1. A Interpretação Literal e a Alegórica 1
A INTERPRETAÇÃO LITERAL E A ALEGÓRICA
Necessitamos definir tão precisamente quanto possível o que
pretendemos dizer com os termos teológicos que empregamos Tais
vocábulos como "literalismo", "alegorismo", "literal" e "tipológico", não
são usados no mesmo sentido por todos os grupos. E isso causa confusão
na comunicação de idéias.
A Interpretação literal
Primeiramente, o que se pretende afirmar com as expressões:
interpretação "literal" e "literalismo"? O dispensacionalismo as define
como "atribuir à linguagem o seu significado razoável e gramatical" ou
"a forma natural, literal e gramatical, implicadas nas predições"
(Chaferl); como "o significado literal, normal ou claro" (Ryrie2); o
"significado primário, ordinário, normal e literal" (D. Cooper como
citado e aceito por Hal Lindsey3),
Há aqui, contudo, uma suposição secreta subentendida que tem
valor axiomático e fundamental para o dispensacionalismo: que a
exegese literal de uma profecia do Velho Testamento "demanda" um
cumprimento idêntico ou absolutamente literal. J. D. Pentecost declara:
"De acordo com princípios estabelecidos de interpretação, o concerto
davídico demanda um cumprimento literal. Isso significa que Cristo deve
reinar para sempre no trono e sobre o povo de Davi na Terra."4 Tal
conclusão seria válida apenas se o Velho Testamento fosse interpretado
por si mesmo, separado do Novo.
Não obstante, o intérprete cristão é obrigado, por sua fé em Cristo, a
reconhecer o Novo Testamento como a interpretação autorizada das
promessas do Velho. Até aqui observamos que o escopo da interpretação
profética da Bíblia para o cristão é mais amplo do que a tarefa de fazer
exegese no Velho Testamento. Isso também inclui, o estudo da unidade
2. A Interpretação Literal e a Alegórica 2
essencial de toda a Bíblia e os padrões de promessa e cumprimento no
inter-relacionamento dos dois Testamentos.
O erudito evangélico B. Ramm chama o termo "literalismo" de
ambíguo, porque para alguns ele se afigura negativamente como
"letrismo". Por isso, distingue literalismo de interpretação "literal" ao
extrair a expressão "literal" de seu dicionário (Webster's), como sendo "a
designação socialmente reconhecida, costumeira e usual" das palavras.5
Ele chama o método literal de "histórico-gramatical" ou "filosófico". Seu
objetivo é apenas exegese, "descobrir o significado original e a intenção
do texto"6 à luz da situação na qual ele foi primeiramente escrito sem
incluir o campo de aplicação e cumprimento. Esta distinção entre
exegese e aplicação é crucial, pois elas não são, necessária e inteiramente
idênticas.
As palavras das Escrituras não devem ser um fim em si mesmas,
mas ao invés disso, servir como instrumento para transmitir um sentido
ou uma mensagem. Palavras e significados nem sempre são sinônimos,
como está claro nas figuras de linguagem ou na linguagem simbólica.
Por isso, o ponto essencial é "extrair literalmente o significado da
Bíblia. Nossa consciência dor ser cativada pela Palavra de Deus!...
Portanto, é o significado dessa Palavra que devemos procurar"7
A interpretação literal ou normal reconhece o simbolismo poético
em sua tentativa "de atribuir à Escritura o seu significado original,
divinamente intencionado", aquilo "que Deus queria que a passagem
designasse no período em que foi escrita".8 A interpretação literal ou
filosófica não fará justiça à peça de literatura como uma coisa habitual,
mas a exegese literal sempre deve ser o ponto de partida necessário tanto
na literatura extrabíblica quanto bíblica. Todos os significados
secundários de documentos, como figuras de linguagem, alegorias, tipos,
parábolas, etc., encontram o seu controle básico e o seu sentido na
camada literal da linguagem. A interpretação literal reconhecerá a
natureza peculiar de cada gênero ou tipo de literatura com a qual ela lida.
