O documento discute como o trabalho será abolido nos "mundos altamente conectados" do futuro. Muitas atividades atualmente consideradas trabalho serão exercidas como diversão e jogos criativos. Isso não significa o fim das empresas, mas sim sua reprogramação para se tornarem redes de empreendedores colaborando voluntariamente, em vez de hierarquias com trabalhadores subordinados.
1. Em pílulas
Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio
60
(Corresponde ao vigésimo-quarto tópico do Capítulo 7,
intitulado Alterando a estrutura das sociosferas)
O fim do trabalho
Boa parte do que chamamos de trabalho se exercerá como divertimento,
jogos, creative games
A pessoa é o empreendedor, não a empresa. A empresa é um meio para
que você possa empreender, não uma feitoria (você é um escravo?), um
feudo (você é um servo?), uma penitenciária onde você tenha que pagar
uma pena oito horas por dia (você foi condenado por algum crime?), quase
todos os dias da semana (sempre aborrecido e ansioso, como os escolares,
não vendo a hora em que vai tocar a sineta); muito menos um ídolo a que
você deva adorar.
2. A empresa-hierárquica substituiu a liberdade da invenção pela prisão do
trabalho (rotineiro). Conquanto tenha sido tão cantado e glorificado,
trabalho é um conceito regressivo, que evoca um ethos desumano
ancestral.
Sim, da perspectiva de uma sociedade em rede, trabalho será um conceito
cada vez mais problemático. Não é a toa que tenha surgido, na antiga
Mesopotâmia, com a conotação de sofrimento. Aliás, na mitogonia suméria,
segundo a “Epopéia da Criação” (53) – que contém alguns dos relatos mais
antigos que conhecemos de uma cultura sacerdotal, hierárquica e
autocrática – o homem teria sido criado pelos deuses para “trabalhar para
sempre e liberar os deuses...” ou suportar o jugo, sofrer a fadiga. Já foi
criado como trabalhador – um ser inferior, escravo dos deuses – para
propiciar a liberdade dos deuses, que passaram então a exigir dos homens
adoração. Adoração significava, originalmente, segundo os relatos bíblicos,
trabalhar para os seres superiores: trabalhar para uma deidade e essa
deidade era simultaneamente “senhor”, “soberano”, “rei”, “governante” e
“dono” – enfim, superior. O homem antigo dos sistemas hierárquico-
autocráticos não propriamente adorava seus deuses, mas temia-os e
trabalhava para eles. E, é claro, para seus intermediários humanos: os
sacerdotes.
Assim como temor não é amor, trabalho não é algo que possa humanizar os
seres humanos enquanto sujeitos interagentes em relações horizontais com
outros seres humanos. Quando se trabalha para um superior que aprisionou
seu corpo e escravizou ou alugou sua força e sua inteligência, é-se
subordinado, sub-ordenado segundo um padrão de ordem vertical, alocado
em um degrau inferior da escada do poder.
Também não é por acaso que no organograma das empresas figuram no
topo aqueles que têm muitas conexões e abaixo os que têm poucas. O CEO
tem acesso a todas as informações, a todos os conhecimentos, a todos os
funcionários e a todos os demais stakeholders, enquanto que o auxiliar do
almoxarifado e a moça do café vivem na pobreza de caminhos (ver Fig. 2).
É assim que a estrutura hierárquica organiza internamente a pobreza (e
toda pobreza é pobreza de conexões) para administrá-la e mantê-la. Diz-se
então que tais pessoas não são empreendedoras. Ora, é claro que não são:
a empresa cassou seu empreendedorismo ao aprisioná-las nesse tipo de
estrutura centralizada. A empresa-hierárquica só se constitui porque aquele
mesmo programa ancestral, resumido no mito sumério da criação do ser
humano como um trabalhador amestrado (o “lulu-amelu”), continua
rodando na rede social. Não importa para nada se os nomes das coisas, dos
2
3. processos e das “peças da máquina”, mudaram: você continua adorando
ídolos, quer dizer, trabalhando para um deus.
