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                      De 0 a 80 em 66 páginas
                   Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta
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                      De 0 a 80 em 66 páginas
                   Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta




                                    Gerson Murta

                                     Gino Murta

                                    Gustavo Murta
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                              Gerson, Gino, Gustavo.
                             De 0 a 80 em 66 páginas
                   Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta.
                               Belo Horizonte, 2005.




                                   Catálogo sistemático
                                1. Biografia. / Militarismo.




                             Projeto gráfico e diagramação
                                   Rodrigo Romaneli




                             Gustavo Radicchi Murta
                            Biografias e ghostwritings
                    Rua Vereador Orlando Bonfim, 168, Planalto
                        Belo Horizonte – MG – 31.720-490
                             gusmurta@hotmail.com
                              Telefax (31) 3494-1310
                                   (31) 9117-245
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             Um livro sobre a vida de uma pessoa é como uma gota d’água, se compara-
    do ao oceano do conjunto e da intensidade dos acontecimentos que lhe permearam
    a existência. Mas o importante é que quem provar dessa água – o leitor – reconheça
    que ela veio daquele oceano que existe e que se procurou espelhar. E quem ler as
    páginas desta publicação e conhecer Luiz Antero Murta há de reconhecer nelas a
    substância vital do oceano de acontecimentos que permearam a existência dele até
    então.
             Os fatos relatados a seguir são fragmentos de experiências riquíssimas, faís-
    cas de histórias luminosas que, agrupadas, formam um panorama do brilho da vida
    dela até um determinado momento. Assim, esse cenário pode ajudar a quem o lê a
    fazer uma idéia, muito próxima da realidade, das experiências mágicas que só essa
    pessoa conhece de verdade.
             Por mais livros que se escrevessem, jamais se conseguiria esgotar em
    palavras a existência de uma pessoa – ainda mais quando ela completa oito décadas
    de vida. Este é como se fosse um mapa e cada acontecimento, uma parada em um
    trajeto muitas vezes penoso, mas muitas vezes mágico.

    ***

    Pai,

             Queríamos muito lhe fazer esta surpresa. Este livro é o presente de seus qua-
    tro filhos, que te amam muito, pelos seus 80 janeiros. As próximas linhas trazem fra-
    ses muito, muito próximas da transcrição das fitas, que é um jeito que achamos de
    retratar melhor alguns fatos de sua vida, preservando o seu jeito de contar histórias.
    Fomos fiéis às gravações para retratar, com a maior naturalidade e desembaraço
    possíveis, seu percurso de vencedor. De superação de desventuras. De um homem
    que jamais conheceu a preguiça nem viu qualquer espécie de desistência.
             Sempre comentamos – assim como o fazem várias pessoas que conhece-
    mos – que o senhor está muito fortão, inteirão, saudável e bem-disposto, graças a
    Deus. Cuida da piscina da casa e de alguns pares de passarinhos – seu hobby
    favorito – com zelo incrível. Até corre e carrega peso se for preciso e anda com pos-
    tura impecavelmente ereta, como se contasse vinte ou trinta anos de idade a menos.
    Que muitos anos de vida venham, pai. E outros 80, por que não? Feliz aniversário,
    oitentão!

                                                                Gerson, Gino e Gustavo.

                                    Belo Horizonte, segunda-feira, 03 de janeiro de 2005.
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                       Às inesquecíveis Maria e Girselle,
             nossa mãe e irmã, respectivamente. Saudades sem fim.
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    Meus avós

                      O camarada e a “duja-na-queda”
             Meu pai e meu tio (José Murta Sobrinho e Carlindo Januário Murta, respecti-
    vamente) contavam que o pai deles era muito legal, pois dele nunca levaram sequer
    um beliscão (algo bastante raro para a época e que fazia jus ao nome “João do
    Espírito Santo”). A mãe e a avó deles, por suas vezes, batiam bastante, por elas e por
    ele (veja anexo 1).
             Só que um dia foi tanta a pressão delas, para que ele desse uns cascudos
    nos meninos, que ele concordou e levou papai e tio Carlindo para um quarto, tran-
    cando a porta. Mas os enrolou em um colchão, dizendo para gritarem cada vez mais,
    e começou a bater com o correão na espuma. Quando os meninos já estavam quase
    roucos de tanto berro, as mulheres acharam que estava demais e arrombaram a
    porta. Acharam que meu avô, que nunca tinha batido nos filhos, tinha de excedido.
    E o viram ainda batendo no colchão, com os meninos rindo e gritando ao mesmo
    tempo. Foi aquela desmoralização. Coitado do João do Espírito Santo!
             O casamento desses meus avós foi em 1895. Ela era ainda menina, 13 ou 14
    anos. O casamento era assim. O pessoal chegou e falou que ela ia casar com o Seu
    João. Imagine como era a inocência das pessoas: ela achou que casar era o que ela
    via dos pais, ele saindo pra trabalhar, ela cuidando da casa, lavando, passando, um
    chamando o outro de senhor e senhora. Ela achou que era isso.
             Depois do casamento simples, foram embora. Mas na noite de núpcias, ela
    viu o marido nu e achou aquilo o maior absurdo. Do jeito que estava, de camisola, ela
    saiu correndo para a casa dos pais, que moravam perto. Foi uma luta para convencê-
    la que era aquilo mesmo. Mas a inocência continuou. Ela começou, algum tempo
    depois, a sentir algumas coisas estranhas, queixando-se à mãe de que a comida não
    parava no estômago, vivia fazendo vômitos. No meu tempo já era assim, filho tinha
    medo de perguntar as coisas para pai e mãe, imagina bem antes. Aí a mãe dela disse
    que aquilo tudo era porque ela ia ter um filho. Ela não sabia por onde o menino ia sair
    e continuou enrolada mesmo quando a mãe explicou.

    Absurdo: sutiãs na vitrine
             A minha avó, certa vez, voltando do trabalho, chegou em casa revoltada,
    revoltadíssima. Ela tinha visto, na vitrine de uma loja do centro da cidade (BH), um
    busto feminino (sem cabeça e braços) com um sutiã, expondo uma peça dessas.
    Achou aquilo um absurdo. Isso, na década de 40. Coitada! Se ela estivesse vivendo
    hoje, no século XXI, o escândalo seria terrível, porque hoje a situação é de verdadeira
    calamidade. Muitas mulheres estão andando, verdadeiramente, semi-nuas. Imagina
    o que Dona Jovita sentiria...
             Lembro-me de outras palavras engraçadas de minha avó. O primeiro vigário
    do bairro da Concórdia, onde residíamos, chamava-se Padre Pedro. Era mil novecen-
    tos e trinta e poucos. Uma vez ele foi convidado para fazer uma viagem à Roma.
    Então, ele já tinha viajado, e estava aquela discussão lá, entre nós e outros vizinhos,
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    se o pároco tinha ido ou não direto de Belo Horizonte para o Vaticano.
            E vovó pôs fim à discussão: “Não teimem, Padre Pedro foi pro Gio!”, repreen-
    deu Dona Jovita. “Agora, do Gio ele vai jeto pra Joma!” É que ela tinha dificuldade de
    pronunciar o “R”. As palavras com essa letra, ele dizia como se fosse com “J” ou “G”.
    “Não teimem, Padre Pedro foi pro Rio (de Janeiro)!”, traduzindo a fala dela. “Agora,
    do Rio ele vai reto pra Roma!”
            Em 1969, minha avó Jovita morreu. Senti bastante, porque era a única avó
    que conheci. Nos últimos anos, no asilo, na rua Pirapetinga na Serra, ela alternava
    momentos de lucidez e momentos em que perdia a memória. Às vezes perguntava
    quem eu era e com quem tinha me casado. Um dia, quando fui para uma visita,
    lamentou que eu não tivesse chegado mais cedo. “Ô, rapaz, seu pai acabou de sair”,
    disse ela. Depois dizia que ele iria dar uma passada por lá. “Não vai embora ainda
    não, porque se seu pai souber que você esteve aqui e não pegou você aqui vai ficar
    com um pesar danado”, pedia minha avó. Só que o meu pai, filho dela, tinha morri-
    do bem antes daquilo, coitada.
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    Meus pais e irmãos

                    Futebol e taioba: palavras proibidas

             Falando de outra cidade religiosa, meus pais, assim como eu sou, eram na-
    turais de Mariana, a 1ª capital de Minas Gerais. Começaram o namoro desde crian-
    cinhas mesmo, ainda na escola primária (1ª à 4ª série). Eles moravam na mesma rua,
    uma casa em frente à outra. Iam para a escola e voltavam juntos. Meu pai nunca teve
    outra namorada. Minha mãe nunca teve outro namorado. E se casaram lá mesmo, em
    Mariana. Nos transferimos para Belo Horizonte em 1926, quando eu contava um ano
    de idade.
             Fomos sete irmãos, mas somente quatro escaparam – antigamente, a taxa de
    mortalidade infantil era muito alta. A 1ª, Iolanda, que eu não conheci e era a mais
    velha – nasceu antes de Dilico – e dois outros, que nasceram depois de mim, já na
    capital: Justino Guadalupe e José Clemente. Ambos antes de minhas outras irmãs,
    Jaci (em 1931) e Lourdinha (1934).
             Naquele tempo tinham, em Minas, o costume de colocar o segundo nome da
    criança de acordo com o santo do dia. É por isso que tenho o Antero no nome, nasci
                                                  em 3 de janeiro, dia desse santo,
                                                  padroeiro dos bibliotecários (coincidên-
                                                  cia: Luiz hoje é o responsável voluntário
                                                  pela     biblioteca    da   Associação
                                                  Beneficente dos Militares das Forças
                                                  Armadas – Abemifa, de onde é sócio-
                                                  fundador). Mas era dia de Santa
                                                  Genoveva, também. Teria esse segundo
                                                  nome se fosse mulher. Por causa daque-
                                                  la tradição, Dilico tem o Martinho no
                                                  nome.
                                                      Engraçado, ele e Lourdinha têm os
                                                  olhos muito azuis – puxaram minha avó
                                                  materna, Ana Zeferina, filha de por-
                                                  tugueses – mas a cor dos olhos de
                                                  minha irmã caçula sempre foi a mesma.
                                                  A dos de Dilico, não. Foi mudando com
                                                  o tempo. De pequeno, tinha o apelido de
                                                  olho-de-gato: era um verde-água-do-
                                                  mar, claro mesmo. Depois foi ficando
                                                  escuro, como um veludo de mesa de
                                                  sinuca. Aí foi clareando para um azul
                                                  bem claro, quase cinza. Quando virou
    Luiz (E) e Dilico, com os pais, Seu Juquita adulto, ficou um azul forte, já em Belo
    e D. Eliza                                    Horizonte.
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    A canecada
             Poucos meses antes da mudança para a capital, eu ainda não andava e a
    minha mãe lavava as vasilhas, as louças, em uma bica d’água. Ela me punha senta-
    do, com algumas batatinhas fritas e alguns bagos de feijão cozido (que eu gostava
    muito) em um cuité ao meu alcance, para eu ir comendo (e me distraindo) enquanto
    ela trabalhava. Meu irmão, Dilico (Jandir), três anos mais velho que eu, ia pondo as
    vasilhas já lavadas para secar.
             E ele viu que os franguinhos que minha mãe criava estavam comendo a
    minha comida. Para espantá-los, ele pegou um caneco (uma lata de azeite aberta
    com uma asa colocada do lado) que ia colocar para secar e atirou na direção das
    aves. Mas ele acertou mesmo foi a minha testa, fazendo um grande rombo. Eu nunca
    tinha visto sangue. Tenho e cicatriz funda aqui até hoje, marcando a fronte.
             Daquela época, pouco antes de nos mudarmos para a Capital, eu me lembro
    perfeitamente dos acontecimentos. Meu pai (da então Guarda Civil) chegava do tra-
    balho e ia logo me carregando e meu irmão levava uma toalha e sabão para papai se
    banhar no ribeirão próximo de casa.
    Ele me deixava sentado (ainda não
    sabia andar, aliás, demorei a aprender)
    e meu irmão depois já trazia de volta a
    toalha usada e eu voltava pra dentro
    de casa nos braços do meu pai. Me
    lembro disso perfeitamente.
             Dois anos depois disso, já
    aqui em Belo Horizonte, nasceu meu
    irmão José Clemente, que faleceu, e
    dois anos depois, nasceu Justino, que
    infelizmente também veio a falecer.
    Lembro-me com perfeição também do
    sepultamento deles. O transporte dos
    corpos era feito por carruagens, não
    era em viatura automotora, não. Para
    crianças, eram pintadas de azul e
    branco, com dois cavalinhos brancos.
    Nós morávamos no alto do (bairro)
    Colégio Batista e eu lembro muito bem
    da chegada delas.

