apressou os passos, para logo falar à querida mãe, que, ao vê-lo, o
abraçou carinhosamente, enquanto ele contava os principais acontecimentos da
festa e disse:
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     – Jesus não elogiou ninguém, ainda que nos houvéssemos todos
comportado bem.
     A mãe, sorrindo da ingenuidade dos 7 anos do filho, respondeu-lhe:
     – Meu filho, Jesus elogiar-te-á no céu, quando lá estiveres. Preparou-se a
mesa e continuaram a conversar alegremente.
     Carapebas.


      O Beija-Flor, Rio, 16-4-1925.
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                                  O ORVALHO

        A natureza despertara do sonho da noite. No jardim da chácara as flores
pareciam sorrir, maravilhosas, ante a poesia risonha daquela manhã de inverno!...
Lulu e Lili, atraídos pelo aroma sutil do jardim, ainda muito cedo, entraram lá, para
contemplar de perto a placidez de seu retiro de flores, que tantas vezes tinha dado
distração a seus espíritos infantis.
        E brincavam, joviais, com as vestes umedecidas pelas gotas cristalinas de
orvalho, presas como maquinalmente às plantas que, dispostas em alamedas,
ornavam o prado. E entretiveram-se muito tempo com aquelas gotas de orvalho,
até que a curiosidade despertou Lili do sono de admiração em que se achava.
        – Que é o orvalho? – perguntou, curiosa, ao irmão.
        Lulu, com um sorriso de acanhamento, silenciou ante aquela pergunta que
rompia aos olhos da irmã a cortina que encobria sua ignorância.
        Súbito uma hipótese se formou em seu espírito de criança e, não contendo
as palavras, ele disse:
        – Lili, o orvalho se origina do pranto dos anjinhos.
        E, apontando uma gota com o mimoso indicador, continuou:
        – Cada pingo destes é uma lágrima copiosa que se escoou dos olhos
cintilantes de um anjo, quando, compassivo, contemplava as misérias do mundo.
        Lili exclamou, carinhosa:
        – Como são compassivos!
        Lulu continuou, alegre:
        – Caídas as lágrimas de seus olhos puros, descem através das brumas do
espaço, tristes como sua origem, e vêm pousar nos galhos hospitaleiros das
grandes árvores e ornar o tapete verde-escuro das pequeninas selvas, extendido
na superfície da Terra. E assim permanecem, até que o sol os extinga com seu
cetro de fogo.
        Um beija-flor passou célebre, osculando uma flor rósea que pendia, úmida,
da trepadeira sob que estavam acolhidos.
        Logo após um outro pássaro iniciou melancolicamente a primeira estância
do seu tristonho gorgeio. O silêncio reinou ali um momento.
        As duas crianças, batendo com os dedinhos delicados as últimas gotas de
orvalho que ainda restavam, já tépidas, em algumas trepadeiras do jardim, e
continuando a conversar, riam-se, riam-se muito.
        Grossas bátegas de água tombaram ao chão, obrigando-os a abandonar
aquele ninho de flores.
        E, como a chuva continuasse forte, os dois inocentes foram cantar, no
interior do lar paterno, a grandeza do Criador, caracterizada na poesia risonha
daquela manhã de inverno!...
        Carapebas.




O Beija-Flor – Rio – 1º de julho de 1925.
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                                   O EREMITA
                                        Ao padre Mata, talento e virtude.

       Alta noite. Com o crucifixo aconchegado ao peito, velando-lhe o leito
mortuário, velha tábua nua, companheira de suas vigílias, apenas à luz
bruxuleante do pequeno candieiro, o eremita agonizava naquela solidão, onde não
havia, sequer, uma pessoa que pronunciasse, ao menos, o nome de Jesus!
       A agonia aumentava... O santo solitário sentiu que ia, em muito breve,
morrer... Mas, assim, tão só?! Ele, que tantas vezes tinha levado os socorros da
religião de Cristo nos últimos instantes de tantos infelizes?!... Era penoso!... Duas
lágrimas, alvas como a pureza de seu coração, se esvoaçavam naquelas faces
beatíficas, indo se perder na longa barba encanecida que lhe emprestava uma
compostura venerável.
       – É que aquele apóstolo, que tinha vivido uma vida inteiramente espiritual,
também se ressentia, de, ao deixar a terra que edificara com a excelência de suas
virtudes, não haver uma pessoa que lhe vigiasse os últimos momentos de vida.
       Não era possível – o supremo Rei não abandona jamais os seus servos.
       Quando o pio missionário ia desfalecendo, placidamente, para que a sua
alma sem a mais leve mancha se separasse de um corpo lacerado por tantas
mortificações, uma claridade sobrenatural inundou a pequena cela, indo ofuscar o
brilho apagado de seus olhos.
       – Era um querubim, enviado por Deus, que vinha assistir a exalação de seu
último suspiro!
       Morreu... A voz do mensageiro celeste, no ofício dos mortos, ecoou por
aquelas florestas longínquas que pareciam chorar, no farfalhar melancólico de
suas folhas, o vácuo impreenchível que a seta da fatalidade acabava de abrir em
seus domínios seculares...
       Logo depois, o velho monge, já vestido da juventude eterna do espírito,
lançou um olhar de despedida àquelas paragens que o tinham hospedado durante
mais de cinqüenta anos e, ao lado do anjo, partiu para receber no céu o prêmio de
sua abnegação.




Letras Novas – Natal, setembro de 1925.
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                             RASGA-MORTALHA

        Pelos meses cálidos do estilo, a travessia dos sertões nordestinos, feita em
costas de animal, e palmilhando-se lugares de topografia instável, cheios dos mais
dispares acidentes geográficos, torna-se penosamente esfadonha.
        Galgam-se cabeços e lombadas, secos e pedregosos, prenhes de cruéis
dificuldades para o animal estropiado; transpõem-se córregos e riachos derreados
em pequenos despenhadeiros, formando ridículas cachoeiras; vadeiam-se rios
periódicos, a apresentarem leitos muitos alvos, aqui, numa porção mais fértil,
recheados de vazantes de feijão e de batatas, ali, um perímetro nuamente
arenoso, nodoado, apenas de longe em longe, pelas moitas verdejantes de
algumas sarças dispersas desordenadamente.
        Quase sempre, passados esses terrenos mais vulgares, chega-se ao
espinhaço gigantesco de uma serra, espraiada como um animal disforme,
adormecido bizarramente, na impassibilidade impermutável de um sono de
milênios.
        Ensaia-se a subida, arrostando temerariamente os múltiplos perigos de
uma rechã atulhada de grotões e precipícios, e depois de algumas horas de um
ascender verdadeiramente enervante, dominando-se com um olhar as majestosas
perspectivas em derredor, continua-se a viagem, numa variante agradável, através
de um solo uniformizado, de uma fertilidade, às vezes, perdulária, adaptável às
mais delicadas culturas.
        E assim, ao amplexo causticante de um sol senegalesco, percorrem-se
quatro a cinco léguas, e por vezes mais, em caminhos rasgados no seio inóspito
de uma faixa de mato, por picadas sombrias e desabitadas, onde não se encontra
a esperança de uma cacimba, para matar a sede devoradora, com a esmola de
um copo d’água.
        Às vêzes, após meio dia de dura caminhada, quase sempre nas
proximidades de rios e lombadas agricultáveis, defronta-se o ponto de descanso
ce encardidas pelo lôdo das invernias passadas, um alpendre a meio esburacado,
ou latada de folhas secas de oiticica, e dominando tudo, a garrafinha simbólica,
pendente de uma vara, que encima a cumieira baixa e empenada.
        – Pouso de matuto e venda de cachaça. Diz logo o passageiro que
descortina esses sinais, erguendo-se do matagal descarnado, à margem do
caminho, e sem mais arrodeios encosta para perto:
        – Ó de casa.
        Bota abaixo se é tropeiro, empilha as cangalhas no alpendre, cura as
pisaduras à mularada, e depois de matar o bicho com uma boa golada de
aguardente, dá água aos animais, lava-os e deixa-os no peador, e após uma
sóbria refeição – carne, farinha e rapadura – fica-se ali sesteando, na rede de fio
da terra, armada de um esteio para outro, a ruminar saudades de seus mundos,
assobiando ou solfejando velhas modinhas sertanejas, até uma modorra calma
dissipar-lhe essas miragens nostálgicas.
        Mais tarde, quando o sol já declina para o leito crepuscular do ocidente,
ainda ao banho escaldante de uma temperatura de ferver, o passageiro ergue-se,
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carrega a sua tropa, ingere um novo trago da branquinha, e papagueando uma
despedida parca e invariável – “até a volta” ou “até outra vista” – prossegue na
viagem, num silêncio que apenas perturba com o estalar repetido do gurinhém, ou
a articulação do nome de um animal do coice que abandona a trilha traçada pela
guia.
       Às vezes, o caminheiro que viaja mudo e despreocupado por caminhos
tortuosos e maus, obstruídos em parte por moitas pequeninas de um matagal
enfesado – marmeleiros raquíticos e pereiros pigmeus – depara ao voltear uma
curva, o vulto desconhecido de outro transeunte.
       – Bom dia, amigo.
       E passados os momentos rápidos daquela saudação tão amistosa entre
pessoas que jamais se viram, seguidos de ligeiros informes a respeito de uma
errada qualquer numa encruzilhada de veredas, continuam em direções opostas,
desconhecidos, indiferentes ao destino um do outro, no passo tardo dos animais
de carga, levando atrás as areias movediças do caminho, desagregadas pela
ausência de inverno.
       E assim, nesse ritmo imperturbável de surpresas deslumbradoras e
enervantes, nessa translação contínua de coisas e de fatos curiosos, vai a vida
nos sertões, sempre a mesma, de algum modo, nas suas usanças e costumes, e
ao mesmo tempo cada vez mais encantadora, para quem nasceu nessa região tão
malsinada pelos que não lhe conhecem as belezas.

                                      ***

       Aos primeiros dias de janeiro, sem pingo de chuva, bati durante mais de
uma semana de viajar contínuo, os tabuleiros ásperos e pedregosos do alto sertão
do Rio Grande do Norte.
       Era um descontar de pecados aquele peregrinar constante, por um solo
cheio de contrastes, à ardência estafante de um sol tropical, ou à escuridão
temerosa de noites sem lua, apenas parcamente iluminadas pelos pingos de luz
das miríades de estrelas penduradas num firmamento lutuoso.
       Sol escondido, rompendo um terreno inclemente, andávamos num estradão
seguido, sem volta, como uma avenida estreitíssima, desnivelada, cheia de
mínimas e intermitentes depressões, e soalhada, de longe em longe, por
acúmulos espessos de pedras, dispostas atrabiliariamente, num amontoado
chocante.
       Muito adiante, ao atravessarmos o curso sinuoso de um riacho conhecido,
passando à nossa frente em vôo rasteiro, no seu “tic-tic” agourento, um corujão
rasga-mortalha pousou nalgum galho de catingueira próxima e lúgubre, com
acento mortuário, desferiu as notas desentoadas de seu guincho horripilante.
       – Bem boa – advertiu detrás o arrieiro – anda a gente em paz por esses
ermos, e semelhante zoada nos ouvidos. Vá rasgar a mortalha da mãe,
esconjurado.
       – Ó Quirino, que mal nos vem, em que cante um pássaro?
       – Como, patrão?... O senhor ainda é muito novo, não conhece o que é a
vida, não. Fale com esse cabra velho, que aqui nasceu e se criou, e aqui inteirou
setenta e um janeiros, que ele lhe conta a história direito. Corujão é bicho
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endemoniado. Não abre aquele bico à-toa, não. É bicho agourento dos trezentos
diales.
        E encostando, com um estalo de relho, o jegue de carga pra mais perto de
minha mula rosilha de montada:
        – Nas primeiras chuvadas de noventa, no dia de S. Sebastião, foi-se
embora de uma vez, pegado por um curisco, o coronel Feijó das Cacimbas.
        – Ora, “seu” Quirino, que têm os corujões com a morte do coronel?
        O meu companheiro, acurvando-se no meio da carga de macas, e pondo
uma acentuação mais grave nas palavras, segredou-me quase ao ouvido:
        – Espere ai, patrão, que eu não acabei a história. Na véspera desse dia, de
noite, um excomungado daquele dera dois ou três rasgos, na cumieira da casa
grande da fazenda, onde morava o homem.
        E depois, com intonação categórica:
        – Rasga-mortalha é bicho danado. Cantou perto da gente, aparece coisa
ruim. Não tem que ver.
        Já eram mais de sete horas. Tomados desse receio instintivo que nos
invade o espírito, ao rasgarmos, em noite de escuro, o seio tenebroso da floresta,
continuamos a viajar silenciosamente, ao longe1 da estrada silenciosa,
despertados apenas, de quando em quando, pelo canto de alguma ave notívaga.

                                                    ***

       No outro dia, logo ao me levantar, o velho condutor interpelou-me, com um
sorriso aguado de melancolia:
       – O que foi que eu disse ontem, patrão, no caminho, quando aquele corujão
cantou? Pois tá hí, a rosilha de sua sela tezinha de cascavel...
       – Rasga-mortalha é bicho danado.
       Carapebas.




Diário de Natal – Natal, 4 de fevereiro de 1928.




1
 No original está: “ao longe da estrada”; diga-se: “ao longo da estrada, ao comprido”. (nota de Manuel
Rodrigues de Melo)
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                                    A CRUZ DA ESTRADA
                                                            Ao Nilo Pereira

         Estio forçado. As fumaças das queimadas de xiquexique e macambira no
tratamento do gado, e de coivaras na broca de roçados se distribuíam como um
imenso véu cinzento, desdobrado em toda a extensão do firmamento, donde se
coava, em projeções desanimadoras, a impassibilidade de um céu descampado,
sem a esperança de uma nuvem pesada.
         Em companhia de um capoeira de Santa Cruz do Traíri2, meião de altura e
bem apessoado, palrador como periquito em coroa de juazeiro e avezado a
bravatear façanhas, eu viajava rumo do sertão do Rio do Peixe, no estado da
Paraíba.
        Inesperadamente, deparei-me com uma cruz tosca feita de dois pedaços de
trilho de caçamba, sustentada no vértice por um entrançado de arame liso,
encimando um montículo de pedras dispostas desordenadamente, de envolta com
porções de uma argila avermelhada, no descampado de uma caatinga mal
vestida, em que vegetavam, à custa de uma parca absorção de reservas
vivificadoras, juremas pretas, pereiros e marmeleiro de roupagens estragadas.
         Era a algumas braças da variante ao antigo traçado da estrada de ferro.
         Aquela imagem grosseira do símbolo augusto da Redenção, que vem
guiando há quase dois mil anos, os heróis do cristianismo, nos mais belos triunfos
do espírito, ali tão só, naqueles escampos de flora depauperada pela avareza de
um solo pobre de substâncias nutritivas, quando míngua o banho procriador das
invernias abundantes, parecia implorar, da sua posição enfadonha de súplica
contínua, a quem transitasse por aquelas paragens torrefeitas ao hálito plutônico
do mormaço do meio dia, a esmola de uma prece pela alma simples e obscura
que dormia despreocupadamente, à sua sombra, a modorra sem sonhos do além-
túmulo.
         E eu, num instante, como que contemplei, na rija impassibilidade daqueles
pequeninos braços de aço, constantemente abertos, a resistência granítica da
muralha da Fé, agüentando imutável todos os combates pérfidos e levianos dos
doidos vagalhões da impiedade.
         Ao defrontarmos com ela, lá no seu posto de sentinela de uma sepultura
abandonada, perto do caminho em que nossos animais estropiados pisavam às
apalpadelas, o meu condutor sofreou nas cabeçadas do freio a mula cargueira que
carregava as minhas malas e, sem dizer palavra, marchou na direção da sepultura
humilde da estrada.
         Lá chegado, ajoelhou-se, fez o “pelo sinal” atordoadamente, arremedando
com o polegar meio acurvado, em linhas claudicantes, três cruzinhas mal feitas,
respectivamente, na testa, na boca e no peito, conforme o rito cristão; inclinou a
cabeça e deixou-se estar assim alguns minutos, mãos postas, naquela posição
piedosa, balbuciando, acanhado, uma oração ininteligível.
         Terminada esta, o cargueiro benzeu-se, desenhando com a destra estirada
a prumo uma cruz disforme da testa ao abdomen; com a mesma ligeireza e
2
    Santa Cruz do Inharé (nota de Manuel Rodrigues de Melo). [Santa Cruz-RN].
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instabilidade de linhas ergueu-se, de um salto, caiu de joelhos nas ancas da russa,
acomodou-se no saco das redes que servia de meio de carga, sustava com uma
mão as cabeçadas e com a outra o cabo da trança e ainda calado sob o peso
daquela emoção religiosa, tocou pra frente no caminho áspero.
       Surpreendido com seu gesto estranho de profunda veneração, perguntei-
lhe quem jazia ali naqueles ermos e que lhe merecia tanto respeito.
       O mulato explicou com uma entonação de voz, pela qual não era preciso
ser-se psicólogo muito arguto para apreender facilmente o acento de tristeza
sincera que lhe ia nas palavras, dolorosamente:
       – Aqui, seu moço, no camarada do mês de Senhora Santana, da era de
treze, eu era molecote sambudo, um apontador da linha de ferro matou meu pai,
por causa de um engano de dois vales, com doze punhaladas. Não trocaram
palavras.
       E ainda com a mesma acentuação magoada nos vocábulos:
       – E pra vosmecê ver: não teve uma ave-maria de penitência. O doutor da
residência passou-lhe a mão pela cabeça e o que é certo é que a coisa ficou
encoberta em sete capas e o criminoso aí soltinho na rua, como se nada deste
mundo tivesse feito.
       – Ele ainda continua em liberdade, Camilo?
       A esta pergunta a fisionomia de meu companheiro se iluminou subitamente
de uma como tranqüilidade tigrina, resultante do cumprimento altaneiro de um
dever escabroso. E baixando a fronte, pra não me fitar, como costumava fazer
sempre que finalizava a narração de alguma fúria sua, retrucou com um risozinho
desbotado de amarela ferocidade:
       – Inhôr não. Anos depois, já frangote taludo, topei com ele numa volta de
caminho, casquei-lhe uma ponta de espada nas cruzes até o enterço, e botei-o
para a terra da verdade.
       Já passava de meio dia. Adiante, a casa do descanço, assentada no
cocuruto de um cabeço descalvado, nos apresentava em meio o brazeiro do sol, a
hospitalidade atraente de seu alpendre, derreado preguiçosamente ao amparo de
quatro esteios velhos de angico, toscamente lavrados.



