2. Edi
2 Janeiro de 2011
“Começo porque Colaboradores
não tenho força Nelso Moreira
Poeta, nascido em Tenente Portela, Rio
para pensar, Grande do Sul, e radicado em Araucária há
quase vinte anos. Integra o Grupo de Poe-
acabo porque não
torial
tas, Escritores e Trovadores Poesia em Mo-
vimento. Também participa do Audio-Livro
do Grupo, lançado em 2010.
tenho alma para Marcos Monteiro
suspender”. Cursa 3° período de Jornalismo na Uni-
versidade Positivo. Publica suas fotografias
no endereço flickr.com/marcos_fe e textos
Fernando Pessoa, no endereço disfim.wordpress.com
em O livro do Desassossego.
A crônica está cada vez mais dissociada
do jornal impresso de notícias. É cada
vez mais difícil encontrar novos literatos
to atual, não comporta maior diversidade
de cronistas, pois oferece pouca respiração
à literatura, servindo a um leitor setorizado,
O futuro da crônica está na internet,
nos blogues, nos projetos de agregação de
escritores em começo de carreira, nos sites
Daniel Zanella
Cursa 3° período de Jornalismo na UP.
É colunista do periódico Notícias Paraná e
nas grandes publicações. Os jornalões tem dinâmico e que tende à infidelidade, migran- e portais gratuitos que aglutinam literatos integra algumas coletâneas por editoras in-
sim seus cronistas, escritores de trajetória do cada vez mais para novas plataformas. de toda espécie. Nesse universo de am- dependentes. Publica suas crônicas no ende-
inquestionável, destilando sua individu- Os jornais menores sobrevivem porque ofe- plas possibilidades e convergências, o cro- reço www.letrasnumcanto.com.br
alidade sobre os temas contemporâneos, recem uma informação especializada, local, nista é livre para exercer seu olhar diante
músicos e atores descrevendo suas alegó- mas lutam arduamente para não fecharem do mundo. É lá que o Relevo busca suas Gabriel Rachwal
“
ricas percepções. Mas ao cronista iniciante no vermelho ao fim do mês – não que isso vozes para integrá-las ao impresso. Escritor e ator curitibano, mestrando em
”
não são reservadas essas páginas e nem há não ocorra nas maiores publicações, entre- Porque acreditamos que o impresso Estudos Literários. Publica seus textos no en-
como reivindicá-las: o impresso, no forma- tanto, numa dimensão diferenciada. que se propõe atemporal nunca morrerá. dereço www.visgoesuor.blogspot.com
Daniel Caldeira
Músico e escritor carioca, publica seus tex-
tos no endereço www.danielcst.blogspot.com
AlbertinA
Peter Hammer
Fotógrafo e cuteleiro, nascido em Assis, São
Paulo. Fotografa para agências, jornais e revis-
tas e ministra cursos de cutelaria em Curitiba.
Elvis Ferreira
Diagramador e arte-finalista. Publica al-
guns de seus trabalhos nos endereços www.
elvisferreira.carbonmade.com e www.flickr.
...Finalmente o dia da bebedeira. Me apareceu bê-
com/elvisferreira
Carlos Pessoa Rosa
bada feito um gambá; agarrando-me pelo braço: Poeta, contista e cronista, escreveu Cor e
a textura de uma folha em branco, prêmio
Ficção Nacional, UBE/CEPE; Poemas Visce-
- Doutor, doutor... A moça aí da vizinha dis- rais, prêmio Sindicato dos Escritores do Rio
de Janeiro, entre outros. É editor do site Meio
se que eu tou beba, mas é mentira, eu não bebi
Tom Prosa e Verso e também assina o blogue
www.meiotom.art.br
nada... O senhor não acredita nela não, tá com Renata Penzani
Cursa o 4º ano de Jornalismo na Universi-
dade Estadual Paulista (UNESP). Reside em
ciúme de nóis! Bauru. Publica seus textos nos endereço www.
