Este trabalho investiga como o currículo de química é concebido nas escolas públicas de ensino médio da cidade de São Paulo. Analisou documentos e entrevistou professores de química em oito escolas das redes estadual e municipal. Concluiu que o currículo de química é moldado pelas interpretações individuais dos professores, baseadas em sua formação e experiência. Há pouca diferença entre as redes de ensino e o currículo é concebido como uma lista de conteúdos, sem considerar outros
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O currículo de química nas escolas públicas de ensino
1. UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM ENSINO DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA
O Currículo de Química nas Escolas Públicas de Ensino
Médio da Cidade de São Paulo
CLÁUDIO MAROJA
Orientadora: Profa. Dra. Maria Delourdes Maciel
Dissertação apresentada ao Mestrado em
Ensino de Ciências e Matemática, da
Universidade Cruzeiro do Sul, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Mestre em Ensino de Ciências e Matemática.
SÃO PAULO
2007
2. AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICSUL
Maroja, Claudio.
M311c O currículo de química nas escolas públicas de ensino médio
da cidade de São Paulo / Claudio Maroja. -- São Paulo; SP: [s.n],
2007.
217 p. : il. ; 30 cm.
Orientadora: Maria Delourdes Maciel.
Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Ensino de Ciências e Matemática, Universidade Cruzeiro do Sul.
1. Química – Estudo e ensino 2. Currículo de ensino médio –
Química 3. Escola pública. I. Maciel, Maria Delourdes. II.
Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em
Ensino de Ciências e Matemática. III. Título.
CDU: 54:371.214(043.3)
3. UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
O Currículo de Química nas Escolas Públicas de Ensino
Médio da Cidade de São Paulo
Cláudio Maroja
Dissertação de mestrado defendida e aprovada
pela Banca Examinadora em 03/08/2007.
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Maria Delourdes Maciel
CCHS - UNICSUL
Presidente
Prof. Dr. Rubens César Lopes Figueira
CETEC - UNICSUL
Prof. Dr. Antônio Carlos Rodrigues de Amorim
Universidade de Campinas
4. Em memória de meu querido pai
Arnaldo de Araújo Maroja Sobrinho (†)
Nunca ausente.
5. AGRADECIMENTOS
A Deus, por sempre estar presente em minha vida, cobrindo-me de luz e proteção.
À Universidade Cruzeiro do Sul, em especial, aos professores do Programa de
Mestrado Profissional em Ensino de Ciências e Matemática, pelos ensinamentos
recebidos e dedicação que sempre me dispensaram, os quais serviram de guia para
que eu pudesse construir este trabalho.
À minha querida orientadora, Profª. Drª. Maria Delourdes Maciel, misto de mãe,
amiga e profissional, que com sua simplicidade, inteligência, dedicação,
conhecimento e organização, me inspiraram em todos os instantes desta trajetória,
provocando mudanças em minha vida e concretizando este tão esperado sonho.
Ao professor Dr. Luiz Henrique Amaral, que no momento mais difícil dessa jornada,
me acolheu e me incentivou a continuar no Curso.
À Secretaria de Educação do Governo do Estado de São Paulo, pela bolsa de
estudos concedida.
Aos professores Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim e Dr. Rubens César Lopes
Figueira, que fizeram parte da banca de Qualificação e Defesa, apontando-me
caminhos e dando sugestões.
À minha mãe, Maria de Lourdes, mulher de fibra e de bom coração, com a certeza
de que se eu tivesse um terço da sua garra e da sua bondade, seria um homem
melhor.
Ao meu irmão Marcos, que junto comigo enfrentou essa jornada.
Às Professoras Rita Vasquez Moreno e Marilene Dornelas, Diretoras das Escolas
E.E. Dom Miguel de Cervantes Y Saavedra e E.M.E.F.M. Oswaldo Aranha Bandeira
de Mello, respectivamente, pelo apoio e incentivo recebidos, sem os quais seria
muito difícil concluir esta caminhada.
Às professoras Elenita Beber, Yara Prado e Regina Lico, do DOT/SME, pela
confiança e apoio recebidos durante todo o Mestrado, desafiando-me a ir em frente
com meus objetivos.
A todos que me estimularam constantemente, especialmente meus colegas do
Mestrado, por terem partilhado suas trajetórias de vida; compartilhado sonhos,
conquistas, inseguranças e ousadias; pelos momentos em que relatando, trocando,
lendo, buscando, ouvindo, anotando, perguntando, construindo, me deram certeza
de que a verdadeira amizade nos conduz, sempre, à vivência de momentos felizes.
6. MAROJA, C. O currículo de química nas escolas públicas de ensino médio da
cidade de São Paulo. 2007. 217 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e
Matemática)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2007.
RESUMO
Este trabalho surgiu da necessidade pessoal e profissional de investigar como o
Currículo de Química é concebido nas Escolas Públicas de Ensino Médio da Cidade
de São Paulo. O objetivo foi conhecer as concepções de currículo que norteiam os
Projetos Político-Pedagógicos, os planos de ensino e as ações desenvolvidas pelos
professores de Química do Ensino Médio das duas Redes de Ensino Pública
(Estadual e Municipal) e verificar quais relações essas concepções guardam entre si
e com as propostas oficiais de ensino, com vistas a identificar possibilidades de
melhorar a própria atuação como docente da área e contribuir para a reflexão e o
aprofundamento das discussões no campo curricular no âmbito escolar. Como
abordagem metodológica, recorremos à análise documental e entrevistas com
professores de oito escolas das duas redes de ensino, existentes nas regiões Norte,
Sul, Leste e Oeste da Cidade (duas escolas por região). Os resultados apontaram
que o currículo de Química nas escolas públicas Estaduais e Municipais, nas quatro
regiões pesquisadas, está, efetivamente, a cargo das interpretações de cada
professor de Química, sendo moldada de acordo com sua formação inicial,
experiência profissional, experiências de vida, crenças, etc. Há pouca diferença de
uma rede de ensino para a outra e o currículo e ensino de Química continua sendo
concebido como uma lista de conteúdos que devem cumpridos ao longo do curso,
aproximando-se, em alguns aspectos, da antiga concepção de ensino do século XV,
organizada na forma de syllabus ─ lista de tópicos ─, ou de seqüência de tópicos.
Outros aspectos do currículo continuam não sendo considerado, o que indica a
necessidade de se investir na formação inicial e continuada do professor e de se
repensar a própria formação oferecida nos cursos de graduação.
Palavras-chave: Química – Estudo e ensino, Currículo de ensino médio – Química,
Escola pública.
7. MAROJA, C. Chemistry curriculum on public high schools in the City of São
Paulo. 2007. 217 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática)–
Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2007.
ABSTRACT
This work was born from personal and professional need of investigation on how the
Chemistry Curriculum is conceived in Public High Schools in the City of São Paulo.
The aim of the research was to know the conceptions of curriculum that guide the
Political-Pedagogic Projects, the plans of education and the actions developed by
High School Chemistry teachers on the two Public Education Systems (State and
Municipal) and to verify which relations these conceptions have with the official
proposals of education, heading to identify possibilities to improve the proper
performance as a teacher of the area and to contribute for the reflection and the
knowledgement of the decisions in the curricular field regarding school atmosphere.
As methodological approach, we appeal to the documentary analysis and interviews
with teachers from eight schools of the two educational systems, located in the North,
South, East and West regions of the City (two schools by region). The results had
pointed that the curriculum of Chemistry in the State and Municipal public schools, in
the four searched regions, is effectively, in charge of each Chemistry teacher
interpretation, being shaped according to each initial formation, professional
experience, life experiences, beliefs, values, etc. There are few differences from one
system of education and the other, moreover, curriculum and education of Chemistry
continue on being conceived as a list of contents that must be fulfilled throughout the
course, approaching, in some aspects, to the old XV century conception of
education, organized as syllabus ─ topic lists ─, or topic sequences. Other aspects of
the curriculum still not being considered indicate the need of investing in the
formation of teachers, also in the reformulation of the curriculum.
Keywords: Chemistry – Study and teach, Curriculum of secondary education –
Chemistry, Public school.
8. LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 Organograma sugerindo as relações interdisciplinares na interface
entre as áreas de conhecimento .............................................................93
Figura 02 Localização aproximada das escolas pesquisadas no Mapa da
Cidade de São Paulo ..............................................................................97
Figura 03 Ciclo de vida de Huberman ...................................................................117
Quadro 01 Síntese da proposta contida no livro do GEPEQ – Módulo I...................71
Quadro 02 Síntese da proposta contida no livro do GEPEQ – Módulo II..................72
Quadro 03 Síntese da proposta contida no livro do GEPEQ – Módulo III.................73
Quadro 04 Síntese da proposta contida no livro do GEPEQ – Módulo IV ................74
Quadro 05 Síntese da Proposta de Mortimer............................................................76
Quadro 06 Seqüência de Conteúdos 1, sugeridos pelos PCN+ ...............................89
Quadro 07 Grade Curricular para o Ensino Médio Diurno - nas escolas
estaduais de São Paulo ..........................................................................90
Quadro 08 Grade Curricular para o Ensino Médio Noturno nas escolas
estaduais de São Paulo ..........................................................................91
Quadro 09 Seqüência de Conteúdos 2, sugerida pelos PCN do Ensino Médio........92
Quadro 10 Seqüência de Conteúdos 3, sugerida pelos PCN do Ensino Médio........92
Quadro 11 Matrículas no Ensino Médio da Cidade de São Paulo – IBGE 2005.......95
Quadro 12 Docentes no Ensino Médio da Cidade de São Paulo – IBGE 2005 ........96
Quadro 13 Distribuição das escolas públicas municipais de Ensino Médio por
região metropolitana ...............................................................................98
Quadro 14 Siglas utilizadas para identificação das escolas Municipais....................99
Quadro 15 Denominação das Escolas Estaduais por siglas...................................102
Quadro 16 Planos de ensino do primeiro ano do ensino médio..............................112
Quadro 17 Planos de ensino do segundo ano do ensino médio.............................113
Quadro 18 Planos de ensino do terceiro ano do ensino médio...............................114
Quadro 19 Identificação dos professores das escolas públicas municipais e
estaduais, por siglas .............................................................................115
Quadro 20 Perfil dos professores............................................................................116
9. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CB Ciclo Básico
CENP Coordenadoria Estadual de Normas Pedagógicas
CNE Conselho Nacional de Educação
CONTAP/USAID Conselho de Cooperação Técnica da Aliança para o Progresso/
United Agency for International Development
E.M.E.F.M. Escola Municipal de Ensino Fundamental e Médio
ELE Escola Leste Estadual
ELM Escola Leste Municipal
ENE Escola Norte Estadual
ENEM Exame Nacional de Ensino Médio
ENM Escola Norte Municipal
EOE Escola Oeste Estadual
EOM Escola Oeste Municipal
ESE Escola Sul Estadual
ESM Escola Sul Municipal
GEPEQ Grupo de Estudos e Pesquisa no Ensino de Química
LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394/96
MEC Ministério da Educação e do Desporto
MEC/USAID Ministério da Educação/United Agency for International
Development
OCNEM Orientações Curriculares para o Ensino Médio
10. OFA Ocupante de Função Atividade
PCN+ Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais
PCNEM Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNE Plano Nacional de Educação
PPP Projeto Político Pedagógico ou Propostas Político-Pedagógicas
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
SEE Secretaria Estadual de Educação de São Paulo
SEMTEC Secretaria de Ensino Médio e Tecnológico
SENAI Serviço Nacional da Indústria
SME Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
SME/DOT Secretaria Municipal de Educação do Município de São
Paulo/Diretoria de Orientação Técnica
U.E. Unidade de Ensino
UNB Universidade de Brasília
UNESP Universidade Estadual de São Paulo
UNICAMP Universidade de Campinas
UNICSUL Universidade Cruzeiro do Sul
USP Universidade de São Paulo
11. SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................13
CAPÍTULO I
1 CURRÍCULO: VÁRIOS OLHARES............................................................23
1.1 Do syllabus ao curriculum.......................................................................23
1.2 Teorias curriculares e o hibridismo do pensamento curricular
contemporâneo.........................................................................................25
1.3 A Legislação Educacional e o Ensino de Química ................................57
CAPÍTULO II
2 ENSINO DE QUÍMICA E A REFORMA CURRICULAR NO ENSINO
MÉDIO........................................................................................................65
2.1 Um breve histórico do ensino de Química no Estado de São
Paulo..........................................................................................................65
2.2 O trabalho desenvolvido pelo GEPEQ....................................................69
2.3 Proposta Curricular de Química fundamentada no modelo do
Estado de Minas Gerais – Grupo FOCO .................................................73
2.4 O papel dos temas estruturadores no ensino de Química ...................76
2.5 Diretrizes Curriculares e o ensino de Química ......................................85
2.5.1 Diretriz Curricular do Município de São Paulo.......................................86
2.5.2 Diretriz Curricular do Estado de São Paulo ...........................................87
CAPÍTULO III
3 COLETA E ANÁLISE DOS DADOS ..........................................................95
3.1 Escolas de Ensino Médio da Cidade de São Paulo ...............................95
3.2 Sobre as Escolas Investigadas ...............................................................96
3.2.1 Localização ...............................................................................................96
3.2.2 Caracterização ..........................................................................................97
3.2.2.1 Escolas Públicas Municipais ..................................................................97
3.2.2.1.1 Escola Norte Municipal (ENM).................................................................99
3.2.2.1.2 Escola Sul Municipal (ESM)..................................................................100
3.2.2.1.3 Escola Leste Municipal (ELM) ...............................................................100
12. 3.2.2.1.4 Escola Oeste Municipal (EOM) ..............................................................101
3.2.2.1.5 Instalações Físicas das Escolas Municijpais.......................................101
3.2.2.1.6 Equipamentos/Recursos Pedagógicos das Escolas Municipais .......101
3.2.2.2 Escolas Públicas Estaduais ..................................................................102
3.2.2.1.1 Escola Norte Estaduais (ENE) ...............................................................102
3.2.2.1.2 Escola Sul Estaduais (ESE) ...................................................................103
3.2.2.1.3 Escola Leste Estaduais (ELE) ...............................................................103
3.2.2.1.4 Escola Oeste Estaduais (EOE) ..............................................................104
3.3 As concepções de Currículo e de Ensino de Química nos
Projetos Político Pedagógicos das Escolas Públicas Municipais e
Estaduais.................................................................................................104
3.3.1 PPP das Escolas Públicas Municipais..................................................104
3.3.1.1 As concepções de ensino de Química contempladas nos PPP das
Escolas Públicas Municipais.................................................................105
3.3.2 PPP das Escolas Públicas Estaduais ..................................................106
3.3.1.1 As concepções de ensino de Química contempladas nos PPP das
Escolas Públicas Estaduais ..................................................................107
3.3.3 Análise dos dados obtidos a partir dos PPP .......................................108
3.4 Os Planos de Ensino de Química das Escolas Municipais e
Estaduais ................................................................................................111
3.5 Os Professores de Química das Escolas Públicas Municipais e
Estaduais ................................................................................................115
3.5.1 Entrevistas com os professores ...........................................................118
3.5.1.1 Relatos sobre a seleção de conteúdos da disciplina ..........................118
3.5.1.2 Relatos sobre o currículo de Química e a prescrição oficial..............127
3.6 Perspectiva de Mudança .......................................................................130
CONCLUSÃO .........................................................................................................133
REFERÊNCIAS.......................................................................................................137
APÊNDICES ...........................................................................................................141
ANEXOS .................................................................................................................169
13. 13
INTRODUÇÃO
O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em
suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era
percebido, se ‘destaca’ e assume o caráter de problemas, portanto,
de desafio. (Paulo Freire, 1987, p.71).
Antecedentes da pesquisa: sobre o pesquisador e o tema de pesquisa
É geralmente na adolescência que a maioria de nós decide qual o caminho
profissional que seguirá na vida adulta. Sob pressão da sociedade e da família, o
jovem vive um clima de tensão e, nessa encruzilhada, quase sempre acaba por
decidir-se por uma carreira que mais o atraia, sem, no entanto, conhecer as
implicações futuras de tal decisão.
Nesta fase, quando ainda estamos cursando o Ensino Médio, as disciplinas
se ampliam e os conteúdos se aprofundam cada vez mais. Nesse contexto de
angústias de adolescente e de tomada de decisões, recordo que me saia muito bem
em História e Geografia. Nessas disciplinas nunca fiquei com nota vermelha.
Adorava essas aulas, pois me faziam pensar, viajar no tempo e pensar nos
problemas sociais da época em que estávamos — idos de 1987 —, problemas
esses que não são muito diferentes dos atuais. Recordo-me, também, que havia
aulas não tão agradáveis quanto essas. Algumas eu cheguei mesmo a detestar,
embora não saiba bem a razão, mas o fato era que eu realmente passei a odiar a
Química. As outras disciplinas eu até tolerava, mas as aulas de Química me punham
para baixo, me faziam sentir impotente diante de tudo o que a professora falava.
Hoje, relembrando como tudo começou, posso afirmar que os anos de Ensino
Médio foram, realmente, difíceis para mim. A maioria das minhas notas, com
exceção de História e Geografia, era vermelha. Fiquei para exame de recuperação
em Química durante os três anos do curso. Foi um sufoco passar na disciplina de
Química. Penso que só dei conta porque, certamente, devo ter tido alguma ajuda
dos professores no Conselho de Classe, pois apesar de estudar, não compreendia o
que me ensinavam.
14. 14
No dia em que soube que havia concluído o Ensino Médio — na época 2º
Grau —, meu sentimento foi de alívio. Lembro que no caminho de casa, chegando
ao ponto de ônibus, em frente ao portão da escola, peguei meu caderno de Química
e ateei fogo nele. Para finalizar o martírio, piquei a tabela periódica e fui juntando
tudo ao fogo. Pronto, estava livre para sempre da Química.
Nos anos seguintes, após o término do Ensino Médio, como não tinha
recursos para custear um curso de Graduação, decidi trabalhar. Passados dois
anos, um amigo da família em conversa na minha casa, sugeriu à minha mãe que eu
fizesse um curso técnico; que uma formação mais especializada poderia me ajudar a
conseguir um emprego melhor, possibilitando, inclusive, que eu pudesse pagar uma
Faculdade.
Na ocasião achei interessante a idéia, mas qual não foi minha surpresa
quando ele sugeriu que eu tentasse fazer o curso de Técnico em Celulose e Papel,
oferecido pelo SENAI — Serviço Nacional da Indústria. Na mesma hora recusei a
idéia, já que, pelo nome eu sabia, neste curso deveria haver Química e isso era a
última coisa que eu queria enfrentar novamente. Mas fui voto vencido, ou melhor, fui
praticamente intimado a fazer a inscrição no tal curso. Quando dei conta de mim, lá
estava eu me dirigindo para o SENAI a fim de fazer minha inscrição.
No caminho de casa até o SENAI, fui pensando em como me livrar desse
curso de um modo que não viesse magoar minha família nem o amigo que tentava
me ajudar. Na verdade, não era pelo curso, que até me parecia interessante, mas
pelo fato de suspeitar que, dentre as várias disciplinas, haveria também a Química.
Ao chegar ao SENAI, fiz a inscrição e adquiri o caderno de conteúdos — guia
de instruções para a prova de seleção — e o folder do curso. Ao ler a relação de
disciplinas minhas suspeitas foram confirmadas, pois o curso era algo muito próximo
de uma formação de um técnico em Química.
De volta a minha casa, mostrei o folder do curso à minha mãe e disse-lhe que
não faria tal curso. Novamente percebi que não haveria escolha, ela praticamente
obrigou-me a fazer a prova. Restava-se somente uma esperança: fazer a prova e
ser reprovado, pois sabia que para isso não haveria punição, pois isso acontece a
qualquer pessoa.
15. 15
No dia da prova estava muito tranqüilo, torcendo para ser reprovado, o que de
fato aconteceu. Passadas duas semanas, minha mãe me acorda cedo dizendo para
eu ir até o SENAI a fim de efetuar minha matrícula no curso, pois como havia ficado
de 1º suplente e um dos aprovados tinha desistido, a vaga era minha. Isso me soou
como uma ironia. Mas não houve saída.