3. A Interpretação Literal e a Alegórica 3
Ramm compreende a interpretação "literal" das Escrituras como o
posicionamento de forma independente entre os extremos do literalismo
(ou letrismo) e o alegorismo (um método alegórico não controlado). Ele
não aceita a pressuposição dispensacionalista de que a interpretação
literal das predições do Velho Testamento também demanda um
cumprimento literal. Explica: "Em nosso uso da palavra literal temos em
mente literal no sentido filosófico".9
Nesse respeito, não há diferença entre os evangélicos
dispensacionalistas e os da reforma. "A questão central na interpretação
profética entre os evangélicos é esta: A literatura profética pode ser
interpretada pelo método geral de exegese gramatical ou é necessário
um princípio especial?10 Este princípio especial tem sido normalmente
chamado pelos evangélicos da reforma de "interpretação teológica".
Esses eruditos afirmam que é absolutamente necessário
complementar as habituais interpretações gramatical e histórica com uma
terceira (interpretação teológica), a fim de manter a unidade teológica e
a dimensão espiritual de ambos os Testamentos. L. Berkhof chama esta
dimensão teológica de "o sentido mais profundo da Escritura"11 que não
é um segundo sentido adicionado ao significado gramatical, mas é o
sentido próprio da Bíblia. Ele afirma:
O verdadeiro significado das Escrituras nem sempre repousa na
superfície. Não há verdade na alegação de que a intenção dos autores
secundários [Deus sendo o autor primário], determinado pelo método
gramático-histórico, sempre exaure o sentido da Escritura, e represente em
toda a sua plenitude o significado pretendido pelo Espírito Santo.12
Outros eruditos bíblicos também enfatizam que uma "exegese que
não alcança a teologia do texto é incompleta"13 e mesmo os profetas de
Israel tentaram esquadrinhar as suas predições (1 Pedro 1:10, 11),
compelidos a confessar ignorância sobre as suas próprias visões (Daniel
8:27; Zacarias 4:13) ou palavras (Daniel 12:8).14 Isto é, a exegese
gramático-histórica não é suficiente para a interpretação das Sagradas
Escrituras. A exegese teológica também é necessária.15
4. A Interpretação Literal e a Alegórica 4
Seja como for, o dispensacionalismo rejeita categoricamente esse
princípio "teológico" da hermenêutica, porque este permitiria uma
combinação entre Israel e a Igreja, empregando uma aplicação não literal
ao lado da exegese literal dos escritos proféticos do Velho Testamento.
Contudo, precisamos considerar o fato de "que a identidade da frase [nas
citações feitas pelo NT das profecias do VT] não implica
necessariamente absoluta correspondência de significado''.16
O dispensacionalismo não quer negar a unidade das Escrituras, mas
começa de outra pressuposição. Não o Plano da Salvação, mas "a glória
de Deus é o princípio governante e o propósito global''.17 Sobre a base da
primazia desse princípio doxológico, como seus propósitos divididos
para Israel e a Igreja, os dispensacionalistas acusam todos os outros
evangélicos de um "erro redutivo" (Walvoord) e de comprometer o
princípio do literalismo, especialmente nos domínios da interpretação
profética.