    O coice
           Ainda residindo nesse bairro,
    tinha um comerciante, que também
    tinha muitos quartinhos para alugar,
    chamado José Cirilo Guedes, apelida-
    do de Seu Juquinha Guedes. Tinha
    também um senhor chamado Bernar-        Luiz e Dilico (D).
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    do, que cuidava da caixa d’água ali do alto (do Colégio Batista). E, montado em uma
    bestinha, ele (Seu Juquinha) vinha a uma vendinha toda noite, tomar a sua pinguin-
    ha. E amarrava o animalzinho, muito mansinho, ali na porta.
             Certa noite, meu irmão Dilico vinha brincando. O pneu que ele vinha rodan-
    do soltou da mão e bateu na bestinha. Ela se assustou e deu um coice, acertando
    Dilico. Abriu uma brecha na cabeça dele (ô gente que machucava a cabeça, era,
    canecada, era coice que tomava...). E o pessoal naquela época, os vizinhos, cada um
    vinha com uma receita de cura. Uns com ervas como gervão ou assa-peixe, outros
    com bálsamo, para pôr na ferida, junto com sal.
             “Não, pra estancar o sangue, o bom pra isso é picumã”, sugeriu uma senho-
    ra (um método pouco científico, com menos assepsia ainda). Picumã eram aquelas
    teias pretas de aranha, que escureciam com a fumaça, porque ficavam em cima do
    fogão à lenha. E encheram aquela cratera na cabeça de Dilico com o tal do picumã.
    Bom, acabou resolvendo, porque hoje ele também só tem a cicatriz. Não teve pro-
    blemas maiores, não.
             Para esse, para minhas irmãs e para mim, meus pais deixaram exemplos de
    austeridade, de trabalho, de honestidade. Eram, no entanto, muito rigorosos, muito
    disciplinadores. Meu pai, ele fez carreira na Guarda Civil, chegou a ser fiscal de turma,
    depois de ser guarda e fiscal rondante, comissionado a um cargo elevado. Só não foi
    promovido mais porque não tinha vaga. Mas ganhava como um cargo superior a fis-
    cal de turma.
             Por exemplo, ele detestava futebol. Não deixava a gente jogar e nem assis-
    tir. A gente tinha que jogar escondido, aproveitando as horas em que ele estava tra-
    balhando. Já tínhamos mudado do alto do Colégio Batista para a rua Jundiaí, esquina
    de Pitangui, nas imediações de rua Formiga e rua Angico, onde hoje é bairro São
    Cristóvão. Mas nós íamos longe. Voltávamos (Dilico e eu) para fazer as compras lá no
    Seu Juquinha Guedes. As compras, muito pesadas, a gente punha num balaio e o
    colocava na cabeça.
             Ali estava bom. Mas até chegar em casa, o peso parece que ia aumentando,
    o pescoço ia doendo. A gente não podia parar e descer o balaio, porque ele caia.
    Como tinha muito pedregulho no chão e a gente andava descalço, tropeçava, porque
    não dava direito para olhar para baixo. Chegava em casa com os dedos arrebenta-
    dos, sangrando, suados, cansados. “Isso é o fôôtibol!”, censurava meu pai. “É o raio
    (com muita ênfase no “R”, mas não trocando-o por “G” ou “J”, com a mãe dele) do
    fôôtibol!”. Só rindo!
             E ele, apesar de não gostar de fôôtibol, fez parte da primeira Diretoria de um
    clube que existe até hoje, o Pitangui Esporte Clube. O campo dele ficava onde tinha
    sido uma pedreira, perto da rua Diamantina. E a gente não podia assistir nem aos
    jogos do time dele, nem aos do Vila Concórdia, outro time de várzea lá de perto.

    “Olha o pastel”
            Jogar e assistir não podia, mas vender as coisas para a torcida podia. Como
    a coisa em casa estava muito apertada, minha mãe fazia uns pastéis para a gente
    vender na várzea. Certo dia o time do nosso bairro, o Vila Concórdia, foi jogar com o
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    Imperial, no Alto do Colégio Batista (para onde eu fui), enquanto outros times estavam
    jogando no campo do Concórdia (para onde foi Dilico).
             À certa altura, eu já tinha vendido todos os pastéis e tinha os bolsos cheios
    de moedas. Já podia ser só torcedor. Então, o Concórdia fez mais um gol bonito, eu
    comecei a pular, comecei a pular, e nem vi que as moedas caíram do bolso. Depois
    que terminou o jogo, eu vim para casa alegre – o meu time tinha vencido fora de casa
    – rodando o balaio, todo tranqüilo.
             Falei que tinha vendido tudo, mas, na hora de prestar contas, tinha só uma
    meia dúzia de moedas nos bolsos. Eu disse que não sabia, que estava ali. E tive que
    contar a verdade, que tinha ficado para assistir ao resto do jogo, tinha pulado para
    comemorar um gol e o dinheiro só podia ter caído assim. Mas na hora que acabei de
    vender eu tinha que ter vindo embora. Não podia nem assistir. Resultado: levei uma
    surra tremenda. Mas valeu a pena porque assisti a um pouquinho do futebol.
             Outro motivo para surra era falar palavrão, pois fomos criados com muita
    austeridade. Não tinha brincadeira, não. Tinha um casal de italianos, donos de uma
    horta muito grande. Cada dia a minha mãe mandava ir lá comprar verdura. Às vezes,
    comprava repolho, às vezes, couve. Mas naquele dia ela queria fazer outra verdura:
    taioba. Então, me mandou ir comprar, mas com a recomendação. “Luizinho, vá, mas
    não fala taioba, não, porque isso é palavrão”, aconselhou minha mãe. “Chega lá e fala
    que você quer um maço de taiá”. Bom, eu obedeci. Cheguei lá, fiz o pedido, mas os
    italianos não sabiam o que era taiá. Eu tive que apontar: é aquilo lá que eu quero. Os
    italianos riram. “Isso é taioba, menino”, disseram.

    O pescador
             São umas coisas que a gente lembra da infância. Outras de que me lembro
    muito bem: os casos que contava o meu tio Francisco Alves de Almeida, o Chico
    Capeta, o homem mais mentiroso do mundo. Ele era o irmão mais velho de minha
    mãe. Era um indivíduo que não parava. Era andarilho. Nasceu em Mariana (MG), mas
    residia na cidade de São Paulo. Ele viajava muito e se fixou lá ainda rapazinho. Mas,
    periodicamente, quando ficava em dificuldades financeiras, ele corria para a nossa
    casa, em Belo Horizonte. Mas quando arrumava uns serviços pra fazer, ele fazia umas
    economias e voltava para São Paulo.
             Ele era muito papudo. Quem o escutasse falar, muitas vezes poderia pensar
    que ele era um alto-engenheiro, a não ser pelas muitas coisas erradas que dispara-
    va. Ele era semi-analfabeto, teve poucas oportunidades de estudar. Falava que nós
    tínhamos que conhecer a capital paulista de qualquer jeito. O qualquer jeito era enfa-
    tizado pelo fato de Belo Horizonte ser, na época, uma cidade-menina mesmo (na
    década de 30, a capital mineira contava apenas com cerca de 40 anos de existência
    – em 2005, a capital mineira completa seus 108 anos, com cerca de dois milhões e
    200 mil habitantes).
             Chico Capeta vivia falando o nome de um dos maiores empresários paulistas
    da época. Ele falava que lá se entrava em uma rua, estava lá escrito Matarazzo S.A.
    Tomava uma avenida e lia Matarazzo S.A. Chegava numa praça e lá estava Matarazzo
    S.A. “E vocês sabem o que quer dizer S.A.?”, nos perguntava. A gente não sabia.
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    Nem ele. “S.A. quer dizer sociedade anômica”, completava meu tio.
             Alguns aviões em São Paulo, se acordo com Chico Capeta, tinham asas
    enormes. E comparava: elas iam como se fosse do bairro da Concórdia (Zona Leste
    de BH) a Nova Lima (cidade ao Sul da Região Metropolitana). Nem menino conseguia
    acreditar. Na hora do aperto, ele sempre corria para Belo Horizonte – a roça, como
    ele falava, carregando na pronúncia do “R” – e para a minha casa. Mas, depois que
    o negócio desmoronou lá em casa, com a separação do meu pai e depois com a
    doença da minha mãe, ele nunca mais apareceu. Tem muita gente ingrata mesmo. Dá
    raiva.

    Brigas fraternais
             E por falar em raiva, eu e Dilico brigávamos muito quando pequenos. O pau
    quebrava mesmo. Hoje, não, nos damos muito, muito bem. Mas naquele tempo o
    danado tinha a mania de me passar a perna. Naquelas ocasiões, minha mãe puxava
    a orelha dele, chamava-o de Alfredo – irmão dela, meu tio, com fama ter adquirido
    muitos imóveis em Mariana usando esperteza pura.
             A gente ia longe pegar, com uma peneira em lagoas, piabas, lambarizinhos.
    Eu é que ia nos lugares mais fundos, porque ele tinha um medo danado de água. Mas
    na hora de dividir os peixes nos dois aquários, ele sempre separava os maiores para
    si. Um dia, então, eu esperei ele ir para a escola eu peguei um canivetinho dele – que
    tinha forma de peixe – e arranquei os olhos dos peixes.
             Quando ele chegou, encontrou os peixes todos boiando. “Ai, mamãe, vem
    ver o que o Luiz fez com os meus peixes. Minha mãe veio ver. “Foi tu, mardito dos
    infernos?”, perguntou-me ela. “Por isso que eu vi os bichinhos esbraforidos, batendo
    no vidro”. Puxa, que couro eu levei! Surra de ripa. Quando ela cansou da madeira,
    pegou uns fios encapados com tecidos. Pegou uns retalhos daqueles, dobrou em
    dois e bateu nas minhas pernas. Nem pude ir à escola naquele dia. Sinto dor até hoje.
             De outra vez, mandei nele uma tesoura aberta. Ela foi rodando e pimba! Uma
    ponta ficou fincada nas costelas dele. Parecia até vingança pela canecada que ele me
    deu. Mas não foi, não.
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    Os Radicchi

                     O jeitão italiano de minha 2ª família
              Os avós de minha esposa eram italianos de Cocenza, na Calábria (Sul da
    Itália). No início do século passado, vieram trabalhar na lavoura brasileira (veja anexo
    1). Mas, como havia crise de maquinistas na época para maria-fumaça, puseram
    Antônio Radicchi como maquinista, profissão que ele exercia na Velha Bota. A
    primeira viagem que ele fez era BH-Ponte Nova. Mas, na passagem para Mariana, o
    trem passava na beirada do abismo, uma viagem muito perigosa. Antônio ficou apa-
    vorado. Chegando ao destino, a calabrês afirmou categoricamente que não voltaria
    por aqueles trilhos nem guiando a máquina nem como passageiro.
              O filho dele, o meu sogro, Seu Amadeu, eu conheci muito pouco, só de
    cumprimentar. Quando Maria e eu oficializamos o namoro, o primeiro encontro – na
    missa das 9h na igrejinha de Nª Sª das Graças, na Concórdia – ele faleceu. Ela e eu
    morávamos no mesmo bairro, íamos juntos no ônibus – ela para o trabalho num
    escritório, eu para o quartel. Nos encontramos naquela manhã de domingo e eu fiquei
    de ir à casa dela à noite. Mas quando Maria chegou em casa, o pai tinha morrido, de
    infarto, dormindo – o mesmo veio a acontecer com ela 48 anos depois.




    Gustavo (de mãos dadas com a mãe), Luiz, Gino, Gerson (fundo) e Girselle (de braço
    dado com a avó, D. Esther), com parte da família Radicchi.
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             Era um homem muito, muito trabalhador.
    Só morreu em casa porque era domingo. Se não
    fosse, teria morrido no trabalho, na Serraria Souza
    Pinto. Ele era um pai bravo, tudo indica que simpa-
    tizou comigo. Fiquei sabendo por vizinhos que ele
    faria muito gosto no namoro. Até estimulava a filha.
    “O rapaz é sargento da Aeronáutica, Maria”, disse
    Seu Amadeu. “Fiquei sabendo que ele quer um
    compromisso sério”.
             Lembro-me de alguns casos engraçados
    que Maria contava do pai dela. Na tradicional Missa
    do Galo, no Natal, a família Radicchi ia à igreja,
    menos ele, que ficava esperando em casa. Certa
    vez, a ceia já estava preparada à moda italiana,
    com destaque para o salame Perrela e para o vinho
    tinto Barbera. Mas quando a esposa e os filhos
    voltaram da igreja, acharam só um toquinho, um Maria.
    rabicó de mortadela amarrado com barbante, e alguns dedos de vinho no garrafão.
    O resto da família reclamou que ele tinha bebido quase tudo e que o salame tinha ido
    todo embora. “Vocês demoraram muito”, argumentou Seu Amadeu. “Ficaram comen-
    do galo lá na missa, eu fiquei comendo meu salame aqui”.