Já freqüentando o curso, estudei direitinho durante os dois primeiros meses,
embora não estivesse, novamente, entendendo de tudo aquilo. Era um mundo
desconhecido, onde se falava de produção de papel, celulose, eucalipto etc., temas
que não despertavam meu interesse.
Na primeira aula de fabricação de papel a professora preparou uma solução
de fibras celulósicas, acrescentou os ingredientes — os quais eu não conhecia a
função — e despejou a solução em um cilindro transparente, de 10 litros, de uma
máquina de sucção que simulava a mesa de formação de papel. Ao término da
sucção, a professora retirou a pasta de papel úmido e a colocou num secador a
vácuo.
Transcorrido mais ou menos uns 10 minutos, a professora retirou da secadora
a folha de papel pronta, sequinha. Fiquei surpreso, nem podia acreditar no que
estava vendo. Toquei no papel e, naquele momento percebi que era aquilo mesmo
que eu queria fazer. Senti desejo de me aprofundar, de saber mais. Este foi um dia
decisivo em minha vida: dia em que não apenas perdi o preconceito que eu tinha em
relação à Química, mas que também encontrei meu espaço profissional.
Após concluir o curso técnico fui trabalhar em algumas empresas de
fabricação de papel e, logo em seguida, fui cursar a graduação em Química. No
último ano da graduação, decidi ser professor de Química. Pedi demissão da
empresa e ingressei como professor ocupante de função atividade — OFA ou ACT
— na Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo.
No primeiro ano de docência, assim como os demais professores recém-
formados, para sentir-me mais seguro, passei a utilizar o livro texto como guia para o
planejamento e execução das minhas aulas. Preparava minhas aulas com cuidado,
pois do mesmo modo que eu agora gostava de Química, desejava que os
estudantes gostassem. No entanto, com o passar do tempo, percebi que apesar dos
16. 16
meus esforços, tal como havia acontecido comigo no Ensino Médio, a Química não
atraía os estudantes.
A falta de interesse dos estudantes passou a incomodar-me. Percebi que não
bastava dominar os conteúdos a serem ensinados ou seguir um bom livro para
preparar minhas aulas, ou seja, que ensinar Química envolvia outras questões para
as quais eu ainda não me sentia suficientemente formado. Percebi que me faltava
algo, que precisava voltar a estudar.
Em 1998 tive conhecimento de um curso que era realizado no Instituto de
Química da Universidade de São Paulo — USP —, pelo Grupo de Estudos e
Pesquisa no Ensino de Química — GEPEQ —, com uma nova proposta de
abordagem para o ensino de Química. Em 1999 iniciei o curso, cuja duração era de
um ano, com encontros mensais. Porém, por motivos profissionais, não consegui ir
até o final do curso.
Em 2000, ao ingressar como professor efetivo da Rede Estadual de Ensino do
Estado de São Paulo, acreditava que as coisas mudariam; que teria estabilidade e
poderia desenvolver um plano em longo prazo; que não precisaria ficar mudando de
escola a cada ano.
Ao assumir o cargo de professor titular, adotei durante três anos o método de
ensino proposto pelo GEPEQ. Percebi que houve uma melhora significativa na
aprendizagem dos estudantes. Mesmo assim, havia algo a ser melhorado; algo que
me intrigava e do qual eu não tinha idéia do que era. Percebi que havia a
necessidade de voltar a estudar, de buscar um espaço/tempo de formação que
agora sei ser a necessidade de vivenciar um processo de autoformação (MACIEL,
2001).
Hoje, após dois anos de Mestrado, sei que não basta seguir um bom método
— tal como o proposto pelo GEPEQ —, que ser um bom professor exige o domínio
de conhecimentos científicos, conhecimentos pedagógicos e conhecimentos
pedagógicos de conteúdos específicos. Todos esses aspectos devem estar
relacionados entre si, num movimento de construção permanente, como parte de
uma proposta curricular construída pelos atores envolvidos no processo educativo.
17. 17
Em 2003, quando ingressei como professor de Química na Rede Municipal de
Ensino da Cidade de São Paulo, para conciliar os horários de trabalho entre as duas
Redes de Ensino, assumi, na Rede Estadual, a função de Professor Coordenador
Pedagógico.
Na função de Coordenador Pedagógico freqüentei diversos cursos oferecidos
pela CENP — Coordenadoria Estadual de Normas Pedagógicas —, os quais me
ajudaram a perceber novos caminhos que poderiam ser seguidos para resolver a
questão do ensino de Química.
Enquanto professor de Química da Rede de Ensino Municipal, já não utilizava
o método do GEPEQ, mas sim o método tradicional de ensino, ou seja, livro texto,
lousa e giz. Esse retrocesso em termos pedagógicos acabou provocando, em mim,
um incômodo ainda maior que o anterior. Percebi que havia me acomodado e, mais
que isso, a incoerência entre o discurso e a prática de um professor que ocupava,
também, a função de Coordenador Pedagógico.
Nessa época o Governo do Estado de São Paulo, através da Secretaria
Estadual de Educação — SEE —, ofereceu um programa de bolsa de estudos para
os professores titulares de cargo que quisessem realizar um curso de Mestrado.
Interessei-me pelo programa e, em agosto de 2004, ingressei no curso de Mestrado
Profissionalizante em Ensino de Ciências e Matemática da UNICSUL —
Universidade Cruzeiro do Sul — com a intenção de me aprimorar na prática de
ensino de Química.
No início de 2005, enquanto aluno da disciplina de Didática e Metodologia de
Ensino de Ciências, no Curso de Mestrado, percebi não apenas as lacunas da
minha formação pedagógica, mas também a insatisfação dos meus colegas, com os
quais partilhava meus questionamentos e os conhecimentos que estava adquirindo.
Assim, num ato de ousadia, decidimos propor à Secretaria Municipal de
Educação da Cidade de São Paulo — SME — um encontro com os professores de
Ensino Médio da Rede Municipal, cujo objetivo era possibilitar a troca de
informações entre os professores das oito escolas em que existe o Ensino Médio.
Para nossa surpresa e satisfação, a proposta foi aceita de imediato.
18. 18
Como preparação para o evento, por sugestão da SME, convidou um
representante de cada Escola Municipal de Ensino Médio para, juntos, elaborarmos
a pauta do evento, devendo essa contemplar aspectos relacionados ao currículo e à
prática de ensino dos professores. A meta era desvelar e debater a escola.
O encontro aconteceu em 05 de agosto de 2005, numa parceria entre SME e
UNICSUL. Devido ao grande número de professores, o encontro foi realizado em
dois momentos: manhã e noite, no auditório da UNICSUL, campus Liberdade, com a
presença de professores, gestores e o então Secretário Municipal de Educação —
Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti — e professores e Pró-Reitor de Pós-Graduação
da UNICSUL — Prof. Dr. Luiz Henrique Amaral.
Nesses dois momentos, além da oportunidade de debater vários assuntos
relacionados ao cotidiano das escolas, tivemos uma palestra sobre os rumos do
Ensino Médio no Brasil, com a Profa. Dra. Maria Inês Fini, uma das responsáveis
pelo ENEM — Exame Nacional do Ensino Médio.
Após esse encontro, envolvido nos debates que ocorriam nas Escolas
Municipais de Médio sobre questões relacionadas ao currículo e ensino, percebi a
necessidade de buscar novos referenciais teóricos que pudessem dar sustentação
ao movimento iniciado. Assim, no início de 2006 matriculei-me na disciplina de
Fundamentos de Currículo, o que me proporcionou enxergar com maior clareza o
meu objeto de pesquisa: O currículo de Química.
Sabe-se que na Cidade de São Paulo, o ensino de Química ocorre nas
Escolas de Ensino Médio das duas Redes Oficiais de Ensino Público — Estadual e
Municipal —, sendo que a quase totalidade de escolas de nível Médio está na Rede
Estadual, pois existem apenas oito Escolas de Ensino Médio na Rede Pública
Municipal de São Paulo. Assim, pode-se dizer que a existência dessa modalidade na
Rede Pública de Ensino Municipal de São Paulo, é quase uma exceção.
Ambos os Sistemas de Ensino formam estudantes de nível Médio e se
pautam, desde 1999, pelas mesmas orientações oficiais — Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio ou PCNEM.
19. 19
Na Rede Estadual de Ensino, apesar de responder por quase a totalidade do
Ensino Médio, somente no ano de 2006, seis anos após a publicação dos PCNEM, é
que foram publicadas as orientações para que seus professores norteassem as
propostas curriculares para o ensino de Química. Nesse período, a decisão por
incorporar, ou não, as inovações sugeridas pelo PCNEM, ficaram por conta do
professor.
Na Rede de Ensino Municipal não existe uma Diretriz Curricular com vistas a
nortear o ensino de Química. Os professores recebem, simplesmente, uma
indicação de documentos oficiais — dentre os quais o PCNEM — que devem ser
lidos, analisados e interpretados, com vistas a subsidiar a construção de suas
propostas de ensino. Desta forma, o Currículo de Química na Rede de Ensino
Municipal continua sendo uma decisão de cada professor.
A questão de investigação
Como sou professor de Química das duas Redes de Ensino, percebo que em
ambas as realidades, nem mesmo as leituras dos documentos oficiais são
realizadas. Os professores, em geral, têm grande resistência a todo tipo de sugestão
oficial1.
Assim, considerando essa realidade do ensino de Química nas escolas de
Ensino Médio e o meu desejo de aprofundar estudos relacionados com as questões
do campo curricular, percebi a necessidade pessoal e profissional de investigar
como o Currículo de Química é concebido nas Escolas Públicas de Ensino Médio da
Cidade de São Paulo.
Objetivos
Conhecer as concepções de currículo que norteiam os Projetos Político-
Pedagógicos ― PPP ― ou Propostas Político-Pedagógicas, os planos de ensino e
as ações desenvolvidas pelos professores de Química do Ensino Médio das duas
Redes de Ensino ― Estadual e Municipal ― Público da Cidade de São Paulo;
1
O adjetivo “oficial” indica segundo Lopes (2005, p. 264), apenas a origem governamental de um texto, sua
autoria assinada e uma significativa difundida socialmente.
20. 20
verificar quais relações essas concepções guardam entre si e com as propostas
oficiais de ensino, com vistas a identificar possibilidades de melhorar a própria
atuação como docente da área e contribuir para a reflexão e o aprofundamento das
discussões no campo curricular no âmbito escolar.