C. I. Scofield afirmou inequivocamente que as seções proféticas
específicas da Escritura devem ser interpretadas e aplicadas com
absoluto literalismo: "As profecias jamais podem ser espiritualizadas,
mas são sempre literais".18 Tal literalismo absoluto na interpretação
profética, não obstante, leva irrevogavelmente a uma interpretação
forçada. Não apenas Israel deve ser restaurado como uma nação
teocrática, mas também Edom, Moabe e Amon o serão como nações,
porque a predição diz assim: "Eles [os israelitas] se infiltrarão pelas
encostas da Filístia, a oeste; juntos saquearão o povo do leste. Porão as
mãos sobre Edom e Moabe, e os amonitas lhes estarão sujeitos" (Isaías
11:14, NVI). Esse literalismo consistente não pode ser injustamente
chamado de "a insanidade do literalismo".19
A posição cristã histórica reconhece que a exegese literal da
Escritura veterotestamentária permite a aplicação tipológica como
empregada por Cristo e Seus apóstolos no Novo Testamento. Ela admite
que o Velho Testamento é "um livro cristão".20
5. A Interpretação Literal e a Alegórica 5
O literalismo dispensacionalista não permite que Jesus providencie
uma nova perspectiva para interpretar o Velho Testamento, por essa
razão, ele é orientado basicamente para o Velho Concerto ao invés da
cruz.21
A Interpretação Alegórica
Em relação aos termos "alegoria", "alegorismo" e "alegórico", não
observamos nenhuma compreensão uniforme no seu uso entre os
intérpretes cristãos. Prevalece um acordo geral na definição de alegoria
como uma forma mais extensiva de uma metáfora ou de uma figura de
linguagem. A alegoria é uma história que contém vários pontos de
comparação. Conta a verdade em termos de narrativa. Alguns exemplos
bíblicos são: A alegoria da velha geração sob a figura de uma casa se
deteriorando em Eclesiastes 12:37; de Israel como uma vinha trazida do
Egito em Salmo 80:8-15; dos falsos profetas em Israel que construíam
muros frágeis em Êxodo 13:8-16.22
Cristo usou alegorias em Suas parábolas do bom samaritano em
João 10:1-16 e da vinha em João 15:1-8. Paulo escreve uma profunda
alegoria a respeito da armadura do cristão em Efésios 6:11:17. Todas
essas tencionam ser alegorias e reconhecidas como tais como uma
maneira legítima de ensinar a verdade.
Seria uma situação diferente se um intérprete alegorizasse uma
narrativa claramente histórica na Bíblia. Tal alegorização transformaria a
narrativa bíblica em um trampolim para ensinar uma idéia diferente
daquela pretendida pelo escritor bíblico.
Quando uma interpretação alegórica arbitrariamente converte uma
narrativa histórica em ensino de uma verdade espiritual ou teológica,
essa alegorização especulativa é negativamente denominada
"alegorismo". Impõe um significado ao texto bíblico que ele realmente
não tem. Ela é adicionada ao texto pelo intérprete apenas com o
6. A Interpretação Literal e a Alegórica 6
propósito de edificação e para encontrar verdades espirituais e sentidos
mais profundos.
A alegorização foi um método muito popular entre os expositores
judeus (especialmente Filo), entre os pais da Igreja Cristã primitiva e os
teólogos escolásticos medievais.23 B. Ramm rejeita essas alegorizações
porque elas assumem um "significado plural da Escritura. A unidade de
sentido da Escritura elimina toda sua alegorização antiga e moderna".24
Entretanto, Paulo usa uma aplicação alegórica quando lida com a
história de Sara e Agar de Gênesis 21 em Gálatas 4:24-31, a fim de
"ampliar para os seus leitores o contraste entre a escravidão e a
liberdade".25 Ele realmente declara em Gálatas 4:24 que interpreta a
narrativa do Gênesis alegoricamente, isto é, "figurativamente" (NIV).
Em 1 Coríntios 9:9, ele faz uma interpretação alegórica de um texto legal
em Deuteronômio 25:4.
Mesmo reconhecendo que esse procedimento é raro no Novo
Testamento, ele nos impede de condenar cada interpretação alegórica de
uma narrativa histórica ou de um texto legal. Paulo declara que neste
caso ele faz uma aplicação alegórica edificada sobre a verdade histórica
de uma narrativa particular em Gênesis e não em lugar dela. A
interpretação alegórica como tal não pode ser descrita como "anti-
histórica em caráter".26 Ela não deveria ser definida pelas suas aberrações
em Filo, mas ao invés disso, pela sua alegorização homogênea que
permanece em harmonia básica com as doutrinas gerais cristãs.
