Este documento descreve um estudo de caso sobre a análise de argumentos de pós-graduandos em debates sobre temas controversos abordados em uma disciplina no Brasil. Os alunos debateram a construção da barragem de Alqueva em Portugal e suas consequências socioambientais usando um site sobre o tema. As argumentações dos alunos foram categorizadas em quatro perspectivas: cientificista, desenvolvimentista, populista e preservacionista/ambientalista.
1. 1
A NATUREZA DOS ARGUMENTOS NA ANÁLISE DE TEMAS
CONTROVERSOS: ESTUDO DE CASO NA FORMAÇÃO DE
PÓS-GRADUANDOS NUMA ABORDAGEM CTS *
Denise de Freitas**
Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos – Brasil
dfreitas@power.ufscar.br
Alberto Villani**
Instituto de Física da Universidade de São Paulo – Brasil
avillani@fap01.if.usp.br
Vânia Gomes Zuin***
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos – Brasil
vaniaz@power.ufscar.br
Pedro Reis
Centro de Investigação em Educação da F. C. da Universidade de Lisboa – Portugal
PedroRochaReis@netcabo.pt
Haydée Torres de Oliveira***
Departamento de Hidrobiologia da Universidade Federal de São Carlos
haydee@power.ufscar.br
RESUMO
Neste trabalho analisamos a natureza da argumentação de pós-graduandos na análise e debate de
temas controversos utilizados em estratégias de ensino implementadas numa perspectiva curricular
CTS, no contexto do projeto “Ciência como cultura”, desenvolvido por equipe de pesquisadores
portugueses e brasileiros. Centramos a análise no debate ocorrido a partir da recolha de dados num
sítio da internet (BioQuest), preparado em função de uma problemática concreta em Portugal: a
construção da barragem de Alqueva e as conseqüências sócio-ambientais provocadas pelo
empreendimento.As argumentações dos alunos basearam-se em critérios ideológicos, práticos,
econômicos ou sociais, sendo possível categorizá-las, em quatro grupos principais, na relação CTS,
como sendo de natureza preservacionista/ambientalista, cientificista, populista e desenvolvimentista.
Na perspectiva cientificista, haveria a necessidade de produção de outros conhecimentos
técnicos/científicos para uma melhor compreensão do empreendimento, independentemente da postura
ser favorável ou não à execução da obra. A desenvolvimentista, foi caracterizada pelo fatalismo por
parte dos estudantes, ou seja, por falta de alternativas na solução do problema (adaptação acrítica). Já
na perspectiva populista, o ponto crítico foi a menor participação dos habitantes da região em todo o
projeto da construção da barragem. Por fim, a perspectiva preservacionista/ambientalista foi
caracterizada por uma visão sistêmica ou mais complexa da problemática colocada, mas com
tendência a rejeitar a construção da barragem de Alqueva.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo, produto de uma investigação mais ampla que tem como proposta central a
discussão da ciência como cultura e suas implicações na educação científica, objetivou
analisar os argumentos de estudantes de pós-graduação no emprego de uma situação sócio-científica
controversa. Na primeira parte do trabalho, realizamos uma incursão teórica sobre o
* Projeto Internacional CAPES/GRICES: A Ciência como Cultura: implicações na comunicação científica.
** Com apoio parcial do CNPq e apoio da CAPES
*** Com apoio da CAPES
2. uso de assuntos controversos como recurso educativo nos processos de ensino-aprendizagem,
no âmbito de Ciência/Tecnologia/Sociedade (CTS). Em seguida, descrevemos a intervenção
pedagógico-investigativa realizada no primeiro semestre de 2005 em uma disciplina oferecida
pelo Programa de Pós-Graduação em, Educação da Universidade Federal de São Carlos
(PPGE-UFSCar). Trata-se do emprego de um sítio da Internet (BioQuest) como recurso
didático para abordar questões controversas atuais, o qual inclui um caso real, o
empreendimento de fins múltiplos de Alqueva, na região do Alentejo, Portugal. No item
procedimentos metodológicos, apresentamos os elementos utilizados para a coleta de dados
(anotações dos pesquisadores, textos discentes, transcrições de gravações de discussões em
sala-de-aula). A seguir, expomos a análise e categorização das argumentações dos estudantes
com relação à construção da barragem de Alqueva e as nossas conclusões gerais acerca da
natureza destes argumentos.