Metodologia
Para conhecer as concepções de currículo que norteiam os PPP, os planos
de ensino e as ações dos docentes de Química, utilizei dois tipos de abordagens de
pesquisa qualitativa: análise documental, tal como sugere Gil (2002, p.46) e
entrevistas parcialmente estruturadas, como propõem Laville e Dionne (1999,
p.188).
A análise documental, segundo Gil, é um tipo de abordagem que se aproxima
da pesquisa bibliográfica, com um diferencial: enquanto a pesquisa bibliográfica
utiliza-se, basicamente, da leitura e análise de textos de diversos autores de livros e
artigos sobre determinado assunto, a pesquisa documental utiliza-se de fontes mais
diversificadas e dispersas, incluindo, além de livros publicados e artigos científicos
divulgados, documentos de primeira mão — aqueles que ainda não receberam
tratamento analítico — e de segunda mão — documentos que, de alguma forma, já
foram analisados.
Neste trabalho utilizei documentos de primeira e de segunda mão. Como
documentos de primeira mão os Projetos Pedagógicos das Escolas e os
Planejamentos de Ensino dos Professores. Como documentos de segunda mão a
Constituição Federativa do Brasil; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
nº. 9.394/96 — LDBEN —; os PCNEM, PCN+ e Orientações Curriculares para o
Ensino Médio — OCEM —; o Plano Nacional de Educação — PNE —; Decretos,
Pareceres e Resoluções Federais, Estaduais e/ou Municipais e Diretrizes
Curriculares Estaduais.
As entrevistas2 parcialmente estruturadas foram constituídas de questões
abertas, previamente construídas de acordo com o tema a ser investigado, dando ao
2
Ver APÊNDICE A – Roteiro de entrevistas.
21. 21
entrevistador a liberdade de incluir ou suprimir questões que, durante as entrevistas,
fossem julgadas pertinentes, conforme sugerem Laville e Dionne (1999, p.188).
Após a análise dos documentos de primeira mão ― PPP e Planos de Ensino
― e a realização das entrevistas, os dados coletados foram cruzados e analisados à
luz dos documentos de primeira mão, tais como as propostas dos Documentos
Oficiais ― LDB, PCN, PCN+, OCN e outros ― e textos publicados por alguns
teóricos de currículo.
23. 23
CAPÍTULO I
CURRÍCULO: VÁRIOS OLHARES
O currículo [...] algo que adquire forma e significado educativo à
medida que sofre uma série de processos de transformação dentro
das atividades práticas que o tem mais diretamente por objeto. As
condições de desenvolvimento e realidade curricular não podem ser
entendidas senão em conjunto. (Sacristán, 2000, p.09).
1.1 Do syllabus ao curriculum
Antes de iniciar esta pesquisa sobre currículo, fui buscar, nos diferentes
autores, uma definição para o termo. A palavra currículo tem origem latina: scurrere,
que significa correr.
Até o século XV, “professores e estudantes faziam seu próprio caminho, de
um tópico a outro – topos, palavra grega que significa lugar – guiados pelos próprios
interesses, pelos desejos de seus superiores ou patronos” (HAMILTON, 1993, p.11).
Segundo Hamilton (loc. cit), a escolarização era organizada na forma de
syllabus, palavra que significa “lista de tópicos”, mais que “seqüência de tópicos”.
Essa seqüência de tópicos era frequentemente, organizada na forma de compendia
– compêndios -, um conjunto de tópicos, mais que uma seqüência de tópicos.
Nos compendia parece estar a origem dos primeiros planejamentos de
ensino, cujo objetivo era organizar os conteúdos escolares em syllabus, ou tópicos
de ensino - tal como ocorre hoje. Até então, não se falava em curriculum.
Até a primeira publicação da palavra curriculum em textos, falava-se apenas
de método, palavra de origem grega: methodus, cujo significado era via. Seguir um
método era seguir um caminho mais curto para se chegar a uma meta desejada.
Foram os humanistas do século XVI que transportaram essa idéia de método para o
ensino, com o objetivo de metodologizá-lo e reorganiza-lo em uma série de atalhos.
24. 24
Essa concepção de método também foi estendida para outras áreas, tais
como religião, setores sociais e outros. A tradução das idéias sobre método no
ideário educacional de currículo foi “uma transformação que parece ter sido
3
prefigurada no trabalho de Pedro Ramus (1515-1572)” , a partir de uma
necessidade de organizar e dar sentido aos vários métodos existentes na época.
Ramus entendia que os métodos deveriam ser organizados para ensinar os
conhecimentos segundo o modo como estes haviam sido produzidos (HAMILTON,
1993, p.11-12).
Francis Bacon (1561-1627), considerado o pai do empirismo, não concordava
com Pedro Ramus e dizia que o conhecimento não poderia ser ensinado da mesma
forma como havia sido descoberto, pois as coisas da natureza funcionavam de
modo diferente.
Segundo Hamilton (1993, p.13), a força do pensamento baconiano fez com
que a metodologia das Ciências Naturais permanecesse, por longo tempo, com os
seguidores de Bacon, enquanto os ramistas — seguidores de Ramus — ficaram
livres para pensar sobre a forma de ensinar os conhecimentos de outras áreas.
Talvez nessa cisão entre baconianos e ramistas esteja a origem das diferenças
existentes, até hoje, na forma de se conceber e de se ensinar os conteúdos da
diferentes disciplinas.
De acordo com Hamilton (1993, p.14), Johann Thomas Fregius (1543-1583) e
Johann Heinrich Alsted (1588-1638) foram os primeiros educadores ramistas
alemães que trataram de incluir o curriculum na prática educacional.
Jan Amos Comênio, considerado o pai da Didática, foi discípulo de Alsted, na
Academia de Herborn, no período de 1611 a 1613, daí a razão pela qual a Didactica
Magna ser considerada uma obra ramista.
A Didática de Comênio, pautada nas idéias ramistas, assumiu uma postura
instrumental em relação ao ensino e a aprendizagem. A idéia que predominou, por
longo tempo, foi a de que qualquer pessoa seria capaz de aprender, desde que o
conhecimento fosse organizado de modo coerente. Pretendia-se que o
conhecimento escolar fosse organizado em mapas pré-ordenados de
3
Pedro Ramus foi professor de Filosofia da Universidade de Paris, no período de 1530-1540.
25. 25
conhecimentos, baseados em trajetórias, cujo destino seria fornecido pelo propósito
político da escolarização.
As idéias de Comênio sobre “Didática e escolarização mantiveram seu
potencial político por muitos anos” (HAMILTON, 1995, p.15). O curriculum, tal como
foi concebido no século XVII, tinha por objetivo a organização das vias de ensinar,
como também as decisões políticas sobre como ensinar. Nas idéias de Comênio,
percebe-se uma possível relação com as Legislações de Ensino e as Diretrizes
Curriculares Nacionais, em diferentes tempos históricos.
A relação entre currículo e disciplina, ainda hoje existente, parece ter sua
origem no século XVII, por volta do ano de 1633. Para Goodson (1995), talvez seja
essa a primeira relação estabelecida entre conhecimento e controle social, pois “o
currículo era, para a prática educacional [...], o que era a disciplina para a prática
social [...]” (HAMILTON, 1980, apud GOODSON, 1995, p.32).
1.2 Teorias curriculares e o hibridismo do pensamento curricular
contemporâneo
Os estudos sobre o campo curricular no Brasil são recentes, datam do início
do século XX, quando predominava a influência americana. Com o Manifesto dos
Pioneiros da Escola Nova, em 1932, gerações de educadores foram influenciadas. O
currículo, até então compreendido como uma lista de conteúdos desloca seu foco
para a atividade do aluno. Em decorrência disso, o ensino de Ciências, de um modo
geral, o currículo escolar sofre influência do modelo experimental.
Percebe-se ser impossível entender a questão curricular no Brasil sem uma
breve revisão desse período da História da Educação e uma discussão sobre as
influências exercidas pelas políticas educacionais na concepção de currículo.
Segundo Lopes e Macedo (2002), o pensamento curricular contemporâneo é
marcado por um hibridismo teórico. Logo, não podemos falar de teoria curricular sem
considerar as diferentes tendências hoje existentes. Ao analisarem-se as
concepções curriculares presentes nos documentos, discursos e ações das
instituições brasileiras, facilmente identificam-se a presença de diversos autores,
principalmente estrangeiros, responsáveis pelo hibridismo conceitual de currículo.
26. 26
No século XX, predomina no Brasil o enfoque técnico e instrumental ─ Tyler e
Taba ─, sendo que até os anos 1970, o currículo foi fortemente marcado pelas
influências da psicologia ─ Gagné, Piaget, Bruner. Já nos anos 1980, com a
reabertura política e o processo de democratização, que trouxe de volta alguns
pensadores brasileiros exilados no exterior pelo regime militar, vivenciamos um
período de grandes discussões, embalados pelas idéias desses autores sobre
educação, dentre eles Paulo Freire.
Nessa época, houve forte influência das idéias marxistas, abalando a
tradicional influência americana, presente desde a década de 1920. Em verdade,
nesse período coexistiam duas fortes influências teóricas: de um lado os seguidores
de Paulo Freire ─ pedagogia do oprimido ─ e de outro os defensores da Nova
Sociologia da Educação ─ pedagogia histórico/crítica.
No período de 1990, em meio a uma diversidade de influências teóricas, o
currículo brasileiro assume uma forte tendência sociológica ─ Giroux, Apple, Young
─, substituindo a tendência psicológica até então dominante. A partir do final da
década de 1990 para cá, percebe-se que um forte hibridismo tem marcado as
tendências curriculares brasileiras.
Para compreender melhor essas tendências, fui buscar nos teóricos suas
contribuições e influências.
Moreira (2001, p.76) situa as várias tendências de currículo em períodos:
• Dos anos vinte aos anos setenta: a emergência do campo e o
predomínio de uma tendência tradicional;
• Dos anos setenta aos anos noventa: a reconceitualização do campo e
o predomínio de uma teoria crítica de currículo;
• Dos anos noventa em diante: a teorização contemporânea.