    O cruzeirense dos cruzeirenses
             Ele era um palestrino (torcedor do Palestra Itália de Minas, hoje Cruzeiro)
    doente. Quando o time batia, ele dava dinheiro para os filhos irem ao cinema e fica-
    va mais permissivo. “Hoje pode chegar um pouco mais tarde”, avisava, com cama-
    radagem. Por outro lado, quando o Palestra perdia, ele segurava os bolsos. “Como o
    Palestra apanhou, ninguém sai de casa hoje”. Então, os filhos ficaram palestrinos – e
    depois, cruzeirenses – também doentes. “Cruzeiro é bom até no bolso”, brincava,
    referindo-se à então moeda do país.
             Teve uma vez que o time de origem italiana foi jogar contra o Vila Nova, em
    Nova Lima (MG). Seu Amadeu foi ao Alçapão do Bonfim, com a bengala que sempre
    usava, não por necessidade, mas, sim, por elegância. E a bengala sumiu. Anos
    depois, um amigo dele foi almoçar na casa de Seu Amadeu e, lembrando de muitos
    casos, comentou o dia em que o palestrino quebrou a bengala na torcida vilanovense.
    “Ah, Amadeu, então é por isso que a bengala sumiu, né?”, perguntou D. Esther, mu-
    lher dele. Ela dava falta da bengala e ele falava que não sabia onde o objeto estava,
    que devia ter esquecido em algum lugar.
             Assim, era muito brincalhão, o Seu Amadeu. Às vezes as irmãs dele estavam
    cozinhando e ele chegava e desamarrava o laço do avental delas sem que vissem. O
    pano caía e elas só viam minutos depois, saindo desesperadas para procurar,
    enquanto ele gargalhava, satisfeito.
             Todas as três filhas dele (Maria, Célia e Ivone) eram muito bonitas. Assim,
    sempre chegava um gaiato conhecido chamando Seu Amadeu de sogro. “É, eu tenho
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                                              mesmo aqui uma panela boa pra cozinhar
                                              macaco”, respondia ele, conciliando muito
                                              bem uma ponta de ciúme com bom humor.
                                                     Isso ele também fazia para justificar
                                              o porquê de não deixar as filhas dormirem
                                              na casa de primos, quando iam a algum
                                              baile. D. Esther insistia, dizia que era a
                                              casa de um dos irmãos dele ou dela, que
                                              elas iam dormir com as primas, mas o
                                              homem ficava irredutível. “Vão dormir com
                                              as primas, mas lá não tem só primas, não,
                                              tem primos também”, justificava. “Não
                                              gosto de ruça-ruça nem com primo nem
                                              com padre”. Uma vez umas senhoras
                                              foram pedir para as meninas dele serem
                                              Filhas de Maria, na igreja. “Não, elas já são
                                              filhas de Esther, obrigado”, despachou.
                                                     O filho de italianos era diabético e
                                              hipertenso, mas, cabeça-dura, recusava-
                                              se a fazer regimes. Chegava a comer meia
                                              dúzia de ovos de uma vez. “Não mandei
                                              ninguém colocar açúcar no meu sangue”,
                                              dava de ombros, quando alguém o cen-
    Maria.                                    surava. “Quem pôs que tire”. E quando
    uma das filhas começava a cantar, acompanhando uma canção no rádio, ele mostra-
    va sua insatisfação. “Ô coitada, ela está querendo cantar e o rádio está atrapalhan-
    do”, dizia. “Espera aí que eu desligo”.
             Já D.Esther era menos brincalhona. Um caso
    engraçado é o dos abacates. Ela era louca com fru-
    tas. As favoritas, ela comia várias de cada vez. E
    numa noite ela mandou nada menos que três aba-
    cates compridos inteiros. Dois de meus filhos,
    Gerson e Gino, resolveram brincar com ela.
    Começaram a falar, fingindo que falavam sério, que
    comer muita comida pesada à noite pode fazer muito
    mal à saúde e que tinha gente que até perdia a vida
    com isso. E D.Esther, que dormia por volta de 21h30
    – provavelmente lembrando que abacate tem muita
    gordura – ficou com os olhos abertos até, 23h,
    23h30, meia-noite...




                                                             Gustavo.
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    Infância

                           Brincadeiras de gente simples
             Nós éramos muito pobres e tínhamos que fazer uso de nossa imaginação
    para fazermos nossos próprios brinquedos, as próprias recreações. Uma delas era
    um pneu de caminhão. Um sentava dentro dele e se encolhia todo ali e o outro ia
    rodando o pneu. Nós morávamos numa rua em declive e tinha um platô e nós ficáva-
    mos rodando (literalmente) por ali.
             Um dia, depois que eu já havia rodado Dilico bastante, chegou a minha vez.
    Mas Dilico perdeu o controle do pneu, que desceu à toda a rua Jundiaí, atravessou a
    rua Pitangui. E eu, sem parar, gritando para ele parar, ele que já tinha ficado para trás.
    O pneu já estava quicando e voando. Tinha um terreno baldio com um grande
    declive, onde o pessoal jogava lixo, louças e garrafas quebradas, tudo ali. E a
    Prefeitura estava fazendo um aterramento. Foi a minha sorte. O pneu bateu ali e
    amorteceu (hoje daria até manchete para campanha política para reeleição municipal:
    “Obra da Prefeitura salva menino”).
             Nas férias escolares, a diversão era soltar papagaio e correr atrás de um que
    arrebentasse a linha, como nas festas juninas a gente corria atrás de balões. E nisso
    a gente ia longe. Muitas vezes fomos da Concórdia até (o bairro de) Carlos Prates,
    atravessando a Pedreira Prado Lopes e o Santo André. E muitas vezes, por isso, a
    gente saía de dia e voltava já de noite. E aí era um couro mesmo, porque a permis-
    são para brincar era ali só nas imediações da casa. Os pais mandavam nos chamar,
    para nos recolher, e não sabiam da gente, ninguém dava notícia. E a gente dormia
    com o lombo quente mesmo.
             Já o nosso lazer domingueiro consistia em fazer pescarias e pequenas
    caçadas pela região do Ribeirão do Onça e pelos riachos nas imediações de Belo
    Horizonte, pelo bairro São Gabriel – que se chamava Gorduras. Para isso, tínhamos
    que atravessar um pasto enorme (de uma fazenda), que hoje é o belo bairro da
    Cidade Nova (o pasto era dos Silveira, bisavós da moça que viria a ser minha nora,
    Consuelo, esposa de Gino, meu filho). Passávamos o dia pescando e caçando pás-
    saros de pequeno porte e coelhos, quando eu era menino.
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    Infância roubada

                              Me virando aos 14 anos
              Tive uma infância muito dura, uma adolescência pior ainda, que se acentuou
    mais com o falecimento de minha mãe, em 1939, quando eu contava apenas 14 anos
    de idade. Foi muito difícil, porque meu pai se amasiou com uma mulher que não me
    aceitou. Minhas duas irmãs menores, sim, mas eu não. Aí tive que começar a
    enfrentar a vida sozinho.
              Por não aceitar que a mulher do meu pai espancasse as minhas duas irmãs
    pequenas, com ela fazia quase todos os dias, eu saí de casa por duas vezes. Na
    primeira, eu fui morar na Pedreira Prado Lopes. Aluguei um cubículo, um comodo-
    zinho pra dormir feito de tábua de compensado e papelão, porque eu não tinha co-
    ragem de dormir na rua, na via pública, debaixo de marquise ou em banco de jardim.
    Então, o dinheiro que eu ganhava capinando quintal, encerando o piso de casas –
    naquele tempo não tinha enceradeira elétrica, era com escovão – eu pagava ali pra
    dormir. Mas daquela primeira vez meu pai me localizou e me levou de volta pra casa.
    Da segunda vez, também foi porque a mu-
    lher estava batendo nas meninas. Então fui
    intervir, mas ela passou a mão em um por-
    rete e disse que faria o mesmo comigo.
    “Não, comigo a senhora não faz isso, não”,
    eu disse.
              E tentei sair para a rua, mas ela foi
    atrás de mim, no meu encalço. Eu falei com
    ela para parar (de vir atrás) porque eu não
    iria aceitar ser espancado. Ela não me
    escutou. Bom, tinha um monte de tijolos
    amontoados. Eu então peguei um. “Se a
    senhora der mais um passo, eu vou lhe ati-
    rar esse tijolo”, adverti. Aí ela escutou.
    “Joga, se você é homem”, desafiou a
    madrasta, dando as costas como alvo. E eu
    joguei. Atingi um dos rins. Ela desmontou.
    Tive que sair sem saber para onde ir.
              Mas como eu trabalhava para o
    advogado Dr. Hugo Pinheiro Soares, eu
    pensei “vou pra lá passar a noite” – eu tinha
    a chave, eu que abria e fechava o escritório.
    Mas, por coincidência, meu patrão tinha ido
    ao cinema – não me lembro se foi o Cine
    Glória, mais chique e próximo à Praça Sete,
    ou se foi ao Avenida, mais à frente um
    pouquinho, também na Afonso Pena, para Luiz (E) e oamigo Hernani.
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    quem vem da Rodoviária. Tinha ido com a esposa dele, D. Neide Martins Soares, e
    também com o sócio dele, Dr. Vicente de Paula Santos.
            Quando terminou a projeção, eles resolveram passar no escritório para pegar
    uns documentos. E quando abriram a porta, ficaram muito surpresos ao me verem
    dormindo. Eu estava de costas para a porta, no sofá, fingindo que estava dormindo,
    porque tinha escutado as vozes chegando. Fizeram alguns segundos de silêncio, que
    foram quebrados pelo Dr. Vicente. “Que sujeitinho ordinário, hein?”, disse o advoga-
    do sócio de meu chefe. Mas este o repreendeu imediatamente. “Não, espera lá, não
    pense assim, não, eu conheço o Luiz melhor que você”, defendeu-me Dr. Hugo.
    “Amanhã eu converso com ele para saber o porquê de ele dormir aqui”.
            No dia seguinte, Dr. Hugo quis saber o motivo de eu ter passado a noite lá.
    Eu contei o caso da tijolada certeira. “Então está bem, você não tem mais ambiente
    para ficar lá”, disse meu patrão. “Eu vou lá na Guarda Civil pedir ao seu pai para que
    ele permita, você mora lá em casa”. Eles eram um casal sem filhos e me acolheram
    e eu passei três anos muito bem abrigado, um grande amparo. Devo isso a eles, essa
    acolhida tão generosa, tão humana.

    Respeito
             E por falar em humanidade, hoje, quando eu contemplo essa sociedade tão
    agressiva, essa insegurança em que nós vivemos, pessoas sendo assaltadas em
    plena luz do dia, me assombro. Hoje carros são roubados, mesmo tendo sofisticados
    sistemas de segurança. Naquele tempo (década de 40), não. Os automóveis não ti-
    nham nem chave nem fechadura, era apenas a maçaneta. D. Hugo tinha um modelo
    de Chevrolet apelidado pelo povo de guarda-louças, porque era quadradinho.
             O pessoal respeitava tanto que o carro ficava aberto, estacionado em plena
    avenida Afonso Pena, embaixo das árvores ficus que iam da Praça Sete até a
    Tiradentes. Dr. Hugo ia ao Fórum pela manhã e a gente tinha um combinado: às 11h,
    se ele não tivesse passado no escritório, eu já podia descer, que a gente ia pra casa
    almoçar. E, quando eu chegava primeiro ao carro, encontrava-o aberto, muitas vezes
    com livros de direito dentro, guarda-chuva, compras. Ficava tudo ali, ninguém mexia.
    Hoje não se pode deixar. Levam até o carro. De maneira que piorou muito essa
    questão de segurança em Belo Horizonte. Naquele tempo, ninguém tinha coragem
    sequer de passar o dedo, escrevendo em um carro empoeirado. As pessoas tinham
    medo não era de polícia, não. Era de o dono chegar e chamar a atenção.
             Naqueles três anos que eu morei com aquela caridosa família, uma das boas
    coisas era que eu tinha condição de assistir ao futebol. E não mais em campos de
    várzea, mas em gramados profissionais. Por sorte, Dr. Hugo – ao contrário de meu
    pai – gostava do esporte, torcia para o América (que tinha a camisa vermelha e não
    preta e verde como hoje) e não perdia jogos desse time. Mas tinha um probleminha:
    eu era (e sou) atleticano. Quando era América e Atlético (no campo do América, onde
    hoje é o hipermercado Extra, em Santa Efigênia) e este meu time fazia um gol, eu me
    esquecia de que ele era americano e estávamos na arquibancada da torcida verme-
    lha e vibrava muito. Quando eu assustava, estava o Dr. Hugo me olhando com uns
    olho brancos, censurando-me.
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            Mas antes de trabalhar com Dr. Hugo, na minha infância, fiz vários trabalhos,
    como entrega de marmitas a operários, auxiliar de açougueiro, entregador de ternos
    de uma tinturaria. Eu fiquei conhecendo o Sr. Oscar Nicolai, dono de uma livraria na
    avenida Afonso Pena. Ele estava pretendendo comprar uma casa que eu conhecia,
    que ficava perto de onde eu morava, e me pediu algumas informações sobre a cons-
    trução. E então ele me perguntou se eu não gostaria de estudar. “Gostaria, mas não
    tenho condições, não tenho nem emprego”, respondi. Foi então que ele me apresen-
    tou ao Dr. Hugo, que precisava de um ajudante.
            Mas nos meus empregos civis, como o dinheiro era muito curto, não tinha
    muita condição de namorar. Eu também não era um freqüentador tão assíduo da
    Zona Boêmia. Naquela década de 40, essa região era muito tumultuada por dois per-
    sonagens: uma mulher, chamada Maria-Tomba-Homem, e um travesti, o Cintura-
    Fina. Eram criadores de caso e muitas vezes eram necessárias duas composições de
    rádio-patrulha para subjugá-los. Os dois eram bastante violentos, bastante difíceis de
    serem dominados.
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    Militarismo