furtacores.tumblr.com e desenvolve o projeto
Olhei pra ela, estupefato. Mal se sustinha sobre
literário O Livro Que Mudou A Sua Vida no
endereço o www.livroquemudou.tumblr.com
as pernas e começou a chorar. Amanda Longo
Diretora de arte, especializada em Gestão
Fernando Sabino
da Criatividade e Inovação, formada em De-
sing de Produto. Publica seus textos no ende-
reço www.euamoeu.wordpress.com
Carla Dias
aExpediente ^ Contato
Escritora, baterista e produtora de even-
tos paulista. É diretora de produção do Ba-
tuka! Brasil International Drum Fest. Publica
Edição: Daniel Zanella Jornal Relevo no Twitter: www.twitter.com/jornalrelevo seus textos no endereço www.carladias.com
Diagramação: Daniel Zanella e Elvis Ferreira Envie suas crônicas, críticas e sugestões para jornalrelevo@gmail.com e www.talhe.blogspot.com.
!
Fotógrafo responsável: Peter Hammer
Diretor Comercial: Marcos Monteiro Fernanda Pinho
Impressão: Gráfica Helvética
O Relevo, às vezes, não se responsabiliza pelo Jornalista mineira, radicada em Belo Ho-
rizonte. Publica seus textos nos endereços
Tiragem: 2000 conteúdo publicado de seus autores. www.blogdaferdi.blogspot.com e www.cro-
Edição finalizada em: 10 de janeiro, 20h nicadodia.com.br
3. As Estantes da
Janeiro de 2011 3
Blanco
Biblioteca
O espírito é uma invenção do corpo.
Daniel Zanella
O corpo é uma invenção do mundo.
O mundo é uma invenção do espírito.
Octavio Paz
A biblioteca tem estantes que lembram
fendas se abrindo no solo da morte.
Cada autor entrincheirado dentro das folhas
Nas estantes.
Os autores.
Estão catalogados.
secas é uma sepultura absorta, é um patru- As etiquetas são brancas e numeradas.
lheiro do nada. A vida é frágil demais diante da literatura.
Alguns meninos jogam no computador Há livros em braile. E há livros em espanhol.
e se piscam, não sei, porque são meninos O que alimenta é o sonho; e o sonho é a
sem olhos. As estantes têm olhos, prismas poeira no turbilhão da imagem.
de antigos solilóquios, sombras de perdidos São etiquetas amarelas.
devaneios, vertigens vaporosas que arderam A cor amadurece porque é feita de carne.
e repousam hoje sob metais duradouros (e E a carne apodrece. Enverga.
devidamente catalogados). Alguns fichários acima das estantes dos
As estantes têm adendos geográficos. A livros.
minha frente estão os escritores da Oceania É preciso comer a palavra. É preciso fazer
e das Regiões Árticas e Antárticas. da literatura uma arte gastronômica. É preci-
Os autores estão sozinhos. so degustar o amargor da palavra.
Uma criança à direita lê uma história co- Os tacos do chão da biblioteca são decora-
lorida do Ciclope. Um rapaz de boné preto dos por ranhuras de pés. Os pés são agitados.
copia trechos miúdos de uma apostila. Uma Não são pés que contemplam. As estantes
menina avisa o amiguinho de que sua cerou- acumulam mortos com algumas lamparinas
la está à mostra. Ele dá de ombros. É pra ser enquanto as jovenzinhas com suas maquia-
assim mesmo. gens de passeio riem entre si.
Meu tio alcoólatra acaba de entrar na biblio- As jovenzinhas com suas maquiagens
teca. Seus quarenta e poucos anos podem ser de passeio e que riem entre si parecem cães
multiplicados por dois. Seu rosto tem sulcos domésticos que não sabem pra onde correr
semelhantes aos astros de rock viciados em he- quando alguém deixa o portão aberto.
roína. Meu tio não é um astro do rock. Ele senta Meu tio se levanta. Segue indiferente a
silenciosamente, sem olhar pra lado algum, e tudo que o cerca. Está indo embora.
folheia a página de esportes do jornal do dia. Vá, meu tio. Vá se enterrar de álcool –
Meu tio é um fantasma. logo é noite.
Estou lendo Transblanco, de Octavio Paz. O Assim a carne não apodrece. E os copos
espanhol é uma língua de um fascínio visceral. reluzem nos balcões.
Foto: Marcos Monteiro
Enquanto isso. Os autores estão catalogados.
4. Furtando
4 Janeiro de 2011
Foto: Peter Hammer
Cores Renata Penzani
P orque de alguma ma-
neira deve ser verdade
que tudo é apenas reflexo.