Segundo Pedra (1997), esta base racional proposta por Tyler parte das
seguintes questões fundamentais que devem ser respondidas quando se
desenvolve qualquer currículo e plano de ensino:
27. 27
1. Que objetivos educacionais a escola deve procurar atingir?
2. Que experiências educacionais podem ser oferecidas e que tenham
probabilidade de alcançar esses propósitos?
3. Como organizar eficientemente essas experiências educacionais?
4. Como podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo
alcançados? (PEDRA, 1997, p.40).
Pedra (1997) destaca as idéias de Taba (1974) em relação a conhecimento,
currículo e sociedade, quando esta diz ser necessário:
[...] realizar uma análise constante dos fins e das exigências da sociedade e
das forças que nela operam, com o objetivo de manter a educação
orientada para a realidade: para determinar quais conhecimentos merecem
maior atenção, que tipo de capacitação deve prevalecer e quais valores são
relevantes. (TABA, 1974, p.53).
Taba acrescentou mais um dado a teoria de Tyler quando propõe a
sondagem de diagnóstico da clientela da escola e da realidade, para saber a quem
se destina o plano de ensino.
Taba (1974, p. 26), em seu texto Elaboración del Curriculum, deixa explícito o
seu propósito de estudar as fontes que subsidiam as elaborações dos currículos,
assim como as etapas e procedimentos a serem seguidos na formulação dos
mesmos.
O segundo período é conhecido como o predomínio da teoria crítica de
currículo. Nesse período a tendência técnico/instrumental passa a ser rejeitada, seja
pela sua ineficiência de transformar a escola, seja pela sua suposta neutralidade –
acusações feitas a Tyler e Taba. Instaura-se aí, o período de crise do currículo
escolar, onde os curriculistas se debatem clamando por uma ressignificação da
educação e da própria escola.
Surgem nesse segundo período duas novas tendências em currículo: uma de
cunho mais humanista, tendo em Pinar um dos seus representantes mais
conhecidos, e outra mais política, representada por Apple e Giroux.
Em ambas as tendências o interesse maior é pela compreensão do
significado do currículo do que pela sua elaboração. Os problemas relacionados a
currículo deixam de ser puramente técnicos e passam a ser concebidos também
como problemas políticos, onde o “por que fazer assume o lugar do como fazer”.
28. 28
Lopes e Macedo (2002, p.15) são autoras contemporâneas que também
defendem “a idéia de que o currículo só pode ser compreendido quando
contextualizado política, econômica e socialmente”.
A crítica ao estudo do campo curricular estruturalista, apresentado por Kelly
nos anos de 1980, deixa claro que, até então, o currículo era tomado, como um
planejamento cartesiano, ou seja, que deixava claro quais as metas mais gerais e
quais os objetivos a serem trabalhados.
Para o mesmo autor, as necessidades pessoais dos estudantes muitas vezes
são influenciadas pelo que a sociedade deseja que seja ensinado na escola, e não
podemos deixar de lado a influência do professor nesta seleção de conteúdos que
visariam suprir tais necessidades.
Nesse mesmo período ─ anos de 1980 ─ temos a forte presença de Paulo
Freire que, com sua pedagogia do oprimido, propõe um método abrangente, pelo
qual a palavra ajuda o homem a tornar-se homem e a linguagem passa a ser cultura.
Alfabetizar, segundo o autor, passa a ser ensinar o uso da palavra (FREIRE, 1987).
Freire, em suas reflexões sobre a origem da opressão, as quais os homens
são submetidos por outros homens, e as conseqüências sociais desta opressão,
escreve, em 1968, a obra pedagogia do oprimido.
O autor se refere, principalmente, às “[...] reações de proletários, camponeses
ou urbanos, e de homens de classe média” (FREIRE, 1987, p. 25) e à submissão e
opressão que os mesmos sofrem em suas comunidades, além da falta de
consciência da sua própria situação.
A princípio Freire situa o seu campo de atuação como educador e como
pessoa preocupada com a emancipação dos homens, caracterizando essa
emancipação como saudável, sem condução ou falsa vontade de ajudar. Segundo o
autor, a conscientização da situação na qual o homem se encontra é o ponto de
partida para que a consciência crítica possa emergir por si só. Ninguém consegue
retirar alguém de uma situação na qual se encontra, é preciso que se criem
situações que façam com que os homens percam a falsa ilusão de liberdade e
tomem as rédeas das suas próprias vidas.
29. 29
Os homens, segundo Freire, não conhecessem a si mesmos, são
desconhecidos da sua própria posição na sociedade e, quando questionados da sua
razão de ser, quando se descobrem como homens, se assustam com a realidade.
Os homens percebem a sua desumanização que, segundo o autor, é realizada por
opressores, os quais, de forma menos pronunciada, também são oprimidos pelas
suas próprias opressões. Porém, esta distorção de relação entre os homens é uma
construção histórica, algo que vem de fora para dentro, que é internalizada por um
status quo.
Freire acredita que o homem só serão “seres para si” quando o processo
histórico da desumanização for rompido. Considera que ser oprimido e
desumanizado é “[...] resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos
opressores e esta, o ser menos” (FREIRE, 1987, p. 30). Quando há pessoas que
oprimem outras, estas se sentem como ‘ser mais’, e este sentimento diante do outro
é algo que faz com que o opressor não se sinta opressor, pois acredita que ser
oprimido é uma condição na qual sempre alguém deverá estar. Porém, os
opressores para amenizar sua culpa e ser generoso com os oprimidos, fazem
caridade falsa que não pretende ajudar a pessoa a sair da condição de oprimido; é
algo que os ajuda num falso amor, fazendo com que se regogizem em auxiliar com
migalhas os demitidos da terra (FREIRE, 1987).
Freire pondera que o opressor jamais conseguirá entender a sua situação de
opressor e portando não se liberta da sua própria opressão. Somente quem sofre a
opressão tem a real noção do que é ser oprimido. Portanto, como pode o oprimido
se libertar dessa condição e libertar também o seu opressor, se dentro dele também
reside um opressor. Diante dessa situação Freire define pedagogia do oprimido
como:
[...] aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens
ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade.
Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos
oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua
libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (FREIRE, 1987, p. 32)
O oprimido que se descobre oprimido e reflete a sua situação social de
excluído, em um primeiro momento ao se sentir liberto, fora da condição de
oprimido, tende a se comportar como seu opressor. Isto ocorre porque o oprimido
30. 30
“hospeda” em si o opressor. Esta condição é normal, pois ele almeja ser igual ao seu
opressor, não por admiração, mas por “aderência” (FREIRE, 1987).
Este é o ponto no qual o autor visualiza o que ele chama de ‘quase
aberração’, pois é “[...] um dos pólos da contradição pretendendo não a libertação,
mas a identificação com seu contrário” (FREIRE, 1987, p. 33).
A história da Educação está repleta de exemplos de oprimidos que se tornam
opressores muito mais algozes do que os que os oprimiam. Isto acontece porque ao
deixarem à condição de oprimidos, não sabem ocupar este espaço, então o
preenchem com o que eles têm de referência, que é a postura do opressor.
Este processo de transformação do ser oprimido para sua libertação é muito
dolorosa, segundo Freire, pois o oprimido está em um processo de “autodesvalia”
que é uma visão do opressor ser um “ser mais” do que ele, cuja posição social e
intelectual é algo insuperável.
Todo esse processo faz que o oprimido aceite sua posição de “ser menos” e
quando este começa a tomar consciência do regime opressor no qual se encontra,
logo vê isto como um ato de revolta, de inveja da sua posição e não como uma
tomada de consciência do oprimido. Mesmo porque o opressor não pode avaliar a
situação do outro por achar que esta é a ordem natural das coisas, ou seja, acredita
que os oprimidos assim o são por serem perigosos e vagabundos. Portanto, esperar
que alguém vá libertar o oprimido da sua situação de submissão é algo impossível
segundo Freire, pois opressor não reconhece a opressão ou, se a reconhece,
diminui sua culpa com caridades falsas que deixam tudo em seu devido lugar.
Freire (1987, p. 52-53) diz que “[...] Ninguém liberta ninguém, ninguém se
liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”. Para que haja uma
sociedade realmente justa, onde as pessoas se libertam em comunhão umas com
as outras, a “ação política” deve ser uma “ação cultural” junto com os oprimidos.
Esta luta pela humanização necessita que ambos aceitem que ela exista em
qualquer nível em que haja a relação opressor-oprimido.
A libertação será mutua. Não uma libertação limitada a poucas coisas, ou ao
básico da vida, e sim para uma “[...] liberdade para criar e construir, para admirar e
31. 31
aventurar-se” (loc. sit.). Ao lutar pela sua libertação, não conduzida pelos outros e
sim por si próprios, o oprimido deixa de ser “coisa” e toma seu lugar no mundo
(FREIRE, 1987).
A concepção freireana de educação parte do princípio de que o estudante
não é uma tábua rasa na qual o professor deva depositar conteúdos que pouco
fazem parte da realidade desse estudante. Essa concepção de educação versa,
ainda, sobre a educação narrativa, aquela cujo professor só profere palavras sem
significado algum, com o intuito da memorização inútil de conteúdos, os quais Freire
chama de “blábláblá”.
Esta relação de professor-estudante, segundo Freire, foi e ainda é
caracterizada por muito tempo como sendo uma relação de opressor-oprimido, em
que o estudante é posto numa posição de “ser menos” em relação ao professor, o
“ser mais”.
Assim, a função do professor de proporcionar ao estudante condições para se
libertar do status quo é negada, por vezes inconscientemente, como Freire entendia.
Isso ocorre, muitas vezes, não por sua culpa, mas por aceitar que há pessoas que
devam estar em posições inferiores na sociedade, pois sempre foi assim durante a
história; história de opressão, de desumanização.
O professor que ensina bancariamente, como se os estudantes fossem
depositários do seu conhecimento superior, está na verdade alimentando um
sentimento pela necrofilia, sentimento pela morte, morte dos homens na qual está
“ensinado”, pois parte de uma falsa compreensão dos homens “[...] reduzidos a
meras coisas” (FREIRE, 1987, p. 65).
A pedagogia do oprimido não chegou a fazer eco na escola brasileira,
diferentemente do que aconteceu em outros países, pois nesse período da década
de 1968, predominava no Brasil o modelo de currículo de tendência
técnico/instrumental.