A crítica do método alegórico deveria, por essa razão, concentrar-se
em seu mau uso, que tem perdido o respeito pela realidade histórica e a
forma dos textos originais.27 Se a alegorização for definida como "a
interpretação de um texto em termos de algo mais, sem levar em
consideração o que esse algo mais representa"28, não haverá norma ou
padrão pelo qual se possa determinar o que constitui uma
espiritualização legítima ou ilegítima. Contudo, um erudito argumentou
que a interpretação alegórica válida deve repousar em "uma analogia
genuína" entre o significado original e a aplicação feita.29 Tal
7. A Interpretação Literal e a Alegórica 7
alegorização pressupõe a unidade e a continuidade da revelação bíblica.
Em outras palavras, na alegorização falsa não há relacionamento
dependente, nem base analógica, nenhuma harmonia existente entre o
texto e o seu "algo mais" místico com o qual ele está relacionado.
A alegorização de Filo e a rabínica eram ilegítimas porque
relacionavam o texto sagrado à tradição oral dos pais. Jesus condenou
essa alegorização quando disse aos líderes religiosos de Seus dias que
eles haviam anulado a Palavra de Deus pelas suas próprias tradições
(Mateus 15:6). Da mesma forma, a alegorização patrística e medieval
das Escrituras eram ilegítimas, pois não estabeleciam um relacionamento
dependente entre o texto bíblico e a tradição católica romana.
Essa foi a razão pela qual Lutero e Calvino explicitamente
rejeitaram o método de alegorização como princípio de interpretação das
Escrituras. Os reformadores partiam do pressuposto de que o Velho e o
Novo Testamentos estão organicamente relacionados um ao outro. A
despeito das diferenças na forma de administrar a graça de Deus, os dois
Testamentos são substancialmente os mesmos. Ambos ensinam a
redenção pelo mesmo Mediador e Redentor, ambos têm uma esperança e
uma filiação com o mesmo concerto, sumariado nas palavras: "E eu serei
o teu Deus e tu serás o meu povo."
Por causa dessa unidade fundamental em Cristo e dessa
correspondência ou analogia teológica, é legítimo interpretar o Velho em
termos de Novo. Alguns, contudo, se recusam a fazer distinção entre
uma interpretação alegórica que é homogênea com a totalidade das
Escrituras e uma interpretação tipológica. Por isso, parece mais correto
concluir que a alegorização incidental de Paulo "repousa em uma
estrutura tipológica e não é alegoria no sentido usual judaico ou
helênico".30 Na alegorização de Paulo da história de Sara e Agar (de
Gênesis 21) em Gálatas 4:24-31, ele enfatiza o significado teológico que
é comum – a base analógica – tanto da história do Velho Testamento e da
situação histórica de Jerusalém (Judaísmo) presente, quanto da Igreja.
8. A Interpretação Literal e a Alegórica 8
O que o dispensacionalismo ensina em relação à interpretação
alegórica? Ele acusa os não dispensacionalistas de alegorização ou
espiritualização quando se fala em interpretação de profecia e,
conseqüentemente, de inconsistência no uso que faz da interpretação
literal. Ryrie assevera, "Os dispensacionalistas reivindicam aplicar o seu
princípio literal à toda a Escritura, incluindo à profecia, enquanto os não
dispensacionalistas não o aplicam à profecia".31
É realmente verdade que o dispensacionalismo aplica
consistentemente o seu princípio de literalismo "à toda a Escritura"? As
anotações da Scofield Reference Bible freqüentemente aplicam a
interpretação alegórica (figurativa) e a tipológica às narrativas do Velho
Testamento. Os exemplos seguintes são encontrados na New Scofield
Reference Bible (1967). O livro inteiro de Cantares de Salomão (ou
Cântico dos Cânticos) tem uma interpretação tripla: (1) do amor de
Salomão pela Sulamita; (2) "como uma revelação figurativa do amor de
Deus pelo Seu povo do concerto, Israel, a esposa do Senhor (Is. 54:5-6;
Jr 2:2...)"; (3) "como uma alegoria do amor de Cristo por Sua noiva
celestial, a Igreja (2 Cor 11:1-2; Ef. 5:25-32)" (P. 705; ênfase
acrescentada).