2
1.1. TEMAS CONTROVERSOS NA EDUCAÇÃO
Atualmente, o desenvolvimento da argumentação é considerado um aspecto fundamental
da educação em ciência. Em qualquer sociedade democrática os cidadãos são chamados a
pronunciarem-se de forma fundamentada e crítica sobre situações/problemáticas envolvendo
dimensões científicas e tecnológicas complexas e, frequentemente, controversas em virtude
das suas inúmeras implicações sociais. A participação dos cidadãos em processos decisórios
relacionados com questões científicas e tecnológicas depende da compreensão das dinâmicas
sociais, cognitivas e epistêmicas da ciência (Duschl, 2000). Logo, torna-se necessário que a
escola se envolva ativamente na promoção: a) de reflexão sobre a natureza da ciência e das
inter-relações entre ciência, tecnologia e sociedade; e b) das competências argumentativas dos
alunos através da realização de experiências educativas dialógicas como a discussão e o
debate. Estas práticas discursivas, que constituem um dos pilares do empreendimento
científico (Newton et al, 2004), permitem a construção de uma imagem do conhecimento
científico como um conjunto dinâmico, provisório e socialmente construído de possíveis
explicações. Este tipo de atividades, possibilita estabelecer analogias entre o processo de
construção de conhecimento pelos alunos e o processo de construção do conhecimento pela
comunidade científica, contribuindo para a modificação de concepções deturpadas e
estereotipadas da ciência como empreendimento aproblemático, pleno de certezas e
meramente baseado na observação e na experimentação (Osborne, et al., 2001).
3. As situações educativas envolvendo discussão, nomeadamente de questões
sociocientíficas controversas, têm revelado potencialidades na construção de uma imagem
mais real e humana do empreendimento científico e na promoção da literacia científica
indispensável a uma cidadania responsável (Millar e Osborne, 1998; Wang e Schmidt, 2001).
Simultaneamente, diversos autores defendem a importância da discussão de questões
controversas na formulação e na reformulação de opiniões e crenças, ou seja, na educação
moral e cívica (Reis, 1999; Rudduck, 1986; Zeidler, 2003; Sadler e Zeidler, 2004). Acreditam
que este tipo de experiência educativa ajuda os alunos a compreenderem as situações sociais,
os atos humanos e as questões de valores por eles suscitadas. O envolvimento dos alunos na
análise e discussão de problemas morais no domínio da ciência, cuidadosamente selecionados,
permite desenvolver, simultaneamente, capacidades de raciocínio lógico e moral e uma
compreensão mais profunda de aspectos importantes da natureza da ciência (Reis, 2004; Reis
e Galvão, 2004; Sadler e Zeidler, 2004; Simmons e Zeidler, 2003).
2. A CONTEXTUALIZAÇÃO DA INTERVENÇÃO PEDAGÓGICO-INVESTIGATIVA
Este trabalho se insere no projeto “Ciência como cultura: implicações na comunidade
científica”, que busca promover inovações curriculares em nível de pós-graduação. Para
construir mudanças na formação científica é necessário encontrar argumentos e soluções
através de debates e de atividades pedagógicas centradas em discursos e práticas de ciência
como cultura e como trabalho coletivo. Tem de inserir a formação à uma ampla constelação
de problemas comunitários, a uma compreensão e intervenção no mundo contemporâneo à
educação para a cidadania. Contrapondo aos tradicionais currículos, essa formação
acadêmica, deve servir não só para aprender mas também para continuar a aprender,
centrando em discursos e práticas que valorizem o aprender a pensar, o aprender a aprender, o
aprender a colaborar (Santos, et al, 2006).
Por se tratar de um projeto luso-brasileiro, para a sua realização, escolheram-se
problemas comunitários controversos, situados no Brasil e em Portugal. As intervenções
pedagógico-investigativas centraram-se numa sequência de atividades de âmbito CTS
implementadas no decurso do desenvolvimento de duas disciplinas curriculares de carácter
optativo de programas de pós-graduação no Brasil e em Portugal. Nesta fase temos procurado
discutir o valor dessas atividades e suas implicações para a elaboração de um “novo” modelo
curricular.