Assim como o efeito furta-
cor, que reflete as cores que
lhe chegam, também nós
somos um pouco assim,
algo que furta, que se apro-
pria, para depois refletir da
nossa maneira. Absorção.
Tudo o que expressamos é
resultado do caminho que
algo percorre dentro de
nós. Há aquelas coisas que
batem e voltam. Há as que
entram, caminham, percor-
rem-nos e saem, lentas. Há
as que são absorvidas para
não sairem nunca mais. De
qualquer maneira, o que ca-
rece entender é que não há
salvação: sempre estaremos
implicados naquilo que di-
zemos, comprometidos com
a nossa própria maneira de
apropriação.
Sobre a vida e os
Daniel Caldeira
desdobramentos dela
Dobrei a vida em oito vezes
Foto: Peter Hammer
Como se fosse impossível.
Demorei em fazê-lo, Desdobrei a folha:
Mas fiz, enfim. Não havia nada escrito,
E agora estava dividido, Mas havia marcado, ferido,
Descarnado, desguarnecido Na iminência de rasgar.
De totalidade. Mas viver desdobrado,
Mesmo que posto em perigo,
É grande opção que escolho,
Viver sem olvidar o vivido.
5. Janeiro de 2011 5
Que estranha necessidade:
a crônica nunca contada Carlos Pessoa Rosa
O jornal me pediu mais uma crônica. Es-
tou realmente saturado de ter que pre-
encher uma tirinha todos os domingos. Que
significado pode ter a minha minúscula crô-
nica, perdida entre dramas e tragédias? O
corpo, a imoralidade e o místico esgotam-
se nos fatos. Os noticiários estão cheios de
crônica policial, social e econômica. Poderia
utilizar a alegoria, diriam os mais esperan-
çosos. Mas como desvalorizar o mundo
aparente se a arbitrariedade deixou de sê-
lo? Sentido e imagem não se ligam mais. O
arbitrário em tempos modernos roubou o
espaço da alegoria, passou a ser o próprio
exercício de cidadania. Não, não saberia fa-
zer alegoria da alegoria, essa competência
criativa não me pertence. Mas também nin-
guém entenderia o atmosférico de um tex-
to poético, a maioria fica no sentido literal
da escrita, poucos conhecem o verdadeiro
discurso. Nem eu saberia vender crônicas
poéticas. Como Baudelaire insisto uma
dignidade em uma sociedade que nunca a
Foto: Marcos Monteiro
conheceu. Além disso, aquela imediatida-
de entre o poema e o leitor é um prazer de
poucos. O jornal me colocaria de escanteio de Beckett e Artaud, incomodaria mais o Adora ter a falsa sensação de estar sendo bem que nenhuma obra poderá ser acabada,
tão logo os índices indicassem queda de leitor. Loucura!, disse, sem me deixar ter- tratado com alguém crítico e culto. A receita além disso atinge o limite de texto permiti-
leitores. A tirinha ficaria lá, mudariam o minar. Vou te dar umas férias, talvez assim é algo assim, só para ilustrar: início: a misé- do, sem excessos a inchar e sobrecarregar.
cronista, a crônica faz parte da história do esqueça Baudelaire, escreva sobre o padre ria e uma arma comprada de um tenente do Duas horas da madrugada, pelo ocorrido na
jornalismo. Portanto, respeitando as leis do Marcelo, é o que o povo quer, um pouqui- exército; meio: questões sociais e econômi- redação não sei se este texto será publicado,
mercado, sempre haverá espaço para ela. nho do sangue de Paulo Coelho não faz mal cas, além das genéticas, que levaram os dois talvez eu seja o único leitor de minha última
Outro dia resolvi falar ao editor do jor- a ninguém. E ele tem razão. Tagarelices. O personagens a necessitarem de um dinheiri- crônica... Peço as contas; desculpas, nunca!
nal sobre minhas angústias e idéias. Sabe, leitor gosta de tagarelices. Algo com início, nho extra; fim: a vítima virou uma peneira, Em tempos modernos, todo caminho corre-
disse-lhe, estou pensando em romper com meio e fim, exatamente nessa ordem, com mas graças à tecnologia, não morreu. to tem como companheiro a solidão. Públi-
endoscopia
a linearidade, algo parecido com os textos alguma dose de fofoca e um final surpresa. Melhor parar por aqui, parece acabada, se co? Que estranha necessidade...