Aqui, o dispensacionalismo oficial e explicitamente adota o
princípio da alegorização de uma narrativa do Velho Testamento, mesmo
de um livro inteiro. Como justificativa para essa alegorização em grande
escala de oito capítulos do Cântico dos Cânticos, ele afirma que o amor
do Noivo divino, "simbolizado aqui pelo amor de Salomão", segue "a
analogia do relacionamento matrimonial" (p. 705; ênfase acrescentada).
Dessa forma, o dispensacionalismo adota uma interpretação
alegórica ou espiritualizada de todo livro histórico do Velho Testamento
na base de uma dupla analogia: (1) A analogia do concerto conjugal e a
do concerto de Deus com Israel. (2) A analogia do concerto de Deus com
Israel e a do amor de Cristo por Sua Igreja. Essa é uma dupla
alegorização de uma história de amor: primeiro, em relação a Israel;
segundo, em relação à Igreja de Cristo. As referências bíblicas
9. A Interpretação Literal e a Alegórica 9
apresentadas sustentam essa interpretação alegórica dupla como uma
hermenêutica legítima.
Porém, isso significa a aceitação de uma analogia teológica básica
entre a velha e a nova dispensação, o velho e o novo concertos, o Velho
e o Novo Testamentos. Portanto, essa correspondência dupla é
teologicamente não heterogênea ou dissimilar, mas homogênea ou
similar uma a outra.
A Scofield Reference Bible também interpreta outras passagens do
Velho Testamento alegoricamente. O cordão escarlate que Raabe
amarrou na janela de sua casa em Jericó (Josué 2:21) é aplicada
alegoricamente por causa de sua cor vermelha "da segurança através do
sacrifício (Heb 9:19-22)" (p. 261). Muitos intérpretes rejeitam esse
alegorismo como uma espiritualização ilegítima. A passagem de Israel
através do rio Jordão (em Josué 3) é vista como "uma figura de nossa
morte em Cristo (Rom 6:3-4, 6-11)" (p. 261).
A narrativa de José em Gênesis 37-45 é alegorizada por causa das
"muitas analogias" entre a sua história e a de Cristo, com a conclusão de
"que José era um tipo de Cristo" (p. 53). Por isso, Asenate, a esposa
egípcia de José, "retrata a Igreja'' (p. 59, sobre Gênesis 41:45). A esposa
de Isaque, Rebeca é considerada "um tipo da Igreja" (p. 34).
No livro de Rute, Boaz "aponta para Cristo; Rute retrata aqueles
que entram em uma nova vida através da confiança Nele" (p. 317). Eva,
a quem Adão chamou "Mulher", para indicar que esta fora tomada "do
homem" (Gênesis 2:23), recebe a seguinte interpretação: A mulher é um
tipo da Igreja, a noiva de Cristo (Ef 5:25-32)" (p. 6).
Torna-se bem claro que o dispensacionalismo constantemente
reconhece tipos cristológicos, eclesiológicos e analogias nas narrativas
veterotestamentárias, com um apelo à confirmação do Novo
Testamento.32 É altamente notável a aceitação do princípio cristológico-
eclesiológjco de tipologia e alegorização para a interpretação do Velho
Testamento, enquanto o seu próprio axioma dogmático declara que Israel
e a igreja são basicamente dissimilares e incongruentes um ao outro. Por
10. A Interpretação Literal e a Alegórica 10
isso, considera a Igreja meramente como um ínterim, um fenômeno que
não foi visto e intencionado pelo Velho Testamento.
O dispensacionalismo tenta harmonizar esta aparente inconsistência
de princípios opostos – que a Igreja de Cristo não é predita no Velho
Testamento, enquanto, não obstante seja ali prefigurada – pelo artifício
da divisão das Escrituras em duas seções separadas que requerem dois
princípios diferentes de interpretação: a História e a Profecia dentro do
Velho Testamento.
A história de Israel deve ser interpretada tipológica e
alegoricamente na visão de Cristo e da Igreja, e a profecia de Israel deve
ser interpretada exclusivamente por um literalismo que se recusa a
reconhecer qualquer tipo ou figura da Igreja. Enquanto os
dispensacionalistas se ufanam de seu literalismo, provam ser
contraditórios.33
O dispensacionalismo opera basicamente com dois cânones
diferentes para interpretar o Velho Testamento: o princípio cristológico-
eclesiológjco sobre a base da autoridade do Novo Testamento para a
parte histórica, e o princípio do literalismo para as partes proféticas, que
fundamentalmente nega o cumprimento cristológico-eclesiológjco.
O que motiva essa hermenêutica dispensacionalista contraditória e
duplamente conflitante do Velho Testamento? Qual a base para este
(autoridade desafiadora do Novo Testamento) literalismo em relação à
profecia de Israel? É a visão peculiar dispensacionalista da revelação e
inspiração da profecia de Israel: "a profecia é a História pré-escrita"34, ou
nas palavras de C. I. Scofield, "As Escrituras históricas têm um
significado alegórico ou espiritual... [nos escritos proféticos] nós
alcançamos a base do absolutamente literal".35
Aqui, enfrentamos a franca admissão de que o princípio do
literalismo não é aplicado coerentemente "à toda a Escritura" pelo
dispensacionalismo, como Ryrie declarou, mas apenas a uma parte
selecionada: a profecia. Qual a justificativa dessa mudança para o literal
absoluto nos domínios do cumprimento de cada palavra profética do
11. A Interpretação Literal e a Alegórica 11
Velho Testamento? O uso dessa hermenêutica dupla é ensinado no Novo
Testamento?
O dispensacionalismo aceita o relacionamento teológico e
dependente entre a História de Israel do Velho Testamento (pessoas,
eventos redentivos, etc., como tipos da Igreja) e a Igreja de Cristo,
embora rejeite esse relacionamento dependente entre a profecia de Israel
e a Igreja. A alegação é feita, "O Concerto davídico demanda um
cumprimento literal. Isto significa que Cristo deve reinar sobre o povo e
no trono de Davi aqui na Terra para sempre".36
A aplicação do concerto de Davi ao presente reino messiânico de
Cristo sobre a Igreja a partir do Seu trono de graça celestial (cf. Atos
2:30-36; 1 Coríntios 15:25; Efésios 1:20-23) é rejeitada pelo
dispensacionalismo como uma alegorização ou uma hermenêutica errada
da interpretação profética. Para os livros históricos e poéticos do Velho
Testamento o método alegórico e tipológico é adequado porque há uma
base analógica. Mas, para a interpretação profética, esse método do
Novo Testamento é amplamente rejeitado pois, supostamente não há
qualquer base analógica entre Israel e a Igreja.
O dispensacionalismo não pode admitir um relacionamento
dependente entre a profecia e a Igreja Cristã. As conseqüências do
literalismo dispensacionalista podem ser sumariadas como segue:
Resumidamente, as palavras de Paulo devem ser interpretadas de tal
maneira que não conflitem com as esperanças e reivindicações dos
Sionistas! A gloriosa era presente de pregação do Evangelho da graça de
Deus a toda a criatura deve ser considerada como uma mera interrupção
temporal no programa do Velho Testamento para a glorificação de Israel.37
Daí a pergunta: O Novo Testamento usa o método cristológico
tipológico apenas para as partes históricas do Velho Testamento e muda
para o método de "absoluto literalismo" para as seções proféticas deste?