Entre os representantes do período contemporâneo, temos César Coll (1987),
José Gimeno Sacristán (2000) e Antoni Zabala Vidiella (2002).
32. 32
Coll (1987, p.33) define currículo como sendo “[...] uma série de princípios de
índoles diversas − ideológicos, psicopedagógicos − que, em conjunto mostram a
orientação geral do sistema educacional”. Assim, o currículo passa a ser visto como
a base para as reformas educacionais nacionais, pois é a partir dele que as diversas
orientações em níveis educacionais estaduais e municipais poderão orientar suas
decisões.
Enquanto autores como Kelly (1981), Goodson (1995), Zabala (2002) tratam
das dificuldades da seleção e moldagem de conteúdos curriculares, diretamente
ligados à cultura de classe dominante, Coll refere-se diretamente a cultura,
esclarecendo o significado dessa cultura.
Sacristán (2000, p.15) entende o currículo como algo difícil de ser definido
pelo fato de ser elaborado dentro de contextos históricos, o qual pode ter diferente
“[...] orientação filosófica, social e pedagógica”, dependendo da cultura e dos
propósitos de cada sociedade. A organização de cada sistema educativo também é
algo que influir no currículo. Para o autor, currículo não é algo que está ou que se
faz fora da escola, mas sim algo que emerge dela.
Assim, a realidade de cada sistema educativo e o seu maior ou menor grau
de autonomia, pode determinar o tipo de currículo. A prática pedagógica
desenvolvida para socializar os estudantes dentro das instituições escolares, é o que
podemos chamar de ensino. Nos diferentes países nascem tipos de ensino também
diferentes, que nada mais são do que o reflexo de como o currículo é historicamente
e pedagogicamente definido.
Sacristán destaca que sobre o currículo há uma tensão de forças que atuam
de forma desigual. Estas combinações de influências resultam em um “conflito
natural”, ainda que estas forças atuem em uma só direção. Mesmo assim, criariam
subsistemas dentro do currículo, como ocorre com os livros-texto, que apesar se
pautarem pelas orientações oficiais, formula sua interpretação e a imprimem num
currículo moldado.
O currículo, para Sacristán, não é algo fixo, pronto, estático, mas algo que
precisa sempre ser revisto e cuja dinâmica depende da realidade histórica na qual
33. 33
se insere. Por essa razão, as escolas e os sistemas de educação devem ser revistos
constantemente.
Desse modo, o currículo deve ser também revisto. Entender “[...] as relações,
conexões e aspectos de autonomia que se estabelecem no sistema curricular é
condição sine qua non” (SACRISTÁN, 2000, p. 102) para compreender o que
significa currículo.
Sacristán identifica que o currículo é regulado e determinado pelas
disposições da administração, pela relação entre objetivos, pelos conteúdos, pelas
habilidades a serem desenvolvidas no âmbito escolar e pelas relações que os livros-
texto fazem com os programas prescritos, formulados por uma minoria hegemônica.
Nas palavras do autor, o currículo: “[...] adota significados diversos, por que,
além de ser suscetível a enfoques paradigmáticos diferentes é utilizado para
processos ou fases distintas do desenvolvimento curricular” (SACRISTÁN, 2000, p.
103).
Para Sacristán, utilizar este conceito de currículo de forma parcial em um
aspecto do currículo pode se configurar em uma distorção. Apesar de haver vários
discursos teóricos sobre currículo, a ação de intervenção não pode ser parcial, deve
haver uma interferência em todos os âmbitos no qual o currículo se insere.
Dentro de um processo de concretização do currículo, Sacristán ressalta que
na prática há interferências na sua objetivação. Um exemplo é o currículo pensado
pela administração − currículo prescrito − e o currículo moldado pelo professor, entre
uma ponta e outra, verifica-se que houve alterações das disposições iniciais, no qual
o professor não costuma partir das disposições oficiais na elaboração dos objetivos
pré-determinados.
Ao apresentar o currículo prescrito, Sacristán demonstra como o governo o
utiliza para imprimir nele suas intenções que nem sempre são claras. A clareza das
intenções depende do grau de democracia no qual o sistema educativo está
inserido. Em regimes mais democráticos o currículo prescrito atua de forma a
orientar as outras instâncias do sistema educativo, sem haver uma regulação de
obrigatoriedade de sua aplicação. Mesmo nesses regimes, há uma intenção na
34. 34
concepção do currículo e outros tipos de controle não muito claros. Nos regimes
menos democráticos, esta intenção torna-se muito mais clara, ou seja, o governo
controla efetivamente o que se ensina e dita as regras educacionais.
O Estado necessita estabelecer uma política educacional através do “sistema
curricular” para ordenar a distribuição do conhecimento para a nação, regular como
será feita a avaliação e como o Estado intervirá nas demais instâncias do sistema
educativo. Em qualquer que seja o governo é necessário que se realize esta
regulação como guia de referência a todo sistema curricular, pois além de interferir
no modo como a cultura será distribuída no sistema educacional, a prescrição
repassa também a política de nação pretendida.
Estas intenções, segundo Sacristán (2000, p. 109), estão longe “[...] de ser
uma proposição explicita e coerente, perdendo-se numa mentalidade difusa [...]
numa série de regulações desconectadas entre si [...]” que, através de disposições
legais e regulamentações, pretensamente pretendem “[...] com boa intenção [...]
“melhorar” a prática”.
A fim de garantir o funcionamento do currículo como prescrito, o governo
lança mão de alguns caminhos que visam sistematizar as ações que não tem caráter
pedagógico, as quais Sacristán (2000) identificou como:
a) As formas de regular ou impor uma determinada distribuição do
conhecimento dentro do sistema educativo.
b) Estrutura de decisões centralizadas ou descentralizadas na regulação e
no controle do currículo. As opções que forem tomadas nesta dimensão
delimitam os espaços de liberdade atribuídos a diversos agentes e
instâncias que intervêm na configuração do currículo: administração
central, outras administrações, escolas, professores, criadores de
materiais, etc. Ou porque regula explicitamente essas margens ou
porque as permite ou as estimula. Em cada caso se desenvolvem
mecanismos de “resistência” que flexibilizam e até fazem inoperantes as
regulações em algumas situações, sem deixar de estar dentro do
sistema.
c) Aspectos sobre os quais esse controle incide: vigilância para determinar
o cumprimento dos objetivos e aprendizagens considerados mínimos,
ordenamento do processo pedagógico ou intervenção através dos meios
didáticos.
d) Mecanismos explícitos ou ocultos pelos quais se exerce o controle sobre
a prática e a avaliação da qualidade do sistema educativo: regulação do
processo, inspeção sobre as escolas e professores e avaliação externa.
É importante analisar o grau de conhecimento e tipo de utilização das
informações sobre o sistema educativo.
e) As políticas de inovação do currículo, assistência às escolas e de
aperfeiçoamento dos professores como estratégias para melhorar a
qualidade do ensino. É importante ver o papel específico dos meios
35. 35
técnicos expressamente dirigidos para organizar o currículo em planos
ou esquemas moldáveis pelo professorado, devido à decisiva influência
na intervenção do currículo. Portanto, desde a política curricular é
preciso ver que campo se oferece para sua criação, consumo e
inovação. (SACRISTÁN, 2000, p. 110)
O ensino obrigatório, comum em muitos países, principalmente os latinos, faz
parte de uma política de governo que visa distribuir e regular a cultura em uma
nação. Se o ensino é obrigatório, então todos os estudantes deverão permanecer
um determinado tempo nas escolas até que estejam aptos a se integrarem a
sociedade, assim a escola adquire uma conotação de profusora de uma cultura
também comum para todas as pessoas, que cada uma delas tem pontos de partida
diferentes, condições diferentes de acesso aos bens culturais, etc., são, portanto
heterogêneas e recebem uma cultura hegemônica (SACRISTÁN, 2000).
Segundo Sacristán (2000, p. 111), a idéia de currículo comum parece ter boas
intenções se não fosse recheada de uma boa dose ideológica dominante que “[...]
não é uma decisão inocente e neutra para as diferentes coletividades sociais”. O
currículo comum dita o que deve ser ensinado nas escolas, cria mecanismos de
avaliação cuja finalidade é verificar e criar mais mecanismos que cerquem e façam
com que as prescrições sejam cumpridas, tudo em nome de uma qualidade
educacional.
O autor propõe uma análise do currículo mínimo ou regulação mínima com
relação à escolha do que seja o mínimo de uma cultura e que tipo de cultura está
elegendo, já que as pessoas nas escolas são heterogêneas. Ao estabelecer um
currículo mínimo obrigatório “[...] a escola propõe aos indivíduos, a cultura e o
conhecimento considerado valioso” (SACRISTÁN, 2000, p. 112) para serem
validados por sistemas de controle que podem ser externos ou internos.
A opção política, segundo Sacristán, de estabelecer um currículo mínimo para
o ensino obrigatório, expressa uma cultura que define como obrigatória para toda
uma nação. Este tipo de política deixa claras as intenções de um modelo de
socialização e de formação esperada. De acordo com o autor, a organização do
saber dentro da escolaridade está a serviço do currículo prescrito.
Essa abordagem, verificada em sistemas educacionais que prescrevem uma
regulação mínima para o ensino obrigatório, foca um modelo de escola que facilita a
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sua implantação, ou seja, o saber está dividido em séries ou ciclos que, na
prescrição, torna mais fácil o exercício do controle sobre o que se ensina e quando
se ensina a cada etapa da escolarização.
Este conhecimento muitas vezes é intermediado pelos livros-texto que
interpretam o currículo oficial segundo sua lógica de mercado editorial. Como este
conhecimento é seriado, mesmo dentro dos ciclos, há uma exigência que o
estudante adquira certo nível de conteúdo para passar para a série posterior, esta
certificação de aprendizagem é feita pelo próprio sistema escolar que é uma forma
de controle de quantos estudantes estão ou não aptos a avançar dentro da
escolaridade.
As validações, segundo Sacristán, do saber adquirido pelos alunos podem ser
realizadas por diversas formas − internas ou externas − que o governo verifica como
anda a implantação dos mínimos prescritos no ensino obrigatório. Estes
instrumentos e avaliações, principalmente os externos, denota que não basta
somente prescrever o currículo mínimo obrigatório, por mais minucioso que ele seja,
o professor molda esse currículo segundo seus interesses, condição histórica social,
ou mesmo é induzido pelos livros-texto a moldá-los. Desta forma, a validação
funciona como instrumento de controle indireto de todo sistema educativo.