3
4. Para atingir essa meta delineamos objetivos em dois campos que se entrecruzam. Um
trata-se do campo da elaboração conceptual e o outro das implicações subjetivas e objetivas
do processo de mudança pretendida para construção de um outro paradigma de ensino e
pesquisa. No campo da elaboração conceptual visamos construir uma síntese sobre o quadro
de desenvolvimentos teóricos em vários domínios com os quais o ensino das ciências vai
estabelecendo relações, como também buscamos elaborar uma interpretação crítica e
ontológica do mundo atual nas suas dimensões científica e tecnológica, nomeadamente,
evidenciando aspectos ambivalentes da ciência e da tecnologia e os efeitos profundos da
tecnociência no ambiente, não só na sua dimensão natural como na dimensão social e
humana. No campo das implicações subjetivas e objetivas do processo de mudança buscamos
levantar, através da análise da literatura e de trabalhos de campo, as dificuldades e barreiras
conceituais e subjetivas que comprometem a mudança de enfoque curricular. Analisar de
maneira detalhada as implicações decorrentes da natureza coletiva do trabalho dos professores
envolvidos com mudanças curriculares de tipo CTS, as dificuldades e resistências em relação
a organização coletiva e sua sustentação, assim como as contribuições e reforços que ela
propicia (Oliveira e Freitas, 2003). Também pesquisar os possíveis auxílios internos ou
externos à escola capazes de facilitar o desenvolvimento de grupos de trabalhos
comprometidos com tais mudanças.
Para o desenvolvimento deste projeto, os pesquisadores luso-brasileiros têm realizado
várias missões de trabalho, ou seja, estágios periódicos de estudos em ambos os países. A
primeira missão foi realizada no 1º. Semestre de 2005, na ocasião do oferecimento da
disciplina curricular de caráter optativo do PPGE-UFSCar (Brasil) intitulada Tópicos
Especiais em Metodologias de Ensino: diferentes concepções de trabalho científico e suas
implicações no ensino de Ciências. Esta disciplina propunha discutir as diferentes concepções
epistemológicas de professores e estudantes acerca da natureza da ciência e da construção do
conhecimento científico.
A intervenção pedagógico-investigativa aqui abordada centrou-se na utilização de temas
controversos em situações de ensino numa perspectiva CTS no curso de tal disciplina,
utilizando como estratégia pedagógica um sítio da internet voltado para uma problemática
concreta em Portugal: a construção da barragem de Alqueva e as conseqüências sócio-ambientais
4
provocadas pelo empreendimento.
5. 2.1. A UTILIZAÇÃO DE UM SÍTIO DA INTERNET COMO RECURSO
PEDAGÓGICO
Tal como a aprendizagem de uma linguagem requer o desenvolvimento de
conhecimentos sobre a forma, gramática e vocabulário, também a educação científica requer
conhecimentos sobre os grandes temas da ciência, alguns dos seus conteúdos, os seus agentes,
os seus métodos e os seus usos e abusos (Osborne, 2000). Logo, o desenvolvimento da
literacia científica passa, necessariamente, por um ensino das ciências menos factual e
fragmentado – que não isole a ciência, a tecnologia e os contextos sócio-culturais da sua
produção – onde se possa discutir criticamente a produção da ciência contemporânea com os
seus diferentes aspectos processuais e questões políticas, econômicas, sociais, ambientais e
éticas que suscita. Torna-se necessária uma educação científica que os alunos considerem
atual e relevante e que minimize o fosso entre a “ciência da escola” – metodologicamente
restrita, marcada por certezas, meramente racional e pretensamente objetiva – e a “ciência dos
noticiários e do dia-a-dia” – metodologicamente diversificada, de carácter incerto e
controverso, tanto racional como emocional, envolvendo conflitos de opinião, interesses e
valores.