                               Amor febril pelo Brasil

             Depois de trabalhar com Dr. Hugo, eu fazia as entregas menores, de bicicle-
    ta, trabalhando para um armazém-atacadista – meu último emprego civil – chamado
    Soares e Cia. Ltda. Eu fui o primeiro e depois entraram dois outros ciclistas, para aju-
    dar. Depois disso, me alistei na Força Aérea, fui incorporado na então Base Aérea de
    Belo Horizonte (hoje CIAAR), onde fiz carreira. Mas também sou muito identificado
    com o Exército Brasileiro, onde fiz três cursos, na área da Infantaria. A minha incor-
    poração foi no dia 1º de julho de 1944, dia em que a unidade estava comemorando
    seu 8º aniversário. Eu já tinha me alistado no Exército no ano anterior. Antes da minha
    convocação para o Exército foi aberto o voluntariado para a Base Aérea.
             Naquela época, as instalações eram bastante precárias, consistindo apenas
    nos hangares, com alojamentos em suas laterais para os soldados antigos, sargen-
    tos, e também enfermaria, refeitórios. Mas para nós, recrutas daquele ano, foi cedi-
    do um hangar destinado ao Aeroclube de Belo Horizonte – que funcionava lá na
    Pampulha e tinha sido transferido para o Progresso. Como era inverno, nós sofremos
    bastante com o frio em um lugar muito amplo, com o telhado muito elevado e sem
    forro.
             Mas isso contrastava com
    as disputas acaloradas nos
    esportes que praticava nos
    horários de educação física, na
    Base (Aérea). Eram dois esportes
    que eu pra-ticava mais: vôlei e
    futebol. Eu era levantador e ponta-
    direita, respectivamente. E fomos
    pioneiros em muita coisa. Aquele
    saque que um jogador aqui do
    Brasil dava, mandando a bola lá
    pra cima (o Jornada nas Estrelas,
    do Bernard), um colega – o 1º sar-
    gento - mecânico - de - vôo Nilo
    Giorni – já fazia na década de 50.
    Ninguém pegava aquilo, vindo
    daquela altura: espirrava, ia pra
    fora. E olha que naquele tempo se
    podia amortecer a bola com as
    mãos – eu usava isso, era uma
    recepção extraordinária, pra rece-
    ber cortada era comigo.
             E no futebol, muitos anos Luiz com uniforme de gala da FAB.
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    depois, o Yustrick apareceu com
    aquele negócio da cavadinha
    (avançar pela ponta direita e
    depois em direção à meta). Mas
    muito antes eu já fazia isso, por
    instinto. É tanto que eu poderia ter
    sido o maior goleador, mas eu
    achava que a minha função era
    correr e dar condição aos ata-
    cantes de fa-zerem os gols. Como
    eu corria muito e nem os compa-
    nheiros de ataque nem os adver-
    sários conseguiam me acompa-
    nhar, eu ficava esperando. O
    Yustrick, portanto, apenas oficiali-
    zou a cavadinha, mas eu já fazia
    aquilo há muito tempo.                 Luiz (D) e companheiros em acampamento
                                           militar em BH.
    As surpresas do Brigadeiro
             Ainda sobre os tempos de Base Aérea da Pampulha, presenciei episódios
    memoráveis. Alguns dos mais marcantes foram as visitas-surpresa do brigadeiro
    Eduardo Gomes à minha unidade, em Belo Horizonte. Ele chegava sozinho com o
    avião C-47, sem co-piloto, sem mecânico.
             E era um Deus-nos-acuda, porque ele dispensava formalidades, dispensava
    tudo, chegava quase na hora do almoço. O comandante o convidava para ir ao
    refeitório dos oficiais, mas o brigadeiro sempre recusava. E entrava na fila dos solda-
    dos, pegava a bandeja e ia comer junto com eles, acompanhado pelo comandante e
    por vários oficiais. Não admitia nem ser servido à mesa por um taifeiro. Queria ver
    como estava o rancho dos homens e normalmente entrava na fila de novo, repetia a
    refeição, bom-garfo que era. Certa vez, elogiou a comida, mas fez uma crítica. “Só
    lamento que aqui, nesta unidade, em Minas Gerais, terra da banana e do leite, não
    tenha nenhum dos dois na mesa dos soldados”. Depois disso, a gente até cansava
    de tomar leite e comer banana na hora das refeições. Devia ser medo do homem
    voltar e ter que fazer a mesma crítica.
             Já a minha atividade como sargento de infantaria era muito dura, porque eu
    era monitor: dava instrução para duas turmas de recrutas, dois cursos de cabo e um
    curso de sargento. Isso anualmente e sem prejuízo da escala de serviço interna e a
    externa (patrulha mista). Lembro-me que em certo ano, a Aeronáutica incorporou um
    grande número de soldados, não só para a própria Base Aérea, mas como também
    para Lagoa Santa, para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, de Barbacena, e o
    QG da 3ª Zona Aérea. Vieram alguns sargentos dessas unidades e o comandante
    ainda solicitou ao 12RI (12º Regimento de Infantaria) que cedesse alguns sargentos
    também para nos ajudar na instrução.
             E numa daquelas noites – era uma sexta-feira – em um alojamento superlota-
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    do, os soldados simplesmente decidiram não dormir: resolveram fazer uma baderna
    generalizada. Eu fui solicitado várias vezes para comparecer lá e, como era o meu
    setor, eu não quis pedir a intervenção do oficial de dia, porque depois que ele fosse
    lá, eles não fariam mais coisa alguma: o problema era comigo. Queriam desmoralizar
    o sargento.
             Como eles só interrompiam por alguns instantes, mas não me atendiam, con-
    tinuando a bagunça, e como no dia seguinte – sábado – seria dia de limpeza geral no
    quartel, eu resolvi comunicar minha decisão. “Já que vocês não querem dormir,
    vamos antecipar a faxina”, disse eu. Então, forneci material de limpeza e pus todo
    mundo para trabalhar do lado de fora do alojamento. A Base amanheceu varridinha.
    E, logo depois, todos os baderneiros foram punidos pelo então Comandante,
    Tenente-Coronel Sindímio Teixeira Pereira.

    Exército e copa
             Os três cursos que tive oportunidade de fazer no Exército Brasileiro, todos
    eles foram com muita dificuldade, porque eu tinha pouco tempo para estudar. Mas
    consegui fazer, com êxito, todos. O último deles, em 1950, foi feito no CPOR de Belo
    Horizonte, ainda lá no Barro Preto (antes de se mudar para a Pampulha), onde foram
    as instalações do 3º Batalhão, que tinha sido desativado.
             Eu tinha que fazer o curso, estava em vésperas de provas finais, quando
    houve a primeira copa do mundo no Brasil. Foi quando teve o único jogo realizado
    em Belo Horizonte: Inglaterra e Estados Unidos, em pleno domingo. Para a surpresa
    de todos (em linguagem futebolística se diz zebra), os Estados Unidos venceram o




    Luiz (o 4º, da esquerda para a direita) entre amigos da Abemifa.
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    país-inventor do futebol por 1 a 0. Ah, e eu não pude comparecer àquele jogo! Eu
    estava com deficiência em algumas matérias e aproveitei aquele domingo para estu-
    dar. Foi assim que eu consegui fazer o Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos – que
    me deu o direito de passar à inatividade como oficial, como 2º Tenente.
              Mas fui de sorte. Um militar normalmente é transferido com muito freqüência.
    Fui transferido apenas duas vezes, ambas para a cidade do Rio de Janeiro. Eu já era
    noivo e tinha sido designado para prestar serviço na criação do Centro de Instrução
    Militar, O CIM dos Afonsos, que estava em fase de organização.
              Da primeira vez que fui transferido eu era recém-casado. Minha esposa
    engravidou logo após o casamento e apesar de o Rio de Janeiro dispor de muitos
    hospitais (do Galeão, Central, dos Afonsos e o Santa Cruz), eu preferi que ela viesse
    para Belo Horizonte quando estivesse aproximando dos dias do parto, para ser assis-
    tida no Hospital São Francisco de Assis, que ficava próximo da casa da mãe dela e
    dos irmãos. Achei mais prudente. Mas infelizmente o primeiro filho não sobreviveu.
    Foi um parto muito difícil, de fórceps, e ele não resistiu.
              Naquele período em que ela veio para Beagá, eu continuei residindo no Rio
    em uma pensão de um casal de portugueses, que ficava em Marechal Hermes, próxi-
    ma ao quartel e, por isso, hospedava vários militares. Era um pessoal sem filhos, já
    idoso, que tratava os hóspedes como filhos. Eu me lembro que aos domingos, quan-
    do a gente ia ao Maracanã assistir a uma partida, a portuguesa D. Glória preparava
                                                    um tanto de sanduíches para nós.
                                                    “Para vocês não ficarem comendo por-
                                                    caria em campo de futebol”, justificava
                                                    ela. Tenho esta grata lembrança.
                                                       Anos depois, com a desativação
                                                    desse centro, eu fui transferido de volta
                                                    para Belo Horizonte. Fui o único. Uns
                                                    colegas meus foram para São José dos
                                                    Campos, outros para a Escola da
                                                    Aeronáutica, outros para a Escola
                                                    Preparatória       de     Cadetes,    de
                                                    Barbacena. Antes de eu ir para o Rio
                                                    pela primeira vez, eu residi na
                                                    Pampulha, no bairro (então Vila) São
                                                    Francisco. Meu pai, minha avó Jovita,
                                                    minhas duas irmãs (uma seis anos
                                                    mais nova e outra, nove) e eu moráva-
                                                    mos em uma casa com terreno grande.
                                                    Meu pai cuidava de várias árvores
                                                    frutíferas. De lá saí para me casar.




    Luiz no Centro de BH.
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    O casamento

                           A pessoa certa na hora certa
            O meu namoro, noivado e casamento foram em um curto período, dois anos.
    No noivado, fui pedir a mão de Maria à D. Esther. Já estava mais ou menos previsto
    a irmandade da minha futura sogra ir lá. Eles estavam arrumando as coisas lá. Eu
    ainda estava pensando como ia começar a falar, quando D. Esther chegou, ficou
    parada e me encorajou, dizendo que já tinha feito tudo. Como quem dissesse “sou
    toda ouvidos”.
            Ainda solteiro, eu já tinha ido prestar serviços no Rio. Mas, uma vez que eu
    estava lá, acabei sendo transferido em definitivo, como todos os que lá estavam na
    mesma situação. Eu cheguei e falei: “Olha, eu fui por quatro meses para prestar




    Luiz e Maria recém-casados.
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    serviço, mas agora estou é transferido mesmo”. Então antecipamos o casamento,
    que estava previsto para o ano seguinte (1954).
            O casamento foi no dia 20 de janeiro de 1953 (aniversário do Ministério da
    Aeronáutica e dia de São Sebastião, Padroeiro do Rio de Janeiro, onde estávamos
    indo morar em pouco mais de uma semana), na Igreja de Nossa Senhora das Graças,
    na Concórdia, em Belo Horizonte. Meus padrinhos de casamento foram o Dr. Hugo
    Pinheiro Soares, meu antigo chefe, e sua esposa, Dona Neide Martins Soares. Eu já
    estava com eles e com o padre lá na frente. Ela ficou me orientando, porque eu não
    sabia direito o que tinha que fazer – hoje é diferente, se fazem uns preparativos, tem
    um ensaio na igreja, mas naquele tempo, não.
            Aí tocou a Marcha Nupcial, a noiva veio entrando com o ex-patrão dela, o
    Seu Láu (Ladislaw Sales). À proporção que a noiva foi se aproximando, eu fiquei sem
    saber o que fazer. “E agora, Dona Neide?”, perguntei eu. Ela respondeu com rapidez.
    “Quando ela se aproximar mais um pouco ali, você avança, cumprimenta quem está
    trazendo a noiva, a recebe com um beijo na testa ou na face”, disse minha madrinha
    de casamento.