Sacristán verifica que, muitas vezes a administração vai além de querer
prescrever somente os mínimos como guia gerais do ensino, tenta orientar o
processo de ensino e a aprendizagem pedagógica. Assim, a administração quer
cercar de todas as formas a maneira com que os mínimos estão sendo implantados
e criar sistemas de controle ou supervisão para aqueles pontos onde não estão
sendo seguidos.
Na prática este controle se torna muito difícil, pois em regimes democráticos
há o pressuposto de que os professores gozam de certa liberdade na modelagem
dos prescritos, e quando a administração tenta realizar estas tarefas regulatórias,
tanto em relação aos mínimos ou quanto a parte pedagógica, incorre no insucesso.
O autor aponta ainda três fatores que explicam os motivos pelos quais o
governo tenta intervir na prática das aulas, são eles:
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• A administração veladamente admite que seu professorado tenha uma
formação deficiente e que necessita de orientações pedagógicas.
Principalmente no nível de Ensino Fundamental I.
• A divulgação dos mínimos prescritos tem um baixo custo, porque seria
caro demais capacitar os professores para suprir a defasagem da
formação inicial e dar cursos de capacitação continuada a todos eles.
Então se opta pela simples veiculação dos mínimos que serão lidas e
efetivadas.
• A necessidade do controle do currículo através de leis, orientações,
disposições, supervisão, divulgação e distribuição dos livros-texto, e tudo
isso por saberem que o professor acaba moldando o que chega até eles.
Quando Sacristán trata especificamente do currículo como via de controle
sobre a prática do ensino, além de versar sobre os tipos de controle já mencionados
anteriormente, principalmente no que se refere à parcelização do saber em
disciplinas. Analisa também o currículo mínimo numa abordagem mais como meio
de controle social e de mediatização da cultura, assim o currículo prescrito para o
ensino obrigatório embute em si uma carga além da simples regulação do sistema
educacional.
Segundo Sacristán, a prescrição não trata somente dos conteúdos mínimos,
mas da forma como serão distribuídos nas séries ou ciclos, onde o currículo ganha
corpo e adquire a função de fornecer outros tipos de conteúdos.
Esta agregação de conteúdos não prescritos ao currículo prescrito, segundo
Sacristán, deve-se, em grande parte, a dois fatores:
1. Ao avanço dos estudos no campo curricular que, agregados à
psicologia, dotaram o currículo de outras obrigações, além das
tradicionalmente já atribuídas a ele até meados dos anos 1970;
2. A nova demanda social existente em função da nova estrutura familiar
que sofreu alterações dos anos 1980 até o presente, gerando uma
transferência, para a escola, de um tipo de educação que antes ficava
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a cargo da família, fazendo com que a escola deixasse de ser
exclusivamente propedêutica.
O aumento do tempo de permanência do estudante na escola, com a
expansão do ensino básico e as novas demandas do mundo do trabalho, pressionou
o currículo para atender as novas exigências.
Sacristán considera que essa agregação de novas demandas ao currículo
não teria maiores complicações de ser absorvido pelo sistema educacional, desde
que a administração não as utilizasse como instrumento para introduzir pautas de
comportamento pré-estabelecidas pela elite, moldando as pessoas que dele se
utilizam.
Desta forma, historicamente, em sistemas educacionais que têm uma cultura
prolongada de submissão, imposta por esquemas ideológicos e políticas longas de
intervencionismo, os professores aceitam este controle como “[...] algo inerente à
existência do sistema escolar” (SACRISTÁN, 2000, p 114).
Obviamente o sistema educacional, segundo Sacristán, não consegue ser
eficiente nem nas prescrições, nem no controle sobre o currículo moldado pelo
professor, ou seja, é ineficaz muitas vezes no controle e distribuição destas pautas
de comportamento, por serem difusas pouco claras e com objetivos híbridos. Isso
ocorre pela necessidade da administração não poder explicitar estas pautas de
comportamento por estarmos em um sistema que se diz democrático.
Sacristán considera que sempre haverá professores que, por não
concordarem com as prescrições, intervêm de maneira a interpretar o currículo de
outra forma menos burocratizada e controlada.
Do mesmo modo, dentro de propostas inovadoras que revelam outras
intenções educacionais, inclusive as não prescritas, há professores que não
conseguem sair do esquema armado pela administração e seguem tudo que lhes
são sugeridos, isto ocorre por estarem condicionados a estas práticas
burocratizadas.
Este processo de subverter uma filosofia educativa prescrita e que o autor
quer “[...] deixar claro é que tal filosofia se instala ou não na mentalidade dos
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professores e em seus esquemas de atuação prática por meios que são os que
deveriam estimular a política educativa” (SACRISTÁN, 2000, p. 115). O autor aponta
cinco conseqüências negativas desse controle de processo educativo, que são:
1) Não proporciona um verdadeiro sistema de controle do currículo para
avaliar o sistema escolar e suas escolas, detectar as desigualdades
entre as mesmas ou entre zonas, diagnosticar necessidades de
formação do professorado ou de educação compensatória, etc.
2) Deixa entregue à instância administrativa, que regula o currículo, a
atuação em campos técnicos que correspondem a outros âmbitos de
decisão pedagógica. Confunde-se a função de controle com a função
técnica de orientação, contribuindo assim para forjar um clima de
dependência profissional das instâncias que propriamente deveriam
atuar no campo técnico-pedagógico, escolas e professores, quanto à
burocracia administrativa, mantendo a debilidade profissional dos
docentes. À maior dependência do professor das regulações da
administração corresponde um menor desenvolvimento de instâncias de
modulação intermediária do currículo.
3) Cria a ilusão de que uma política educativa progressista pode assim
atuar de forma rápida e barata sobre o sistema escolar, melhorando a
qualidade.
4) Descuida ou não pondera suficientemente os caminhos e a criação de
recursos estáveis mais eficazes a médio e longo prazo para
proporcionar mais qualidade ao sistema, como a melhora da qualidade
do professorado, o aperfeiçoamento próximo seu local de trabalho e a
criação de materiais e meios de qualidade que transfiram o currículo
para planos de atuação, a dotação de melhores meios nas escolas e a
melhor ordenação e funcionamento das mesmas.
5) O controle da qualidade do processo, por meio da inspeção educativa,
cria um clima de relações rarefeitas na educação pela ambigüidade e
contradição entre diferentes funções atribuídas à figura do inspetor.
(SACRISTÁN, 2000, p. 116).
Segundo Sacristán, no intuito das prescrições exercerem um maior controle
do processo educacional para aumentar a eficácia, a administração tende a ditar o
conteúdo selecionando o que se deve ensinar detalhadamente na sala de aula.
Apoiando-se no despreparo do docente, que por muitas vezes acata as prescrições
sem analisá-las, por estas trazerem um “guia de aula” já pensado para ele, a
educação obrigatória pode se tornar muito homogeneizada.
A idéia de eficácia no sistema educacional apontado pelo autor dá abertura
para tais procedimentos quase que automáticos, principalmente quando mediados
pelos livros-texto, subtrai do professor a liberdade de formular a aula, na qual já vem
pronta na forma direta de orientações pedagógicas ou através dos livros-texto que
são submetidos à regulação para serem aprovados.
Estas práticas segundo Sacristán são típicas de sistemas que passaram por
longos períodos de intervencionismo e que criou nos professores uma mentalidade
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de que as discussões sobre a seleção dos conteúdos e como se deve ensiná-los,
cabe aos controladores do sistema educacional num sistema centralizado.
Portanto, entre os professores o debate sobre o currículo quase não ocorre o
que poderia fomentar novas concepções sobre educação, mas mesmo assim há
grupos de professores que relutariam em aceitar novas propostas diferentes
daquelas apresentadas principalmente nos livros-texto.
Para Sacristán, o currículo prescrito “[...] não pode ser nem deve ser
entendido como um trabalho pedagógico e um guia didático que oferta planos
elaborados para os professores [...] se a política curricular pode e deve ajudar os
professores deve fazê-lo por outros meios” (SACRISTÁN, 2000, p. 118).
Todo este processo conduz inevitavelmente a um controle que “[...] pode ser
exercido basicamente, por meio da regulação administrativa que ordena como deve
ser a prática escolar, [...] através da inspeção ou por meio de uma avaliação externa
dos alunos” (loc. sit.).
Quando há avaliações externa no sistema escolar, segundo Sacristán, muitos
professores se pautam por elas na hora de realizarem seus planejamentos, esta
prática é tão mais freqüente quanto menor for o grau de preparo do professor, por
necessitarem de algum respaldo em relação ao seu planejamento, como uma
validação sobre a sua prática.
Esta avaliação externa seria útil na medida em que servisse de diagnóstico
para a administração avaliar e promover capacitações aos professores, promover a
melhor distribuição de recursos e um aumento na autonomia das escolas. O autor
analisa estes fatos ocorrem principalmente em sistemas onde a centralização do
sistema educacional existe, pois nestes casos a autonomia escolar é reduzida pela
burocracia.
Porém em contrapartida a descentralização do sistema educacional como
instrumento de agilização do campo curricular e de autonomia das escolas muitas
vezes não se concretiza, o autor demonstra que a gestão das escolas nestes casos
às vezes tende a até serem mais rígidas do que quando centralizadas pelo sistema.
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Esta submissão dos sistemas educacionais descentralizados ocorre segundo
Sacristán, pela falta de autonomia técnico-administrativa que o sistema central
impõe aos demais subsistemas, mesmo dizendo que são descentralizados, é como
se houvesse uma liberdade restrita.
Outro fato importante que ocorre, é que os gestores dos sistemas
descentralizados geralmente não promovem uma aproximação dos professores, pais
e comunidade, o que seria o mais comum de acontecer neste tipo de organização
admistrativa pela proximidade, inclusive física dos gestores com os demais.
Para entender os tipos de centralização e descentralização, Sacristán utiliza a
teoria de Skilbeck (1972) e define três modelos:
1) O modelo racional dedutivo, que se torna manifesto nos sistemas
educativos mais centralizados, nos quais a política e os meios para
desenvolvê-la são determinados de forma centralizada.