Em 31-8-928.
Diário de Natal – Natal, 26 de fevereiro de 1928.
Vida nova – Rio, 20 de outubro de 1928.
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                                O VIAJANTE...
                                       Ao Luís da Câmara Cascudo

        Era nos dias calamitosos da seca de 15, um dos maiores flagelos que,
nesses últimos tempos, têm assaltado os sertões nordestinos.
        No céu, sem nuvens, de um azul desbotado, pairava a serenidade irônica
dos estios prolongados, numa indiferença implacável aos reclamos da terra,
exsicada pela ausência absoluta de chuvas.
        Em baixo, no solo despido e poeirento, descortinava-se o quadro
compungente de uma vegetação tuberculosa, completamente desnuda, a ostentar,
numa sequência desanimadora de secura, aos olhos de quem passasse, os
cenários mais desoladores.
        Nos tabuleiros tristemente nus, sem o recurso de uma haste de pasnasco,
devorado logo aos primeiros paroxismos da desgraça pela gadaria faminta,
apenas, aqui e ali branquejava, como uma nota de grandeza naquelas regiões
acabrunhadas pela torreação do solo criador, a brutalidade granítica dos serrotes,
feitos poderosas reservas caloríficas ao ósculo calcinante de um sol abrasador.
        Ao trote macio da mula ruana bem ajaezada, rumo do sertão cearense,
vindo da capital do Rio Grande do Norte, um viajante de Recife devorava os
quilômetros do caminho, absorvido em mil planos comerciais, num completo
alheamento dos traços de miséria que a seca imprime, em ásperas mutações, no
rosto desfigurado das paragens sertanejas.
        Adiante, o sertanejo Firmino, acossado pela miséria que campeiava em seu
lar desventurado, deixava a esposa aflita, a consolar a filharada faminta e nua, e,
igualmente, em tiras e faminto, saía sem destino pelo mato, para procurar no
âmago dos campos ermos e sem vida, alguma coisa que desse a comer àquela
prole desgraçada.
        E infestou toda a redondeza, subiu cabeços descalvados, embarafustou-se
em grutas de serras, bateu todo aquele trato de terra incinerado pelas chamas da
fatalidade climática, à cata de uma ave qualquer capaz de se comer, de uma caça
a tombar de magra e, por fim, já lhe servia até o cadáver nauseante de uma rês
morta de consunção, há pouco tempo. Nada disso porém. Apenas encontrou
arcabouços, em adiantado estado de putrefação, os quais serviam de repasto, em
que se banqueteavam, em orgulhoso requinte de prodigalidade, gordos urubus de
parceria com um ou outro cão do serviço de gado que cambaleante e espectral,
disputava, algumas vezes, aos imundos voadores, aqueles laboratórios
repugnantes, em que se realizavam as reações nauseantes da decomposição.
        O sol no seio de um terreno escampado, sem o amparo agradável das
sombras compactas, numa profusão satânica de chispações ardentes, envolvia
tudo numa temperatura de fogo, e ressequia a laringe e estalava os lábios de
quem caminhasse a pé, àquelas horas, ao beijo ígneo de seus raios.
        O sertanejo, sedento, percorreu com as fauces a arder, todas as aguadas
conhecidas. Tudo seco. Nem um pingo do precioso líquido.
        Até o poço do “Olheiro das Grotas” escancarava a grande boca circular
torrada, cheia de uma lama escura, à indiferença dos céus, numa súplica
bizarramente triste.
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        Firmino tocou de volta mudo, desanimado ante a grosseria de tantos
sofrimentos, com a garganta a explodir de sede, transido de fome.
        Ao chegar, já tarde, encontrou a mulher a chorar vencida pela dor
lancinante, sentada sem alentos a um canto da saleta de ramo esburacada.
        Morrera de fome o caçula de poucos meses. Os seios maternos, exauridos
pela ausência da alimentação, não tiveram, no momento, uma gota de leite para
salvar a fragilidade daquela existenciazinha desgraçada.
        O sertanejo, desapontado com tão cruel imprevisto, saiu para o terreiro,
enquanto, num choro intermitente, os outros filhos, enlaçando-lhe as pernas,
pediam-lhe freneticamente um comerzinho. Sentou-se num toro de carnaúba à
porta da choupana, e, num instante em seu coração de pai infeliz abriram-se
abruptamente as chagas dos mais atrozes sofrimentos íntimos.
        Nesse momento, um moço desconhecido, parando a montaria, pediu para
ensinar o caminho do Crato. O dono de casa satisfê-lo prontamente e, após
historiar o drama doloroso de sua dor, implorou-lhe uma esmola cheio de
acanhamento, e sem dar tempo a que o passageiro respondesse, acrescentou
com tristeza, como se quisesse traduzir na voz toda a amargura que lhe recortava
a alma sofredora:
        – Vosmecê veja que é muito triste para um pai ver assim morrerem os filhos
à míngua de um bocado, e ele não ter jeito a dar. Mas que se há de fazer...
        E uma onda de pranto irrefreável susteve-lhe a palavra violentamente. A
mágoa do inditoso filho do sertão, que capitulava à dureza dos revezes, desfez-se
numa caudal impetuosa de soluços, inconsolavelmente.
        O recém-chegado olhou para o interior da palhoça arruinada, onde uma
mãe cobria com suas lágrimas o cadáver do seu filho que não pudera salvar com
seu leite. Depois, presenciou lá fora um sertanejo moço tendo desenhados
nìtidamente nas faces escavadas os estigmas dolorosos da fome, quedar inânime
ante a lamúria de criancinhas cadavéricas, numa ostentação compungente de
pequenas ossaturas agudas, e ameaçadas também da mesma sorte,
        Mudo, tomado de grande comoção, puxou, num gesto rápido, maquinal,
desataviado, a carteira recheada, passou-a ao Firmino e, antes que este
ensaiasse o mais simples agradecimento, retirou-se para não mostrar as lágrimas.
        O sertanejo, perplexo, ainda procurou falar-lhe, mas já ele desaparecia na
curva do caminho.




Diário do Natal-Natal, 27-3-1928.
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                              A RESSUREIÇÃO
                                        Ao Cônego Mélo Lula


        E enquanto a plebe ignara turbilhava, doida, pelas ruas, o coração materno
de Maria se transportava em lances de agonia e as mulheres santas molhavam
com suas lágrimas o lugar do sacrifício, ao lado do discípulo amado, o Deus
crucificado abandonava no peito ensaguentado a fronte macilenta e, Redentor do
gênero humano, expira pela salvação dos homens.
        A natureza como que experimentara um colapso formidando. A terra toda
tremeu, agitada por uma como convulsão titânica dos elementos. Consumara-se
um deicídio.
        No espírito de Madalena, a sublime convertida, ficaram, em visões
horríficas, todas as cenas sanguinárias da paixão do Mestre, amenizadas apenas
pela promessa consoladora da ressurreição. E na madrugada do terceiro dia, a
magna pecadora, munida de bálsamo e outras essências, partia, com duas
companheiras, para o horto em que José de Arimatéa sepultara o corpo de Jesus.
        Dolorosa surpresa: o sepulcro, aberto, estava abandonado.
        – Os fariseus roubaram o corpo do Nazareno para profaná-lo. Suspira
Madalena numa vertigem de desalento.
        Chegara ao epílogo a tragédia hedionda do Calvário, o maior e o mais
horrendo desvario de todos os que cometera essa humanidade ingrata que
perpetrara o suplício de um Deus, feito homem para redimi-la da culpa dos
primeiros pais.
        A paixão do Cristo havia sido um drama doloríssimo de sofrimento. Desde
que o discípulo mau imprimira nas faces divinas do Mestre o ósculo letal da
traição, que ele começou a ser alvo dos maiores doestos e violências.
        Os algozes culminaram nos excessos de sua impiedade.
        Conduzido a Amáas, Caifás, Pilatos, Herodes, recambiado àquele, a
jornada do Divino Réu foi toda uma tempestade de insultos e chacotas, de chufas
e grosserias de poviléu estulto, a vociferar em volta da figura serena do Messias.
Um juiz pusilânime, aos anseios da turba fanática, lava as mãos criminosas como
se a ação do cristal corrente alcançasse as imundícies do espírito, e covarde, e
hipócrita, e infame, dissimula na condenação do Sublime Inocente. Começam para
o Cristo os momentos amargos da via dolorosa.
        Açoites brutais, escárnios de toda sorte, palavras irreverentes, escarros no
sagrado rosto, a coroa de espinhos, a esponja de fel, tudo isto tolerou com
paciência imperturbável o Divino Condenado, nessa caminhada de dores, até o
topo do monte que servira de patíbulo para a imolação de um Deus. Aí ficou-nos a
lição maior da passagem do Cristo pela terra.
        E quando, com a presença dos apóstolos, se verificou que apenas estavam
no sepulcro os lençóis e o sudário que serviram ao Sagrado Morto, a tristeza da
discípula se dissolveu numa torrência diluvial de lágrimas.
        Mas Jesus reservara à mulher um papel sublime de amor no drama
crudelíssimo da paixão.
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       E Madalena chorava, de pé, olhos fitos no sepulcro. Subitamente alguém
lhe diz:
       – Mulher, por que choras?
       E ela com expressão de sofrimento:
       – Senhor, se fostes vós quem o tirou, dizei-me onde o pusestes, e eu irei
buscá-lo.
       – Maria. Foi a resposta de Jesus, que não quis afligi-la por mais tempo.
       Sim, era Ele realmente. Era o Bondoso Jesus, que baixara à atmosfera
infecta de uma sociedade viciada, para libertá-la da podridão e do erro e integrá-la
nas delícias da graça e da renúncia cristã.
       Jesus ressuscitou.




      Diário de Natal – Natal, 8-4-1928.
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                                             VISAGEM *

       – Quando eu era rapaz moço, patrão, também pensava assim como
vosmecê: não acreditava em alma do outro mundo, não.
       Se alguém me contava um caso de assombramento, eu me cantava logo
com as doidices: qual nada; isso é “busão”. Um homem mesmo não anda vendo
visagem, a toda hora. Eu só acredito em alma aparecer, quando uma gaiata
dessas me apertar as goelas, até eu botar um palmo de língua de fora.
       Ainda de uma feita, eu me andava peneirando pra banda da Ritinha, a
minha primeira mulher, que Deus tenha em bom lugar, estava se fazendo quarto a
um menino do “Fulozino” das Pitombas, e eu disse tanta besteira, por via de um
camarada contar uma história de alma, que fiz arrepiarem os cabelos a quanta
morena assistia por ali, fazendo a caridade ao inocente.
       Ora, vai se não quando, morre na vila o Minervino de Braga, um “diabo” de
português velho que, em vida, não lhe sirva lá de pena no outro mundo, nunca
dera um vintém a um pobre, por mais miserável que fosse. O que respondia era
que trabalhasse como ele que não lhe faltariam meios de viver à farta.
       Casimiro fez uma pausa, respirou cansado, e continuou com a sua voz
rouquenha e preguiçosa de tuberculoso crônico.
       – Dias depois, por volta das dez da noite, escuro de meter dedo no olho,
cheguei da vila no “faceiro”, um cavalinho melado caxito que eu tinha apanhado
por troca da mão do cigano Neemias na feira do Pombal, no tempo em que
andava na estrada com uma tropa de “seu” capitão Fulgêncio da Ararinha. E disse
pra caseira:
       – Você vá cuidando no escaldado, enquanto eu dou ali um saltinho no
“bebedor”, pra passar água no “faceiro”.
       O narrador açoitou o mulo das macas, e intercalou um parêntesis.
       – Ah! Meu patrão, cavalo dengoso como aquele, esse seu negro velho não
tem mais o gosto de possuir, não. Baixeiro, manteúdo, acordadão, pra uma
jornada só mesmo o trem de ferro. Era um gosto mesmo viajar nele, como lá diz o
outro.
       Depois retomou o assunto.
       – Bem, como ia dizendo, lacei uma corda de embira no pescoço do cavalo,
passei-lhe a perna em riba, e saí cantarolando pra cacimba. Agora é exato que,
quando fui me montando, passou-me assim pela mente a lembrança do Minervino.
Mas ”nanje” que fosse sobrosso que, verdade seja dita, eu não era um sujeito pra
andar me assombrando já e já, sem ver de que. E continuei minha viagem até a
cacimba de gado, que ficava a um bom pedacinho, sem me lembrar mais de tal
criatura.
       Ao chegar à “manga”, o cavalo estacou, bufando e tremendo, sem querer
encostar.

*
 Este conto foi divulgado em primeira mão, no Diário de Natal, sob o título “Alma do Outro Mundo”,
a 21 de abril de1928, sendo, posteriormente, refundido pelo autor e publicado na revista Excelsior,
do Rio de Janeiro, com o nome de “Visagem” (nota de Manuel Rodrigues de Melo).
        .)
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       – Espere lá, que história é essa? – pensei comigo mesmo, num segundo.
Decerto o meladinho era bem esperto, meio passarinheiro, mas também não era
burro mulo que precisasse de esbordoamento pra atravessar um apertado.
       Dei-lhe umas lambadas mestres, com o nó da ponta da corda, sacudida a
preceito, e nada. O bicho gineteava aos bufos, chega levantava o poeiriço.
       Nisso, passou-me assim pelo corpo “mode” que uns arrepios de frio e os
cabelos da cabeça, pesar de “pixains”, se levantaram todos, chega deu pra erguer
o chapéu de palha de “catolé” comprado na cidade de Sousa. Aí me veio à mente
outra vez, escritinha, a figura do canira do marinheiro, como eu tinha visto no
cemitério da vila, no dia do enterro. E – pra que não dizer? – fiquei com tanto
medo, chega parece que o cavalo me fugia das pernas.
       Olhei pra cacimba e pra gangorra, pra ver se descobria alguma coisa, que
aquilo já estava me amofinando de veras: nada. Apenas o pretume da escuridão
embrulhando tudo num lençol de tisna. Quis cobrar alma nova e danei o couro no
“faceiro” mesmo a preceito, como quem queria esfolar o “bacaiau”. O pobre bruto,
a cada lamborada, recuava, num resfolegado forte, empinando e tremendo que
nem vara verde.
       E vosmecê me acredite por fé de verdade, não é trapaça não, é exato que
eu não vi nada com meus olhos, mas parece que uma coisa me repuxou todo, eu
quis gritar e senti um estalo na garganta.
       Daí em diante não me lembro de mais nada.
       E finalmente, pra encurtar a história, só sei que, quando vim a dar acordo
de mim, estava todo inteiriçado, com a garganta que não podia dar o goto, deitado
numa rede nova de varandas, já pela madrugada, e a Ritinha me balançando, a
enxugar as lágrimas com a manga do casaco de chita quadrejada.
       No outro dia, de manhã, o “faceiro” foi encontrado prontinho, no encosto do
mato. Não tinha um arranhão.
       Após um ligeiro acesso de tosse, meu companheiro arrematou, com
inflexão, triste:
       – De lá pra cá, digam o que quiserem os outros, nunca mais duvidei do
aparecimento de visagem.
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                         NO RANCHO DOS BENTINHOS
                                                      Ao José Borges

       O comboio alcançara, já tarde, o rancho dos Bentinhos, uma velha
quixabeira centenária, que, implantada em sítio aprazível, à margem do caminho,
dava abrigo, desde tempos velhos, a quanto matuto que por ali passava, rumo do
sertão rio-grandense.
       O sol posto, em toda a fisionomia da natureza, começavam a aparecer os
primeiros sintomas de sua languidez noturna. Apenas para as bandas do ocidente
se debuxavam parcamente os últimos visos de um crepúsculo fugace.
       Chegado todo o comboio, os matutos foram descarregando as tropas com
insofreguidão, dispondo em pilhas as cangalhas e amontoando os costais, em
volta do grosso tronco da árvore-estalagem.
        Era uma partida de cereais que os freteiros do capitão Antero de Lima
levavam de baixo para a serra de Luís Gomes.
       Lavados e peados os animais, para irem babujando por ali mesmo até o
sair da estrela, quando continuariam viagem, o pessoal armou as tipóias e foi
empalhando o tempo com conversas, enquanto tomava umas fervuras o caldeirão
de ferro, recheado de feijão e carne de sol, comprada na feira de Santana.
       O velho Higino Barros, decano da tropa e lugar-tenente do patrão,
comentava com outro camarada, enchendo o pito sarroso de bom fumo do Brejo:
       – Tu reparaste Jerome na pacholice do cordãozinho? Compadre Antero
passou foi uma taboca danada naquele moço de Araruna. Um bicho novato desse
em segunda muda, carregado a 10 arrobas e nem como coisa... Parecia um
quartau serviçado.
       E o outro acrescentava, prazenteiro:
       – Seu Capitão mesmo só tendo pauta com o demo pra negócio. Se foi na
troca daquela burra melada de meu coice, em outubro do ano passado, na vila do
Cuité, só faltou mesmo foi deixar o pobre do missangueiro a pé, com os trens na
cabeça.
       E a prosa resvalava em assuntos diversos. Analisavam-se as dificuldades
da viagem: uma carga rolada, um atoleiro, um animal estropiado. O garbo de um
cargueiro. As qualidades do patrão. E dizia-se:
       – Ah! aquilo é que é homem de sim, sim; não, não. Prometeu, tá prometido;
também negou, negou mesmo. Nem afunegue mais.
       E a coisa foi neste pé, até cair no terreno das próprias façanhas.
       Foi logo o Jerônimo, mestição corpulento e de má fisionomia, metido a
valentão, que começou o novo assunto:
       – O caso acontecera, há coisa de dois anos e meio, na entrevéspera de
Natal.
       O narrador acendeu, com o isqueiro, um cigarro grosseiro de palha de milho
e continuou:
       – Eu viajava da cidade, já era escuro de tudo, num bichinho alazão-tostado
com um dinheiro do major Malaquias. Os senhores sabem que eu fiz muito
mandado dele. Pois bem, no meio da estrada, naquele picadão esquisito, e, além
disso, com quatro contos de reis alheios no bolso, quando olhei pra trás, lá vinha
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um freguês a pé, quase de chouto, e com uma espingarda ao ombro. Encostou-se
a mim, regulou a marcha pela de meu animal, e continuou emparelhado, sem dizer
uma palavra. Aí, já fui logo cismando, que sempre achei uma desfeita o sujeito
passar por outro e não lhe dar as horas.
        Mas, virei-me pra ele e disse com voz firme: boa noite, amigo. Nada; foi
mesmo que ter falado com uma pedra. Outra vez: amigo, boa noite. A mesma
coisa. Não me tornou resposta. Quis me afobar, mas calculei comigo: espera lá
meu diabo, que tu estás muito enganado. Nós anda juntos, daqui até dia de são
nunca, mas parte de fraco é que eu não hei de dar. E assim tocamos pra frente.
Mas o alazãozinho não furava mais nada. Só marchava, como lá diz, à vara e a
remo. Na barriga, não restava mais cabelo. Saíra todo nas rosetas das esporas de
ferreiro.
        – Os senhores conhecem bem aquele pereirão do fim da picada, perto da
Esperança, não é?
        Higino adiantou-se logo:
        – Ora se... Lá mesmo de uma feita, por um nadinha, não espatifei o quengo
de um. O cabra quis me intimidar, mas não me faltou repente: sua vida é como a
minha, meu duro, e, se quer, vamos ver qual estraga mais: a ponta de sua faca ou
a boca de minha pistola.
        Jerônimo, já meio impaciente, retomou a narrativa:
        – Bem, como ia dizendo, ali naquele pereiro, o cavalinho em tempo de botar
o coração pela boca de estrisiado, resolvi ficar até demanhãzinha. E pensei: por
certo este fantasma agora passa. Mas qual nada. Quando acabei de pear o peste
do trangola, já o sujeito estava sentado e a meia-coronha encostada no tronco do
pereiro.
        Vieram-me à mente não sei quantos pensamentos ruins. E maginei logo:
por certo aquele sujeito viu quando eu recebi o dinheiro e quer me fazer uma
treição, fora de hora. Só decifrando essa charada, mas é já. Fui e falei outra vez:
        – Amigo, qual é a sua graça, que mal pergunto?
        Nada. O infeliz nem olhou pra mim. Olhem, os senhores me acreditem que
eu não fiquei em mim de raiva. Os bofes me incharam dentro e o sangue ferveu
nas veias, que a falar franco, nunca fui arruaceiro, mas também, o suplicante não
se meta a troçar de mim não, que sai roubado, em dois tempos.
        O narrador sugou as últimas baforadas do cigarro, jogou a ponta fora e
prosseguiu:
        – Aí eu levantei-me e saltei-me com ele, por aqui assim:
        – O senhor é doido, não carrega língua ou que diabo tem, que não fala? A
fazer pouco neste cabra aqui (bateu no peito com a destra espalmada) não se
meta não que se molha. E se quer imendar os bigodes comigo é só correr dentro.
        Ele não respondeu mas, desta vez, pegou a espingardinha e ganhou na
estrada, olhando pra trás aqui e acolá, e quase de carreira. Eu, já meio receoso,
cobri-o com o cano da garrucha, pra tocar-lhe fogo, mas baixei a mão.
        – Diabo leve o homem que mata outro pelas costas.
        Após ligeira pausa, findou aliviado:
        – E parece que foi Deus mesmo, que me ajudou. No outro dia, quando
cheguei à rua, foi que soube: o freguês era um mudo que dera por ali, há uns oito
dias.
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        Depois, aproveitando a impressão ambiente, ainda acrescentou vaidoso, de
olhos fitos na arma, que pousava num dos meios – de – carga:
        – Agora fosse eu, temendo a volta dele mais tarde, descarregar uma
excomungada daquela num pobre, coitado, que nem falar podia.
        Uma estrela-cadente, lacrimejando fogo, desenhou no espaço uma grande
risca luminosa.
        Os matutos disseram todos, a uma vez, com respeito religioso:
        – Deus te salve, Deus te salve, Deus te salve...
        Era hora da refeição.
        Caborés e mães-de-lua soltavam, na calma da noite, as notas desafinadas
de seu canto monótono.
        Ao longe, tudo eram trevas. Apenas vaga-lumes diversos luze-luziam
esparsos, nas baixadas próximas.


      Diário de Natal – Natal, 3 de Junho de 1928.
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                                        TAPERA
                                                Ao Antônio Fernandes

         Eram mais de 10 horas do dia quando, passada uma várzea inculta e
fertilíssima, recoberta de “coroas” pujantes de verdura, eu e o arrieiro, um cabra
autêntico do Seridó, amarelaço de cabelos encrespados, chegamos à beira do rio.
         Parei um instante, e o seriodoense foi logo me advertindo com bom humor:
         – É pra tocar diante, patrão. Temos ainda boa tirada de testa e o sol já está
lá em riba.
         Seu jegue, porém, ficou-se a beber pachorrentamente a água límpida que
deslizava quase imúrmura pelo leito plano, como remanescente das últimas
enxurradas de junho.
         E ele adiantou, comiserado da sorte do cargueiro:
         – Está com preguiça, burro velho? Nem é pra menos. Andar puxando um
pobre guenzo deste, desde o quebrar das barras até o solão nessas alturas, não é
lá tão pouco.
         Depois deu de rédeas no caminho, cantarolando velhos motivos do sertão.
         E entramos noutra várzea da mesma riqueza vegetal.
         Tudo aquilo, assim reverdecido pelo banho rejuvenescedor do inverno que
findava, ostentava uma beleza natural fascinadora.
         Marizeiros enormes, pequenos arranha-céus de esmeralda, erguiam ao
espaço sem nuvens o penacho bizarro de suas ramagens gigantescas.
         Oiticicas numerosas ofereciam ao viajante o conforto provocador de suas
sombras compactas e além, pontilhando o varjado, floresciam esparsos juazeiros
e tira-fogos virentes.
         Pelos interstícios dos troncos das árvores, macegas de jiritana, melão de S.
Caetano e muitas malvas formavam tecidos de malhas estreitíssimas, rompidos
apenas pela trilha esguia do caminho.
         O sol, dominando um firmamento limpo, sombreava de tênues franjas de
ouro a fronde verde do arvoredo.
         Tudo eram encantos.
         E ainda mais, os passarinhos, pousados no matagal risonho, modulavam,
numa desarmonia interessante de sons, as notas variadas de uma música original.
         Quem sabe? – Talvez até canções chorosas, recordando sonhos felizes de
amores, ali ao abrigo daquele mesmo matagal da várzea.
         Pelo menos isto, decerto pensou o arrieiro que entoou, com sua voz inculta
e forte de sertanejo, a quadra de uma modinha conhecida, muito adequada ao
caso:

      Quando a passarada canta
      Suas trovinhas de amor
      A minha tristeza é tanta
      Que desfaleço de dor.
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        Vencidos esses terrenos úberes que debruavam, como colossais varandas
de verdura, o curso do rio, chegamos a um planalto de vegetação mais pobre
onde se notava a sede de uma moradia antiga.
        Era uma velha casa de aspecto solarengo, sem portas, paredes de tijolos
carcomidos pelo trabalho corrosivo das invernias sucessivas e teto inteiramente
danificado, que no conjunto desordenado deixava transparecer essa nota
desagradável e impressiva de pavoroso que envolve as coisas trágicas e
misteriosas.
        Ao aproximarmo-nos, o meu companheiro interpelou-me meio sério:
        – O patrão sabe que tapera é esta?
        A uma resposta negativa, prosseguiu:
        Contam que em eros tempos morava aqui um fazendeiro rico. De uma feita,
indo comprar mantimentos na praça, na ausência dele, mataram-lhe a mulher e
três filhos pequenos, sem se ter nunca descoberto o autor do crime. Ainda:
        – De lá pra cá, este lugar ficou amaldiçoado. Ninguém mais quis morar
nele.
        E depois de pequena pausa arrematou, dando às palavras um tom de
convicção:
        – Eu de mim mesmo não sei, que nunca tive ocasião, mas, ainda hoje em
dia, dizem que quem vai, quem vem, quem passa por aqui fora de horas ouve um
arruído peitado a modo de grito de mulher e choro de criança.

                                          ***

        Quando de volta, meses depois, alcançamos o velho solar abandonado, o
sol já estava posto, e os últimos lampejos desbotados da claridade crepuscular
como que emprestavam mais um acento de lugubridade desalentadora àquele
sítio ermo que a credulidade popular povoara de duendes.
        Nada vimos.
        Apenas um corujão macambúzio, insulado no alto da cumieira mutilada,
parecia contemplar assim com uns ares de superior aborrecimento aquelas ruínas
pouco célebres, em cujo ambiente se circunscrevia a noite ininterrupta que
protegia o mistério de uma tragédia grosseira.


      Diário de Natal – Natal, 2 de outubro de 1928.
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                                       POLDRO BRABO

        Terminada a labuta do curral e da cacimba, o pessoal da vaqueirice
conversava, no alpendre da casa grande, com o amo que, sentado numa cômoda
rede de varanda, se balançava, aguardando a hora de montar num poldro do
Tabuleiro das Onças, pegado “de bebida”, na entrevéspera3 à noite.
        E o sertanejo dizia, efusivo para os ouvintes, ao avistar o animal:
        – É, pessoal, bicho desses pastos só leva gente no lombo disto pra mais
velho, que é pra não se prejudicar a forma e enfraquecer a sustância da raça.
        O poldro era uma bela estampa de cardão escuro, bem assinalado, olho
vivo e orelhas pequeninas e entesouradas.
        Enquanto os vaqueiros lhe analisavam as qualidades, ele permanecia atado
pelo grande cabresto de couro cru ao velho pereiro ramulhado do pátio, a
estremecer de quanto sopro mais forte de vento lhe arrepiava o pêlo.
        Quando o camarada, que ia montar, chegou, o Camilo, um rapagão forte de
19 anos, filho do vaqueiro das éguas e encarregado geralmente deste mister, o
velho Casimiro, decano dos servidores da fazenda, foi-lhe aconselhando:
        – Menino, calma e faça força nas batatas das pernas que bicho brabo não
tira brincadeira com lombo de gente.
        – Qual ti Casimiro – advertiu o Felipe – vosmecê não tome por desfeita à
sua pessoa não, mas eu há vinte anos que luto nesta vida, e nunca olhei pra um
bicho, assuntando bem nos sinais e fitando direito pra o olho dele, que não lhe
descobrisse logo as manhas e os préstimos. Não monto nele aquele molequinho
que está brincando de vaca de osso no oitão, pra não me chamarem de doido,
porém esta marca não me engana mais: manso que só quartau tanjão. É capaz de
não escabecear. Esse luxo de espanto é só enquanto não se passa a perna.
        – Não fale assim não, seu Felipe – contraveio um camarada – animal brabo
tem sido sepultura de muito cabra montador, acostumado a tirar potoca de burro
erado. Nem todo dia é dia santo.
        Aqui mesmo eu vi um poldro melado em segunda muda, de uma feita, jogar
um cabra respeitado neste ofício fora da sela que, se não fosse na areia do rio, os
tutanos da cabeça tinham voado longe.
        E lembre-se das upas que este bicho deu no esbrabejamento. Gineteava no
cabresto que nem jararaca em areia quente.
        E gordo de peito e anca como está, o lombo escorrega que só sabão da
terra. Quem montar, se não firmar o corpo, está por terra, em dois tempos. É o
que lhe digo.
        – Ora, replicou o outro, deixemos de falatório.
        Se o Camilo não aguentar o arranco do cardãozinho e comer barro em
poucos pulos, quem vai montar é o Chaguinha, pra mostrar ao irmão como negro
dos Pereiras tira pataraca de poldro brabo, ainda em camisão.
        – Ta, Felipe, eu só queira que este poltro tirasse o Camilo, eu desejava ver
se você tinha coragem mesmo de sacudir um pedaço de cristão daquele em riba
de um excomungado deste – disse alguém.
        Felipe respondeu:
3
  Antevéspera, no dia antes da véspera. O povo diz: entrevéspera, como grafou o autor, seguindo a
forma popular (nota de Manuel Rodrigues de Melo).
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        – Se tinha é uma história. Está dito.
        E beijou sucessivamente as costas de uma e outra mão espalmadas, em
forma de juramento solene.
        Em seguida:
        – E para ver – voltando-se para o filho que, meio apreensivo, escutara a
conversa, encostado a um esteio – Camilo voa em cima em osso mesmo, pra
acabar com esse discurso oco.
        O rapaz, calado, com um ar de desconfiança, marchou para o pátio, onde
se achava, posto a soltas, o cardão.
        Quando o montador se aproximou para montar, o poldro agitou-se todo, à
vista daquela figura estranha, recuando de súbito como se quisesse empinar.
        Camilo, mal impressionado com as conversas do alpendre, não repetiu a
tentativa e inesperadamente, cabisbaixo e acanhado, deu de marcha para o
terreiro e disse ao pai estupefato:
        – O coração me pede que não monte, eu tive uma cisma e não monto
mesmo não.
        Sucedeu-se um silêncio geral, desenhando-se apenas em alguns
semblantes um sorriso desbotado de admiração e de surpresa.
        O pai de Camilo, a fisionomia carregada, dirigiu-se mudo para o Chaguinha,
um menino de 12 anos, ergueu-o pelas axilas e, com espanto geral do auditório,
disse com desdém:
        – Seu Quim, faça o cabresto bem curto e segure este diabo com unhas e
dentes, que eu quero descarar um mofino.
        E após umas poucas ligeiradas no animal jogou-lhe em cima o cabrinha em
chambre, de olhos de pitomba, a sorrir alegre de seu papel de peão precoce,
deixando ver uns dentinhos alvos e pontiagudos de camundongo.
        O cavalo, ao atrito da carga leve, começou a estremecer-se todo, da
cabeça à anca, num resfolegar forte, nervoso; depois saiu num chouto
desaprumado pela grama seca do pátio, como se ensaiasse trocar os passos do
baixo; a um puxão no cabresto, voltou em direção oposta, tomando aqui e acolá
ligeiros espantos, acompanhado pelo olhar apreensivo dos presentes.
        – Não deu um salto...


      Diário de Natal – Natal, 17-11-1928
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                                      A CAÇADA
         Chegado à “Tocaia das onças”, onde ordinariamente pernoitavam os caçadores
daquelas bandas, Zé Antônio, como não encontrasse ninguém, resolveu torar pra fora,
pra sua morada da “Campina”, a fim de no outro dia, sábado, fazer feira com as caças na
povoação.
         E sacudiu-se, absorvido em planos financeiros.
         De feito, fora uma bela caçada a daquela semana: dois veados chancudos, três
pebas, um verdadeiro, um tamanduá e a ema que quebrara de travessa, na “ceva”, com a
lazarina do Fulosino. Isso sem falar em duas canadas de mel de jandaíra e mosquito que
topara, em três imburanas da “lombada formosa”.
         E monologava bazófio:
         – Bicho arma boa, essa de Fulosino. Se o cabra não trastejar na pontaria, é o fuzil
cortar e o mocotó dá nó.
         E caminhava, na batida do Jegue, tateando, em meio à escuridão tétrica da noite,
ao longo do fio sinuoso da vereda.
         Aqui, sobressaltava-o o esquivar-se rápido de um animal pequeno, pelo folharal
espinhento das macambiras. Ali, o inopinado de um assovio estrídulo, a despertar-lhe no
espírito a recordação atávica das “caiporas”. Mais além, o ruído significativo de uma
cascavel espiralada ao pé dalguma macega próxima, à espera da primeira e desditosa
artéria que se lhe aproximasse, para inocular-lhe o líquido mortífero. O sertanejo estacou
cauteloso.
         – Homem, cobra é vivente que não faz o “pelo sinal”...
         Deteve-se um pouco. Observou bem a direção do toque do maracá.
         – É pra quelas moitas de guaxina.
         Mas, por precaução, antes de marchar, recitou a jaculatória poderosa: S. Bento,
água benta, Jesus Cristo no altar, arrede-se todo bicho venenoso que eu quero passar.
         Açoitou o jegue com a vergôntea de marmeleiro, e ele rumou indolentemente no
caminho escuro, muito malandro, se torcendo ao ritmo das vergastadas, seguidas de
outras tantas exortações furibundas:
         –Tartaruga, diabo eu te mato...
         E lá iam, rasgando a solidão horrífica da noite, em que a natureza se multiplicava
em enigmas e mistérios, a que não faltava a voz medonhamente assustadora da
suçuarana, como um completivo à melopéia estúrdia dos ruídos do campo.
         Adiante, ao aproximar-se dos mofumbos da “baixa grande”, um rumor estranhou
despertou a atenção do caçador:
         – Espere lá, que negócio é este?
         Sucessivas vezes, a copa rasteira do mofumbo se agitava toda, como se estivesse
alguém a escabujar lá dentro, ao tempo que se ouvia um como ressonar forte e
entrecortado. Escutou mais demoradamente, e a mesma coisa se repetindo com
regularidade.
         Lembrou-se que se dizia muito que por ali apareciam visagens a desoras. E
mesmo era dia de sexta. Seu sogro mesmo, o velho Simplício, que não era homem de
história furada, vira, naquela mesma baixa umas tochas de fogo na derradeira sexta-feira
do mês de S. João, à noite. Os cabelos se eriçaram todos, e o sertanejo receou que
estivesse diante de si a alma do outro mundo. Só requerendo:
         – Quem pode mais do que Deus?
         Nada. Apenas novas agitações se sucederam na fronde do mofumbo, como
estribilho ao resfolegar nervoso, que não parava. Se fosse alma atendia ao nome de
Deus. Chamou os cachorros:
         – Rompe-ferro. Arranca toco!
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        Os dois podengos se tinham embarafustado pelo mato, farejando no rastro de
algum bicho.
        Parou um pouco, indeciso, e tomou uma resolução firme:
        – Isso não fica assim não...
        Aproximou-se e espreitou bem a moita mal-assombrada. O escuro não deixava ver
coisa nenhuma.
        Zé Antônio resolveu-se definitivamente. Pegou o machado afiado de tirar mel,
ergueu-se nas pontas dos pés e desceu-o com toda força de seus braços hercúleos na
fronte da árvore fatídica:
        – Tome lá, diabo!
        Um gemido verdadeiramente tétrico foi seguido de uma convulsão mais violenta da
ramaria assombrada. Puxou o machado. Alguém susteve-o com força. O sertanejo recuou
suspenso, cabelos em riste, olhos esbugalhados, mão nervosamente grudada ao cabo da
“jacaré”, e instintivamente tomou por uma vereda lateral. A uns quinhentos metros,
esbarrou. Matutou um instante:
        – Homem, isso é uma desgraça.
        Triste da mulher que traz um filho ao mundo pra andar assombrado nessas
catingas, sem ver de que.
        E veio a reação definitiva:
        – Dessa vez eu me desengano.
        Voltou quase correndo, com o “jacaré” em punhado, disposto a tirar daquilo uma
solução indubitável.
        Com o jogo do corpo na carreira, pressentiu a caixa de fósforos no bolso que o
medo fizera esquecer da primeira tentativa.
        Ao chegar ao local, escutou um pouco. Nada ouviu de anormal.
        Apenas o sopro pausado do vento, num murmúrio leve, pela ramagem das
árvores, de par com o vozear dalgum pássaro noturno.
        Tomou alma nova. Estumou os cães que haviam voltado com a demora do dono.
Tudo silencioso ali. Chegou-se ao mofumbo. Riscou um fósforo.
        Aproximou-se da moita e baixou para ver bem.
        Uma expressão desbotada de triunfo inglório traduziu-lhe a súbita surpresa:
        – Tá hí...
        E agora com um tom da desairosa capitulação:
        – Olhe minha desgraça em que deu. Agora trabalhar pra pagar o que não comprei.
E levar o nome de ladrão por cima...
        Uma vaca, mordida de cobra, por certo, caíra no emaranhado do mofumbo. E ele
acabara de matar. Lá estava o machado, a folha enterrada até o nível do cabo, à altura da
sétima costela.
        O minguante, muito claro, subia lento num céu límpido de estio.
        U’a mãe-da-lua derramava pelo campo ermo a monotonia de seu canto.


       Diário de Natal - Natal, 13-3-1929.
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                               MORDIDO DE COBRA

        Pela manhã, ainda bem cedo, desleitadas as cabras, e suprido de água o
pote de barro que dominava a forquilha trifurcada de pereiro, a um canto da latada
de folhas de oiticicas, o velho Rufino partiu em direção ao roçado. Ia limpar a
aninga e língua de vaca que cobriam, em quase toda extensão, a Lagoa da
Várzea, uma ipueira que demorava a umas duzentas braças do leito do rio e para
onde pretendia mudar uma planta de arroz cacheado, que já começava a
amarelecer, à míngua d’água.
        Adiante, alfinetou-se o vício habitual do sertanejo. Lembrou-se de fumar. O
fumo ali é como complemento do café.
        Afastou-se do caminho e encostou-se a uma coivara que ficara por
queimar, na última broca.
        – Só tomando umas baforadas pra alertar.
        Picou o fumo, com as unhas ponteagudas e encardidas, e encheu o pito
sarroso. Puxou do bornal de couro curtido o artifício e tirou fogo três vezes
seguidas. O vento da manhã, soprando intermitente, desviava a faísca da lã do
isqueiro. Rufino deixou escapar dos lábios uma pilhéria tímida.
        – Que faz S. Lourenço, que tão cedo tirou o freio desse desbragado?
        Tomou para junto da coivara, abaixou-se bem, e novamente riscou o fuzil.
Quando atenciosamente acendia o cachimbo, surpreendeu-o uma pancada forte,
acompanhada de uma picada incisiva na parte superior do pé direito.
        O sertanejo teve uma expressão súbita de instintiva religiosidade.
        – Valha-me o senhor S. Bento!
        Olhou rápido, e lá estava, espiralada a meio, cabeça levemente erguida, em
atitude de quem desdenha da eficácia da reação, uma cascavel enorme.
        Num gesto pronto, Rufino esmigalhou-lhe a cabeça com o olho da enxada.
Depois, calmamente, como se não tivesse a vida em iminente perigo, estendeu-a
ao longo do caminho e mediu, um a um, onze palmos de sua mão possante de
lavrador. Olhou o local da mordedura. Dois fios tênues de sangue corriam
lentamente dos pontos em que se haviam cravado as duas presas.
        O caso estava sério. Mas, como era curado de nascença... Quando, em
princípios da era de 70, dera por aquelas bandas, o Luís Curador se negara a
aplicar-lhe o milagroso preventivo: tinha o corpo fechado.
        Portanto, pensava consigo, não devia ingerir remédio algum.
        Era não confiar no privilégio que lhe concedera a Natureza. Faria apenas
u’a mezinha corriqueira de aplicação externa. O que tirava a força da cura eram as
beberagens de qualquer espécie.
        Arrastou o quicé, extraiu o coração venenoso ofídio, e colocou-o no lugar da
ferida, por alguns instantes.
        Em casa, ocultou da família a causa do retorno inesperado: paranças de
andaço; umas pancadas na cabeça; arrepio de frio; besteira, medo de molhar os
pés.
        Em pouco tempo, porém, se acentuavam definitivamente os sintomas
inequívocos de atuação do veneno; escurecimento de vista, sede causticante,
descangotamento.
        Ofereceram-lhe os antídotos caseiros.
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        Rufino não aceitava absolutamente. O sertanejo, supersticioso e rotineiro,
não abdica facilmente de suas crendices, segmentadas em longa elaboração,
através de uma ininterrupta cadeia etnográfica: era curado de nascença, e eis tudo
quanto bastava.
        Com a progressão do mal, ofereciam-lhe outros remédios conhecidos, e a
cada novo oferecimento, correspondia o refrão inalterável e cadente.
        – Eu sou curado de nascença.
        E só à força de muita súplica, e já quando se lhe debuxava no espírito a
imagem da morte, foi que ele acedeu em tomar um pouco de leite de pinhão.
        Mas, momentos depois, ante a ineficácia do remédio, aquela alma ingênua
e rude, já nas ânsias da morte, atribuindo aquele desfecho fatal à sua falta de
perseverança, ainda deixava transparecer, numa frase dúbia e resignada, a
tristeza de não haver persistido na crença daquele dom que lhe outorgara o
Criador.
        – Eu bem sabia que era curado de nascença...
        Mais tarde, quando já se esvaíam no ocidente as últimas tonalidades rubras
do crepúsculo, quem passasse pela cabana do Rufino Ligeiro, um espetáculo
estranho o surpreenderia: na sala da frente, um cadáver jazia estendido numa
esteira, em cujas extremidades ardiam quatro velas de cera de carnaúba.
        Era ele, que morrera, momentos antes, mordido de cobra.



           Diário de Natal-Natal, 25 de maio de 19294.




4
    Nota do Autor: – Este conto, escrevi-o em 1924. Publico-o agora, Apenas com ligeiras emendas de redação.
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                                 QUIRINO PEREIRA

       Ao avistar a “casa grande” do Morgado, uma antiga fazenda, cujo nome
apesar da decadência atual do sítio, parecia persistir em conservar o aparato da
grandeza passada, Quirino Pereira acomodou-se melhor na cangalha de malhá,
aprumou bem o tronco, como se quisesse ostentar o vigor de seus 50 anos de
saúde inalterável, achegou o jegue, com um estalo do gurinhém da mula ruana do
companheiro, e retomou a conversa.
       – É esse, patrão, o lugar de que lhe falei, lá em baixo, na passagem do
riacho do Bastião. É o Morgado, antiga propriedade de “seu” coronel Jerome, que
Deus tenha em sua guarda sem nós outros, hoje em mãos do capitão Pedrinho,
genro do finado coronel, e moço da capital, que não olha mais pra isso. Nesse
trato de terra, Deus louvado, nasci e me criei, em companhia do defunto meu pai
que foi camarada na fazenda, até quando Nosso Senhor foi servido de chamá-lo
pra junto de si.
       E a presença daquelas coisas velhas conhecidas, que guardavam na
memória dos brincos primeiros de sua infância, despertou no espírito rude e
amoroso do arrieiro, num assomo de alegria borrifada de saudade, a recordação
de fatos distantes de sua vida obscura, de prazeres e maus tratos por que
passara.
       E ele não se conteve:
       – Nesse pátio, hoje coberto de moitas de marmeleiro e mofumbo, esse
negro velho, que vosmicê está ouvindo, fez muita estripulia no tempo de frangote
infancioso, em riba de cavalo bom. Eu me escanchando no rogeiro de uma rês, se
o animal não faltasse, enquanto o “demo” esfregava um olho, o mocotó passava.
Isso era mesmo que Deus está vendo. Não é potoca, senhor, não.
       Ainda de uma feita, lembro-me, como se fosse hoje, eu andava pelos meus
dezoito janeiros, esse cabra já sem serventia que aqui está, deu de uma sentada,
vinte carreiras de moirão de porteira, num cavalinho cardão-pedrez, bicho “fábrica
de fiança”, que morreu depois espadoado.
       Quando findou a brincadeira, só pela minha parte, tinha desgraçado três
pernas de bicho jejuado. E o velho meu pai o que dizia era que queria ver se os
moleques dos Pereiras era tudo assim levado do “droga”, pra labutação de
vaqueirice.
       Calou-se um momento.
       Estava em pleno rigor do estio.
       As caminhadas se faziam ao longo da cinta pedregosa da estrada da vila,
rasgada no coração do tabuleiro mal vestido pela ausência de chuva.
       No correr da marcha, encontravam-se reses descarnadas a farejar o solo
descoberto, enquanto outras sombravam nas “malhadas” esburacadas pela nudez
das árvores protetoras.
       O espetáculo se repetia aos olhos dos dois viajantes, com uma
intermitência impressionante.
       De súbito, a visão de um passado feliz, em sua simplicidade, com um
presente de provações, retratado ali naquele painel desolador, tirou o sertanejo do
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mutismo em que vinha mergulhado, e arrancou-lhe da alma sentimental de
amoroso bronco umas expressões resignadas de queixas.
       – Tudo isso está hoje mudado. O sertão não presta mais pra ninguém
morar. Se Deus não tiver pena da pobreza, acaba tudo nessas secas, sem ter
água nem pra matar a sede.
       O companheiro, que quase nada dissera ante o extravasar de amargura
daquele coração rude de homem do campo, adiantou uma pergunta:
       – Por que não abandona isso e procura o litoral?
       Quirino franziu o sobrolho, desenhou nos lábios um trejeito de indecisão, e
arremedou uma desculpa desarticulada:
       – Sei lá... Coisas de quem é besta... Tenho pra mim que, onde a gente
nasce, deve se enterrar. Aqui no cemitério da vila, estão todos os meus, desde os
troncos velhos. Pra que ir atrás de uma cova noutro canto?
       E, como o outro censurasse o seu apego a uma terra ingrata, paupérrima,
miserável, que só lhe tinha a oferecer lutas e dissabores, o sertanejo olhou-o de
soslaio, deixou transparecer no rosto de tisna uma expressão moderada de
aborrecimento, e replicou, consignando numa frase incorreta a filosofia a um
tempo eloquente e ingênua do provérbio:
       – Vosmecê nunca ouviu dizer que quem o feio ama bonito lhe parece?...
       O sol ia-se pondo.
       Os últimos pássaros diurnos, em vias de se agasalharem, cantavam
esparsos pelos longes do campo, festejando a hora evocativa do “angelus”.




      Diário da Manhã - Recife, 7 de setembro de 1929.
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                             A CRUZ DO TABULEIRO

       Em pleno coração do tabuleiro calcinado pelas soalheiras ignescentes,
onde apenas florescem, ao banho procriador das invernias, juremas e pereiros,
marmeleiros e favelas de permeio com o lençol ondulante do panasco, rendilhado
da cactos e macambiras, lá está a cruz como simplesmente a crismou a memória
popular, sozinha, sentinela incançável de uma sepultura abandonada.
       Apenas na estação das chuvas, alguma trepadeira silvestre passeia as
suas ramagens pelo vértice daquele signo da nossa fé tradicional, que representa
o ponto final de uma existência obscura, encerrada talvez nos lances violentos de
uma tragédia grosseira.
       O sertanejo, que passa, não lhe pergunta a história. Pouco importa sabê-la.
Encontra tantas outras em suas caminhadas a salpicarem os sertões de outros
pontos de interrogação!
       Para ele o pretérito é um mistério que não procura desvendar, assim como
o porvir é um enigma que o não preocupa. Para que indagar das coisas que se
foram, se os lazeres da vida não lhe permitem sequer meditar nos dias do futuro?
Sabe apenas que aquela cruz isolada no deserto do campo é o marco derradeiro
de uma vida que se findou, como tantas outras no sertão – no inesperado de um
golpe, no violento de uma catástrofe. Coisas do “meio” e do tempo. É quando
basta. Não lhe perquirem as causas. Muito menos as circunstâncias. Tudo isso é
coisa somenos para os filhos daqueles rincões, onde o solo crestado e granítico
parece ter moldado o caráter do homem à sua imagem e semelhança.
       Alma ingenuamente religiosa, ao defrontar com ela, arreda da cabeça o
chapelão de couro, e não raro balbucia uma prece íntima, para depois acrescentar
mais uma ao montículo de pedra que a superstição dos transeuntes lhe erigiu em
pedestal. Passa mudo, e só. Para que violar o sacrário do passado, ensaiando
devassar as origens de um fato que o tempo cristalizou na lenda, e a caridade
anônima perpetuou na homenagem humilde de uma cruz de madeira?
       Página viva da epopeia rubra do banditismo? Cena palpitante do drama
doloroso da seca? Como o homem do campo, eu não quero desvendar a cortina
que a protege contra os olhares da curiosidade ambiente. Não a incomodemos
com os extemporâneos inquéritos de decifradores de enigmas históricos. Mesmo
por que há sempre um encanto novo no recesso das coisas desconhecidas.
       Aquela cruz mal talhada de pereiro, braços constantemente abertos à
impassibilidade azul do céu amplíssimo, não rememora um acontecimento,
simboliza uma época. É a imagem sugestiva de uma era de preconceitos,
incrustados em demorada segmentação genealógica na psicologia de uma raça.
       Assinala talvez algum estágio de um estado de espírito coletivo, resumido
por acaso na brutalidade ainda hoje vulgaríssima de um assassinato.


      Diário da Manhã - Recife, 17-11-1929.
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                               NOITE DE SÃO JOÃO

                                        (Trecho de uma novela inédita)


        O São João e o São Pedro são para os sertanejos as festas mais
agradáveis, porque são as festas das luzes e dos fogos. E eles têm essa nota
clara em sua psicologia: impressionam-se facilmente com as projeções luminosas.
        Na véspera dos dias do Precursor e do Claviculário, os lugarejos do interior
apresentam-se com aspecto risonho e atraente.
        E nas noites de S.João, então, culmina o contentamento popular, naquelas
terras incultas.
        Os povoados, de ruas tortuosas e casario arruinado, naquela noite,
graciosamente iluminados pelas fogueiras do Batista revestem-se das galas de
uma fisionomia inteiramente nova.
        Ali tudo é alegria e movimento. Nas praças dramatiza-se um movimentar
constante de centenas de criaturas, muitas das quais afluíram dos arrabaldes,
num dinamismo fervilhante de moto-contínuo. E desenvolvem-se as cenas mais
interessantes e dispares.
        – Aqui realiza-se com unção piedosa o cerimonial incômodo do batismo
sanjuanesco, envoltos, padrinho e afilhado, em verdadeiro banho de fumaça. E
dos lábios de ambos escapam religiosamente as palavras três vezes seguidas:
        São João disse, São Pedro confirmou e Jesus Cristo mandou que o Senhor
fosse meu padrinho.
        E depois:
        Viva São João, viva São Pedro, vivamos nós, meu padrinho.
        Mais ali pessoas várias, geralmente mulheres, procuram com olhos
escancarados divisar na redoma de um prato, no cristal borbulhante de uma bacia
cheia de água ou em qualquer outra superfície refletora, em linhas distintas os
contornos da própria fisionomia insculpidos com sombra. E aparece aí mais uma
das múltiplas abusões que enchem de sobressaltos o viver dos habitantes simples
do sertão.
        – Acredita-se que os que não virem o rosto claramente por um dos
processos atrás indicados morrerá antes do outro São João.
        Mais adiante vultos diversos de cócoras junto ao braseiro de uma fogueira
revolvem espigas de milho pacientemente, assando-as para o rápido repasto da
noitada.
        E vem por fim a música desparatosa dos fogos de São João.
        Chia uma pistola; estala um traque; papouca uma explosiva; e, por último
contrastando em potência com aquele suceder de detonações pequenas, a velha
roqueira, a bizarra boca de fogo do sertão abre a poderosa garganta de aço e
deixa sair um entulho de pólvora e bucha produzindo um estampido enorme que
vai ecoar no matagal vizinho. E sublinhando tudo isso com um estrepitar de alegria
incontida, a algazarra da meninada gárrula e jubilosa a borborinhar aos saltos
pelas ruas.
www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/


        A nota porém mais característica dessa festa é sem dúvida o terço de São
João, rezado nos 3 dias imediatos ao dia do Precursor e anunciado pela bandeira
indefectível içada na frente da casa onde se pratica a devoção, a que
comparecem numerosíssimas pessoas das vizinhanças.
        A ele geralmente segue-se o baile, onde cavaleiros e cavaleiras5
saracoteiam tangos e onesteps deselegantemente, cheios de requebros e
trejeitos, à melopéia insulsa da sanfona.
        Em contrário, outras diversões inofensivas: o livro de sortes, histórias de
trancoso, interpretadas quase sempre com espontaneidade e precisão que se
podem dizer artísticas.
        E a tudo isto não raro sucede o concerto brejeiro de um cantador de viola,
repentista inspirado que rumina ante um auditório comovido os sextetos tristonhos
do “verso de Marina” para em seguida arrancar-lhe gozadas explosões de alegria
com as estrofes humorístico-encomiásticas de coplas laudatórias.
        A festa de São João é uma festa excelente porque nela a alma honesta e
sofredora do sertanejo encontra motivos para quebrar o ritmo monótono de um
viver áspero e laborioso...




5
 O sertanejo, obedecendo à lei do menor esforço, prefere as formas cavaleiras e cavaleiras, em
vez de cavaleiros e damas, quando se refere aos pares que dançam. O escritor, fiel à pronuncia
da região, manteve as formas vulgares (nota de Manuel Rodrigues de Melo).

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Contos sertanejos

  • 1. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ AFONSO BEZERRA CONTOS SERTANEJOS FONTE: BEZERRA, Afonso. Ensaios, contos e crônicas. Pesquisa, Introdução e Notas de Manuel Rodrigues de Melo. Rio de Janiero: Pongetti, 1967. p. 31-74.
  • 2. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ PRIMEIRA COMUNHÃO O sol nascera alegremente!... Joãozinho, que ficara órfão aos 7 anos, despertado pelo trinar dos passarinhos, levantou-se pressuroso, correu à mamãe, que fazia o café, e lhe pediu a roupa branca da primeira Comunhão, a fim de preparar-se antecipadamente para receber a Jesus, como tanto desejava. A mãe, jubilosa, foi à mala e tirou a roupa, que havia sido um presente de seu padrinho. Joãozinho vestiu-se cuidadosamente e foi de novo à sua mãe, pedir-lhe consentimento para sair. Esta lhe disse: – Quando estiveres em forma, não converses e observa todo o respeito na igreja, para seres elogiado por Jesus; e, se assim fizeres, não sairás da escola. Joãozinho prometeu-lhe o melhor comportamento naquele dia, em que uma alegria desconhecida dele se apoderava. Quando chegou à igreja, aprecia-lhe estar realmente no céu, a contemplar o Criador do mundo; o soar compassado do velho órgão, com a voz agradável das cantoras, iam perder-se na floresta que circundava a decadente aldeia e depois vinham consolidar-se com os pensamentos de Joãozinho, para ainda mais o alegrarem. Enquanto Joãozinho estava na igreja, ansioso de receber Jesus pela primeira vez, sua mãe lembrava tristemente o marido que a deixara ainda moça, levado pela mão assassina de um cossaco da linha férrea, ficando limitada a viver dos parcos vinténs que lhe rendia um sitiozinho que herdara. No meio dessas imaginações foi sentar-se ao limiar da cabana, deslizando- lhe nas faces, entristecidas pelo rigor da viuvez, as primeiras lágrimas do dia, chorando o esposo que tranquilamente jazia sob a fria lousa, no cemitério da aldeia. Calou-se, depois começou a olhar a movimentação das águas do rio, que se desenrolavam céleres, em demanda do oceano. Pôde libertar-se daquela tristeza lembrando a felicidade que visitaria sua casa com a primeira Comunhão do filho. Correu ao oratório, já velho, que tinha apenas duas imagens muito enfeitadas e, depois de uma prece fervorosa, exclamou: – Não sou ainda tão infeliz, porque tenho o consolo da Religião Católica. Sem isto me julgaria infeliz ao extremo. O sol já se achava no meio do céu, quando Joãozinho, depois de terminada a missa, dirigiu-se para casa, jubiloso, com a alma cheia das cerimônias religiosas do dia. O caminho, marginado de carnaubeiras, parecia-lhe adrede preparado. Nesse arroubo avistou sua humilde casinha, que também não lhe pareceu menos bela!... Apressou os passos, para logo falar à querida mãe, que, ao vê-lo, o abraçou carinhosamente, enquanto ele contava os principais acontecimentos da festa e disse:
  • 3. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ – Jesus não elogiou ninguém, ainda que nos houvéssemos todos comportado bem. A mãe, sorrindo da ingenuidade dos 7 anos do filho, respondeu-lhe: – Meu filho, Jesus elogiar-te-á no céu, quando lá estiveres. Preparou-se a mesa e continuaram a conversar alegremente. Carapebas. O Beija-Flor, Rio, 16-4-1925.
  • 4. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ O ORVALHO A natureza despertara do sonho da noite. No jardim da chácara as flores pareciam sorrir, maravilhosas, ante a poesia risonha daquela manhã de inverno!... Lulu e Lili, atraídos pelo aroma sutil do jardim, ainda muito cedo, entraram lá, para contemplar de perto a placidez de seu retiro de flores, que tantas vezes tinha dado distração a seus espíritos infantis. E brincavam, joviais, com as vestes umedecidas pelas gotas cristalinas de orvalho, presas como maquinalmente às plantas que, dispostas em alamedas, ornavam o prado. E entretiveram-se muito tempo com aquelas gotas de orvalho, até que a curiosidade despertou Lili do sono de admiração em que se achava. – Que é o orvalho? – perguntou, curiosa, ao irmão. Lulu, com um sorriso de acanhamento, silenciou ante aquela pergunta que rompia aos olhos da irmã a cortina que encobria sua ignorância. Súbito uma hipótese se formou em seu espírito de criança e, não contendo as palavras, ele disse: – Lili, o orvalho se origina do pranto dos anjinhos. E, apontando uma gota com o mimoso indicador, continuou: – Cada pingo destes é uma lágrima copiosa que se escoou dos olhos cintilantes de um anjo, quando, compassivo, contemplava as misérias do mundo. Lili exclamou, carinhosa: – Como são compassivos! Lulu continuou, alegre: – Caídas as lágrimas de seus olhos puros, descem através das brumas do espaço, tristes como sua origem, e vêm pousar nos galhos hospitaleiros das grandes árvores e ornar o tapete verde-escuro das pequeninas selvas, extendido na superfície da Terra. E assim permanecem, até que o sol os extinga com seu cetro de fogo. Um beija-flor passou célebre, osculando uma flor rósea que pendia, úmida, da trepadeira sob que estavam acolhidos. Logo após um outro pássaro iniciou melancolicamente a primeira estância do seu tristonho gorgeio. O silêncio reinou ali um momento. As duas crianças, batendo com os dedinhos delicados as últimas gotas de orvalho que ainda restavam, já tépidas, em algumas trepadeiras do jardim, e continuando a conversar, riam-se, riam-se muito. Grossas bátegas de água tombaram ao chão, obrigando-os a abandonar aquele ninho de flores. E, como a chuva continuasse forte, os dois inocentes foram cantar, no interior do lar paterno, a grandeza do Criador, caracterizada na poesia risonha daquela manhã de inverno!... Carapebas. O Beija-Flor – Rio – 1º de julho de 1925.
  • 5. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ O EREMITA Ao padre Mata, talento e virtude. Alta noite. Com o crucifixo aconchegado ao peito, velando-lhe o leito mortuário, velha tábua nua, companheira de suas vigílias, apenas à luz bruxuleante do pequeno candieiro, o eremita agonizava naquela solidão, onde não havia, sequer, uma pessoa que pronunciasse, ao menos, o nome de Jesus! A agonia aumentava... O santo solitário sentiu que ia, em muito breve, morrer... Mas, assim, tão só?! Ele, que tantas vezes tinha levado os socorros da religião de Cristo nos últimos instantes de tantos infelizes?!... Era penoso!... Duas lágrimas, alvas como a pureza de seu coração, se esvoaçavam naquelas faces beatíficas, indo se perder na longa barba encanecida que lhe emprestava uma compostura venerável. – É que aquele apóstolo, que tinha vivido uma vida inteiramente espiritual, também se ressentia, de, ao deixar a terra que edificara com a excelência de suas virtudes, não haver uma pessoa que lhe vigiasse os últimos momentos de vida. Não era possível – o supremo Rei não abandona jamais os seus servos. Quando o pio missionário ia desfalecendo, placidamente, para que a sua alma sem a mais leve mancha se separasse de um corpo lacerado por tantas mortificações, uma claridade sobrenatural inundou a pequena cela, indo ofuscar o brilho apagado de seus olhos. – Era um querubim, enviado por Deus, que vinha assistir a exalação de seu último suspiro! Morreu... A voz do mensageiro celeste, no ofício dos mortos, ecoou por aquelas florestas longínquas que pareciam chorar, no farfalhar melancólico de suas folhas, o vácuo impreenchível que a seta da fatalidade acabava de abrir em seus domínios seculares... Logo depois, o velho monge, já vestido da juventude eterna do espírito, lançou um olhar de despedida àquelas paragens que o tinham hospedado durante mais de cinqüenta anos e, ao lado do anjo, partiu para receber no céu o prêmio de sua abnegação. Letras Novas – Natal, setembro de 1925.
  • 6. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ RASGA-MORTALHA Pelos meses cálidos do estilo, a travessia dos sertões nordestinos, feita em costas de animal, e palmilhando-se lugares de topografia instável, cheios dos mais dispares acidentes geográficos, torna-se penosamente esfadonha. Galgam-se cabeços e lombadas, secos e pedregosos, prenhes de cruéis dificuldades para o animal estropiado; transpõem-se córregos e riachos derreados em pequenos despenhadeiros, formando ridículas cachoeiras; vadeiam-se rios periódicos, a apresentarem leitos muitos alvos, aqui, numa porção mais fértil, recheados de vazantes de feijão e de batatas, ali, um perímetro nuamente arenoso, nodoado, apenas de longe em longe, pelas moitas verdejantes de algumas sarças dispersas desordenadamente. Quase sempre, passados esses terrenos mais vulgares, chega-se ao espinhaço gigantesco de uma serra, espraiada como um animal disforme, adormecido bizarramente, na impassibilidade impermutável de um sono de milênios. Ensaia-se a subida, arrostando temerariamente os múltiplos perigos de uma rechã atulhada de grotões e precipícios, e depois de algumas horas de um ascender verdadeiramente enervante, dominando-se com um olhar as majestosas perspectivas em derredor, continua-se a viagem, numa variante agradável, através de um solo uniformizado, de uma fertilidade, às vezes, perdulária, adaptável às mais delicadas culturas. E assim, ao amplexo causticante de um sol senegalesco, percorrem-se quatro a cinco léguas, e por vezes mais, em caminhos rasgados no seio inóspito de uma faixa de mato, por picadas sombrias e desabitadas, onde não se encontra a esperança de uma cacimba, para matar a sede devoradora, com a esmola de um copo d’água. Às vêzes, após meio dia de dura caminhada, quase sempre nas proximidades de rios e lombadas agricultáveis, defronta-se o ponto de descanso ce encardidas pelo lôdo das invernias passadas, um alpendre a meio esburacado, ou latada de folhas secas de oiticica, e dominando tudo, a garrafinha simbólica, pendente de uma vara, que encima a cumieira baixa e empenada. – Pouso de matuto e venda de cachaça. Diz logo o passageiro que descortina esses sinais, erguendo-se do matagal descarnado, à margem do caminho, e sem mais arrodeios encosta para perto: – Ó de casa. Bota abaixo se é tropeiro, empilha as cangalhas no alpendre, cura as pisaduras à mularada, e depois de matar o bicho com uma boa golada de aguardente, dá água aos animais, lava-os e deixa-os no peador, e após uma sóbria refeição – carne, farinha e rapadura – fica-se ali sesteando, na rede de fio da terra, armada de um esteio para outro, a ruminar saudades de seus mundos, assobiando ou solfejando velhas modinhas sertanejas, até uma modorra calma dissipar-lhe essas miragens nostálgicas. Mais tarde, quando o sol já declina para o leito crepuscular do ocidente, ainda ao banho escaldante de uma temperatura de ferver, o passageiro ergue-se,
  • 7. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ carrega a sua tropa, ingere um novo trago da branquinha, e papagueando uma despedida parca e invariável – “até a volta” ou “até outra vista” – prossegue na viagem, num silêncio que apenas perturba com o estalar repetido do gurinhém, ou a articulação do nome de um animal do coice que abandona a trilha traçada pela guia. Às vezes, o caminheiro que viaja mudo e despreocupado por caminhos tortuosos e maus, obstruídos em parte por moitas pequeninas de um matagal enfesado – marmeleiros raquíticos e pereiros pigmeus – depara ao voltear uma curva, o vulto desconhecido de outro transeunte. – Bom dia, amigo. E passados os momentos rápidos daquela saudação tão amistosa entre pessoas que jamais se viram, seguidos de ligeiros informes a respeito de uma errada qualquer numa encruzilhada de veredas, continuam em direções opostas, desconhecidos, indiferentes ao destino um do outro, no passo tardo dos animais de carga, levando atrás as areias movediças do caminho, desagregadas pela ausência de inverno. E assim, nesse ritmo imperturbável de surpresas deslumbradoras e enervantes, nessa translação contínua de coisas e de fatos curiosos, vai a vida nos sertões, sempre a mesma, de algum modo, nas suas usanças e costumes, e ao mesmo tempo cada vez mais encantadora, para quem nasceu nessa região tão malsinada pelos que não lhe conhecem as belezas. *** Aos primeiros dias de janeiro, sem pingo de chuva, bati durante mais de uma semana de viajar contínuo, os tabuleiros ásperos e pedregosos do alto sertão do Rio Grande do Norte. Era um descontar de pecados aquele peregrinar constante, por um solo cheio de contrastes, à ardência estafante de um sol tropical, ou à escuridão temerosa de noites sem lua, apenas parcamente iluminadas pelos pingos de luz das miríades de estrelas penduradas num firmamento lutuoso. Sol escondido, rompendo um terreno inclemente, andávamos num estradão seguido, sem volta, como uma avenida estreitíssima, desnivelada, cheia de mínimas e intermitentes depressões, e soalhada, de longe em longe, por acúmulos espessos de pedras, dispostas atrabiliariamente, num amontoado chocante. Muito adiante, ao atravessarmos o curso sinuoso de um riacho conhecido, passando à nossa frente em vôo rasteiro, no seu “tic-tic” agourento, um corujão rasga-mortalha pousou nalgum galho de catingueira próxima e lúgubre, com acento mortuário, desferiu as notas desentoadas de seu guincho horripilante. – Bem boa – advertiu detrás o arrieiro – anda a gente em paz por esses ermos, e semelhante zoada nos ouvidos. Vá rasgar a mortalha da mãe, esconjurado. – Ó Quirino, que mal nos vem, em que cante um pássaro? – Como, patrão?... O senhor ainda é muito novo, não conhece o que é a vida, não. Fale com esse cabra velho, que aqui nasceu e se criou, e aqui inteirou setenta e um janeiros, que ele lhe conta a história direito. Corujão é bicho
  • 8. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ endemoniado. Não abre aquele bico à-toa, não. É bicho agourento dos trezentos diales. E encostando, com um estalo de relho, o jegue de carga pra mais perto de minha mula rosilha de montada: – Nas primeiras chuvadas de noventa, no dia de S. Sebastião, foi-se embora de uma vez, pegado por um curisco, o coronel Feijó das Cacimbas. – Ora, “seu” Quirino, que têm os corujões com a morte do coronel? O meu companheiro, acurvando-se no meio da carga de macas, e pondo uma acentuação mais grave nas palavras, segredou-me quase ao ouvido: – Espere ai, patrão, que eu não acabei a história. Na véspera desse dia, de noite, um excomungado daquele dera dois ou três rasgos, na cumieira da casa grande da fazenda, onde morava o homem. E depois, com intonação categórica: – Rasga-mortalha é bicho danado. Cantou perto da gente, aparece coisa ruim. Não tem que ver. Já eram mais de sete horas. Tomados desse receio instintivo que nos invade o espírito, ao rasgarmos, em noite de escuro, o seio tenebroso da floresta, continuamos a viajar silenciosamente, ao longe1 da estrada silenciosa, despertados apenas, de quando em quando, pelo canto de alguma ave notívaga. *** No outro dia, logo ao me levantar, o velho condutor interpelou-me, com um sorriso aguado de melancolia: – O que foi que eu disse ontem, patrão, no caminho, quando aquele corujão cantou? Pois tá hí, a rosilha de sua sela tezinha de cascavel... – Rasga-mortalha é bicho danado. Carapebas. Diário de Natal – Natal, 4 de fevereiro de 1928. 1 No original está: “ao longe da estrada”; diga-se: “ao longo da estrada, ao comprido”. (nota de Manuel Rodrigues de Melo)
  • 9. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ A CRUZ DA ESTRADA Ao Nilo Pereira Estio forçado. As fumaças das queimadas de xiquexique e macambira no tratamento do gado, e de coivaras na broca de roçados se distribuíam como um imenso véu cinzento, desdobrado em toda a extensão do firmamento, donde se coava, em projeções desanimadoras, a impassibilidade de um céu descampado, sem a esperança de uma nuvem pesada. Em companhia de um capoeira de Santa Cruz do Traíri2, meião de altura e bem apessoado, palrador como periquito em coroa de juazeiro e avezado a bravatear façanhas, eu viajava rumo do sertão do Rio do Peixe, no estado da Paraíba. Inesperadamente, deparei-me com uma cruz tosca feita de dois pedaços de trilho de caçamba, sustentada no vértice por um entrançado de arame liso, encimando um montículo de pedras dispostas desordenadamente, de envolta com porções de uma argila avermelhada, no descampado de uma caatinga mal vestida, em que vegetavam, à custa de uma parca absorção de reservas vivificadoras, juremas pretas, pereiros e marmeleiro de roupagens estragadas. Era a algumas braças da variante ao antigo traçado da estrada de ferro. Aquela imagem grosseira do símbolo augusto da Redenção, que vem guiando há quase dois mil anos, os heróis do cristianismo, nos mais belos triunfos do espírito, ali tão só, naqueles escampos de flora depauperada pela avareza de um solo pobre de substâncias nutritivas, quando míngua o banho procriador das invernias abundantes, parecia implorar, da sua posição enfadonha de súplica contínua, a quem transitasse por aquelas paragens torrefeitas ao hálito plutônico do mormaço do meio dia, a esmola de uma prece pela alma simples e obscura que dormia despreocupadamente, à sua sombra, a modorra sem sonhos do além- túmulo. E eu, num instante, como que contemplei, na rija impassibilidade daqueles pequeninos braços de aço, constantemente abertos, a resistência granítica da muralha da Fé, agüentando imutável todos os combates pérfidos e levianos dos doidos vagalhões da impiedade. Ao defrontarmos com ela, lá no seu posto de sentinela de uma sepultura abandonada, perto do caminho em que nossos animais estropiados pisavam às apalpadelas, o meu condutor sofreou nas cabeçadas do freio a mula cargueira que carregava as minhas malas e, sem dizer palavra, marchou na direção da sepultura humilde da estrada. Lá chegado, ajoelhou-se, fez o “pelo sinal” atordoadamente, arremedando com o polegar meio acurvado, em linhas claudicantes, três cruzinhas mal feitas, respectivamente, na testa, na boca e no peito, conforme o rito cristão; inclinou a cabeça e deixou-se estar assim alguns minutos, mãos postas, naquela posição piedosa, balbuciando, acanhado, uma oração ininteligível. Terminada esta, o cargueiro benzeu-se, desenhando com a destra estirada a prumo uma cruz disforme da testa ao abdomen; com a mesma ligeireza e 2 Santa Cruz do Inharé (nota de Manuel Rodrigues de Melo). [Santa Cruz-RN].
  • 10. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ instabilidade de linhas ergueu-se, de um salto, caiu de joelhos nas ancas da russa, acomodou-se no saco das redes que servia de meio de carga, sustava com uma mão as cabeçadas e com a outra o cabo da trança e ainda calado sob o peso daquela emoção religiosa, tocou pra frente no caminho áspero. Surpreendido com seu gesto estranho de profunda veneração, perguntei- lhe quem jazia ali naqueles ermos e que lhe merecia tanto respeito. O mulato explicou com uma entonação de voz, pela qual não era preciso ser-se psicólogo muito arguto para apreender facilmente o acento de tristeza sincera que lhe ia nas palavras, dolorosamente: – Aqui, seu moço, no camarada do mês de Senhora Santana, da era de treze, eu era molecote sambudo, um apontador da linha de ferro matou meu pai, por causa de um engano de dois vales, com doze punhaladas. Não trocaram palavras. E ainda com a mesma acentuação magoada nos vocábulos: – E pra vosmecê ver: não teve uma ave-maria de penitência. O doutor da residência passou-lhe a mão pela cabeça e o que é certo é que a coisa ficou encoberta em sete capas e o criminoso aí soltinho na rua, como se nada deste mundo tivesse feito. – Ele ainda continua em liberdade, Camilo? A esta pergunta a fisionomia de meu companheiro se iluminou subitamente de uma como tranqüilidade tigrina, resultante do cumprimento altaneiro de um dever escabroso. E baixando a fronte, pra não me fitar, como costumava fazer sempre que finalizava a narração de alguma fúria sua, retrucou com um risozinho desbotado de amarela ferocidade: – Inhôr não. Anos depois, já frangote taludo, topei com ele numa volta de caminho, casquei-lhe uma ponta de espada nas cruzes até o enterço, e botei-o para a terra da verdade. Já passava de meio dia. Adiante, a casa do descanço, assentada no cocuruto de um cabeço descalvado, nos apresentava em meio o brazeiro do sol, a hospitalidade atraente de seu alpendre, derreado preguiçosamente ao amparo de quatro esteios velhos de angico, toscamente lavrados. Em 31-8-928. Diário de Natal – Natal, 26 de fevereiro de 1928. Vida nova – Rio, 20 de outubro de 1928.
  • 11. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ O VIAJANTE... Ao Luís da Câmara Cascudo Era nos dias calamitosos da seca de 15, um dos maiores flagelos que, nesses últimos tempos, têm assaltado os sertões nordestinos. No céu, sem nuvens, de um azul desbotado, pairava a serenidade irônica dos estios prolongados, numa indiferença implacável aos reclamos da terra, exsicada pela ausência absoluta de chuvas. Em baixo, no solo despido e poeirento, descortinava-se o quadro compungente de uma vegetação tuberculosa, completamente desnuda, a ostentar, numa sequência desanimadora de secura, aos olhos de quem passasse, os cenários mais desoladores. Nos tabuleiros tristemente nus, sem o recurso de uma haste de pasnasco, devorado logo aos primeiros paroxismos da desgraça pela gadaria faminta, apenas, aqui e ali branquejava, como uma nota de grandeza naquelas regiões acabrunhadas pela torreação do solo criador, a brutalidade granítica dos serrotes, feitos poderosas reservas caloríficas ao ósculo calcinante de um sol abrasador. Ao trote macio da mula ruana bem ajaezada, rumo do sertão cearense, vindo da capital do Rio Grande do Norte, um viajante de Recife devorava os quilômetros do caminho, absorvido em mil planos comerciais, num completo alheamento dos traços de miséria que a seca imprime, em ásperas mutações, no rosto desfigurado das paragens sertanejas. Adiante, o sertanejo Firmino, acossado pela miséria que campeiava em seu lar desventurado, deixava a esposa aflita, a consolar a filharada faminta e nua, e, igualmente, em tiras e faminto, saía sem destino pelo mato, para procurar no âmago dos campos ermos e sem vida, alguma coisa que desse a comer àquela prole desgraçada. E infestou toda a redondeza, subiu cabeços descalvados, embarafustou-se em grutas de serras, bateu todo aquele trato de terra incinerado pelas chamas da fatalidade climática, à cata de uma ave qualquer capaz de se comer, de uma caça a tombar de magra e, por fim, já lhe servia até o cadáver nauseante de uma rês morta de consunção, há pouco tempo. Nada disso porém. Apenas encontrou arcabouços, em adiantado estado de putrefação, os quais serviam de repasto, em que se banqueteavam, em orgulhoso requinte de prodigalidade, gordos urubus de parceria com um ou outro cão do serviço de gado que cambaleante e espectral, disputava, algumas vezes, aos imundos voadores, aqueles laboratórios repugnantes, em que se realizavam as reações nauseantes da decomposição. O sol no seio de um terreno escampado, sem o amparo agradável das sombras compactas, numa profusão satânica de chispações ardentes, envolvia tudo numa temperatura de fogo, e ressequia a laringe e estalava os lábios de quem caminhasse a pé, àquelas horas, ao beijo ígneo de seus raios. O sertanejo, sedento, percorreu com as fauces a arder, todas as aguadas conhecidas. Tudo seco. Nem um pingo do precioso líquido. Até o poço do “Olheiro das Grotas” escancarava a grande boca circular torrada, cheia de uma lama escura, à indiferença dos céus, numa súplica bizarramente triste.
  • 12. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ Firmino tocou de volta mudo, desanimado ante a grosseria de tantos sofrimentos, com a garganta a explodir de sede, transido de fome. Ao chegar, já tarde, encontrou a mulher a chorar vencida pela dor lancinante, sentada sem alentos a um canto da saleta de ramo esburacada. Morrera de fome o caçula de poucos meses. Os seios maternos, exauridos pela ausência da alimentação, não tiveram, no momento, uma gota de leite para salvar a fragilidade daquela existenciazinha desgraçada. O sertanejo, desapontado com tão cruel imprevisto, saiu para o terreiro, enquanto, num choro intermitente, os outros filhos, enlaçando-lhe as pernas, pediam-lhe freneticamente um comerzinho. Sentou-se num toro de carnaúba à porta da choupana, e, num instante em seu coração de pai infeliz abriram-se abruptamente as chagas dos mais atrozes sofrimentos íntimos. Nesse momento, um moço desconhecido, parando a montaria, pediu para ensinar o caminho do Crato. O dono de casa satisfê-lo prontamente e, após historiar o drama doloroso de sua dor, implorou-lhe uma esmola cheio de acanhamento, e sem dar tempo a que o passageiro respondesse, acrescentou com tristeza, como se quisesse traduzir na voz toda a amargura que lhe recortava a alma sofredora: – Vosmecê veja que é muito triste para um pai ver assim morrerem os filhos à míngua de um bocado, e ele não ter jeito a dar. Mas que se há de fazer... E uma onda de pranto irrefreável susteve-lhe a palavra violentamente. A mágoa do inditoso filho do sertão, que capitulava à dureza dos revezes, desfez-se numa caudal impetuosa de soluços, inconsolavelmente. O recém-chegado olhou para o interior da palhoça arruinada, onde uma mãe cobria com suas lágrimas o cadáver do seu filho que não pudera salvar com seu leite. Depois, presenciou lá fora um sertanejo moço tendo desenhados nìtidamente nas faces escavadas os estigmas dolorosos da fome, quedar inânime ante a lamúria de criancinhas cadavéricas, numa ostentação compungente de pequenas ossaturas agudas, e ameaçadas também da mesma sorte, Mudo, tomado de grande comoção, puxou, num gesto rápido, maquinal, desataviado, a carteira recheada, passou-a ao Firmino e, antes que este ensaiasse o mais simples agradecimento, retirou-se para não mostrar as lágrimas. O sertanejo, perplexo, ainda procurou falar-lhe, mas já ele desaparecia na curva do caminho. Diário do Natal-Natal, 27-3-1928.
  • 13. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ A RESSUREIÇÃO Ao Cônego Mélo Lula E enquanto a plebe ignara turbilhava, doida, pelas ruas, o coração materno de Maria se transportava em lances de agonia e as mulheres santas molhavam com suas lágrimas o lugar do sacrifício, ao lado do discípulo amado, o Deus crucificado abandonava no peito ensaguentado a fronte macilenta e, Redentor do gênero humano, expira pela salvação dos homens. A natureza como que experimentara um colapso formidando. A terra toda tremeu, agitada por uma como convulsão titânica dos elementos. Consumara-se um deicídio. No espírito de Madalena, a sublime convertida, ficaram, em visões horríficas, todas as cenas sanguinárias da paixão do Mestre, amenizadas apenas pela promessa consoladora da ressurreição. E na madrugada do terceiro dia, a magna pecadora, munida de bálsamo e outras essências, partia, com duas companheiras, para o horto em que José de Arimatéa sepultara o corpo de Jesus. Dolorosa surpresa: o sepulcro, aberto, estava abandonado. – Os fariseus roubaram o corpo do Nazareno para profaná-lo. Suspira Madalena numa vertigem de desalento. Chegara ao epílogo a tragédia hedionda do Calvário, o maior e o mais horrendo desvario de todos os que cometera essa humanidade ingrata que perpetrara o suplício de um Deus, feito homem para redimi-la da culpa dos primeiros pais. A paixão do Cristo havia sido um drama doloríssimo de sofrimento. Desde que o discípulo mau imprimira nas faces divinas do Mestre o ósculo letal da traição, que ele começou a ser alvo dos maiores doestos e violências. Os algozes culminaram nos excessos de sua impiedade. Conduzido a Amáas, Caifás, Pilatos, Herodes, recambiado àquele, a jornada do Divino Réu foi toda uma tempestade de insultos e chacotas, de chufas e grosserias de poviléu estulto, a vociferar em volta da figura serena do Messias. Um juiz pusilânime, aos anseios da turba fanática, lava as mãos criminosas como se a ação do cristal corrente alcançasse as imundícies do espírito, e covarde, e hipócrita, e infame, dissimula na condenação do Sublime Inocente. Começam para o Cristo os momentos amargos da via dolorosa. Açoites brutais, escárnios de toda sorte, palavras irreverentes, escarros no sagrado rosto, a coroa de espinhos, a esponja de fel, tudo isto tolerou com paciência imperturbável o Divino Condenado, nessa caminhada de dores, até o topo do monte que servira de patíbulo para a imolação de um Deus. Aí ficou-nos a lição maior da passagem do Cristo pela terra. E quando, com a presença dos apóstolos, se verificou que apenas estavam no sepulcro os lençóis e o sudário que serviram ao Sagrado Morto, a tristeza da discípula se dissolveu numa torrência diluvial de lágrimas. Mas Jesus reservara à mulher um papel sublime de amor no drama crudelíssimo da paixão.
  • 14. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ E Madalena chorava, de pé, olhos fitos no sepulcro. Subitamente alguém lhe diz: – Mulher, por que choras? E ela com expressão de sofrimento: – Senhor, se fostes vós quem o tirou, dizei-me onde o pusestes, e eu irei buscá-lo. – Maria. Foi a resposta de Jesus, que não quis afligi-la por mais tempo. Sim, era Ele realmente. Era o Bondoso Jesus, que baixara à atmosfera infecta de uma sociedade viciada, para libertá-la da podridão e do erro e integrá-la nas delícias da graça e da renúncia cristã. Jesus ressuscitou. Diário de Natal – Natal, 8-4-1928.
  • 15. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ VISAGEM * – Quando eu era rapaz moço, patrão, também pensava assim como vosmecê: não acreditava em alma do outro mundo, não. Se alguém me contava um caso de assombramento, eu me cantava logo com as doidices: qual nada; isso é “busão”. Um homem mesmo não anda vendo visagem, a toda hora. Eu só acredito em alma aparecer, quando uma gaiata dessas me apertar as goelas, até eu botar um palmo de língua de fora. Ainda de uma feita, eu me andava peneirando pra banda da Ritinha, a minha primeira mulher, que Deus tenha em bom lugar, estava se fazendo quarto a um menino do “Fulozino” das Pitombas, e eu disse tanta besteira, por via de um camarada contar uma história de alma, que fiz arrepiarem os cabelos a quanta morena assistia por ali, fazendo a caridade ao inocente. Ora, vai se não quando, morre na vila o Minervino de Braga, um “diabo” de português velho que, em vida, não lhe sirva lá de pena no outro mundo, nunca dera um vintém a um pobre, por mais miserável que fosse. O que respondia era que trabalhasse como ele que não lhe faltariam meios de viver à farta. Casimiro fez uma pausa, respirou cansado, e continuou com a sua voz rouquenha e preguiçosa de tuberculoso crônico. – Dias depois, por volta das dez da noite, escuro de meter dedo no olho, cheguei da vila no “faceiro”, um cavalinho melado caxito que eu tinha apanhado por troca da mão do cigano Neemias na feira do Pombal, no tempo em que andava na estrada com uma tropa de “seu” capitão Fulgêncio da Ararinha. E disse pra caseira: – Você vá cuidando no escaldado, enquanto eu dou ali um saltinho no “bebedor”, pra passar água no “faceiro”. O narrador açoitou o mulo das macas, e intercalou um parêntesis. – Ah! Meu patrão, cavalo dengoso como aquele, esse seu negro velho não tem mais o gosto de possuir, não. Baixeiro, manteúdo, acordadão, pra uma jornada só mesmo o trem de ferro. Era um gosto mesmo viajar nele, como lá diz o outro. Depois retomou o assunto. – Bem, como ia dizendo, lacei uma corda de embira no pescoço do cavalo, passei-lhe a perna em riba, e saí cantarolando pra cacimba. Agora é exato que, quando fui me montando, passou-me assim pela mente a lembrança do Minervino. Mas ”nanje” que fosse sobrosso que, verdade seja dita, eu não era um sujeito pra andar me assombrando já e já, sem ver de que. E continuei minha viagem até a cacimba de gado, que ficava a um bom pedacinho, sem me lembrar mais de tal criatura. Ao chegar à “manga”, o cavalo estacou, bufando e tremendo, sem querer encostar. * Este conto foi divulgado em primeira mão, no Diário de Natal, sob o título “Alma do Outro Mundo”, a 21 de abril de1928, sendo, posteriormente, refundido pelo autor e publicado na revista Excelsior, do Rio de Janeiro, com o nome de “Visagem” (nota de Manuel Rodrigues de Melo). .)
  • 16. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ – Espere lá, que história é essa? – pensei comigo mesmo, num segundo. Decerto o meladinho era bem esperto, meio passarinheiro, mas também não era burro mulo que precisasse de esbordoamento pra atravessar um apertado. Dei-lhe umas lambadas mestres, com o nó da ponta da corda, sacudida a preceito, e nada. O bicho gineteava aos bufos, chega levantava o poeiriço. Nisso, passou-me assim pelo corpo “mode” que uns arrepios de frio e os cabelos da cabeça, pesar de “pixains”, se levantaram todos, chega deu pra erguer o chapéu de palha de “catolé” comprado na cidade de Sousa. Aí me veio à mente outra vez, escritinha, a figura do canira do marinheiro, como eu tinha visto no cemitério da vila, no dia do enterro. E – pra que não dizer? – fiquei com tanto medo, chega parece que o cavalo me fugia das pernas. Olhei pra cacimba e pra gangorra, pra ver se descobria alguma coisa, que aquilo já estava me amofinando de veras: nada. Apenas o pretume da escuridão embrulhando tudo num lençol de tisna. Quis cobrar alma nova e danei o couro no “faceiro” mesmo a preceito, como quem queria esfolar o “bacaiau”. O pobre bruto, a cada lamborada, recuava, num resfolegado forte, empinando e tremendo que nem vara verde. E vosmecê me acredite por fé de verdade, não é trapaça não, é exato que eu não vi nada com meus olhos, mas parece que uma coisa me repuxou todo, eu quis gritar e senti um estalo na garganta. Daí em diante não me lembro de mais nada. E finalmente, pra encurtar a história, só sei que, quando vim a dar acordo de mim, estava todo inteiriçado, com a garganta que não podia dar o goto, deitado numa rede nova de varandas, já pela madrugada, e a Ritinha me balançando, a enxugar as lágrimas com a manga do casaco de chita quadrejada. No outro dia, de manhã, o “faceiro” foi encontrado prontinho, no encosto do mato. Não tinha um arranhão. Após um ligeiro acesso de tosse, meu companheiro arrematou, com inflexão, triste: – De lá pra cá, digam o que quiserem os outros, nunca mais duvidei do aparecimento de visagem.
  • 17. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ NO RANCHO DOS BENTINHOS Ao José Borges O comboio alcançara, já tarde, o rancho dos Bentinhos, uma velha quixabeira centenária, que, implantada em sítio aprazível, à margem do caminho, dava abrigo, desde tempos velhos, a quanto matuto que por ali passava, rumo do sertão rio-grandense. O sol posto, em toda a fisionomia da natureza, começavam a aparecer os primeiros sintomas de sua languidez noturna. Apenas para as bandas do ocidente se debuxavam parcamente os últimos visos de um crepúsculo fugace. Chegado todo o comboio, os matutos foram descarregando as tropas com insofreguidão, dispondo em pilhas as cangalhas e amontoando os costais, em volta do grosso tronco da árvore-estalagem. Era uma partida de cereais que os freteiros do capitão Antero de Lima levavam de baixo para a serra de Luís Gomes. Lavados e peados os animais, para irem babujando por ali mesmo até o sair da estrela, quando continuariam viagem, o pessoal armou as tipóias e foi empalhando o tempo com conversas, enquanto tomava umas fervuras o caldeirão de ferro, recheado de feijão e carne de sol, comprada na feira de Santana. O velho Higino Barros, decano da tropa e lugar-tenente do patrão, comentava com outro camarada, enchendo o pito sarroso de bom fumo do Brejo: – Tu reparaste Jerome na pacholice do cordãozinho? Compadre Antero passou foi uma taboca danada naquele moço de Araruna. Um bicho novato desse em segunda muda, carregado a 10 arrobas e nem como coisa... Parecia um quartau serviçado. E o outro acrescentava, prazenteiro: – Seu Capitão mesmo só tendo pauta com o demo pra negócio. Se foi na troca daquela burra melada de meu coice, em outubro do ano passado, na vila do Cuité, só faltou mesmo foi deixar o pobre do missangueiro a pé, com os trens na cabeça. E a prosa resvalava em assuntos diversos. Analisavam-se as dificuldades da viagem: uma carga rolada, um atoleiro, um animal estropiado. O garbo de um cargueiro. As qualidades do patrão. E dizia-se: – Ah! aquilo é que é homem de sim, sim; não, não. Prometeu, tá prometido; também negou, negou mesmo. Nem afunegue mais. E a coisa foi neste pé, até cair no terreno das próprias façanhas. Foi logo o Jerônimo, mestição corpulento e de má fisionomia, metido a valentão, que começou o novo assunto: – O caso acontecera, há coisa de dois anos e meio, na entrevéspera de Natal. O narrador acendeu, com o isqueiro, um cigarro grosseiro de palha de milho e continuou: – Eu viajava da cidade, já era escuro de tudo, num bichinho alazão-tostado com um dinheiro do major Malaquias. Os senhores sabem que eu fiz muito mandado dele. Pois bem, no meio da estrada, naquele picadão esquisito, e, além disso, com quatro contos de reis alheios no bolso, quando olhei pra trás, lá vinha
  • 18. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ um freguês a pé, quase de chouto, e com uma espingarda ao ombro. Encostou-se a mim, regulou a marcha pela de meu animal, e continuou emparelhado, sem dizer uma palavra. Aí, já fui logo cismando, que sempre achei uma desfeita o sujeito passar por outro e não lhe dar as horas. Mas, virei-me pra ele e disse com voz firme: boa noite, amigo. Nada; foi mesmo que ter falado com uma pedra. Outra vez: amigo, boa noite. A mesma coisa. Não me tornou resposta. Quis me afobar, mas calculei comigo: espera lá meu diabo, que tu estás muito enganado. Nós anda juntos, daqui até dia de são nunca, mas parte de fraco é que eu não hei de dar. E assim tocamos pra frente. Mas o alazãozinho não furava mais nada. Só marchava, como lá diz, à vara e a remo. Na barriga, não restava mais cabelo. Saíra todo nas rosetas das esporas de ferreiro. – Os senhores conhecem bem aquele pereirão do fim da picada, perto da Esperança, não é? Higino adiantou-se logo: – Ora se... Lá mesmo de uma feita, por um nadinha, não espatifei o quengo de um. O cabra quis me intimidar, mas não me faltou repente: sua vida é como a minha, meu duro, e, se quer, vamos ver qual estraga mais: a ponta de sua faca ou a boca de minha pistola. Jerônimo, já meio impaciente, retomou a narrativa: – Bem, como ia dizendo, ali naquele pereiro, o cavalinho em tempo de botar o coração pela boca de estrisiado, resolvi ficar até demanhãzinha. E pensei: por certo este fantasma agora passa. Mas qual nada. Quando acabei de pear o peste do trangola, já o sujeito estava sentado e a meia-coronha encostada no tronco do pereiro. Vieram-me à mente não sei quantos pensamentos ruins. E maginei logo: por certo aquele sujeito viu quando eu recebi o dinheiro e quer me fazer uma treição, fora de hora. Só decifrando essa charada, mas é já. Fui e falei outra vez: – Amigo, qual é a sua graça, que mal pergunto? Nada. O infeliz nem olhou pra mim. Olhem, os senhores me acreditem que eu não fiquei em mim de raiva. Os bofes me incharam dentro e o sangue ferveu nas veias, que a falar franco, nunca fui arruaceiro, mas também, o suplicante não se meta a troçar de mim não, que sai roubado, em dois tempos. O narrador sugou as últimas baforadas do cigarro, jogou a ponta fora e prosseguiu: – Aí eu levantei-me e saltei-me com ele, por aqui assim: – O senhor é doido, não carrega língua ou que diabo tem, que não fala? A fazer pouco neste cabra aqui (bateu no peito com a destra espalmada) não se meta não que se molha. E se quer imendar os bigodes comigo é só correr dentro. Ele não respondeu mas, desta vez, pegou a espingardinha e ganhou na estrada, olhando pra trás aqui e acolá, e quase de carreira. Eu, já meio receoso, cobri-o com o cano da garrucha, pra tocar-lhe fogo, mas baixei a mão. – Diabo leve o homem que mata outro pelas costas. Após ligeira pausa, findou aliviado: – E parece que foi Deus mesmo, que me ajudou. No outro dia, quando cheguei à rua, foi que soube: o freguês era um mudo que dera por ali, há uns oito dias.
  • 19. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ Depois, aproveitando a impressão ambiente, ainda acrescentou vaidoso, de olhos fitos na arma, que pousava num dos meios – de – carga: – Agora fosse eu, temendo a volta dele mais tarde, descarregar uma excomungada daquela num pobre, coitado, que nem falar podia. Uma estrela-cadente, lacrimejando fogo, desenhou no espaço uma grande risca luminosa. Os matutos disseram todos, a uma vez, com respeito religioso: – Deus te salve, Deus te salve, Deus te salve... Era hora da refeição. Caborés e mães-de-lua soltavam, na calma da noite, as notas desafinadas de seu canto monótono. Ao longe, tudo eram trevas. Apenas vaga-lumes diversos luze-luziam esparsos, nas baixadas próximas. Diário de Natal – Natal, 3 de Junho de 1928.
  • 20. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ TAPERA Ao Antônio Fernandes Eram mais de 10 horas do dia quando, passada uma várzea inculta e fertilíssima, recoberta de “coroas” pujantes de verdura, eu e o arrieiro, um cabra autêntico do Seridó, amarelaço de cabelos encrespados, chegamos à beira do rio. Parei um instante, e o seriodoense foi logo me advertindo com bom humor: – É pra tocar diante, patrão. Temos ainda boa tirada de testa e o sol já está lá em riba. Seu jegue, porém, ficou-se a beber pachorrentamente a água límpida que deslizava quase imúrmura pelo leito plano, como remanescente das últimas enxurradas de junho. E ele adiantou, comiserado da sorte do cargueiro: – Está com preguiça, burro velho? Nem é pra menos. Andar puxando um pobre guenzo deste, desde o quebrar das barras até o solão nessas alturas, não é lá tão pouco. Depois deu de rédeas no caminho, cantarolando velhos motivos do sertão. E entramos noutra várzea da mesma riqueza vegetal. Tudo aquilo, assim reverdecido pelo banho rejuvenescedor do inverno que findava, ostentava uma beleza natural fascinadora. Marizeiros enormes, pequenos arranha-céus de esmeralda, erguiam ao espaço sem nuvens o penacho bizarro de suas ramagens gigantescas. Oiticicas numerosas ofereciam ao viajante o conforto provocador de suas sombras compactas e além, pontilhando o varjado, floresciam esparsos juazeiros e tira-fogos virentes. Pelos interstícios dos troncos das árvores, macegas de jiritana, melão de S. Caetano e muitas malvas formavam tecidos de malhas estreitíssimas, rompidos apenas pela trilha esguia do caminho. O sol, dominando um firmamento limpo, sombreava de tênues franjas de ouro a fronde verde do arvoredo. Tudo eram encantos. E ainda mais, os passarinhos, pousados no matagal risonho, modulavam, numa desarmonia interessante de sons, as notas variadas de uma música original. Quem sabe? – Talvez até canções chorosas, recordando sonhos felizes de amores, ali ao abrigo daquele mesmo matagal da várzea. Pelo menos isto, decerto pensou o arrieiro que entoou, com sua voz inculta e forte de sertanejo, a quadra de uma modinha conhecida, muito adequada ao caso: Quando a passarada canta Suas trovinhas de amor A minha tristeza é tanta Que desfaleço de dor.
  • 21. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ Vencidos esses terrenos úberes que debruavam, como colossais varandas de verdura, o curso do rio, chegamos a um planalto de vegetação mais pobre onde se notava a sede de uma moradia antiga. Era uma velha casa de aspecto solarengo, sem portas, paredes de tijolos carcomidos pelo trabalho corrosivo das invernias sucessivas e teto inteiramente danificado, que no conjunto desordenado deixava transparecer essa nota desagradável e impressiva de pavoroso que envolve as coisas trágicas e misteriosas. Ao aproximarmo-nos, o meu companheiro interpelou-me meio sério: – O patrão sabe que tapera é esta? A uma resposta negativa, prosseguiu: Contam que em eros tempos morava aqui um fazendeiro rico. De uma feita, indo comprar mantimentos na praça, na ausência dele, mataram-lhe a mulher e três filhos pequenos, sem se ter nunca descoberto o autor do crime. Ainda: – De lá pra cá, este lugar ficou amaldiçoado. Ninguém mais quis morar nele. E depois de pequena pausa arrematou, dando às palavras um tom de convicção: – Eu de mim mesmo não sei, que nunca tive ocasião, mas, ainda hoje em dia, dizem que quem vai, quem vem, quem passa por aqui fora de horas ouve um arruído peitado a modo de grito de mulher e choro de criança. *** Quando de volta, meses depois, alcançamos o velho solar abandonado, o sol já estava posto, e os últimos lampejos desbotados da claridade crepuscular como que emprestavam mais um acento de lugubridade desalentadora àquele sítio ermo que a credulidade popular povoara de duendes. Nada vimos. Apenas um corujão macambúzio, insulado no alto da cumieira mutilada, parecia contemplar assim com uns ares de superior aborrecimento aquelas ruínas pouco célebres, em cujo ambiente se circunscrevia a noite ininterrupta que protegia o mistério de uma tragédia grosseira. Diário de Natal – Natal, 2 de outubro de 1928.
  • 22. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ POLDRO BRABO Terminada a labuta do curral e da cacimba, o pessoal da vaqueirice conversava, no alpendre da casa grande, com o amo que, sentado numa cômoda rede de varanda, se balançava, aguardando a hora de montar num poldro do Tabuleiro das Onças, pegado “de bebida”, na entrevéspera3 à noite. E o sertanejo dizia, efusivo para os ouvintes, ao avistar o animal: – É, pessoal, bicho desses pastos só leva gente no lombo disto pra mais velho, que é pra não se prejudicar a forma e enfraquecer a sustância da raça. O poldro era uma bela estampa de cardão escuro, bem assinalado, olho vivo e orelhas pequeninas e entesouradas. Enquanto os vaqueiros lhe analisavam as qualidades, ele permanecia atado pelo grande cabresto de couro cru ao velho pereiro ramulhado do pátio, a estremecer de quanto sopro mais forte de vento lhe arrepiava o pêlo. Quando o camarada, que ia montar, chegou, o Camilo, um rapagão forte de 19 anos, filho do vaqueiro das éguas e encarregado geralmente deste mister, o velho Casimiro, decano dos servidores da fazenda, foi-lhe aconselhando: – Menino, calma e faça força nas batatas das pernas que bicho brabo não tira brincadeira com lombo de gente. – Qual ti Casimiro – advertiu o Felipe – vosmecê não tome por desfeita à sua pessoa não, mas eu há vinte anos que luto nesta vida, e nunca olhei pra um bicho, assuntando bem nos sinais e fitando direito pra o olho dele, que não lhe descobrisse logo as manhas e os préstimos. Não monto nele aquele molequinho que está brincando de vaca de osso no oitão, pra não me chamarem de doido, porém esta marca não me engana mais: manso que só quartau tanjão. É capaz de não escabecear. Esse luxo de espanto é só enquanto não se passa a perna. – Não fale assim não, seu Felipe – contraveio um camarada – animal brabo tem sido sepultura de muito cabra montador, acostumado a tirar potoca de burro erado. Nem todo dia é dia santo. Aqui mesmo eu vi um poldro melado em segunda muda, de uma feita, jogar um cabra respeitado neste ofício fora da sela que, se não fosse na areia do rio, os tutanos da cabeça tinham voado longe. E lembre-se das upas que este bicho deu no esbrabejamento. Gineteava no cabresto que nem jararaca em areia quente. E gordo de peito e anca como está, o lombo escorrega que só sabão da terra. Quem montar, se não firmar o corpo, está por terra, em dois tempos. É o que lhe digo. – Ora, replicou o outro, deixemos de falatório. Se o Camilo não aguentar o arranco do cardãozinho e comer barro em poucos pulos, quem vai montar é o Chaguinha, pra mostrar ao irmão como negro dos Pereiras tira pataraca de poldro brabo, ainda em camisão. – Ta, Felipe, eu só queira que este poltro tirasse o Camilo, eu desejava ver se você tinha coragem mesmo de sacudir um pedaço de cristão daquele em riba de um excomungado deste – disse alguém. Felipe respondeu: 3 Antevéspera, no dia antes da véspera. O povo diz: entrevéspera, como grafou o autor, seguindo a forma popular (nota de Manuel Rodrigues de Melo).
  • 23. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ – Se tinha é uma história. Está dito. E beijou sucessivamente as costas de uma e outra mão espalmadas, em forma de juramento solene. Em seguida: – E para ver – voltando-se para o filho que, meio apreensivo, escutara a conversa, encostado a um esteio – Camilo voa em cima em osso mesmo, pra acabar com esse discurso oco. O rapaz, calado, com um ar de desconfiança, marchou para o pátio, onde se achava, posto a soltas, o cardão. Quando o montador se aproximou para montar, o poldro agitou-se todo, à vista daquela figura estranha, recuando de súbito como se quisesse empinar. Camilo, mal impressionado com as conversas do alpendre, não repetiu a tentativa e inesperadamente, cabisbaixo e acanhado, deu de marcha para o terreiro e disse ao pai estupefato: – O coração me pede que não monte, eu tive uma cisma e não monto mesmo não. Sucedeu-se um silêncio geral, desenhando-se apenas em alguns semblantes um sorriso desbotado de admiração e de surpresa. O pai de Camilo, a fisionomia carregada, dirigiu-se mudo para o Chaguinha, um menino de 12 anos, ergueu-o pelas axilas e, com espanto geral do auditório, disse com desdém: – Seu Quim, faça o cabresto bem curto e segure este diabo com unhas e dentes, que eu quero descarar um mofino. E após umas poucas ligeiradas no animal jogou-lhe em cima o cabrinha em chambre, de olhos de pitomba, a sorrir alegre de seu papel de peão precoce, deixando ver uns dentinhos alvos e pontiagudos de camundongo. O cavalo, ao atrito da carga leve, começou a estremecer-se todo, da cabeça à anca, num resfolegar forte, nervoso; depois saiu num chouto desaprumado pela grama seca do pátio, como se ensaiasse trocar os passos do baixo; a um puxão no cabresto, voltou em direção oposta, tomando aqui e acolá ligeiros espantos, acompanhado pelo olhar apreensivo dos presentes. – Não deu um salto... Diário de Natal – Natal, 17-11-1928
  • 24. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ A CAÇADA Chegado à “Tocaia das onças”, onde ordinariamente pernoitavam os caçadores daquelas bandas, Zé Antônio, como não encontrasse ninguém, resolveu torar pra fora, pra sua morada da “Campina”, a fim de no outro dia, sábado, fazer feira com as caças na povoação. E sacudiu-se, absorvido em planos financeiros. De feito, fora uma bela caçada a daquela semana: dois veados chancudos, três pebas, um verdadeiro, um tamanduá e a ema que quebrara de travessa, na “ceva”, com a lazarina do Fulosino. Isso sem falar em duas canadas de mel de jandaíra e mosquito que topara, em três imburanas da “lombada formosa”. E monologava bazófio: – Bicho arma boa, essa de Fulosino. Se o cabra não trastejar na pontaria, é o fuzil cortar e o mocotó dá nó. E caminhava, na batida do Jegue, tateando, em meio à escuridão tétrica da noite, ao longo do fio sinuoso da vereda. Aqui, sobressaltava-o o esquivar-se rápido de um animal pequeno, pelo folharal espinhento das macambiras. Ali, o inopinado de um assovio estrídulo, a despertar-lhe no espírito a recordação atávica das “caiporas”. Mais além, o ruído significativo de uma cascavel espiralada ao pé dalguma macega próxima, à espera da primeira e desditosa artéria que se lhe aproximasse, para inocular-lhe o líquido mortífero. O sertanejo estacou cauteloso. – Homem, cobra é vivente que não faz o “pelo sinal”... Deteve-se um pouco. Observou bem a direção do toque do maracá. – É pra quelas moitas de guaxina. Mas, por precaução, antes de marchar, recitou a jaculatória poderosa: S. Bento, água benta, Jesus Cristo no altar, arrede-se todo bicho venenoso que eu quero passar. Açoitou o jegue com a vergôntea de marmeleiro, e ele rumou indolentemente no caminho escuro, muito malandro, se torcendo ao ritmo das vergastadas, seguidas de outras tantas exortações furibundas: –Tartaruga, diabo eu te mato... E lá iam, rasgando a solidão horrífica da noite, em que a natureza se multiplicava em enigmas e mistérios, a que não faltava a voz medonhamente assustadora da suçuarana, como um completivo à melopéia estúrdia dos ruídos do campo. Adiante, ao aproximar-se dos mofumbos da “baixa grande”, um rumor estranhou despertou a atenção do caçador: – Espere lá, que negócio é este? Sucessivas vezes, a copa rasteira do mofumbo se agitava toda, como se estivesse alguém a escabujar lá dentro, ao tempo que se ouvia um como ressonar forte e entrecortado. Escutou mais demoradamente, e a mesma coisa se repetindo com regularidade. Lembrou-se que se dizia muito que por ali apareciam visagens a desoras. E mesmo era dia de sexta. Seu sogro mesmo, o velho Simplício, que não era homem de história furada, vira, naquela mesma baixa umas tochas de fogo na derradeira sexta-feira do mês de S. João, à noite. Os cabelos se eriçaram todos, e o sertanejo receou que estivesse diante de si a alma do outro mundo. Só requerendo: – Quem pode mais do que Deus? Nada. Apenas novas agitações se sucederam na fronde do mofumbo, como estribilho ao resfolegar nervoso, que não parava. Se fosse alma atendia ao nome de Deus. Chamou os cachorros: – Rompe-ferro. Arranca toco!