    Fotos
            Depois do casamento, fomos para a casa da mãe da noiva, que ficava a pou-
    cas quadras da igreja. A gente já tinha tirado algumas fotos normais com um fotó-
    grafo. Mas Maria fez questão que a gente fosse tirar uma foto melhor. Fomos então
                                         ao Foto Enzo, que era um dos melhores fotó-
                                         grafos daquela época, em Belo Horizonte.
                                             Mas, no caminho para o foto, furou um pneu
                                         do carro e nós tivemos que chamar um táxi para
                                         conseguir chegar ao Enzo. Ficava ali na onde
                                         hoje é uma (sapataria) Elmo, na esquina de São
                                         Paulo, Afonso Pena e Tupinambás. A entrada
                                         ficava na Afonso Pena. Era um sobrado, onde
                                         tiramos a foto oficial do casamento, que está na
                                         parede do meu quarto. O táxi ficou nos esperan-
                                         do – em 1953 não tinha taxímetro, a gente com-
                                         binava a corrida com o motorista. Então, volta-
                                         mos nele para a casa de minha sogra, onde já
                                         estavam alguns convidados, entre vizinhos e
                                         amigos, para uma recepçãozinha.
                                             Depois disso, saímos, fomos para o Hotel
                                         Macedo (que, antes, já tinha se chamado
                                         Gontijo, na rua Rio de Janeiro – onde ficava a
                                         entrada – esquina com rua dos Tupinambás).
                                         Ficamos lá por uns oito dias – período de
                                         licença a que eu tinha direito pela Aeronáutica,
                                         por me casar, o que era chamado gala – e,
    Maria.                               então, seguimos para o Rio, de trem maria-
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    fumaça, já que eu também
    tinha direito às passagens, por
    estar sendo transferido. Mas,
    pela janela, algo caiu em um
    dos olhos de Maria e o ficou
    irritando até o Rio. Lá, fomos
    logo ao médico para ver aquilo:
    era um pequeno pedaço de
    pedra de carvão alojado na
    superfície do globo ocular dela.
             Fomos dividir uma
    residência – no Rio de Janeiro,
    no bairro Bento Ribeiro – com a
    família de um dos primos de
    Maria, Walter Radicchi. Era
    uma grande casa, com quatro
    quartos. Eu já o conhecia há
    tempos: fomos incorporados
    juntos, como recrutas, fizemos
    curso de Cabo também juntos,
    no 10º RI (Regimento de
    Infantaria).
             No ano seguinte, fui
    fazer um curso de Sargento no
    Exército e ele estava se
    preparando para ir para Guara-
    tinguetá, fazer esse curso por
    lá. Bom, meu irmão, Dilico,
    marceneiro de mão cheia, é
    que estava fazendo nossos
    móveis todos. Falamos com ele Maria, logo após o casamento.
    que, como dividiríamos uma
    casa grande com Walter e a família dele, só iríamos precisar de móveis de quarto e
    que o resto ele podia ir fazendo devagar. Então despachamos a cama de casal e um
    guarda-roupa.
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    Meus filhos




    Gerson, Gino e Girselle.



                           “Nunca me deram trabalho”
    Um episódio nada fácil
             Maria ficou grávida ainda em 1953. Quando estava perto da criança nascer,
    no final de dezembro, achamos melhor ela vir para Belo Horizonte, para perto dos
    cuidados da mãe dela. Eu permaneci no Rio, não podia deixar minha unidade. Nesse
    período, fiquei residindo na pensão do casal de portugueses, que já citei.
             Às vezes eu e mais três amigos militares estávamos de folga, a gente ficava
    por lá tomando uma cervejinha. E em um daqueles dias, na passagem do ano, à
    noite, pouco antes de dormir, alguém disse: “Eh, nasceu!”. Tinha chegado um telegra-
    ma de Belo Horizonte. Fui todo alegre para receber a correspondência, que abri lá
    ainda no portão da pensão. Mas, em vez de chegar alegre de volta onde meus cole-
    gas estavam, cheguei com o rosto transtornado.
             “E aí?”, um deles perguntou. “Infelizmente houve um acidente de parto, que
    foi muito difícil, por fórceps”, respondi. A criança não tinha escapado, teve poucos
    minutos de vida depois do parto. Foi uma decepção tremenda, porque a gente fica
    naquela expectativa, primeiro filho. Foi uma experiência bem dura. Lacônico, o texto
    do telegrama, enviado por meu cunhado Oswaldo, dizia: “Criança nasceu. Não
    sobreviveu. Maria passando bem”.
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             Isso era num domingo. No dia seguinte, eu tinha
    que ir para o expediente no quartel. Mas pedi a um
    amigo, o Faria, para comunicar ao meu Comandante de
    Companhia de Agrupamento, Capitão Júlio, que eu ia
    ver a esposa em Minas. Mas ele estava de férias. Estava
    respondendo por ele o Capitão Ney Noronha, um cama-
    rada bem duro. Faria contou a história do telegrama,
    mas o capitão não concordou com a minha ida. É que
    militar não pode se ausentar da guarnição sem ser
    autorizado.
             Só que eu já tinha vindo para Belo Horizonte,
    onde fiquei um ou dois dias. Dona Esther, minha sogra,
    era muito corajosa para discutir, por exemplo, mas para
    emergências assim, não. No hospital, quem ficou com
    minha esposa foi Dona Geralda, uma vizinha. Quando
    eu cheguei, ela, que assistiu a tudo, me contou que o Gustavo.
    parto foi muito difícil mesmo e que era para eu agrade-
    cer a Deus porque era para eu ter perdido a esposa também. “Não perdeu porque
    Maria é uma mulher muito forte”, afirmou Dona Geralda. “Desculpa, Luiz, desculpa”,
    me pediu Maria, ao me ver, coitada! “Minha filha, não foi sua culpa!”, respondi.
             Quando voltei ao Rio, com o telegrama, o oficial não queria saber. “Negativo”,
    disse o Capitão Noronha. “Você não podia fazer mais nada lá”. E queria, de qualquer
    jeito, me dar uma punição. “Eu sei que errei, me ausentei sem permissão, mas foi por
    um motivo de força maior, que o senhor não está aceitando”, eu disse. “O senhor,
    Capitão, o que faria na minha situação?” Então ele não conseguiu responder. “Tá
    bom, Sargento, tá bom”, acabou concordando.
             Outra mulher que tivesse passado por isso, talvez, nunca mais ia querer ter
    filho, ou adotar, ou então já ia querer cesariana para o próximo parto. Mas ela, não.
    Fez questão logo de ficar grávida novamente. Nossa filha nasceu menos de dois anos
    depois.

    Uma gracinha de menina
             Girselle nasceu no dia 6 de outubro de 1955 e ficou sendo nossa primogêni-
    ta. O parto foi normal, foi tudo muito bem e eu me senti muito bem recompensado
    pela decepção da não-sobrevivência de meu primeiro filho. Quando a enfermeira a
    levou para o quarto, saiu do bloco cirúrgico e a deixou arrumadinha na cama, aí eu
    tive autorização para entrar. Ela estava com o cabelinho parecendo uma folhinha de
    coqueiro, molhadinho para a frente, tinham pingado um remédio vermelho nos olhos
    dela, que estava escorrendo nos cantinhos. E ela me acompanhava com os olhinhos.
    Eu me lembro que minhas duas irmãs nasceram com os olhos colados – aquilo leva-
    va muitos dias, talvez até uma semana, para descolar. Mas Girselle, recém-nascida,
    estava me acompanhando com os olhinhos. “Que coisa, já nasce esperta, mesmo”,
    admirei. Acho que era ela pensando “quem será esse bicho aí?”
             Era “Giselle” ou “Gisselle” (sem o “R”). Maria leu em uma revista. Eu tinha
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                                                         deixado a critério dela escolher.
                                                         “Já tenho um nome para a
                                                         nossa filha”, anunciou minha
                                                         esposa. Eu perguntei qual era.
                                                         “Girselle”, ela respondeu. E no
                                                         dia de registrar no cartório, o
                                                         escrivão, Wilson Batista, não
                                                         queria registrar, não. “Mas que
                                                         nome é esse, de onde é que
                                                         você tirou esse nome?”,
                                                         atreveu-se a perguntar. “Não é
                                                         um nome comum”. Então eu
                                                         soletrei      “G-I-R-S-E-L-L-E”.
                                                         Como ele estava relutante, ble-
                                                         fei. “Me admira o senhor não
    Luiz e Maria com os filhos Girselle, Gerson e Gino, conhecer um nome francês tão
    em Guarapari, ES.                                    famoso, puxa, tá fazendo esse
                                                         mistério todo, parece que eu
    inventei”. Ele me olhou – era vesgo – e registrou. “Ah, vá lá”, disse ele. O Dr. Hugo
    achava uma graça quando eu contava isso, porque ele era amigo desse Wilson
    Batista.
             Chegou até a ficar com calos nas mãozinhas de tanto andar no chiqueirinho.
    Quando eu chegava do trabalho, abria o portãozinho e ela me via, nossa! Ela só fal-
    tava voar do chiqueirinho. Nossa, que alegria! Coitadinha! Naquela época, moráva-
    mos no nº 1.011 da rua Jataí, em frente à casa da minha sogra (nº 1.034).
             Quando morávamos no Rio pela segunda vez, estava na moda aquela músi-
    ca eu vou pra Maracangalha, eu vou, eu vou com chapéu de palha eu vou. Se Anália
    não quiser ir eu vou só. E ela, pequenininha, cantava: “Ô fô pra Maracangalha, ô fô.
    Ô fô com chapéu de palha, ô fô. Se Anália não quiser ir, ô fô só, ô fô só. Ô fô sem
    Anália, mas ô fô”. Era uma gracinha a Girselle!
             Quando era pequenininha, Girselle tinha muito cuidado com o irmãozinho
    que ganhou, o Gerson. Mas ele, brincando, caía muito, estava sempre se esfolando.
    E, naquele tempo, a primeira coisa que a gente fazia para não inflamar o machucado
    era vir com o Merthiolate, para passar no local, o que ardia para danar, queimava
    mesmo. “Coitado, ele vai p... fogo”, eu dizia para Maria. Girselle me viu falando aqui-
    lo uma ou duas vezes e, então, sempre que ela via a gente com o vidrinho de
    Merthiolate vermelho na mão – hoje tem o incolor, mas não naquele tempo –, quan-
    do o Gerson caía e vinha chorando, minha menininha dizia “Ih, vai fidá fogo!”
             Ela era muito boazinha, muito mansinha, mas muito ativa. Era uma filha de
    ouro, nunca me deu trabalho na escola nem em lugar algum. Aliás, filho nenhum. Só
    comparecíamos à escola nas reuniões normais, nunca por indisciplina ou falta de
    aproveitamento nos estudos. Mas Ninguém tirava farinha com os irmãos, não. Dois
    anos mais velha que o Gerson e cinco que o Gino, ela defendia, mesmo. Era o anjo
    da guarda deles, defensora. Tomava partido, avançava, era cada merenderada!
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             Quando ela fez 15 anos, em 1970, nós demos uma festinha muito boa, muito
    bonita lá em casa. Na época, as folhas do coqueiro da frente de casa ainda estavam
    saindo do chão, não tinha tronco ainda. E Girselle foi sempre uma boa filha, que sabia
    escolher as companhias, como as filhas do Sr. Oscar, Elaine e Adriana. Era sempre
    muito amorosa e ajuizada, a minha filha. Uma boa menina.