Amanda Longo
ontem eu fiz uma endoscopia acordada! no começo do abertos e um tubo en-
Foto: Peter Hammer
ano eu fiz uma também e dormi totalmente! não vi nada, fiado pela minha boca
acordei, já tinha acabado e eu ainda brinquei com uma até o meu estômago.
senhora que não sabia direito o que estava acontecendo: dormi depois. na sala
(senhora) que engraçado, eles botam tipo uma chupe- de recuperação. e pa-
tinha nos pacientes e eles ficam dormindo. recia que experiência
(eu) não é chupetinha, é o que deixa a boca aberta para de ter ficado acorda-
deixar o tubo entrar, não colocaram e você? da durante o exame
(senhora) tubo? que tubo? já era sonho também.
(eu) o caninho que entra pra fazer o exame. cheguei em casa e fui
(senhora) em mim não colocaram nada disso. dormir outra vez e de
(eu) qual exame você fez? repente eu acordei:
(senhora) colonoscopia MEU DEUS ESQUECI
(eu) hahahahaha! o seu o caninho entra por trás… QUE HOJE TINHA
(senhora) que? ENDOSCOPIA MEU
(eu) o seu exame é feito por trás hehe (e apontei) DESPERTADOR NÃO
(senhora) não, o médico só colocou um negocinho no TOCOU QUE HORAS
meu dedo e pronto. SÃZzzzzzzzzz
(eu) (???) a ta… e dormi mais o res-
isso pra vocês verem como a gente não vê nada nesses to da tarde…
exames. mas dessa vez, apesar do sedativo eu não dormi. … até quase noite e
eu estava com medo de não dormir e acho que acabei me acordei com uma tem-
agitando por causa disso. ou eles colocaram menos remé- pestade deliciosa. ado-
dio, sei lá. mas fiquei bem loucona, molenga com os olhos ro fazer endoscopia.
6. 6
Sítio Abandonado
Janeiro de 2011
Nelso Moreira
I III V VII
Lá num cantinho do Rio Grande Tinha água à vontade Ouvia mamãe chamando Mas tudo é passado
Onde hoje é Derrubadas Que nem a estiagem secava É hora de ir pra escola Hoje só restam saudades
Na beira de uma estrada Lembro os patos que nadavam E pra não perder a hora Mesmo contra a sua vontade
Ficava o sítio do Moreira No açude sossegados Todo mundo se apressava O meu pai foi obrigado
Um pedaço de ladeira E no verão eram pegados Lá no tanque se lavava A vender a propriedade
Mas muito bem cultivado Pois não havia chuveiro E se mudar pro povoado
E depenados o corpo inteiro
Uns dois bois que puxavam o arado
Para fazer travesseiro E saía bem ligeiro Hoje o sítio é do meu irmão
E algumas vacas leiteiras
E também alguns acolchoados Com os cadernos na sacola Que também vive na cidade
II
Me lembro que lá havia IV VI VIII
Uma casa de madeira Tenho saudades do potreiro O sítio era pequeno Apesar dos atrapalhos
Um galpão com uma varanda Eu e meus irmãos brincando Mas produzia de tudo Eu gosto muito do Rio Grande
Uma carroça, uma trilhadeira Ver o gado pastando Se plantava feijão miúdo Em qualquer lugar que ande
Um jipe de quatro portas Era uma beleza Milho, arroz, soja e pipoca Eu trago no coração
E uma égua pariera Sempre alegres cantando Batata doce e mandioca O carinho dos que são
Também lembro do pilão Para espantar a tristeza E até palha pra vassoura Gaúchos como eu
Do forno de fazer pão E o meu pai com certeza E lá num canto da lavoura Penso que isso tudo aconteceu
E do cachorro Coleira De nós estava cuidando Uns pés de amendoim graúdo Por causa da evolução
Fernanda Pinho
O roxo
Foto: Peter Hammer
F az uma semana e um dia que adquiri um
hematoma gigantesco na minha perna es-
querda. Não se trata de apenas mais um roxo
perceber que houve um clareamento conside-
rável de manhã, após ter passado horas do-
mindo e, portanto, sem vigiá-lo. E, de repente,
daqueles que aparecem do nada. Primeiro concluo que essa minha maldita vigília é que
porque não é um roxo como outro qualquer. estraga tudo. Se eu deixasse os hematomas de
É o roxo mais roxo que já vi na vida. É o cú- lado, deixando-os passar naturalmente, sem
mulo da roxice. Segundo porque sei exata- minha pressão, eles cumpririam sua função
mente sua origem: a montanha-russa do Hopi na minha pele em muito menos tempo. Pre-
Hari. Mas, claro, passados oito dias é natural ciso aprender a deixar as coisas de lado, cum-
que ele esteja clareando. E está mesmo. Dia prindo sozinhas - e naturalmente - seu ciclo de
após dia percebo a mancha desmanchando. vida. Assim é mais rápido e menos dolorido. Foto: Marcos Monteiro
O interessante é que, embora eu olhe para o Preciso abandonar meus hematomas (os de
hematoma a cada cinco minutos, só consigo fora e os de dentro).
