1. AVISO DA LUA QUE MENSTRUA
Elisa Lucinda
Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!
2. A FÚRIA DA BELEZA
Elisa Lucinda
Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa. Um gole.
Um bote nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar,
por causa e uma flor comum e misteriosa do caminho.
Uma delicada flor ordinária,
brotada da trivialidade do mato,
nascida do varejo da natureza,
me deu espanto!
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é a porrada da beleza!
Eu dei de chorar de uma alegria funda,
quase tristeza.
Acontece às vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real.
Doeu a flor em mim tanto e com tanta força
que eu dei de soluçar!
O esplendor do que eu vi era pancada,
era baque e era bonito demais!
Penso, às vezes, que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo
dentro da palavra impronunciável.
Sei que é desta flechada de luz
que nasce o acontecimento poético.
Poesia é quando a iluminação zureta,
bela e furiosa desse espanto
se transforma em palavra!
A florzinha distraída
existindo singela na rua paralelepípeda esta manhã,
doeu profundo como se passasse do ponto.
Como aquele ponto do gozo,
como aquele ápice do prazer
que a gente pensa que vai até morrer!
Como aquele máximo indivisível,
que, de tão bom, é bom de doer,
aquele momento em que a gente pede pára
querendo que e não podendo mais querer,
porque mais do que aquilo
não se agüenta mais,
sabe como é?
Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!
3. DEI UM GELO NELA (O POEMA DA GELADEIRA)
Elisa Lucinda
Estava há uma semana vazia...
Fazia dias que ela não gelava senão água.
Até que choveu na minha conta outro dia:
Saí, comprei aves, peixes, lagostas, camarões...
Olhei pra ela, estava cheia.
Chuchus sorriam pra mim: há quanto tempo... diziam.
Uvas e beterrabas batiam palminhas do reencontro
Até a galinha morta era feliz por mim. Dormi pensando em receitas boas.
Acredita que de manhã um carrasco havia sido pago pra levá-la?
Ela que nunca foi totalmente minha.
Liguei pra dona, me humilhei sozinha dentro do discurso justo de que sou artista
e por isso inconstante na economia. E a dona nada. Não cedia.
O carrasco ia levar minha deusa, minha neve possível, minha geada de estimação.
À hora marcada, chorei agarrada àquela cônsul mimada demais por mim;
Tão adotiva, tão afetiva... eu atracada a ela, pedia, gemia...
E ela, nada; ela fria, desligada, já não me dava nem gelos.
Fiquei sem patrimônio. Sem preservação de alimentos.
Fiquei sem centro, a zombar de mim.
Até que me lembrei dos meus bens: a coragem, a beleza, a força, a poesia, a esperteza.
coisas que não se encontram em pontos-frios,
coisas que não são substituíveis por um isopor.
Então já amanheci pondo coentros nas jarras como flores!
Curei minhas dores sem congelamento.
Me virei por dentro onde tudo é mantido quente vivo.
Tirei tudo de letra e de ouvido
como quem tira uma música!
(Da série “Eletrodométricos”)
4. MANHÃ AZUL
(Elisa Lucinda)
Pão fresquinho
quentinho
manteigaamante dacasquinha
sobre a mesade café
leiopoemasque dãotapinhas
no meucoração.
se algumdia sofri,esqueci.
Mario Quintanaé o
Passarinhomaisinteligente
Que já conheci.
INCOMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS
Elisa Lucinda
Saudades de minhamãe.
Sua morte faz um anoe um fato
Essa coisa fez
eu brigarpelaprimeiravez
com a naturezadascoisas:
que desperdício,que descuido
que burrice de Deus!
Não de elaperdera vida
mas a vidade perdê-la.
Olhopra elae seuretrato.
Nesse dia,Deusdeuumasaidinha
e o vice erafraco.