A reação desses súditos – os trabalhadores – na modernidade, nos dois
séculos passados, não poderia ter sido mais conforme ao modelo. Em vez
de se transformarem em empreendedores e montarem suas próprias
empresas em outro padrão, eles se organizaram em movimentos,
corporações e partidos de trabalhadores repetindo e legitimando o velho
padrão, apenas querendo arrancar dos patrões mais “benefícios” e
condições melhores para continuarem sendo... trabalhadores! E adotaram,
em seus movimentos – de início insurgentes e, depois, acomodatórios:
simples bandos para negociar interesses (pois o sindicalismo é uma forma
de banditismo social e, às vezes, também criminal) – a mesma estrutura
hierárquica que os aprisionava. Na vertente insurgente desses movimentos,
ditos socialistas, alguns imaginaram que deveriam se organizar, sempre de
modo hierárquico, para o combate aos patrões e ao seu Estado a fim de dar
nascimento a uma nova sociedade sem exploração. Para legitimar tudo isso
forjaram estranhas teorias sobre classes sociais e sobre supostos interesses
de classe, reservando para si – a “classe operária” – o condão de ser
portadora do único conjunto de interesses particulares que, quando se
realizassem, tornando-se dominantes, se universalizariam (atendendo aos
interesses históricos de todas as outras classes, a despeito destas últimas
não poderem ter, por si mesmas, consciência disso). Para alcançar essa
suposta sociedade sem classes, a classe trabalhadora deveria erigir seu
próprio Estado, fortalecendo-o a ponto de... extinguí-lo (por incrível que
pareça eles pensavam assim mesmo: seria cômico se não tivesse sido
trágico). É claro que tudo isso virou lixo, inclusive porque, com a bancarrota
dos modelos econômicos e políticos estadocêntricos – nas quais os
trabalhadores continuaram sendo súditos (do seu novo Estado-patrão) –,
também faliram as utopias igualitaristas que os inspiraram.
O problema não foi e nem será resolvido enquanto se mantiver a empresa-
mainframe que repete o padrão hierárquico das demais instituições
adequadas a um mundo de baixa conectividade social (e que, aliás,
mantinham o mundo único como um mundo de baixa conectividade social).
Empresas serão redes de empreendedores. Não hierarquias, onde um
empreendedor arrebanha e subjuga “colaboradores” para transferir para
eles o serviço pesado, repetitivo, pouco gratificante, mas considerado
necessário ao sucesso do seu empreendimento. Ou para se livrar do
“serviço sujo”. Ora, o nome desse “serviço sujo” é... trabalho!
3
4. Bob Black (1985), no seu provocante manifesto intitulado A abolição do
trabalho, escreveu que “existe tanta liberdade em uma moderada ditadura
desestalinizada como em um ordinário local de trabalho americano. A
hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que
encontramos na prisão ou em um convento”. E o mesmo ocorre, segundo
Black, com as escolas, esses “campos de concentração” onde as crianças
são levadas “para adquirirem o hábito da obediência e da pontualidade que
tanto jeito fazem a um trabalhador”. Para ele, porém “precisamos das
crianças como professores e não como estudantes. As crianças têm muito a
contribuir para a revolução lúdica [que abolirá o trabalho] porque sabem
brincar melhor que os adultos” (54).
Nos Highly Connected Worlds assistiremos ao fim do trabalho (do trabalho
indiferenciado ou não-qualificado em grande escala que surgiu com a
industrialização). Talvez boa parte do que chamamos de trabalho se
exercerá como divertimento, jogos, creative games, por que não? O fim do
trabalho, entretanto, não significará o fim das empresas e nem dos
empreendedores; pelo contrário.
Isso implica a reprogramação das empresas, que se tornarão meios onde
empreendedores vão se coligar para realizar o que desejam ou sonham,
sem se subordinarem uns aos sonhos de outros para executar as tarefas
que chamamos de trabalho – posto que isso não é realmente necessário em
mundos em que há, cada vez mais, abundância de meios para realizar um
empreendimento. No entanto, reprogramar a empresa é, de certo modo,
reprogramar a sociedade.
4
5. Notas
(53) Epopéia da Criação – Enuma Elish (ou Enûma Eliš) é o mito de criação
babilônico. Ele foi descoberto por Austen Henry Layard em 1849 (em forma
fragmentada) nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive (Mossul, Iraque),
e publicado por George Smith em 1876. Cf. SMITH, George (1876). The Chaldean
Account of Genesis. London: s/ed., 1876. Eis a passagem citada do Enuma Elish:
“Ele criou o homem (e a mulher), seres vivos, para trabalhar para sempre, e liberar
os deuses de outras cargas...”. Uma versão duvidosa em português está disponível
no link:
<http://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html>
Tablets 1 e 2 estão disponíveis: <http://wikisource.org/wiki/Enuma_Elish>
(54) BLACK, Bob (1985). The Abolition of Work and Other Essays. Port Townsend:
Loompanics Unlimited, 1986. Uma tradução em português do manifesto “A abolição
do trabalho” está disponível para download em
<http://www.4shared.com/file/219719893/b8942012/A_ABOLIO_DO_TRABALHO_B
lack.html>
5