2) O modelo racional interativo, no qual as decisões são compartilhadas
entre os governos locais, os professores e até os pais e os alunos.
3) O modelo intuitivo de tomada de decisões, que parte da atuação
individual dos professores nas aulas, em vista da percepção das
necessidades de cada grupo de alunos. (SACRISTÁN, 2000, p. 121).
O autor pondera que o modelo racional interativo é o mais adequado por
permitir que todas as partes envolvidas no processo educativo participem da gestão.
No modelo mais difundido entre os sistemas educacionais, principalmente os de
origem latina, se pautam no racional dedutivo. Este modelo conduz toda a cadeia
educativa a ser menos criativa e cercear iniciativas diferentes daquelas sugeridas
pela administração, apesar de que mesmo as propostas oficiais geral de alguma
forma um avanço na educação (SACRISTÁN, 2000).
Sacristán aponta o material didático, principalmente os livros-texto de serem
os grandes mediadores culturais entre o currículo prescrito e o professor na sala de
aula. Muitas vezes o professor sequer lê o currículo prescrito ou suas orientações
pedagógicas, mesmo porque elas não são claras e não servem de apoio para o
planejamento anual por serem gerais demais.
Apesar dos professores em sua maioria entenderem que os livros-texto “[...]
são instrumentos de partida” (SACRISTÁN, 2000, p. 121) na elaboração de suas
aulas, os professores seguem o que os editores acreditam ser importantes para o
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currículo, que nem sempre estão de acordo com a melhor pedagogia ou escolha de
conteúdos, e sim com interesses financeiros.
O autor analisa o uso do material didático que entra na sala de aula sempre
regulada pela administração e torna-se “[...] um modelo que parte do pressuposto,
ao menos implícito, de que os professores devem trabalhar com materiais que
facilitem sua prática com um grupo numeroso de aluno” (SACRISTÁN, 2000, 122).
Desta forma, Sacristán (2000, p. 123) interpreta o currículo prescrito como
sendo “[...] as regulações de que são objeto os conteúdos e formas de ensino” e que
este é “[...] um campo condicionante importante, ao menos em sua intenção a partir
da qual as escolas e os professores podem desenvolver sua autonomia profissional”.
Ao analisar o currículo prescrito para o ensino obrigatório, Sacristán (2000,
p.147) verifica que por mais minucioso que ele seja não pode ser utilizado como guia
pedagógico. Mesmo porque “[...] a determinação da ação pedagógica nas escolas e
nas aulas está em outro nível de decisões”. Este nível de decisão no qual o autor se
refere trata-se das aulas propriamente ditas e está a cargo do professor.
As condições de trabalho e formação inicial do professor força com que
utilizem como base de planejamento os materiais didáticos disponíveis a eles, o
livro-texto. Realizar um plano de ensino independente dos materiais didáticos
demandaria um tempo muito grande de estudo, pesquisa, análise e etc., portanto o
livro-texto é um instrumento importante na seleção de conteúdos e exercícios para o
professor nortear suas aulas (SACRISTÁN, 2000).
Planejar para o professor não é uma tarefa fácil, nem tão pouco se pode
realizar em período de tempo escasso em que “[...] não se pondera com a
importância necessária a fase de programação prévia do que se vai realizar durante
o período do tempo escolar” (SACRISTÁN, 2000, p. 149).
A operação do planejamento segundo Sacristán (2000, p.148), exige que o
professor além de selecionar o conteúdo da disciplina a ser estudado, que se
constitui um grande problema, e que deve levar em consideração os “[...] meios
didáticos, dos grandes objetivos e princípios educativos, etc., mas tudo isso deve
integrar-se num tratamento coerente”. Assim, pois, não se trata da simples seleção
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de conteúdo, trata-se da forma pela qual o professor assume uma postura política e
determina a sua forma de ensinar o conteúdo significativamente.
Diante de tais problemas, que são reais Sacristán entende que o professor
precisa de um intermediador entre o currículo prescrito e a prática na sala de aula.
Porém a qualidade destes materiais intermediadores do currículo não é ingênua na
sua elaboração, seguem uma ideologia mercadológica, que geralmente não prima
pela qualidade do produto.
Para Sacristán (2000, p.152) os livros-texto são os materiais de mais fácil
acesso para os alunos terem contato com os saberes escolares específico. Isto não
quer dizer que este material tenha qualidade, pois para uma “[...] análise de culturas,
vida dos povos, fenômenos da natureza ou qualquer outro tema”, teria que ter um
preço que seria impraticável.
A formulação dos livros-texto é em geral muito mal elaborada, pela sua
própria dinâmica de mercado, uma verdadeira mercantilização do conhecimento,
além de se proporem muitas vezes a ditar o andamento das aulas, quais conteúdos
merecem maior atenção, privilegiam exercícios, que muitas vezes estão
desatualizados e regulam a quantidade de lição de casa do estudante. Em muitos
casos o livro-texto se configura em mais do que simples instrumentos de referencia
para o professor, são verdadeiros guia de aula.
A outra face deste material, analisada por Sacristán (2000, p.154) trata da
lógica de mercado destes livros-texto, que são editados por um seleto grupo de
editoras e que determinam assim a mediação entre o prescrito e o apresentado aos
professores. A qualidade como já visto, deixa muito a desejar. Mas o fato que é tão
grave quanto à má qualidade dos livros-texto é “[...] a desprofissionalização dos
docentes que é inevitável nas atuais condições de formação e de trabalho”.
Esta política educacional adotada por muitos países, de fornecer o livro-texto
como forma de suprir a má formação docente aliada à falta de tempo para planejar
as aulas, conduz a uma submissão a estes meios didáticos. Enquanto há
professores neste processo de “[...] tylorização” (loc. sit.) do sistema educacional,
atrás da eficácia total da educação, estes professores consomem os materiais
fornecidos a eles sem uma análise crítica do que estes representam e como se
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apresentam. Então estes professores entram em um ciclo vicioso de acomodação ao
sistema e não propõe nenhuma inovação ou reflexão sobre a sua prática
pedagógica.
Porém, como assinala o autor, somente uma completa reformulação do
sistema educacional, desde a sua concepção de finalidade e instrumentos de
mediação cultural poderia reverter esse quadro de desprofissionalização. Sacristán
entende que o total abandono dos livros-texto por parte dos professores é algo muito
difícil de ocorrer, nem é desejável também.
Segundo o autor, existem outros recursos além dos livros-texto, tais como
programas de computador, meios audiovisuais, livros que tratem monograficamente
de assuntos mais específicos e com qualidade muito superior aos livros-texto. Mas
muitos destes recursos disponíveis necessitam de uma orientação ou capacitação
de como melhor explora-los, diferente dos livros-texto que são distribuídos com a
desculpa de facilitar a vida do docente e que não necessitam de maiores instruções.
No entanto, mesmo outros tipos de recursos didáticos estão impregnados de
ideologias das mais diversas possíveis, pois todas, sem exceção, devem atender
uma dada filosofia educacional, e que esta dificilmente reflete realmente a vontade
dos professores. Sacristán (2000) enuncia três grandes importâncias que os
materiais didáticos desenvolvem na prática do professor e no currículo:
1) São os tradutores das prescrições curriculares e, nessa mesma medida,
construtores de seu verdadeiro significado para alunos e professores.
2) São os divulgadores de códigos pedagógicos que levam à prática, isto
é, elaboram os conteúdos ao mesmo tempo em que planejam para o
professor sua própria prática; são depositários de competências
profissionais.
3) Voltados à utilização do professor, são recursos muito seguros para
manter a atividade durante um tempo prolongado, o que dá uma grande
confiança e segurança profissional. Facilitam-lhe a direção da atividade
nas aulas. (SACRISTÁN, 2000, p.157)
Ainda sobre os livros-texto, Sacristán (2000, p.157) configura os editores
como intermediários entre o currículo prescrito e o professor, e que a editora − as
poucas existentes − “[...] não só cria e distribui produtos culturais, como também
configura uma prática pedagógica e profissional”.
Esta prática de controle do que se distribui nas escolas, segundo o autor, não
gera necessariamente um aumento da qualidade no ensino, mesmo porque a má
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qualidade dos materiais didáticos, dificilmente resultará em maior aprendizagem dos
alunos e suprir por si só as dificuldades enfrentadas pelos professores. Uma solução
para reverter este quadro seria o poder público incentivar outras ações, tais como a
produção de materiais didáticos pelos próprios professores, que em um primeiro
momento poderiam ser realizado em grupos.
Sacristán considera que a falta de preparo e a cultura de uso de materiais
prontos, impedem o professor tentarem produzir materiais que sejam de melhor
qualidade e que atendam as suas necessidades. Pouco se avançará na qualidade
do ensino e na autonomia do professor se não forem efetivadas políticas públicas
que promovam a qualificação do professor e a melhoria dos materiais didáticos.
Para o autor, esperar que as parcerias público-privadas realizem esta função
de melhoria do nível do material didático e que promovam a capacitação dos
professores e sua conseqüente autonomia é esperar demais desta parceria. Ao
criarem novos materiais didáticos, os editores desejam caducar os materiais que
estão vigentes, trata-se de uma lógica de mercado, o descarte do velho e sua
substituição pelo novo material, que não é tão diferente assim do velho.
Para Sacristán, o professor dificilmente será completamente autônomo na
confecção dos materiais didáticos, mesmo que os crie desenvolverá uma
dependência sobre eles. Portanto, inovações curriculares devem passar também
pela melhoria destes recursos pedagógicos. Os professores ao desenvolverem
materiais mais adaptados a sua realidade e com um grau maior de autonomia em
relação aos editores gráficos e ao currículo prescrito.
Desta forma, os professores irão introduzir “[...] uma estratégia de inovação
da prática, como uma oportunidade para incidir na realidade, se sabe aproveitar
adequadamente” (SACRISTÁN, 2000, p. 159), assim, os materiais didáticos sejam
eles quais forem, fazem parte da dinâmica do currículo, porém cabe ao professorado
criar autonomia em relação a eles.
Sacristán (2000) sugere algumas ações que podem desenvolver esta
melhoria no campo curricular, que se espere da parte dos editores que o façam. São
elas: