O documento descreve como o cristianismo teve um papel fundamental na formação da cultura e valores europeus, influenciando a construção da União Europeia. O cristianismo criou a geografia europeia e desenvolveu uma cultura própria baseada nos ensinamentos de Cristo de dignidade humana e solidariedade. Esses valores cristãos, como a subsidiariedade, estão incorporados no Tratado de Lisboa e devem guiar o futuro desenvolvimento da Europa.
1. A MATRIZ CRISTÃ DA CONSTRUÇÃO EUROPEIA
(Esboço da intervenção na Conferência sobre o Tratado de Lisboa, organizada pelo Secretariado Diocesano de
Pastoral Social e Caritativa, 10 de Maio de 2008)
1. Realço positivamente a sobriedade do preâmbulo do novo tratado europeu, “inspirando-se no património
cultural, religioso e humanista da Europa”. Ficando-se pelo factual, sem o diminuir como na tentativa anterior,
fez uma boa opção: a construção europeia depende tanto da honestidade evocativa como da prudência
projectiva.
2. Verifica-se facilmente que o contributo cristão foi de facto “matricial”, podendo considerar-se determinante
para os outros dois aspectos, o cultural e o humanista. O cristianismo criou a geografia europeia, muito distinta
do mundo mediterrânico até ao século V: a Europa foi constituída pela missão cristã subsequente à queda do
Império Romano do Ocidente, num longo processo de meio milénio, de Portugal à Rússia, do Mediterrâneo ao Mar
do Norte.
3. Dentro desta geografia, desenvolveu-se uma cultura própria, na síntese feita da herança clássica e outras
posteriores, com forte sentido humanista, porque desafiado pela atitude de Cristo face a cada um: face aos
escravos, face ao Estado, face aos pobres… Um processo lento, mas relativamente conseguido. Não é por acaso
que a linguagem corrente usa as referências evangélicas nas alusões sociais: filho pródigo, bom samaritano,
“sacerdócio”, “quem dá aos pobres empresta a Deus”, etc. Ou que o nosso quadro ideal de sociedade e
comunhão se inspirou neste passo dos Actos dos Apóstolos: “Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em
comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada
um” (Act 2, 44-45). Podendo falar-se também duma certa concepção “ministerial” da actividade política e da
dignificação do trabalho, na melhor tradição beneditina. Também não é por acaso que vários críticos do
cristianismo ou das Igrejas cristãs, digam sê-lo por maior “fidelidade” a Cristo e oposição à prática
“inconsequente” dos seus discípulos…
4. Dentro da matriz cristã, que valoriza a relação próxima, indo ao muito pelo pouco, como “fermento ma
massa”, inscreve-se o princípio da subsidiariedade, também recolhido pelo tratado europeu: “Em virtude do
princípio da subsidiariedade, nos domínios que não sejam da sua competência exclusiva, a União intervém apenas
se e na medida em que os objectivos da acção considerada não possam ser suficientemente alcançados pelos
Estados-Membros, tanto ao nível central como ao nível regional e local…” (Art. 5º, nº 3). Como se deverá
interpretar na mesma linha, o Art. 3º, nº 3: “A União respeita a riqueza da sua diversidade cultural e linguística e
vela pela salvaguarda e pelo desenvolvimento do património cultural europeu”.
5. Cabem aqui algumas citações da exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, de João Paulo II, de 18
de Junho de 2003, no que têm de mais identitário e programático. Quanto aos valores em geral: “Para dar novo
impulso à sua história, a Europa deve reconhecer e recuperar, com fidelidade criativa, aqueles valores
fundamentais adquiridos com o contributo determinante do cristianismo, que se podem compendiar na afirmação
da dignidade transcendente da pessoa humana, do valor da razão, da liberdade, da democracia, do Estado de
direito e da distinção entre política e religião” (nº 110). Valores que o cristianismo transportou mais rapidamente
na teoria do que na prática, mas que acabaram por se tornar comummente aceites, por vias mais ou menos
directas...
6. Na mesma exortação apostólica, João Paulo II apontava à Europa três exigências, congruentes com a sua
“matriz” cristã e humanista: “Abertura”, porque, tendo-se construído no encontro com outros povos, a Europa
“deve ser um continente aberto e acolhedor, continuando a realizar, na globalização actual, formas de
cooperação não só económica mas também social e cultural” (nº 111). Participação activa na promoção e
realização duma “globalização ‘na’ solidariedade” e empenho incansável na “construção da paz” dentro e fora
das suas fronteiras (nº 112). -Há na verdade muita Europa a cumprir, segundo a sua “matriz cristã”!
+ Manuel Clemente, Bispo do Porto