    O coração de ouro
             Com dois anos e pouco de idade, Girselle recebeu um irmãozinho. Gerson foi
    o primeiro menino que nasceu na recém-inaugurada Vila dos Sargentos da Força
    Aérea (em frente ao Aeroporto da Pampulha), a Vila Cabangu – em homenagem à
    região que Santos Dumont nasceu, perto de Palmira, hoje cidade mineira que leva o
    nome do Pai da Aviação.
             O nascimento dele foi em um domingo de carnaval, 3 de março de 1957. Eu,
    como sócio do Clube dos Sub-Oficiais e Sargentos da Aeronáutica, tinha direito à
    hospitalização de minha mulher no Hospital Samaritano, onde Girselle nasceu. A guia
    já estava pronta há um ou dois dias, mas Maria quis deixar para ir na última hora.
    Quando era quase meia-noite, ela começou a sentir as dores do parto. Para telefonar
    e pedir um táxi lá da cidade, eu teria que ir à Base Aérea. Mas, como faria? Até o táxi
    chegar à Pampulha...
             O jeito era pedir ao Oficial de Dia, que era o Tenente Coragem. Cheguei lá, à
    portaria da Base, tive um problema. Naquele tempo, sargentos, cabos e soldados
    não podiam chegar à paisana nem à porta do quartel. Aquilo era privilégio só de ofi-
    ciais. Eu cheguei ao portão das armas e disse à sentinela que estava precisando falar
    com o Oficial de Dia. Pedi para ele pegar a
    extensão da guarita e ligar. O tenente me
    mandou entrar, mas eu disse que estava à
    paisana. Ele mandou me dizer que ele esta-
    va me autorizando a entrar, para conversar
    pessoalmente com ele.
             Quando cheguei lá, ele estava com
    o adjunto dele, Sargento René Bernedetti.
    Eu disse a ele que minha esposa estava em
    trabalho de parto e eu precisava de uma
    viatura para levá-la ao hospital, porque não
    tinha ônibus nem táxi àquela hora na região
    do aeroporto (da Pampulha). O tenente me
    disse que estava proibida a saída de
    ambulância, o comandante tinha recomen-
    dado, o carro de sair até para a mãe dele.
    Tudo porque certa vez, bem quando a
    ambulância tinha saído, um avião fez um
    pouso de emergência, pois não conseguia
    baixar o trem-de-pouso. Ninguém se feriu Gerson, Gino, Sérgio, Simone e
    gravemente. Mas a ambulância tinha saído Girselle, no Pq. Municipal (BH)
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                                          para outra coisa.
                                               Então, como a ambulância estava impossi-
                                          bilitada de sair, o Tenente Coragem me ofereceu
                                          três outras viaturas: um dos jipes – muito rústi-
                                          co para a situação –, a caminhonete dos oficiais
                                          – confortável, mas muito alta para uma mulher
                                          em trabalho de parto entrar - ou um furgão, que
                                          foi a minha escolha. O motorista seria o Cabo
                                          Expedito Lopes.
                                               Mas esse veículo, quando estava na subida
                                          da Antônio Carlos, pouco pra cima de onde hoje
                                          é o Corpo de Bombeiros – não era asfalto, era
    Gerson, Gino e Girselle.
                                          calçamento pé-de-moleque – caiu uma peça do
    carro. Continuamos e felizmente conseguimos chegar à região da Lagoinha, ao
    Hospital Samaritano. Correu tudo bem. Ele teve que ficar um pouco na estufa, porque
    passou um pouquinho da hora de nascer, mas ficou tudo bem. “Ah, nasceu empeli-
    cado, é gente de muita sorte”, disse uma enfermeira. “Na vida, tudo vai dar certo pra
    ele”.
             Um dia, eu o levei para passear no Parque Municipal, mas ele não queria
    andar de mão dada comigo, não. E em uma daquelas, que ele soltou da mão, eu
    escondi atrás de uma árvore, uma jaqueira, e ele foi embora, andando na frente,
    admirando tudo, admirando as coisas. Depois, quando Gerson deu pela minha falta,
    ele ficou apavorado, coitado. “Cadê papai?”, ele perguntou a um senhor que estava
    perto. “Mas quem é seu pai?”, perguntou de
    volta o homem. Aí ele começou a chorar, eu saí
    de trás da árvore e fui lá. Ele não quis mais
    soltar a minha mão.
             De menino, o Gerson era patola. O
    Miguel (filho de Gerson e Júnia, com um ano
    de idade em 2004) vai ser tipo ele. Ele sempre
    foi um bom garfo, sempre teve bom apetite.
    Então, a mãe punha comida pra ele e logo na
    primeira garfada, quando ele achava bom, ele
    dizia “Hum, vou querer mais”, sem saber se ia
    dar conta do que estava no prato.
             E por falar nisso, teve o caso do
    sorvete. Todos os três (Girselle, Gerson e Gino)
    tinham problemas de (inflamação de) amídalas.
    Os médicos resolveram operar os três no
    mesmo dia, poxa! A gente falava com o Gerson
    que quando ele operasse poderia tomar muito
    sorvete (o que é bom para cicatrização e para
    não inflamar), que ele adorava. Ele estava Maria e Gerson, em Washington,
    numa farra, doido pra chegar o dia de operar. EUA.
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    Gustavo, Girselle, Gino e Gerson, em 1987.
    Mas no pós-operatório, quando ele tomou a primeira pazinha, doeu muito e ele
    empurrou o sorvete pra lá.
              Foi difícil, os três operados das amídalas, convalescendo, pegaram sarampo
    e logo depois, catapora. Eles ficaram magrinhos que só vendo, os meninos. “Eu fico
    com uma pena, vocêch vêm de Minach com och meninoch coradoch e daí a pouqui-
    nho elech ficam magrinhoch e descoradoch como och nossoch daqui”, falava a car-
    ioca Dona Isaurinha – mulher do sargento Ubaldo e que ficou muito amiga de Maria,
    depois que mudamos da Rua 28 para a 98, no Rio.
              Chegou a ocasião do meu Gerson ir para a escola, quando tinha sete anos.
    E ele estava doido pra ir pra escola, que ficava quase em frente. Como ficava muito
    perto, deixamos para levar a merenda quando fosse chegando a hora do recreio.
    Mas, quando chegou a hora do recreio e a merenda não tinha chegado, a primeira
    coisa que ele pensou foi subir na grade. “Minha m-e-r-e-n-d-a, minha m-e-r-e-n-d-
    a!”, gritou, com um vozeirão.
              De pequeno, vivia dizendo que não gostava de velho. Ele devia achar muito
    feio. Um dia, a minha sogra, a avó dele, Dona Esther, estava perto quando ele falou.
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                                                    “Uai, quer dizer que você não gosta da
                                                    sua avó?”, perguntou ela. Gerson
                                                    titubeou um pouco e disse: “Não, eu
                                                    não gosto é de velho dos outros”. E
                                                    quando o pessoal perguntava o que
                                                    ele ia fazer quando crescesse, ele
                                                    respondia: “Vou estudar na Faculdade
                                                    Mental”. Ele tinha umas tiradas muito
                                                    interessantes. Hoje ele é cinegrafista.
                                                       Ele sempre foi muito prestativo Se
                                                    tinha alguém precisando de alguma
                                                    coisa e ele pudesse, já estava lá. Uma
                                                    vez teve um incêndio em uma loja de
                                                    móveis na avenida Antônio Carlos. Ele
                                                    estava voltando pra casa e viu.
                                                    Quando chegou em casa para deixar
                                                    umas coisas, pegou a moto e foi pra
                                                    lá. Gerson tem um instinto de aventu-
                                                    ra muito grande. Morou quase três
    Girselle.                                       anos nos Estados Unidos e mais três
    em Portugal, onde aprendeu o ofício de cinegrafista, que exerce até hoje e é a paixão
    profissional dele.
             Lá em Portugal, presenciou vários casos engraçados. Tinha um português,
    onde ele estava trabalhando, que disse para ele escutar: “eu não gochto de
    brasiláiros”. E o Gerson, no maior bom humor e saindo-se muito bem, contra-atacou.
    “Eu também não, eu gosto é de brasileiras”, respondeu ele. O cara riu e eles
    acabaram amigos. É jogo-de-cintura. Outra vez, ele estava contando umas piadas
    para uns portugueses, contou aquela do urubu tem pena no pé. Eles riram, riram, mas
    tinham uma dúvida. “Mas o que vem a ser urubu?”, perguntaram. Aí quem riu foi o
    Gerson. “Urubu é abutre”, explicou. E riram todos juntos.
             O Gerson tem o gênio muito bom. Quando é preciso ele explode, mas é só
    naquele momento. Depois que passou ele não guarda rancor, não alimenta sentimen-
    tos de vingança, de retaliação. Outra característica dele é o desprendimento, não tem
    aquele apego às coisas materiais. É igual ao tio materno dele, Antônio Radicchi, o
    Tunim, que podia ter R$ 1. Se alguém pedisse, dissesse que estava apertado, ele
    soltava aquele R$ 1 e ficava sem nada. Tem um coração de ouro, o Gerson. É muito
    amigo e amoroso também.

    A aplicação em pessoa
            O nascimento do Gino, meu terceiro filho, foi numa noite muito fria, 21 de
    junho de 1960, no Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG). Daquela vez, eu
    não fiz a vontade da mulher, de deixar para a última hora. Fomos mais cedo. Eram
    umas 10h da noite e ele nasceu de madrugada. Naquele ano, a Base (Aérea, hoje
    CIAAR) não tinha só uma ambulância, tinha três. E nós em uma delas, pela Estrada
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    Velha de Lagoa Santa.
            Mas, pesar de termos saído cedo, os trabalhos de parto foram se acentuan-
    do na viagem (cerca de 30km). Chegamos e a enfermeira que estava de serviço (ela
    estava grávida também, uns três dias depois ela teve gêmeos) percebeu que já esta-
    va bem adiantado, já tinha bastante dilatação. “Olha, o Dr. Mauro (obstetra) está na
    Várzea (bairro afastado da cidade) e não vai dar tempo de chamá-lo”, disse a moça.
    “Nós mesmos vamos ter que fazer o parto, o senhor me ajuda?”. Eu disse que sim,
    claro. Então, o Gino foi o único filho que eu vi e ajudei a nascer. E eu achei engraça-
    do foi que ele, antes de chorar, deu três espirros. Era uma madrugada muito fria
    mesmo.
            A enfermeira cortou o umbigo com aquela tesoura de pressão, ajeitou a cri-
    ança e foi cuidar da mãe. Eu, então, a chamei, falei que estava achando o saco do
    menino muito grande e roxo, não sabia que a criança do sexo masculino nascia com
    a bolsa escrotal inchada. “É assim mesmo”, tranqüilizou-me ela. “Nesta vida, a gente
    já chega de saco cheio”.
            O Gino chorando, eu percebi que a língua dele era presa e formava o dese-
    nho de um coração. O freio não começava embaixo, mas sim na ponta da língua. Eu
    podia ter falado, cortava ali naquela mesma noite. Mas eu pensei que fosse assim
    mesmo, depois chegava no normal. No Rio, quando ele já tinha mais de um ano, é
    que o Dr. Aldo Mirando o operou. Mas até quase adolescente, ele ainda falava com a
    língua meio presa, ao contrário de hoje, quando ele fala com desembaraço.
            Quando ele era bem pequeno, fui transferido e nos mudamos para o Rio.
    Moramos a 200m da praia de São Bento, na Ilha do Governador. E quando eu já tinha
    passado para a inatividade militar e já estava aguardando a oficialização disso (1964),
    a gente ia muito pescar, Gino, Gerson e eu. Um dia não estávamos conseguindo
    pescar quase nada, fomos longe. E
    quando já estávamos voltando, já
    querendo escurecer, a maré já estava
    subindo e não percebi. Tinha uma
    ponte desmoronada, que avançava
    para dentro do mar. Nós fomos lá e
    estava dando muito peixe, muita
    cocoroca, justamente porque a maré
    já estava subindo. A gente já estava
    com a sacola cheia de peixe.
            Maria estava preocupada por
    causa da nossa demora, estava aflita
    lá com os vizinhos. Iam à praia infor-
    mar, perguntar por um senhor e dois
    meninos. Mas ninguém tinha nos
    visto. Saímos pouco depois do
    almoço e só fomos chegar em casa lá
    pelas 9h da noite.
            De longe, um pescador – que Girselle, em show do ídolo, Fábio Jr.
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                                                    estava saindo de tardinha para passar
                                                    a noite inteira pescando camarão –
                                                    nos viu lá e viu que a maré estava
                                                    subindo e a gente não estava
                                                    percebendo. Aí ele veio com o barco a
                                                    motor dele e mandou a gente entrar.
                                                    Mas eu quis pegar as varas de pescar,
                                                    os chinelos e os peixes. “Não, entrem
                                                    que não dá tempo, não”, disse ele. E
                                                    foi a conta de a gente entrar: a maré
                                                    subiu de vez e cobriu tudo aquilo. Foi
                                                    Deus mesmo que mandou aquele
                                                    pescador lá naquela hora!
                                                      Uma vez, houve um concurso de
                                                    perguntas e respostas que a Rádio
                                                    Guarani promoveu, pela televisão. O
                                                    apresentador      era    o   Bernardo
                                                    Grimberg, que era da arma de
    Luiz (E), Gino, Maria e Gerson (1998).          Infantaria, quando fiz o curso de sar-
    gento no CPOR. E o Gino quase ganhou, ficou em segundo lugar. Nós ficávamos em
    casa reunidos, esperando torcendo, vendo pela televisão. Ele errou uma ou duas
    questões e por isso não levou o prêmio, um autorama. Mas Maria disse que ele ficaria
    frustrado e ele já estava fazendo jus. Saiu e comprou um autorama para ele e para o
    Gerson.
             Mas antes disso tudo, na Praça 12, o Gino ganhou 1º lugar em um concurso
    de rei, competindo com várias crianças, na Escola Chapeuzinho Vermelho. Ele tem
    guardado, em casa, o retrato dessa ocasião – muito bem guardado, diz ele, que é
    para ninguém ver. Foi também naquele bairro que ele, brincando de atirar na cidade,
    tomou um tiro, caiu, fingiu que morreu e dormiu de verdade. Todo mundo o procuran-
    do e ele foi aparecer só depois. Embaixo do nosso apartamento ficava uma fábrica
    de calçados – onde mandamos fazer o sapato de veludo de quando Gino foi o Rei do
    Jardim da Infância, vestido de Dartagnan.
             Quando ele e o irmão já eram maiorzinhos, resolvemos matricular os dois na
    academia de judô do Edson Izoni, a Lutadores Unidos, onde eles foram muito bem-
    sucedidos, chegando à faixa laranja. Uma das quedas mais difíceis do judô é o chi-
    matá (quando se passa a panturrilha pegando a parte interna da coxa do adversário,
    jogando-o por cima do corpo). Eram vários tatames e o Izoni pôs o Gino para treinar
    esse golpe. Eu estava conversando com algumas pessoas que iam assistir, quando
    o professor me chamou. “Seu Luiz, vem cá, vem ver como o Gino está aplicando bem
    o chimatá”. E quando eu cheguei, ele estava aplicando bem mesmo, dando umas
    quedas bonitas.
             Eu me lembro que uma vez o Izoni pediu que o Gino ficasse fazendo um
    aquecimento, para um determinado tipo de queda que ele ia aprender e exigia um
    preparo melhor. Então, o professor, muito atarefado, foi orientar outros alunos, super-
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    visionar algumas coisas e recepcionar quem estava indo se inscrever na academia. E
    se esqueceu do aquecimento. “Gino, meu filho, você ainda está aí, coitado!”, disse
    Izoni. E o menino lá, já há umas duas horas, suando, mas sem parar com a determi-
    nação dada pelo professor. Foi até dispensado do restante da aula, estava estafado.
             Ele gostava muito de jogar umas peladas com a turma: o Gerson, os meni-
    nos da Dona Nicinha, com o Sílvio da Dona Rosa e com aquele que tinha o apelido
    de Boca Branca. Até esquecia da hora do almoço, a gente tinha que chamar. E às
    vezes jogava também à tarde, depois que fazia os deveres da escola. Numa daque-
    las, quebrou o dedo mínimo de um dos pés, um dedo que é enguiçado até hoje. É
    nós levamos ao hospital, mas acho que o ortopedista que o atendeu – pelo plano da
    saúde Saber, acho que foi o pioneiro aqui, na Previdência, atrás do Parque Municipal
    – não fez o trabalho direito e volta e meia o dedo quebra de novo ou sai do lugar.
             O Gino gostava muito também de fazer papagaios. Eu ensinava o pouco que
    aprendi, mas nunca fui muito habilidoso, não, ao contrário do meu irmão, Dilico – que
    inventava sempre umas modificações, eu fazia aqueles mais simples mesmo. Mas
    depois o Gino, pela cabeça dele mesmo, foi aperfeiçoando, inovando alguma coisa,
    com bastante imaginação, uns papagaios bem feitinhos.
             Já falando da escola, eu levava os quadro (meus três na época, mais minha
    sobrinha Simone) para o Ângelo Roncali, na avenida Assis Chateaubriand, na
    Floresta. Como era muito longe (cerca de 15km), eu ficava por lá, esperando a aula
    acabar. Eu ficava lendo, escutando música ou batendo papo com o Toné, dono de
    uma loja de baterias de automóveis ali perto, que tinha sido meu soldado na Base. E
    o Gino, era muito estudioso, gostava muito de ler e, adolescente, estava sempre
    muito bem-informado para a idade dele. E o Dr. Hugo adorava bater papo com ele,
    admirava essas características dele, que estava sempre atualizado com os assuntos.
    O Gino sempre foi muito aplicado, muito compenetrado.