Como o Novo Testamento interpreta as perspectivas proféticas dos
concertos abraâmico, mosaico e davídico? Apenas quando essas
perguntas forem corretamente respondidas se poderá adquirir o "padrão
objetivo" a fim de julgar se a hermenêutica dupla dispensacionalista é
12. A Interpretação Literal e a Alegórica 12
adequada ou especulativa, uma construção moderna que exalta o seu
cânon extrabíblico de interpretação acima da autoridade do Novo
Testamento. .
Sumariando, mantemos a validade dos princípios gramático-
históricos e teológicos da exegese para toda a interpretação da Escritura.
Reconhecemos os princípios de revelação progressiva, especificamente
entre os profetas do Velho Testamento e as testemunhas de Jesus Cristo
do Novo (Hebreus 1:1-2; João 1:7-18).
Aceitamos a unidade essencial de ambos os Testamentos que
permite ao significado de qualquer parte da Escritura – incluindo a
profética – ser inteiramente determinado pela totalidade da Bíblia.
Essa hermenêutica clássica protestante conhecida como princípio da
Sola Scriptura, parece ser aceita como um axioma da fé por todos os
cristãos evangélicos conservadores.38
Referências Bibliográficas:
1. L. S. Chafer, Systematic Theology (Dallas: Dallas Seminary Press,
1947), vol. 4, pp. 259, 288.
2. Ryrie, Dispensacionalism Today, p. 96.
3. Hal Lindsey, The Late Great Planet Earth (New York: Bantam, 1973),
p. 40; citando David Cooper, When God's Armies Meet the Almighty in the
Land of Israel.
4. J. D. Pentecost, Things to Come (Findlay, Ohio: Dunham Pub. Co.,
1961, p. 112.
5. Ramm, Protestant Biblical Interpretation, pp. 114, 119vv.
6. Ibid., p. 115.
7. R. H. Stein, The Method and Message of Jesus' Teachings
(Philadelphia: Westminster Press, 1978), p. 10.
8. J. Barton Payne, Encyclopedia of Biblical Prophecy (New York:
Harper and Row, 1973), p. 43.
9. Ramm, Protestant Biblical Interpretation, p. 241.
10. Ibid., p. 244 (Itálicos de B. Ramm).
13. A Interpretação Literal e a Alegórica 13
11. Ver discussão por L. Berkhof, Principles of Biblical Interpretation
(Grand Rapids, Mich.: Baker Bock House, 1964), capítulo 7, pp. 133-166. As
citações são da página 134.
12. Ibid., pp. 59, 60.
13. J. Bright, The Authority of the Old Testament Interpretation (Grand
Rapids, Mich.: Baker Book House, 1977), p. 171.
14. Payne, Encyclopedia of Biblical Prophecy, p. 5; cf. p. 45.
15. F. F Bruce em Baker's Dictionary of Theology, p. 293.
16. R. B. Girdlestone, A Systematic Guide to Biblical Prophecy (Grand
Rapids, Mich.: Kregel, 1955), p. 87. Ver, por exemplo, o capítulo 7.
17. Ryrie, Dispensacionalism Today, p. 102.
18. Citado em C. B. Bass, Backgrounds to Dispensacionalism (Grand
Rapids, Mich.: Baker, 1977; reimpressão de 1960), p. 150.
19. A. B. Davidson, Old Testament Prophecy (Edinburgh: T. & T. Clarke,
1905), p. 476.
20. Ramm, Protestant Biblical Interpretation, pp. li1, 223.
21. Ver Bass, Backgrounds to Dispensacionalism, p. 151.
22. Ver M. S. Terry, Biblical Hermeneutics (New York: Eaton & Mains,
1890), pp. 214vv.