  • 25. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ Os dois podengos se tinham embarafustado pelo mato, farejando no rastro de algum bicho. Parou um pouco, indeciso, e tomou uma resolução firme: – Isso não fica assim não... Aproximou-se e espreitou bem a moita mal-assombrada. O escuro não deixava ver coisa nenhuma. Zé Antônio resolveu-se definitivamente. Pegou o machado afiado de tirar mel, ergueu-se nas pontas dos pés e desceu-o com toda força de seus braços hercúleos na fronte da árvore fatídica: – Tome lá, diabo! Um gemido verdadeiramente tétrico foi seguido de uma convulsão mais violenta da ramaria assombrada. Puxou o machado. Alguém susteve-o com força. O sertanejo recuou suspenso, cabelos em riste, olhos esbugalhados, mão nervosamente grudada ao cabo da “jacaré”, e instintivamente tomou por uma vereda lateral. A uns quinhentos metros, esbarrou. Matutou um instante: – Homem, isso é uma desgraça. Triste da mulher que traz um filho ao mundo pra andar assombrado nessas catingas, sem ver de que. E veio a reação definitiva: – Dessa vez eu me desengano. Voltou quase correndo, com o “jacaré” em punhado, disposto a tirar daquilo uma solução indubitável. Com o jogo do corpo na carreira, pressentiu a caixa de fósforos no bolso que o medo fizera esquecer da primeira tentativa. Ao chegar ao local, escutou um pouco. Nada ouviu de anormal. Apenas o sopro pausado do vento, num murmúrio leve, pela ramagem das árvores, de par com o vozear dalgum pássaro noturno. Tomou alma nova. Estumou os cães que haviam voltado com a demora do dono. Tudo silencioso ali. Chegou-se ao mofumbo. Riscou um fósforo. Aproximou-se da moita e baixou para ver bem. Uma expressão desbotada de triunfo inglório traduziu-lhe a súbita surpresa: – Tá hí... E agora com um tom da desairosa capitulação: – Olhe minha desgraça em que deu. Agora trabalhar pra pagar o que não comprei. E levar o nome de ladrão por cima... Uma vaca, mordida de cobra, por certo, caíra no emaranhado do mofumbo. E ele acabara de matar. Lá estava o machado, a folha enterrada até o nível do cabo, à altura da sétima costela. O minguante, muito claro, subia lento num céu límpido de estio. U’a mãe-da-lua derramava pelo campo ermo a monotonia de seu canto. Diário de Natal - Natal, 13-3-1929.
  • 26. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ MORDIDO DE COBRA Pela manhã, ainda bem cedo, desleitadas as cabras, e suprido de água o pote de barro que dominava a forquilha trifurcada de pereiro, a um canto da latada de folhas de oiticicas, o velho Rufino partiu em direção ao roçado. Ia limpar a aninga e língua de vaca que cobriam, em quase toda extensão, a Lagoa da Várzea, uma ipueira que demorava a umas duzentas braças do leito do rio e para onde pretendia mudar uma planta de arroz cacheado, que já começava a amarelecer, à míngua d’água. Adiante, alfinetou-se o vício habitual do sertanejo. Lembrou-se de fumar. O fumo ali é como complemento do café. Afastou-se do caminho e encostou-se a uma coivara que ficara por queimar, na última broca. – Só tomando umas baforadas pra alertar. Picou o fumo, com as unhas ponteagudas e encardidas, e encheu o pito sarroso. Puxou do bornal de couro curtido o artifício e tirou fogo três vezes seguidas. O vento da manhã, soprando intermitente, desviava a faísca da lã do isqueiro. Rufino deixou escapar dos lábios uma pilhéria tímida. – Que faz S. Lourenço, que tão cedo tirou o freio desse desbragado? Tomou para junto da coivara, abaixou-se bem, e novamente riscou o fuzil. Quando atenciosamente acendia o cachimbo, surpreendeu-o uma pancada forte, acompanhada de uma picada incisiva na parte superior do pé direito. O sertanejo teve uma expressão súbita de instintiva religiosidade. – Valha-me o senhor S. Bento! Olhou rápido, e lá estava, espiralada a meio, cabeça levemente erguida, em atitude de quem desdenha da eficácia da reação, uma cascavel enorme. Num gesto pronto, Rufino esmigalhou-lhe a cabeça com o olho da enxada. Depois, calmamente, como se não tivesse a vida em iminente perigo, estendeu-a ao longo do caminho e mediu, um a um, onze palmos de sua mão possante de lavrador. Olhou o local da mordedura. Dois fios tênues de sangue corriam lentamente dos pontos em que se haviam cravado as duas presas. O caso estava sério. Mas, como era curado de nascença... Quando, em princípios da era de 70, dera por aquelas bandas, o Luís Curador se negara a aplicar-lhe o milagroso preventivo: tinha o corpo fechado. Portanto, pensava consigo, não devia ingerir remédio algum. Era não confiar no privilégio que lhe concedera a Natureza. Faria apenas u’a mezinha corriqueira de aplicação externa. O que tirava a força da cura eram as beberagens de qualquer espécie. Arrastou o quicé, extraiu o coração venenoso ofídio, e colocou-o no lugar da ferida, por alguns instantes. Em casa, ocultou da família a causa do retorno inesperado: paranças de andaço; umas pancadas na cabeça; arrepio de frio; besteira, medo de molhar os pés. Em pouco tempo, porém, se acentuavam definitivamente os sintomas inequívocos de atuação do veneno; escurecimento de vista, sede causticante, descangotamento. Ofereceram-lhe os antídotos caseiros.
  • 27. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ Rufino não aceitava absolutamente. O sertanejo, supersticioso e rotineiro, não abdica facilmente de suas crendices, segmentadas em longa elaboração, através de uma ininterrupta cadeia etnográfica: era curado de nascença, e eis tudo quanto bastava. Com a progressão do mal, ofereciam-lhe outros remédios conhecidos, e a cada novo oferecimento, correspondia o refrão inalterável e cadente. – Eu sou curado de nascença. E só à força de muita súplica, e já quando se lhe debuxava no espírito a imagem da morte, foi que ele acedeu em tomar um pouco de leite de pinhão. Mas, momentos depois, ante a ineficácia do remédio, aquela alma ingênua e rude, já nas ânsias da morte, atribuindo aquele desfecho fatal à sua falta de perseverança, ainda deixava transparecer, numa frase dúbia e resignada, a tristeza de não haver persistido na crença daquele dom que lhe outorgara o Criador. – Eu bem sabia que era curado de nascença... Mais tarde, quando já se esvaíam no ocidente as últimas tonalidades rubras do crepúsculo, quem passasse pela cabana do Rufino Ligeiro, um espetáculo estranho o surpreenderia: na sala da frente, um cadáver jazia estendido numa esteira, em cujas extremidades ardiam quatro velas de cera de carnaúba. Era ele, que morrera, momentos antes, mordido de cobra. Diário de Natal-Natal, 25 de maio de 19294. 4 Nota do Autor: – Este conto, escrevi-o em 1924. Publico-o agora, Apenas com ligeiras emendas de redação.
  • 28. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ QUIRINO PEREIRA Ao avistar a “casa grande” do Morgado, uma antiga fazenda, cujo nome apesar da decadência atual do sítio, parecia persistir em conservar o aparato da grandeza passada, Quirino Pereira acomodou-se melhor na cangalha de malhá, aprumou bem o tronco, como se quisesse ostentar o vigor de seus 50 anos de saúde inalterável, achegou o jegue, com um estalo do gurinhém da mula ruana do companheiro, e retomou a conversa. – É esse, patrão, o lugar de que lhe falei, lá em baixo, na passagem do riacho do Bastião. É o Morgado, antiga propriedade de “seu” coronel Jerome, que Deus tenha em sua guarda sem nós outros, hoje em mãos do capitão Pedrinho, genro do finado coronel, e moço da capital, que não olha mais pra isso. Nesse trato de terra, Deus louvado, nasci e me criei, em companhia do defunto meu pai que foi camarada na fazenda, até quando Nosso Senhor foi servido de chamá-lo pra junto de si. E a presença daquelas coisas velhas conhecidas, que guardavam na memória dos brincos primeiros de sua infância, despertou no espírito rude e amoroso do arrieiro, num assomo de alegria borrifada de saudade, a recordação de fatos distantes de sua vida obscura, de prazeres e maus tratos por que passara. E ele não se conteve: – Nesse pátio, hoje coberto de moitas de marmeleiro e mofumbo, esse negro velho, que vosmicê está ouvindo, fez muita estripulia no tempo de frangote infancioso, em riba de cavalo bom. Eu me escanchando no rogeiro de uma rês, se o animal não faltasse, enquanto o “demo” esfregava um olho, o mocotó passava. Isso era mesmo que Deus está vendo. Não é potoca, senhor, não. Ainda de uma feita, lembro-me, como se fosse hoje, eu andava pelos meus dezoito janeiros, esse cabra já sem serventia que aqui está, deu de uma sentada, vinte carreiras de moirão de porteira, num cavalinho cardão-pedrez, bicho “fábrica de fiança”, que morreu depois espadoado. Quando findou a brincadeira, só pela minha parte, tinha desgraçado três pernas de bicho jejuado. E o velho meu pai o que dizia era que queria ver se os moleques dos Pereiras era tudo assim levado do “droga”, pra labutação de vaqueirice. Calou-se um momento. Estava em pleno rigor do estio. As caminhadas se faziam ao longo da cinta pedregosa da estrada da vila, rasgada no coração do tabuleiro mal vestido pela ausência de chuva. No correr da marcha, encontravam-se reses descarnadas a farejar o solo descoberto, enquanto outras sombravam nas “malhadas” esburacadas pela nudez das árvores protetoras. O espetáculo se repetia aos olhos dos dois viajantes, com uma intermitência impressionante. De súbito, a visão de um passado feliz, em sua simplicidade, com um presente de provações, retratado ali naquele painel desolador, tirou o sertanejo do
  • 29. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ mutismo em que vinha mergulhado, e arrancou-lhe da alma sentimental de amoroso bronco umas expressões resignadas de queixas. – Tudo isso está hoje mudado. O sertão não presta mais pra ninguém morar. Se Deus não tiver pena da pobreza, acaba tudo nessas secas, sem ter água nem pra matar a sede. O companheiro, que quase nada dissera ante o extravasar de amargura daquele coração rude de homem do campo, adiantou uma pergunta: – Por que não abandona isso e procura o litoral? Quirino franziu o sobrolho, desenhou nos lábios um trejeito de indecisão, e arremedou uma desculpa desarticulada: – Sei lá... Coisas de quem é besta... Tenho pra mim que, onde a gente nasce, deve se enterrar. Aqui no cemitério da vila, estão todos os meus, desde os troncos velhos. Pra que ir atrás de uma cova noutro canto? E, como o outro censurasse o seu apego a uma terra ingrata, paupérrima, miserável, que só lhe tinha a oferecer lutas e dissabores, o sertanejo olhou-o de soslaio, deixou transparecer no rosto de tisna uma expressão moderada de aborrecimento, e replicou, consignando numa frase incorreta a filosofia a um tempo eloquente e ingênua do provérbio: – Vosmecê nunca ouviu dizer que quem o feio ama bonito lhe parece?... O sol ia-se pondo. Os últimos pássaros diurnos, em vias de se agasalharem, cantavam esparsos pelos longes do campo, festejando a hora evocativa do “angelus”. Diário da Manhã - Recife, 7 de setembro de 1929.
  • 30. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ A CRUZ DO TABULEIRO Em pleno coração do tabuleiro calcinado pelas soalheiras ignescentes, onde apenas florescem, ao banho procriador das invernias, juremas e pereiros, marmeleiros e favelas de permeio com o lençol ondulante do panasco, rendilhado da cactos e macambiras, lá está a cruz como simplesmente a crismou a memória popular, sozinha, sentinela incançável de uma sepultura abandonada. Apenas na estação das chuvas, alguma trepadeira silvestre passeia as suas ramagens pelo vértice daquele signo da nossa fé tradicional, que representa o ponto final de uma existência obscura, encerrada talvez nos lances violentos de uma tragédia grosseira. O sertanejo, que passa, não lhe pergunta a história. Pouco importa sabê-la. Encontra tantas outras em suas caminhadas a salpicarem os sertões de outros pontos de interrogação! Para ele o pretérito é um mistério que não procura desvendar, assim como o porvir é um enigma que o não preocupa. Para que indagar das coisas que se foram, se os lazeres da vida não lhe permitem sequer meditar nos dias do futuro? Sabe apenas que aquela cruz isolada no deserto do campo é o marco derradeiro de uma vida que se findou, como tantas outras no sertão – no inesperado de um golpe, no violento de uma catástrofe. Coisas do “meio” e do tempo. É quando basta. Não lhe perquirem as causas. Muito menos as circunstâncias. Tudo isso é coisa somenos para os filhos daqueles rincões, onde o solo crestado e granítico parece ter moldado o caráter do homem à sua imagem e semelhança. Alma ingenuamente religiosa, ao defrontar com ela, arreda da cabeça o chapelão de couro, e não raro balbucia uma prece íntima, para depois acrescentar mais uma ao montículo de pedra que a superstição dos transeuntes lhe erigiu em pedestal. Passa mudo, e só. Para que violar o sacrário do passado, ensaiando devassar as origens de um fato que o tempo cristalizou na lenda, e a caridade anônima perpetuou na homenagem humilde de uma cruz de madeira? Página viva da epopeia rubra do banditismo? Cena palpitante do drama doloroso da seca? Como o homem do campo, eu não quero desvendar a cortina que a protege contra os olhares da curiosidade ambiente. Não a incomodemos com os extemporâneos inquéritos de decifradores de enigmas históricos. Mesmo por que há sempre um encanto novo no recesso das coisas desconhecidas. Aquela cruz mal talhada de pereiro, braços constantemente abertos à impassibilidade azul do céu amplíssimo, não rememora um acontecimento, simboliza uma época. É a imagem sugestiva de uma era de preconceitos, incrustados em demorada segmentação genealógica na psicologia de uma raça. Assinala talvez algum estágio de um estado de espírito coletivo, resumido por acaso na brutalidade ainda hoje vulgaríssima de um assassinato. Diário da Manhã - Recife, 17-11-1929.
  • 31. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ NOITE DE SÃO JOÃO (Trecho de uma novela inédita) O São João e o São Pedro são para os sertanejos as festas mais agradáveis, porque são as festas das luzes e dos fogos. E eles têm essa nota clara em sua psicologia: impressionam-se facilmente com as projeções luminosas. Na véspera dos dias do Precursor e do Claviculário, os lugarejos do interior apresentam-se com aspecto risonho e atraente. E nas noites de S.João, então, culmina o contentamento popular, naquelas terras incultas. Os povoados, de ruas tortuosas e casario arruinado, naquela noite, graciosamente iluminados pelas fogueiras do Batista revestem-se das galas de uma fisionomia inteiramente nova. Ali tudo é alegria e movimento. Nas praças dramatiza-se um movimentar constante de centenas de criaturas, muitas das quais afluíram dos arrabaldes, num dinamismo fervilhante de moto-contínuo. E desenvolvem-se as cenas mais interessantes e dispares. – Aqui realiza-se com unção piedosa o cerimonial incômodo do batismo sanjuanesco, envoltos, padrinho e afilhado, em verdadeiro banho de fumaça. E dos lábios de ambos escapam religiosamente as palavras três vezes seguidas: São João disse, São Pedro confirmou e Jesus Cristo mandou que o Senhor fosse meu padrinho. E depois: Viva São João, viva São Pedro, vivamos nós, meu padrinho. Mais ali pessoas várias, geralmente mulheres, procuram com olhos escancarados divisar na redoma de um prato, no cristal borbulhante de uma bacia cheia de água ou em qualquer outra superfície refletora, em linhas distintas os contornos da própria fisionomia insculpidos com sombra. E aparece aí mais uma das múltiplas abusões que enchem de sobressaltos o viver dos habitantes simples do sertão. – Acredita-se que os que não virem o rosto claramente por um dos processos atrás indicados morrerá antes do outro São João. Mais adiante vultos diversos de cócoras junto ao braseiro de uma fogueira revolvem espigas de milho pacientemente, assando-as para o rápido repasto da noitada. E vem por fim a música desparatosa dos fogos de São João. Chia uma pistola; estala um traque; papouca uma explosiva; e, por último contrastando em potência com aquele suceder de detonações pequenas, a velha roqueira, a bizarra boca de fogo do sertão abre a poderosa garganta de aço e deixa sair um entulho de pólvora e bucha produzindo um estampido enorme que vai ecoar no matagal vizinho. E sublinhando tudo isso com um estrepitar de alegria incontida, a algazarra da meninada gárrula e jubilosa a borborinhar aos saltos pelas ruas.
  • 32. www.mcc.ufrn.br/portaldamemoria/wordpress/ A nota porém mais característica dessa festa é sem dúvida o terço de São João, rezado nos 3 dias imediatos ao dia do Precursor e anunciado pela bandeira indefectível içada na frente da casa onde se pratica a devoção, a que comparecem numerosíssimas pessoas das vizinhanças. A ele geralmente segue-se o baile, onde cavaleiros e cavaleiras5 saracoteiam tangos e onesteps deselegantemente, cheios de requebros e trejeitos, à melopéia insulsa da sanfona. Em contrário, outras diversões inofensivas: o livro de sortes, histórias de trancoso, interpretadas quase sempre com espontaneidade e precisão que se podem dizer artísticas. E a tudo isto não raro sucede o concerto brejeiro de um cantador de viola, repentista inspirado que rumina ante um auditório comovido os sextetos tristonhos do “verso de Marina” para em seguida arrancar-lhe gozadas explosões de alegria com as estrofes humorístico-encomiásticas de coplas laudatórias. A festa de São João é uma festa excelente porque nela a alma honesta e sofredora do sertanejo encontra motivos para quebrar o ritmo monótono de um viver áspero e laborioso... 5 O sertanejo, obedecendo à lei do menor esforço, prefere as formas cavaleiras e cavaleiras, em vez de cavaleiros e damas, quando se refere aos pares que dançam. O escritor, fiel à pronuncia da região, manteve as formas vulgares (nota de Manuel Rodrigues de Melo).