    Gustavo e Gino (D) com Luiz, no Dia dos Pais, 2004.
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            Desde pequeno, leva tudo em quanto é tarefa a sério. O vejo muito dinâmi-
    co, muito empreendedor, muito competente, muito bem-intencionado. Economista,
    ele se saiu muito bem na área da publicidade, trabalhando em quase todas as agên-
    cias de Belo Horizonte. E também no jornal Estado de Minas, onde foi superinten-
    dente de Publicidade. Como filho, como os outros, é muito dedicado, amigo e
    amoroso.

    O raspa-do-tacho
             Meu último filho, o caçula, a raspa-do-tacho, o Gustavo, nasceu também no
    Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG), no dia 28 de fevereiro de 1973. Foi o
    único que nasceu de cesariana. Devido à idade da minha mulher (39 anos), o médi-
    co achou melhor fazer a cesariana. E eles lá em casa ficaram naquela expectativa –
    naquele tempo não tinha esse negócio de ultra-som, para ficar sabendo o sexo do
    neném. A Girselle queria uma menina. Gerson e Gino, um menino. Quando cheguei
    de Lagoa Santa – estavam todos reunidos, esperando, a Girselle com a prima, a
    Simone, e os meninos – não sei o porquê, elas perguntam: “É menino, né?”. Eu disse
    que era. Parece que elas já, por intuição, estavam sabendo.
             A concepção dele foi uma surpresa geral. É tanto que, quando Maria me con-
    tou que estava grávida – ela disse “Luiz, eu tenho uma coisa pra te contar, eu tô
    gorda” – eu me espantei e disse: “Não brinca?”. Já tinha passado tanto tempo desde
    o Gino, a gente não evitava e não vinha mais filho, eu pensei que já tinha encerrado.
    O engraçado foi que Girselle, já mocinha, com 16 anos, deu uma sermão em Maria.
    O Gino tinha 11 anos e o Gerson, 14. “Eu não acredito, mãe, a senhora grávida, nessa
    idade?”, indignou-se minha filha – e ela parecia mesmo não acreditar. “Ih, o que é que
    tem?”, respondeu Maria. Mas Girselle era louca com o Gustavo, que a gente chama-
    va de Gugu.
             Uma coisa interessante é que parece que Maria pagou língua. A minha cu-
    nhada Ruth, mulher de Dilico, tinha ficado grávida (de uma menina, a Moabi) também
    em idade madura, alguns meses antes. “Ô Ruth, vai tomar vergonha na cara”, disse
    Maria. “Uma mulher dessa idade, já na hora de pendurar as chuteiras, esperando
    menino outra vez?”. E pouco tempo depois, ela ficou esperando o Gustavo. “Pois é,
    a língua fala, a língua paga, né?”, riu a Ruth.
             No dia do nascimento, tinha um casal lá no hospital com uma filha internada.
    A senhora ficou sabendo que estava pra nascer um filho meu ali e ficou no aparta-
    mento comigo conversando e na maio expectativa. Nós ficávamos sempre olhando
    lá para o final do corredor, para o Bloco Cirúrgico, de onde a enfermeira saiu, com o
    recém-nascido nos braços.
             “O senhor não se importa de eu ver primeiro, não?”, perguntou a senhora.
    Como eu disse que não, ela saiu correndo para ver. Depois, quando ele estava na es-
    tufa, eu achei engraçado o tamanho da mão. “Puxa, parece mão de goleiro, parece a
    mão do Kafunga!”, eu disse. E ele estava com a ponta do paninho dentro da boca,
    sugando. “O bicho já nasceu com fome mesmo!”, comentei.
             Em casa, tínhamos muitas árvores frutíferas, muitas laranjeiras, abacateiros,
    e muitos pés de amora, de que o Gustavo gostava demais. Uma vez, ele tinha pouco
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    mais de um ano e procuramos por ele, mas não o estávamos encontrando. Fomos
    achar embaixo de um pé de amora, com a boca pretinha e a fralda roxinha, porque
    ele tinha sentado em cima das amoras que tinham caído no chão.
             Quando o Gustavo estava com dois anos, nós fomos morar no Anchieta,
    onde ficamos uns dois anos. Toda manhã eu saía com ele para passear ali pelos bair-
    ros Cruzeiro, Anchieta, Carmo-Sion. A gente ia andando devagarinho. Tinha uma
    lagoa ali no Carmo Sion, onde a gente ficava jogando miolo de pão para uns lam-
    barizinhos e uma piabinhas. E também lembro que tinha uma caixa-d’água no
    Cruzeiro, com uns pés de mamona ao lado. A gente apanhava e ficava jogando as
    bolinhas em uma rampa grande ali ao lado, vendo as mamonas quicando até caírem
    lá embaixo. Era muito divertido.
             Ele fez o 1º período no Arnaldinum (no Anchieta). Já o 2º foi no Colégio
    Loyola Pampulha, no Planalto, onde fez também o pré-primário e a 2ª série (a 1ª ele
    fez no Colégio Tito Fulgêncio, no ano em que moramos na Renascença). No final
    dessa série, o Colégio Loyola Pampulha virou um seminário, chamando-se Instituto
    Santo Inácio (ISI). Construíram ao lado dele o Colégio Arquidiocesano, onde o
    Gustavo estudou da 3ª série até o final do 2º grau. Sempre foi bom aluno, não pre-
    cisava mandar estudar. Hoje é jornalista.
             Tinha umas brincadeiras engraçadas com os animais de estimação. O Sérgio
    – um primo, irmão da Simone, Samira e Samuel – ficava encarnando nele porque o
    viu uma vez, aos seis anos, esticando o gato, pegando no rabo e no pescoço,
    enquanto exigia: “Mia, gato, mia!”. Também brincava de rodeio com a pretinha, sua
    cachorrinha pequenez. Corria atrás dela na terra, dava uma rasteira – levantando um
    poeirão danado – amarrava as quatro patas juntas, com uma corda de pular, e levan-
    tava os braços.
             Ele gostava muito daqueles seriados japoneses de super-heróis, principal-
    mente o Ultraman e o Ultraseven. Um homem se transformava em Ultraman tirando
    um bastãozinho do bolso e o levantava, virando um gigante, para enfrentar o mons-
    tro. Então, no chuveiro, o Gustavo agachava, pegava o vidrinho de condicionador, e
    esticava o braço para o alto, enquanto ficava em pé de uma vez – para ter a sensação
    do Ultraman virando um gigante.
             Em 1981, o Gerson morava nos Estados Unidos, em Washington, e a mãe
    dele foi lá visitá-lo e ficou três meses. Em casa, o Gustavo era o responsável por
    aguar a horta e as plantas. Eu era religioso (veja anexo 2) e saía para fazer trabalhos
    missionários, estudos bíblicos, nos bairros adjacentes ao nosso Santo Inácio (hoje
    Planalto). O Gustavo, com oito anos de idade, me ajudava muito a encontrar as pas-
    sagens bíblicas, já que as pessoas de pouca instrução tinham muita dificuldade de
    encontrá-las. Ele foi de muita valia porque as encontrava fácil.
             Lembro-me de um caso daquela época. O Gustavo se interessava muito por
    horóscopo, que o Jornal Hoje apresentava diariamente na televisão. Naquela época,
    o Gustavo era o responsável por molhar a horta e as plantas todas as manhãs. E ele
    estava de férias no meio do ano, passando uns dias na casa da Girselle. E quando a
    voz da apresentadora anunciava um, ele dizia quem da família era daquele signo.
    Quando aparecia “Capricórnio”, ele falava: “papai”. “Áries”, ele soltava: “mamãe”. E
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    assim ia: Câncer/“Gino”; Peixes/“eu e Gerson”; Sagitário/“Tio Dilico”.
             E chegou num ponto que a minha filha se aborreceu. “Ô, Gugu, pára com isso
    aí, deixa só a mulher falar”, disse ela. Aí ele se encolheu e ficou calado. Mas quando
    chegou a vez de libra, ele, calado, dando um sorrizinho amarelo, olhou para trás, para
    a Girselle – libriana, nascida em outubro - como quem diz “é o seu, né?”. Aí ela não
    agüentou, caiu na risada e o abraçou.
             Gustavo sempre gostou muito de praticar esportes. No futebol, era goleiro. E
    tinha também o vôlei – este ele joga até hoje, como meio-de-rede. Ele e os compa-
    nheiros armavam a rede na rua, que tinha pouco movimento de carros.
             Eu o vejo Gustavo também como um bom filho, amigo, amoroso comigo e
    com os irmãos, muito estudioso. Sempre escolheu bem suas amizades. É um homem
    de bem, uma pessoa temente a Deus e que pauta a sua vida no temor ao Senhor, que
    é o princípio da sabedoria.

