O documento analisa uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo sobre uma declaração de Lula sobre José Sarney. Ele discute o contexto político da época e como a transcrição seletiva da fala de Lula pode ter sido usada para dar um certo enfoque à notícia, em vez de ser neutra.
A construção de sentidos em manchetes do meia hora felipe costa_versão finalí...
Análise de um texto jornalístico
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ANÁLISE DE TEXTO JORNALÍSTICO – ‘NÃO É PROBLEMA MEU, NÃO VOTEI
NO SARNEY’, DIZ LULA.
Felipe de Souza Costa1
A presente análise traz como corpus uma chamada de reportagem veiculada na
primeira página do jornal Folha de S. Paulo, do dia 30 de Julho de 2009, a qual tem por título
a seguinte declaração: “Não é problema meu, não votei no Sarney, diz Lula.” O objetivo geral
é fazer um levantamento dos recursos linguístico-discursivos utilizados pelo enunciador, a fim
de que se possa analisar criticamente, baseado em fundamentações teóricas da análise do
discurso de linha francesa, as vontades de verdade existentes no texto supracitado.
A escolha da unidade textual não se deu de maneira aleatória, pois orientamo-nos
pelas palavras de Foucault, em “A Ordem do Discurso”, a respeito dos discursos de ordem
política:
“nos dias que correm, as regiões onde a grelha mais se aperta, onde
os quadrados negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade
e as da política: longe de ser um elemento transparente ou neutro
no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, é como se
o discurso fosse um dos lugares onde estas regiões exercem, de
maneira privilegiada, alguns dos seus mais temíveis poderes”
(FOUCAULT, 2005)
Escolhemos o referido corpus para que pudéssemos elucidar de maneira científica
alguns conceitos-chave do que entendemos como discurso e as demais questões que o
envolvem.
Não há como passar diretamente para análise do discurso propriamente dita sem antes,
é claro, falar de todos os componentes que contribuem para a validação de todo e qualquer
enunciado. Iniciemos, pois, pelo contexto. Sabemos que o significado atribuído a este
conceito não está necessariamente ligado à ideia de ambiente físico, uma vez que, para além
desse fator, outros dois dialogam com ele: o “cotexto” e os saberes anteriores à enunciação.
(MAINGUENEAU, 2002)
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Licenciado em Letras e especialista em Estudos da Linguagem pela Universidade de Mogi das Cruzes.
Professor titular de Língua Portuguesa e Língua Inglesa na rede municipal de ensino de São Paulo.
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O primeiro fator, portanto, pode ser expresso pela Casa do Senado Brasileiro, local
onde se desenvolveu uma série de episódios contundentes, que envolviam diretamente a
pessoa de José Sarney, presidente do Senado, bem como outros senadores. Existia, por parte
da mídia, uma cobrança excessiva para que alguém colocasse “um fim” na famosa crise que
havia se instaurado no Senado. Esta última informação tem uma ligação direta com o terceiro
fator de contexto supramencionado. Talvez, tal cobrança fosse uma vontade de verdade
latente que colaborou de maneira direta para a legitimação de todo o discurso produzido no
texto. Resta, então, um último, a saber: “o cotexto”, o qual está associado à sequência verbal
presente na unidade textual, aqui denominada chamada de reportagem.
Os três fatores inter-relacionam-se, na medida em que colaboram para a validação do
discurso direto apresentado no título, e é sobre ela que nos ateremos durante o decorrer desta
análise.
Sabemos que todo discurso é uma organização que transpassa os limites da frase e que
ele determina o que pode ou não ser dito em cada momento histórico, entretanto a ideia de
enunciado apresentada pelo viés do discurso nos textos jornalísticos é relativamente nova.
Sempre se acreditou que o jornal trazia uma informação “neutra”, “referencial”, afastada de
qualquer subjetividade. A informação estava ali porque simplesmente alguém escreveu aquilo
que exatamente aconteceu, relatou um fato. O uso da “própria fala da pessoa”, transcrita nas
reportagens e/ou notícias conferia ao texto certo grau de confiabilidade e imparcialidade, uma
vez que algo teria sido realmente dito por uma pessoa em questão.
O discurso, como já foi apresentado anteriormente, é contextualizado e para que ele
possa existir, precisa ser produzido por um sujeito, que o faz baseado em uma série de
normas, perpassando por outros discursos que já existiam. (MAINGUENEAU, 2002). Como
dizer então que um discurso e/ou enunciado é objetivo?
Levantamos todas essas questões para que pudéssemos nos ater de maneira mais
centrada ao título da chamada, o qual traz uma transcrição da fala do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva.
A primeira questão que gostaríamos de levantar é a respeito da importância que este
título possui na primeira página no jornal daquele dia em relação às outras. Ele está no
primeiro quadrante, logo abaixo do cabeçalho e ao lado de uma notícia esportiva. O fato é
que, embora as duas aparentemente exerçam o mesmo nível de relevância, temos que levar
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em conta que os escândalos que envolviam o Senado naquele tempo eram latentes na
sociedade brasileira, de tal modo que um resultado histórico alcançado pelo atleta César Cielo
ficou em segundo plano, mesmo o jornal tendo reconhecido sua relevância. Podemos dizer
então, que ambas as chamadas seriam, a priori, o mote daquela data.