O BioQuest (disponível em http://nonio.eses.pt/bioquest/), desenvolvido pelo Centro de
Competência Nónio Sec. XXI da ESE de Santarém, foi concebido com a finalidade de
contribuir para a construção de uma interpretação crítica do mundo atual nas suas dimensões
científica e tecnológica, nomeadamente, evidenciando aspectos ambivalentes da ciência e da
tecnologia e os efeitos profundos da tecnociência no ambiente, não só na sua dimensão natural
como na dimensão social e humana. Para tal, este sítio propõe atividades de reflexão sobre
questões controversas atuais relacionadas com a ciência e a tecnologia (por exemplo: a
construção do empreendimento de fins múltiplos de Alqueva e a utilização de células
estaminais). Através da análise e discussão de casos reais e polêmicos procura-se estimular o
desenvolvimento de uma literacia científica baseada: a) na compreensão das dimensões
sociais, econômicas, políticas, éticas, científicas e tecnológicas de questões controversas
atuais; b) na compreensão das relações complexas entre CTS; e c) na promoção de
conhecimentos, capacidades de pensamento crítico e de atitudes e valores que facilitem o
envolvimento ativo, construtivo e responsável dos cidadãos na evolução da sociedade.
Para a investigação que se apresenta nesta comunicação recorreu-se a uma atividade do
BioQuest que se centra no Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva. Depois de muitas
décadas de indecisão, a barragem de Alqueva é uma realidade. A sua altura máxima, contada
5
6. a partir das suas fundações, é de 96 m sendo o seu nível de pleno armazenamento à cota 152
(contado a partir do nível médio das águas do mar). A albufeira conta com uma área com
cerca de 250 km2 (o maior lago artificial da Europa, com 80 km de comprimento e 1100 km
de margens) e permite armazenar um volume total de 4150 milhões de m3, dos quais 3150
milhões de m3 correspondem à sua capacidade útil. Muitas pessoas encaram-na como uma
revolução agrícola e turística para a região do Alentejo e para todo o sul de Portugal.
Contudo, outras pessoas responsabilizam a sua imensa albufeira por uma catástrofe ambiental
que terá levado à eliminação de milhares de plantas e de animais.
As barragens são fundamentais na gestão dos recursos hídricos e na produção de energia
de forma não poluente. Contudo, representam sempre uma violenta perturbação dos
equilíbrios naturais, destruindo o patrimônio natural e cultural e suscitando fortes impactos
biológicos, geológicos, climáticos, agrícolas, sociais e econômicos. Logo, qualquer processo
decisório relativo à construção de uma barragem envolve sempre uma interação extremamente
complexa de elementos sociais, econômicos, científicos, tecnológicos e políticos.
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3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Primeiramente, os 13 pós-graduandos da linha de pesquisa em Ensino de Ciências e
Matemática que estavam cursando a disciplina Tópicos Especiais em Metodologia de Ensino
foram convidados a analisar as informações sobre o Empreendimento de Fins Múltiplos de
Alqueva, disponíveis no sítio BioQuest, de proveniência diversa (a empresa gestora do
projeto, organizações ambientalistas, órgãos de comunicação social, artigos científicos e de
jornais de notícias etc.) com a finalidade de se pronunciarem acerca da viabilidade de tal
empreendimento tendo em vista os impactos sócio-ambiental e os efeitos econômico-político.
A partir da questão colocada pelo site, os estudantes recolheram por meio da leitura de
textos de carácter técnico, científico, jornalístico e, com base neste estudo, posicionaram-se
em relação à construção ou não da barragem em três momentos correspondentes a níveis
distintos de construção do pensar, individualmente, em pequenos grupos e num debate aberto
com o grupo de pós-graduação e os pesquisadores.
Após a análise individual, os estudantes apresentaram um parecer por escrito. Em sala de
aula foram convidados num primeiro momento para confrontarem em pequenos grupos
(quatro pessoas) suas posições elaborando uma síntese do grupo. Prosseguiu-se com um
debate com a classe em que as posições dos grupos, consensuais ou não, foram apresentadas e
7. amplamente discutidas. Esta discussão, que teve a presença de outros pesquisadores
brasileiros integrante do projeto, foi filmada.
Os textos elaborados, as notas dos pesquisadores e as gravações em vídeo, foram
utilizados como as fontes de dados neste trabalho. A partir destes materiais, a análise dos
argumentos construídos pelos estudantes, possibilitaram a categorização das suas
opiniões/posições em quatro grupos principais, na relação CTS, como sendo de natureza
cientificista, desenvolvimentista, populista e preservacionista.