23. Ver exemplos do rabi Aqiba que acreditava no princípio de que um
significado místico deveria ser encontrado em cada letra da Escritura, em F. W.
Fartar, History of Interpretation (New York: E. P. Dutton, 1886), pp. 71-77; sobre
a alegorização de Filo, ver pp. 139-152; sobre o Escolasticismo, pp. 266-274.
24. Ramm, Protestant Biblical Interpretation, pp. l11, 123.
25. A. B. Michelson, Interpreting the Bible (Grand Rapids, Mich.: Wm. B.
Eerdmans Pub. Co., 1963), p. 231.
26. Ver J. Barr, Old and New in Interpretation (New York: Harper and
Row, 1966), pp. 103vv; argumenta que a interpretação alegórica não é
basicamente diferente da interpretação tipológica dentro do Novo Testamento.
Conferir também F. F. Bruce em Baker's Dictionary of Theology (1973), p.
293, "Uma forma de alegorização é a interpretação tipológica..."
27. Barr, Old and New in Interpretation, pp. l15-117. Também C. H. Dodd,
The Bible Today (Cambridge University Press, 1946), p. 16. Também C. H.
Dodd, The Old Testament in the New (Philadelphia: Fortress Press, Facet Bocks
BS 3, 1971), pp. 5-8.
14. A Interpretação Literal e a Alegórica 14
28. H. A. Wolfson, Philo, vol. l (Cambridge: Harvard University Press,
1947), p. 134.
29. P K. Jewet, "Concerning the Allegorical Interpretation of Scripture",
WTJ 17 (1954): 120. Citação da p. 13.
30. E. E. Ellis, The Pauline Use of the Old Testament (Grand Rapids,
Mich.: Wm. B. Eerdmans Pub. Co.,1957), p. 127; cf. pp. 5vv.
31. Ryrie, Dispensacionalism Today, p. 90.
32. Ver NSRB, p. 6, para a definição dispensacionalista de um tipo
bíblico, baseado na "explícita autoridade do NT."
33. Ver O. T. Allis, Prophecy and the Church (Philadelphia: Presbyterian
and Reformed Pub. Co., 1974; reimpressão de 1947), p. 21.
34. A. C. Gaebelein, The Prophet Daniel, pp. 1, 166; como citado em
Allis, Prophecy and the Church, p. 26.
35. Scofield Bible Correspondence Course (Chicago: Moody Bible
Institute), pp. 45-46, como citado em Bass, Backgrounds to
Dispensacionalism, p. 150.
36. Pentecost, Things to Come, p. l12. Ver, contudo, uma interpretação
mais bíblica em The Last Things, pp. 17-18 de G. E. Ladd.
37. Allis, Prophecy an the Church, p. 50.
38. E. g. B. Ramm, Protestant Biblical Interpretation, p. 105, afirma:
Toda a Sagrada Escritura é o contexto e a guia para a compreensão das
passagens particulares da Bíblia." J. W. Wenham, Christ and the Bible
(Downers Grove, III.: Inter-Varsity Press, 1973), p. 10: "Tanto no caso da
Bíblia quanto no mundo da natureza, as partes devem ser compreendidas a
partir do todo, não o todo a partir das partes. Uma teologia criada por Deus
demanda uma metodologia centralizada Nele." C. C. Ryrie, The Basis of the
Premilennial Faith (Neptune, N. J.: Loiseaux Brothers, 1966), p. 37: "Ela [a
analogia da fé na Escritura] não apenas usa passagens paralelas, mas também
regula a interpretação de cada passagem em conformidade com o teor global
da verdade revelada... A aplicação desse princípio hermenêutico significa a
harmonização de toda a Bíblia." Quanto à posição Adventista do Sétimo Dia
sobre a "sola Scriptura", ver L. E. Froom, Movement of Destiny (Washington,
D. C.: Review and Herald Pub. Assn., 1971), capítulo 5.