Abaixo desta chamada, existem ainda outras reportagens e notícias que possuem a
recorrência do mesmo tema: política. Se compararmos todas as manchetes ou títulos das
notícias e chamadas apresentadas na primeira página com o corpus desta análise,
perceberemos que nenhuma foge daquele modelo a que estamos acostumados: resumo rápido
da chamada, notícia ou reportagem com verbos no presente, mesmo o fato tendo acontecido
no passado. Podemos inferir que a escolha de uma transcrição da fala do presidente para
compor o título de uma chamada do primeiro quadrante não se deu de maneira objetiva e nem
ao menos aleatória.
A transcrição da fala de Luiz Inácio Lula da Silva, neste contexto, para aqueles que
compartilham da ideia de que o jornal é neutro e imparcial, talvez possa dar a entender que o
uso da “fala real” configure um certo afastamento. Devemos levar em conta algumas
considerações que nos ajudam a esclarecer um pouco melhor essa pseudo concepção acerca
do discurso. A primeira delas é que em meio às diversas afirmações dadas pelo presidente em
São Paulo, como explicar a escolha dessa afirmação que foi transcrita? Será que se trata
realmente de uma pura e simples neutralidade ou a pessoa que fez o recorte é perpassada por
outros discursos que possuem uma finalidade definida? Que efeitos de sentidos podem-se
obter por meio dessa escolha do enunciador? São essas respostas que tentaremos dar nesta
análise.
Sabe-se que quem enuncia, o faz com um determinado objetivo, para um determinado
público e de algum lugar. No tocante ao discurso direto, colocado entre aspas, ainda
gostaríamos de realizar algumas considerações que envolvem de certa maneira as asserções
mencionadas há pouco, pois “o discurso direto (DD) não se contenta em eximir o enunciador
de qualquer responsabilidade, mas ainda simula restituir as falas citadas e se caracteriza pelo
fato de dissociar claramente as duas situações de enunciação: a do discurso citante e a do
discurso citado” (MAINGUENEAU, 2002).
A escolha da fala, bem como sua transcrição, se dá de uma maneira “perversa”, uma
vez que procura neutralizar o discurso citante, aqui compreendido como a instituição jornal
Folha de S. Paulo e o discurso citado, que se revela na transcrição da fala do presidente Lula.
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Falamos, no início desta análise, de um elemento crucial para a validação de todo e qualquer
enunciado: o contexto. Em meio a todo o exposto, podemos observar que o recorte feito da
fala do presidente não possui uma relação que o vincule ao real, ao verdadeiro discurso
produzido por ele em São Paulo, dado que faltam a entonação, os gestos, um auditório que
reage, etc. (MAINGUENEAU, 2002). Todos esses elementos citados são de suma
importância para compreender como e o porquê ocorreu tal enunciação.
Passando brevemente pela pequena chamada encontramos antes do texto central, um
subtítulo que diz: “Em SP, presidente muda tom de suas declarações sobre senador e nega
interferência no dia a dia do PT”. Chama-nos a atenção o seguinte sintagma: “presidente
muda tom de suas declarações”, a palavra “tom” no texto assume uma característica dúbia, se
considerarmos que ela pode se referir à sonoridade da declaração em voga que se alterou ou
ao conteúdo dos discursos proferidos pelo presidente que se alteraram. O fato é que em ambas
as possibilidades, recai um destaque exacerbado à enunciação de Luiz Inácio Lula da Silva.
Novamente, a declaração de Lula está destacada num primeiro plano, ou seja, o subtítulo
aparece para enfatizar o título da chamada.
Todo o texto da chamada é construído com elementos discursivos que apontam para
uma manifestação de contrariedade às atitudes declaratórias do presidente Lula, mesmo que
isso não esteja explicitamente destacado no texto. A vontade de verdade explícita na
construção do discurso possibilita-nos inferir este feito de sentido.
Após a exposição da fala, que já havia sido destacadíssima como manchete, aparece
um esclarecimento sutil que, talvez, o leitor menos atento passe despercebido: “O senador foi
eleito pelo Amapá”. Utilizando os nossos conhecimentos prévios acerca da vida do presidente
do Brasil e do Senado, podemos fazer alusão a alguns pontos importantes: Lula vota em São
Paulo, portanto essa seria uma tentativa de justificar sua declaração, o que, no entanto, entra
em conflito com o papel social exercido por ele: Presidente do Brasil e não apenas de São
Paulo. Quanto a José Sarney, essa informação para muitos brasileiros pode parecer nova, pois
historicamente sabemos que o referido senador é Maranhense e desenvolveu a maioria de suas
atuações políticas no estado natal, como explicar o fato dele ter sido eleito num outro estado,
que pertence a outra região? Essa “pequena” informação não aparece ali por acaso.
Concluímos, baseado em todo o exposto, que o discurso direto, inserido por meio das
aspas no corpus desta análise, não possui necessariamente um vínculo com o real, ou seja, não
podemos afirmar categoricamente que se trata da transcrição neutra e imparcial da fala do
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presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois “o discurso direto não pode, então, ser objetivo: por
mais que seja fiel, o discurso direto é sempre apenas um fragmento de texto submetido ao
enunciador do discurso citante, que dispõe de múltiplos meios para lhe dar um enfoque
pessoal.” (MAINGUENEAU, 2002).
ANEXO:
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„NÃO é problema meu, não votei no Sarney‟, diz Lula. Folha de São Paulo, São
Paulo, 31 jul. 2009, p. A1.
BIBLIOGRAFIA:
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BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.).
Introdução à Linguística: II. Princípios de análise. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 9ª. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 2ª. ed. São Paulo: Cortez,
2002.
„NÃO é problema meu, não votei no Sarney‟, diz Lula. Folha de São Paulo, São Paulo, 31
jul. 2009, p. A1.