7
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os argumentos dos pós-graduandos foram categorizados segundo critérios ideológicos,
práticos, econômicos, ecológicos e culturais resultando em quatro principais perspectivas com
relação à abordagem da problemática do Empreendimento de Alqueva. O agrupamento
resultante indica a perspectiva mais dominante do sujeito naquele momento, a saber:
Perspectiva Cientificista - Foram enquadradas nesta categoria as opiniões de três pós-graduandos.
Dois da área de física e um da área de jornalismo.
Na impossibilidade de manifestarem uma posição totalmente desfavorável à construção
da barragem, uma vez que tal empreendimento já estava em curso e que recursos financeiros
foram empregados e modificações no ambiente foram realizadas de forma irreversível, então,
a opção mais razoável
(...) parece ser (…) a adesão à posição defendida por diversas organizações não-governamentais
portuguesas e, inclusive, pelo European Environmental Bureau que, ao reunir cerca de 140
associações européias, merece, ao menos, o reconhecimento de sua legitimidade (Jornalista).
Como argumentar é, de alguma forma, estabelecer um processo comunicativo com os
interlocutores pertencentes a uma determinada subcultura, a legitimação de alguns textos se
deu pela avaliação da inserção discursiva em diferentes segmentos da sociedade.
Influenciaram na formação das opiniões destes alunos e, consequentemente, nas suas tomadas
de decisão, as forças argumentativas dos textos analisados. O grau de razoabilidade dos textos
foi considerado condição sine qua non para apreciação e estabelecimento de diálogo. Os
argumentos utilizados pela Empresa de Desenvolvimento e Infra-estrutura do Alqueva, por
exemplo, foram tomados como intransigentes pela ausência de argumentos técnicos e
científicos razoáveis que pudessem dirimir, em seu discurso, o efeito da alegação de uma
política compensatória e medidas mitigadoras. Pelo exposto nos documentos, “há pareceres
científicos que estão sendo ignorados, e isso é preocupante” (Físico). Além disso, “os poucos
8. estudos e a incompletude” dos mesmos, aliada a pouca “discussão realizada ao se propor tal
empreendimento” (Física) é o que mais “incomoda” (Jornalista).
A imagem do discurso ambientalista como emotivo e empírico em contraste com a
valoração do discurso político e econômico que utiliza argumentos bem feitos sintetiza como,
neste grupo, a argumentação encontra razões em favor de uma conclusão:
a partir dos pontos levantados, nos parece, portanto, que o empreendimento de fins múltiplos de
Alqueva, frente a todos os impactos que acarreta, ainda não se encontra maduro e necessita de
muitos estudos anteriores à sua implementação tal qual como prevista inicialmente (Jornalista).
Perspectiva Desenvolvimentista - Foram enquadradas nesta categoria as opiniões de
8
dois pós-graduandos. Um da área de Educação Física e outra da área de Química.
A força da argumentação pauta-se na importância que a construção da barragem tem para
o “desenvolvimento econômico do local e do país” (Educador Físico). Aqui, a polêmica entre
desenvolvimento e a degradação ambiental não é considerada fundamental, uma vez que
para conseguirmos progredir no mundo moderno, nem tudo pode ser conciliado, tudo tem seus
pontos positivos e seus pontos negativos, porém temos que abrir mão, muitas vezes, de algo
para podermos ter um outro benefício maior ou melhor que o já existente (Química e
Professora).
Nota-se a visão de que as coisas são como são e, neste sentido, o processo de privação e
de acomodação à uma realidade dada e imutável deve ser encarado de forma natural. Não
existe contra-senso no fato de as pessoas da aldeia inundada serem transferidas para outro
vilarejo, pois “ todos nós temos dificuldades de sobrevivência, quando nós estamos numa
casa, numa cidade; no começo é tudo difícil, com o tempo você acostuma a ver a rotina do
lugar, da situação que você está vivendo” (Química e Professora). Em decorrência, o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia é um bem indispensável “dentro de uma
sociedade moderna”. Ela ainda coloca:
É claro que para haver o progresso, sempre o ambiente é prejudicado; porém tentou-se
minimizar tais impactos, transferindo-se espécies vegetais e animais para outros locais, como
uma forma de preservar tantos os animais como as plantas que em muitos casos, poderiam se
extintos” (Química e Professora).