7. 7
Eu, um marcapasso
Janeiro de 2011
Introdução
cerebral e o mundo indolor novo oficialmente. Como tatu (isso com certeza
Gabriel Rachwal
Muitas pessoas acham que a dor é um mal ne- abalará nossa convivência de anos). Se um dia te
cessário desse mundo que nos cabe, mas isso não convidei para qualquer coisa era mentira, mas eu
é verdade. Por mais que se diga que por aí que queria que você fosse (eu te amo, você sabe). Estou
quem não chora não mama, é possível um mundo deixando meu currículo em vários lugares e nele
indolor onde só se sente prazer. Pessoas vão ques- constam meus nomes e minha data de nascimento
tionar: “Como você vai poder reconhecer o prazer falsa. Me contratem, trabalho no máximo duas ho-
se você nunca experimentou a dor?”. Tal relação ras por dia e tenho muitas restrições morais (algu-
é falaciosa, uma pessoa não precisa ser torturada mas saudáveis). Posso limpar a frente da sua casa.
para que possa desfrutar de boa música ou de uma Estou esperando tua ligação (tua, especificamente)
boa janta. Outras pessoas vão dizer que o prazer é há duas semanas. Moro com você (todos vocês) no
uma questão de livre-arbítrio. Claro, pessoas feli- máximo dois dias, é só me ligar. Não ligo de fazer,
zes o são por terem escolhido trabalhar para ser. se puder satisfazer minha tara de fazer xixi durante,
Aqueles que são infelizes o são porque não esco- agradeço. Estava sozinho em casa e não tinha o que
lheram ou não trabalharam para ser. No entanto, fazer, resolvi te falar a verdade. Não tenho nenhum
tendo em vista uma bem documentada base bio- trabalho para amanhã, ou seja (não que haja relação
lógica (e em alguns casos contando com bases he- de causa e efeito), nos vemos no bar de sempre, aque-
reditárias) a respeito de distúrbios depressivos, de le daquela rua de paralelepípedos. Eu menti nos úl-
ansiedade e psicóticos – para não falar de circuns- timos tempos.
tâncias externas adversas sobre as quais não se tem Conclusão
controle – qualquer teoria de autodeterminação do Dentro de algumas centenas de anos, entre o
nível de felicidade fica definitivamente abalada e tempo presente e a implementação com êxito de
inteiramente desacreditada. técnicas de engenharia genética que permitirão
A verdade sobre mim criar uma vida indolor, seria um avanço desenvol-
Estou doente há alguns anos, fase terminal. Te- ver um marca-passo cerebral e então determinar
nho três nomes: Almir, Maria, Gabriel, Darci e Ga- se as degenerescências do cérebro podem ser eli-
briela. Acabo de comer pão violentamente: mais minadas ou minimizadas até um nível tolerável.