O argumento de uma política compensatória expresso nos textos da empresa de
empreendimentos da barragem faz todo sentido dentro desta visão ideológica. Dessa forma,
considerar o “planejamento de programas de mínimo impacto, e o investimento de áreas de
preservação ambiental como único instrumento nesse choque entre o necessário
desenvolvimento e a preservação ambiental” é uma conclusão confortável e coerente já que a
lógica aplicada é a de que “quando o desenvolvimento não é o inimigo da preservação
ambiental”, ele se torna “um amigo de interesse” (Educador Físico). Para aceitar o
desenvolvimento há que se argumentar com apoio na máxima de que “não se pode ter tudo”
pois, “infelizmente, nem tudo pode ser conciliado na sua totalidade para o desenvolvimento
9. do progresso da humanidade, e isto é uma grande fatalidade que não possui retorno”
(Química e Professora).
Perspectiva Populista - Foram enquadradas nesta categoria as opiniões de quatro pós-graduandos.
Um da área de Biologia, uma da área de Direito, uma da área de Matemática e
9
outra da área de Farmácia.
Nesta categoria, a posição de questionamento em relação à legitimidade do processo
esteve presente nas indagações sobre os argumentos favoráveis à democracia representativa.
A opinião defendida é a de que para considerar visões diferentes nestes processos decisórios
diferentes instâncias da sociedade tem de ser ouvida.
Supostamente eles (governantes) estão lá representando nossos anseios, o que nós queremos.
Que tipo de desenvolvimento os habitantes da região, supostos beneficiários do
empreendimento, querem? Suas opiniões foram levadas em consideração? Seria possível levá-las
em consideração nesse tipo de política desenvolvimentista. Que democracia é essa se as
pessoas envolvidas não são ouvidas de verdade? (Biólogo).
Na relação CTS vê-se que a ciência e sociedade civil ficam a mercê das questões
políticas e econômicas. “Mais uma vez, os interesses verdadeiros da população que habita a
região foram relegados ao segundo plano, ofuscados pelo intenso brilho dos interesses
econômicos” (Química). Do mesmo modo, há um reconhecimento das especificidades
culturais das questões sócio-ambientais;
Interessante observar que embora os impactos decorrentes da formação de lagos artificiais já
sejam bem estudados e documentados (portanto, previsíveis, conhecidos) em todo mundo, ao se
olhar para um caso, saltam aos olhos as peculiaridades e diferenças, tornando extremamente
relevante que a decisão a seu respeito seja tomada com base na perspectiva local (Advogada).
Os discursos são confrontados pela coerência de suas argumentações. Tornam-se
inaceitáveis as declarações dos direitos sobre a informação e participação nos acordos sociais
e a violação dos mesmos nos discursos e práticas.
Até porque são as pessoas que possuem menos condições de se mobilizar. Então, eu estava
olhando um texto sobre racismo ambiental que diz assim: - quem é que vai ser o alvo dos
impactos ambientais… são as pessoas mais pobres. São aquelas que estão em locais mais
distantes. São aquelas que de repente estão com uma vulnerabilidade maior (Advogada).
A análise do processo só se efetiva realmente quando se conseguem evidências da
dimensão histórico-cultural e, neste caso, não foram encontrados textos neste sítio da internet
que pudessem satisfazer esta demanda.
Após ter lido o histórico da barragem, verifiquei o quão longa foi sua história de construção.
Levando em consideração que esse processo requer a interação complexa dos elementos sociais,
econômicos, científicos, tecnológicos e políticos, não é de se estranhar tamanha demora uma
vez que é muito difícil uma conciliação entre tantos órgãos. (Matemática).
10. Além disto, esta estudante acrescenta que não conseguiu “diagnosticar a visão das
10
pessoas daquela região quanto a situação em questão (em dados percentuais)”.
Parece haver uma hierarquização dos valores em que o social e o técnico-científico são
privilegiados.
Isto é, que a construção de uma obra supostamente para o bem-estar social inclua as
reivindicações das pessoas que habitam as regiões e, também, levem em conta o posicionamento
de grupos com capacidade de analisar técnico-cientificamente as questões envolvidas (Biólogo).
Perspectiva Preservacionista/Ambientalista - Foram enquadradas nesta categoria as
opiniões de quatro pós-graduandos. Duas da área de Biologia, uma da área de Ecologia e
outra da área de Química.
Nesta perspectiva, o pressuposto é o da existência de conflitos em campos que raramente
se intersectam; o das empresas e o das ONGs ambientalistas;
Os discursos são na verdade linguagens diferentes que correspondem a propósitos distintos e
irreconciliáveis. No caso das relações CTS os argumentos científicos dificilmente resistem, uma
vez que os propósitos (políticos) já foram estabelecidos e a máquina do Estado posta em
movimento para efetiva-los. (Ecóloga).
A análise passa pela preconização de critérios culturais e ambientais considerados
primordiais na implementação de práticas sociais ajustadas às demandas CTS.
Embora muitas pessoas acreditem que a barragem de Alqueva representa um avanço para a
região, devido a sua importância na gestão de recursos hídricos e produção de energia não
poluente, entre outras, vejo que a sua implementação representa uma grande ameaça à natureza.
Mesmo que esta barragem possa trazer algumas vantagens para a região, os prejuízos que ela
acarreta ao patrimônio natural e cultural são irreparáveis com fortes conseqüências sociais,
econômicas, ambientais, agrícolas, entre outras (Química).
Os questionamentos recaem no modelo de sociedade e de desenvolvimento;
(o meu parecer) foi elaborado considerando alguns aspectos que direcionaram para uma posição
desfavorável a tal empreendimento, principalmente referente ao modelo de desenvolvimento em
larga escala que se apresenta, ainda nos moldes da época em que foi concebido (meados do séc.
XX). (Bióloga).
Os argumentos apresentados nos textos de cientistas, técnicos e políticos são
considerados legítimos, mas não suficientes para resolver os problemas do impacto ambiental.
Opiniões, conhecimentos, valores éticos e princípios morais são a base para rever o paradigma
dominante assente na cultura e na ciência. “Por trás de um empreendimento deste tipo está
um modelo de desenvolvimento que cada vez mais tem se mostrado indesejável quando
avaliado sob uma perspectiva holística” (Bióloga e Professora). Há de se questionar em
direção de resignificações de perspectivas e de conceitos. Neste sentido, os significantes
discursivos vêm prioritariamente de áreas das ciências humanas. “Esse tipo de
empreendimento está baseado em que visão de mundo? Acho que é um pouco essa a
11. discussão importante” (Bióloga e Professora). Nesta perspectiva, a saída está colocada na
prospecção de cenários alternativos encontrados raramente em discursos técnicos ou da
política dominante. O chamamento para “não embarcar demagogicamente numa aventura
que hipotecará irremediavelmente este desenvolvimento” (Ecóloga, citando um texto) e a
declaração de “que há outras opções para o desenvolvimento que requerem uma outra visão
de mundo e uma 'nova' versão de desenvolvimento” (Bióloga e Professora, citando um texto)
é o caminho de ruptura com o paradigma dominante. O mecanismo de luta contra os
argumentos vigentes é desenvolver atitudes participativas. Isto envolve:
a) impedir, a todo custo, que a barragem atinja seu nível mais alto; b) pressionar e fiscalizar a
EDIA no sentido de efetivamente pôr em prática medidas de minimização e compensação de
impactos tanto em relação ao patrimônio cultural como ambiental, c) é fundamental que temas
relativos à barragem sejam constantemente debatidos e noticiados, que haja um
acompanhamento constante do andamento das obras (Bióloga e Professora – grifo nosso).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As principais perspectivas observadas nos argumentos apresentados pelos pós-graduandos
foram de caráter cientificista, desenvolvimentista, populista e preservacionista.
Para os alunos, cujas opiniões foram de natureza cientificista, haveria a necessidade de
produção de outros conhecimentos técnicos/científicos para uma melhor compreensão do
empreendimento, independentemente da postura ser favorável ou não à execução da obra.