do que o necessário, rapidamente e com sentimen- Além disso, idealizando a sua aplicação terapêu-
to de culpa. A garganta ficou arranhada de pão. tica, é possível conceber que um tal marca-passo,
Como pão como quem fuma. Sou incapaz: nunca suprimindo impulsos neuronais inadequados
tive um emprego. Não quero nada que me aporri- (como aqueles responsáveis por ataques de vô-
nhe: vivo aporrinhado. Estou diferente de ontem. mito) e favorecendo impulsos adequados (como
Nunca voltarei a ser como ontem. Quero casar e ter aqueles responsáveis por coordenar a mobilidade
filhos problemáticos para não me sentir sozinho da faringe e do esôfago durante a alimentação),
no mundo. Estou em um relacionamento sério que poderia vir a gerar uma terapia mais eficaz para
pode acabar a qualquer momento. O conhecimen- a Síndrome de Sic-Vivamus do que as disponíveis
48
to nunca pode ser completo. Conhecimento com- atualmente ao eliminar ou minimizar problemas
pleto é oximórico, auto-aniquilante. Fui registrado como a aspiração do vômito, a incapacidade de se
dois anos depois de nascer, o que me faz ser mais alimentar e etc.
Carla Dias
na, duração de vinte páginas cada, total de cinquen-
ta e sete capítulos... Ou episódios, se de repente o
destinatário gostar de ler pensando na cena.
A gente pede tanto por tempo extra, alegando
que não há como visitar os amigos, escrever para os
familiares, passear com as crianças. Porém, ficamos
sem saber o que fazer quando recebemos este tem-
po, como quando entramos em férias e não temos
dinheiro para viajar, então ficamos em casa, assis-
tindo a Sessão da Tarde, escutando as notícias no
O profeta afirmou que hoje o dia passará mais rádio, folheando o jornal. E organizando espaços
lentamente, como se tivesse sido atendido aquele que não precisam ser organizados, relendo cartas,
pedido que, vez ou outra, todos fazemos: que cai- revisitando o passado através das fotografias.
bam 48 horas nas 24 que temos. O profeta me deixou morrendo de medo, eu
Penso o que farei com as 24 horas extras ofe- confesso. O que farei com tanto tempo extra se eu
recidas, porque não estava preparada para elas, nunca o tive e agora sou obrigada a preenchê-lo?
Foto: Peter Hammer
tendo todo o meu dia organizado para cumprir a Preenchê-lo com atividades diferentes das que fa-
pauta da sobrevivência. zem parte da minha rotina, porque não vale sim-
Talvez eu pare, respire, e então assopre os cabe- plesmente ficar onde se está ou trabalhar dobrado,
los das oportunidades jamais desejadas, como a de só para mascarar o tempo. O profeta é severo na
correr pelas ruas da cidade só para parar no quin- afirmação de que este tempo extra deve ser gas-
Zanella
to quarteirão e pedir um copo de água gelada na to de forma diferente da qual gastamos nossas 24 Revistaria, Loja e Livraria
padaria. E respirar, de novo, até que meu coração horas devidas.
volte a bater ao compasso do sossego, o perfume de Posso passar 24 horas fazendo bolhas de sabão,
pão fresco invadindo as minhas narinas. deitada na grama, o olhar perdido no céu. E quem
Posso aprender um ofício, através de algum sabe cantarolar músicas inéditas, que ainda estão na
curso relâmpago: leitura dinâmica, cerâmica, adi- fila da inspiração, à espera de serem colhidas pelos
vinhação, organização de armários, como passear compositores. Que tal sentir o cheiro da chuva, e
com os cães da vizinha, iluminação de quadros na então dançar horas sendo abraçada por ela? (41) 3643-1123
parede, aplicação de reticências, como construir Posso inventar recomeços, mas com garantia de BREVE NET HOUSE E LOJA
uma cidade com Playmobil. que eles jamais se tornarão moeda, que não haverá
Ou arquitetar mudanças: a cor do esmalte, os como serem vendidos, apenas conquistados.
DE ASSISTÊNCIA EM INFORMÁTICA
móveis, os cabelos, o endereço de casa, o itinerário Quem sabe, tecer languidez nas faces da timi-
de viagem, o sonho, o ideal, a busca. dez e, ao corar de suas bochechas, arrebanhá-la Rua Gralha Azul, 269, Jardim Industrial
Posso escrever uma carta, tão longa, que terei de numa conquista de cheiros, toques, palavras a di-
enviá-la ao destinatário em capítulos, um por sema- zerem afeto. próximo ao Supermercado Supra - Araucária