Para a categoria desenvolvimentista, observa-se uma postura de não-resistência ou mesmo
fatalismo por parte dos estudantes, ou seja, nos parece que as esferas de tomada de decisão
estariam tão distantes deles que não permitem vislumbrar alternativas a uma situação-problema
(adaptação acrítica). Já para aqueles alunos cujos argumentos se encaixaram dentro
da perspectiva populista, o ponto crítico salientado foi uma menor participação dos habitantes
da região em todo o projeto da construção da barragem porque tais pessoas, mesmo que
quisessem, não tiveram um verdadeiro espaço para interlocução. Por fim, a opinião defendida
dentro da perspectiva preservacionista – que foi a mais freqüente, em conjunto com a
populista – revela uma visão sistêmica ou mais complexa da problemática colocada,
apontando a dificuldade para a análise e tomada de posição, mas com tendência a rejeitar a
construção da barragem de Alqueva.
Podemos indagar sobre a importância desta intervenção pedagógico-investigativa no
âmbito da inovação curricular numa perspectiva de formação para a cidadania e o papel das
perspectivas apontadas na análise.
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12. Neste sentido, apontamos para algumas reflexões de carácter cognitivo e subjetivo.
Primeiramente, a utilização desta estratégia CTS fez emergir valores e conceitos que foram
simultaneamente sendo formandos no decurso da vida pessoal e profissional desses
estudantes. Todos entraram em contatos com argumentos distintos que, neste caso, envolviam
implicitamente valores diferentes. Numa primeira instância o site já forneceu estes
argumentos a partir da apresentação de textos que explicitavam posições de diferentes atores e
de práticas sociais. O parecer inicial dos estudantes foi baseado no diálogo entre a sua história
e as opiniões apresentadas nos textos do sítio da internet. Desta forma a escolha se deu pela
maior ou menor identificação com as argumentações encontradas. Neste sentido o papel do
sítio foi fundamental para romper com a linearidade das opiniões dos estudantes. Poderíamos,
então, questionar se o próprio sítio não se constituiu como uma estratégia suficiente de
informação e formação. Afinal a grande maioria das argumentações e de suas perspectivas já
estavam contempladas nele.
Na nossa visão, o debate em pequenos grupos e no plenário, com a intervenção da
professora da disciplina, propiciou que a relação dialógica se desse com interlocutores que
não tinham necessidade de defender interesses específicos como no caso dos textos
científicos, técnicos e políticos presentes no sítio e, nos quais, os argumentos eram utilizados
em prol da defesa de uma “determinada causa”. Isto permitiu uma escuta diferenciada dos
vários tipos de argumentos, inclusive porque os colegas escolheram posições diferentes e as
mantiveram ou as modificaram após o debate. Esta “escuta nova” envolveu uma diferente
organização argumentativa em função da relação com os colegas e com a professora:
argumentos que durante a leitura dos textos tiveram pouquíssima ressonância ganharam força
por entrarem no “diálogo” outras informações e formas de conceber e analisar o problema.
Como resultado, cada um, de alguma forma construiu uma hierarquia de valores. Isto foi
claramente percebido pelas opiniões manifestadas após o debate.
No nosso caso, vimos que para alguns estudantes, tanto a falta de informações sobre o
desenvolvimento do empreendimento numa linha histórico-cultural, como a apreciação sobre
a premência da obra para o desenvolvimento econômico do país e sua projeção no âmbito da
globalização europeia, foram determinantes na hierarquização de valores e,
consequentemente, na tomada de posição em relação ao empreendimento. Ou seja, a
hierarquização dos valores dependeu significativamente do contexto específico.
Em nossa opinião a meta seria uma relativização das opiniões/argumentações e,
consequentemente, da tomada de posições a partir da avaliação do contexto específico de cada
caso. Ou seja, uma educação para a cidadania implica tendência para que a hierarquização de
12
13. valores não seja absoluta e não priorize sistematicamente interesses dominantes de um
determinado segmento da sociedade ou de uma determinada prática social.
Consideramos que essa formação será otimizada quando o sujeito confrontar suas
posições e valores com outras alternativas, fizer suas escolhas e se responsabilizar por elas,
não se refugiando numa hierarquização de valores pré-determinado e imutável. Este processo
de relativização é particularmente importante na formação de professores que têm de trabalhar
com a diversidade de culturas, valores e opiniões dos estudantes e sustentar os seus
investimentos na elaboração de seus saberes (Freitas, et al., 2001)
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