    ***

            Todos os meus filhos têm muito bom caráter. Nenhum me deu trabalho.
    Nunca fui chamado a colégio algum por problema de indisciplina. São todos
    amorosos, companheiros, amigos. Graças a Deus, eu tive a ventura de só ter filhos
    extraordinários.
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    Moradias

                             Zona urbana e zona rural
    A vida em apartamentos
             Quando Humberto casou, ele fez um puxado lá atrás da casa, na rua Jataí.
    Célia morava na casa da frente. Quando nós compramos essa casa da Dona Esther
    e fomos morar lá, Célia foi morar lá no fundo. Depois nos desentendemos com eles
    e eu, Maria e os meninos fomos morar na Praça 12. Era a época daquela música do
    Jair Rodrigues “deixe que digam, que pensem, que falem... batendo um papo gos-
    toso com alguém”.
             De lá, fomos para o apartamento de Dona Esperança, onde moramos mais
    ou menos um ano. Era um prédio. O apartamento 101, no terraço. Por isso, brinco
    que já moramos em uma cobertura. o nosso, era todo independente tinha uma cober-
    tura onde os meninos brincavam.
             E tinha uma vista belíssima da cidade, do Centro de BH. Maria encerava a
    escada e os meninos ficavam brincando, escorregando nela, descendo sentados,
    quicando até chegar no chão e rasgar o short. Isso era porque o sol começava a bater
    forte no pátio e na escada dava sombra, era coberta.
             Tinha uma comunicação, uma espécie de ponte, do nosso para o outro ter-
    raço. Um menino que morava ao lado – acho que se chamava Edmundo – naquele
    outro apartamento, uma vez deu uma sugestão de brincadeira para o Gino e o
    Gerson: ir jogando tijolos e garrafas, que estavam ajuntados no terraço, lá embaixo,
    no pátio – que parecia daquele seriado Chaves. Eles jogaram todos. E aí tem uma
    história que o Gino conta: Gerson
    levou uma surra e o Gino, não,
    porque eu o devo ter visto rezan-
    do, no quarto, para não apanhar.
             De lá, mudamos para o
    Santo Inácio – hoje, Planalto –
    para a casa onde moro hoje com
    o Gustavo. Moramos também no
    Anchieta de 1975 a 1978, na rua
    Luiz Signorelli, esquina com
    Vitório Marçola. Em 1980
    moramos na Renascença, na rua
    Tapira. Ambas as vezes moramos
    em apartamento. Resolvi morar
    uns tempos assim para os filhos
    ficarem mais perto da escola e
    Girselle, da faculdade. Fazia letras
    na Fafich, da Federal, que ainda

          Luiz, na casa do Santo Inácio.
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    era no Santo Antônio, na rua Carangola.
            A história da nossa vida nesses apartamentos perto da agitação do Centro
    da cidade contrasta com a calma da nossa casa no Santo Inácio, com três lotes e
    cerca de mil metros quadrados. Uma verdadeira chácara a 15 km da Praça Sete
    (ponto mais central de BH).


    A fazendinha do Santo Inácio
             A casa era do Zé Denuci, um homem muito trabalhador, que tinha uma
    empresa de pintar edifícios. A família dele não queria morar longe, no Santo Inácio,
    queria ir só no final de semana, fazer churrasco. Um dia ele chegou e a família já tinha
    mudado. Então ele resolveu vender – Humberto, meu cunhado, me deu essa dica –
    nós fomos ver a casa, gostamos e compramos.
             Para lá mudamos em 2 de janeiro de 1967, um dia de calor e umidade
    tremendos. A região era úmida, com brejos e muitas árvores. Quando nos deu fome,
    Maria foi à venda do Josué – uma mercearia como as do interior, balcão de vidro, ven-
    dia fatias de queijo, banana na unidade – comprar pão, fez uns sanduíches. Os meni-
    nos já ficaram amigos do cachorro que tinha na casa, o Tiu. Gerson e Gino adoraram,
    era quintal grande. Girselle, nem tanto, já era mocinha, tinha 12 anos. O Tibiriçá fez a
    mudança, o Jonas, que trabalhava para ele, veio dirigindo. Já era quase noite quan-
    do acabaram de descarregar. E o Gerson e o Gino subiram no caminhão e ficaram
    lutando telequete.
             No dia seguinte, meu aniversário, já amanhecemos arrancando mandioca e
    amendoim, no quintal. Tinha também cajueiro, pé de mexerica, 18 de laranjas de en-
    xerto, de muitas variedades, dois abacateiros. Tinha também banana-ouro, morangos
    nos canteiros, amora, ameixa,
    siriguela. O pé de laranja-serra-
    d’água       ficava     exatamente
    embaixo da janela de onde hoje é
    o quarto do Gustavo. Tinha as
    instalações vazias, uma criação
    de porco. Chegamos a ter até
    uma cabrita, que compramos lá
    onde hoje é o bairro vizinho do
    Floramar. Como eram três lotes
    juntos – quase mil metros quadra-
    dos –cercados com arame farpa-
    do – não tinha muro, não – o pes-
    soal de fora (vizinhos e passantes)
    chamava        nossa     casa    de
    Fazendinha.
             Na nossa rua (então rua
    Sete, atual Vereador Orlando
    Bonfim) só tinha umas quatro Luiz em Guarapari, ES.
Luiz Murta: 80 anos
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Luiz Murta: 80 anos

  • 1. livro 12/14/04 14:40 Page 1 De 0 a 80 em 66 páginas Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta
  • 2. livro 12/14/04 14:40 Page 2
  • 3. livro 12/14/04 14:40 Page 3 De 0 a 80 em 66 páginas Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta Gerson Murta Gino Murta Gustavo Murta
  • 4. livro 12/14/04 14:40 Page 4 Gerson, Gino, Gustavo. De 0 a 80 em 66 páginas Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta. Belo Horizonte, 2005. Catálogo sistemático 1. Biografia. / Militarismo. Projeto gráfico e diagramação Rodrigo Romaneli Gustavo Radicchi Murta Biografias e ghostwritings Rua Vereador Orlando Bonfim, 168, Planalto Belo Horizonte – MG – 31.720-490 gusmurta@hotmail.com Telefax (31) 3494-1310 (31) 9117-245
  • 5. livro 12/14/04 14:40 Page 5 Um livro sobre a vida de uma pessoa é como uma gota d’água, se compara- do ao oceano do conjunto e da intensidade dos acontecimentos que lhe permearam a existência. Mas o importante é que quem provar dessa água – o leitor – reconheça que ela veio daquele oceano que existe e que se procurou espelhar. E quem ler as páginas desta publicação e conhecer Luiz Antero Murta há de reconhecer nelas a substância vital do oceano de acontecimentos que permearam a existência dele até então. Os fatos relatados a seguir são fragmentos de experiências riquíssimas, faís- cas de histórias luminosas que, agrupadas, formam um panorama do brilho da vida dela até um determinado momento. Assim, esse cenário pode ajudar a quem o lê a fazer uma idéia, muito próxima da realidade, das experiências mágicas que só essa pessoa conhece de verdade. Por mais livros que se escrevessem, jamais se conseguiria esgotar em palavras a existência de uma pessoa – ainda mais quando ela completa oito décadas de vida. Este é como se fosse um mapa e cada acontecimento, uma parada em um trajeto muitas vezes penoso, mas muitas vezes mágico. *** Pai, Queríamos muito lhe fazer esta surpresa. Este livro é o presente de seus qua- tro filhos, que te amam muito, pelos seus 80 janeiros. As próximas linhas trazem fra- ses muito, muito próximas da transcrição das fitas, que é um jeito que achamos de retratar melhor alguns fatos de sua vida, preservando o seu jeito de contar histórias. Fomos fiéis às gravações para retratar, com a maior naturalidade e desembaraço possíveis, seu percurso de vencedor. De superação de desventuras. De um homem que jamais conheceu a preguiça nem viu qualquer espécie de desistência. Sempre comentamos – assim como o fazem várias pessoas que conhece- mos – que o senhor está muito fortão, inteirão, saudável e bem-disposto, graças a Deus. Cuida da piscina da casa e de alguns pares de passarinhos – seu hobby favorito – com zelo incrível. Até corre e carrega peso se for preciso e anda com pos- tura impecavelmente ereta, como se contasse vinte ou trinta anos de idade a menos. Que muitos anos de vida venham, pai. E outros 80, por que não? Feliz aniversário, oitentão! Gerson, Gino e Gustavo. Belo Horizonte, segunda-feira, 03 de janeiro de 2005.
  • 6. livro 12/14/04 14:40 Page 6 Às inesquecíveis Maria e Girselle, nossa mãe e irmã, respectivamente. Saudades sem fim.
  • 7. livro 12/14/04 14:41 Page 7 Meus avós O camarada e a “duja-na-queda” Meu pai e meu tio (José Murta Sobrinho e Carlindo Januário Murta, respecti- vamente) contavam que o pai deles era muito legal, pois dele nunca levaram sequer um beliscão (algo bastante raro para a época e que fazia jus ao nome “João do Espírito Santo”). A mãe e a avó deles, por suas vezes, batiam bastante, por elas e por ele (veja anexo 1). Só que um dia foi tanta a pressão delas, para que ele desse uns cascudos nos meninos, que ele concordou e levou papai e tio Carlindo para um quarto, tran- cando a porta. Mas os enrolou em um colchão, dizendo para gritarem cada vez mais, e começou a bater com o correão na espuma. Quando os meninos já estavam quase roucos de tanto berro, as mulheres acharam que estava demais e arrombaram a porta. Acharam que meu avô, que nunca tinha batido nos filhos, tinha de excedido. E o viram ainda batendo no colchão, com os meninos rindo e gritando ao mesmo tempo. Foi aquela desmoralização. Coitado do João do Espírito Santo! O casamento desses meus avós foi em 1895. Ela era ainda menina, 13 ou 14 anos. O casamento era assim. O pessoal chegou e falou que ela ia casar com o Seu João. Imagine como era a inocência das pessoas: ela achou que casar era o que ela via dos pais, ele saindo pra trabalhar, ela cuidando da casa, lavando, passando, um chamando o outro de senhor e senhora. Ela achou que era isso. Depois do casamento simples, foram embora. Mas na noite de núpcias, ela viu o marido nu e achou aquilo o maior absurdo. Do jeito que estava, de camisola, ela saiu correndo para a casa dos pais, que moravam perto. Foi uma luta para convencê- la que era aquilo mesmo. Mas a inocência continuou. Ela começou, algum tempo depois, a sentir algumas coisas estranhas, queixando-se à mãe de que a comida não parava no estômago, vivia fazendo vômitos. No meu tempo já era assim, filho tinha medo de perguntar as coisas para pai e mãe, imagina bem antes. Aí a mãe dela disse que aquilo tudo era porque ela ia ter um filho. Ela não sabia por onde o menino ia sair e continuou enrolada mesmo quando a mãe explicou. Absurdo: sutiãs na vitrine A minha avó, certa vez, voltando do trabalho, chegou em casa revoltada, revoltadíssima. Ela tinha visto, na vitrine de uma loja do centro da cidade (BH), um busto feminino (sem cabeça e braços) com um sutiã, expondo uma peça dessas. Achou aquilo um absurdo. Isso, na década de 40. Coitada! Se ela estivesse vivendo hoje, no século XXI, o escândalo seria terrível, porque hoje a situação é de verdadeira calamidade. Muitas mulheres estão andando, verdadeiramente, semi-nuas. Imagina o que Dona Jovita sentiria... Lembro-me de outras palavras engraçadas de minha avó. O primeiro vigário do bairro da Concórdia, onde residíamos, chamava-se Padre Pedro. Era mil novecen- tos e trinta e poucos. Uma vez ele foi convidado para fazer uma viagem à Roma. Então, ele já tinha viajado, e estava aquela discussão lá, entre nós e outros vizinhos,
  • 8. livro 12/14/04 14:41 Page 8 se o pároco tinha ido ou não direto de Belo Horizonte para o Vaticano. E vovó pôs fim à discussão: “Não teimem, Padre Pedro foi pro Gio!”, repreen- deu Dona Jovita. “Agora, do Gio ele vai jeto pra Joma!” É que ela tinha dificuldade de pronunciar o “R”. As palavras com essa letra, ele dizia como se fosse com “J” ou “G”. “Não teimem, Padre Pedro foi pro Rio (de Janeiro)!”, traduzindo a fala dela. “Agora, do Rio ele vai reto pra Roma!” Em 1969, minha avó Jovita morreu. Senti bastante, porque era a única avó que conheci. Nos últimos anos, no asilo, na rua Pirapetinga na Serra, ela alternava momentos de lucidez e momentos em que perdia a memória. Às vezes perguntava quem eu era e com quem tinha me casado. Um dia, quando fui para uma visita, lamentou que eu não tivesse chegado mais cedo. “Ô, rapaz, seu pai acabou de sair”, disse ela. Depois dizia que ele iria dar uma passada por lá. “Não vai embora ainda não, porque se seu pai souber que você esteve aqui e não pegou você aqui vai ficar com um pesar danado”, pedia minha avó. Só que o meu pai, filho dela, tinha morri- do bem antes daquilo, coitada.
  • 9. livro 12/14/04 14:41 Page 9 Meus pais e irmãos Futebol e taioba: palavras proibidas Falando de outra cidade religiosa, meus pais, assim como eu sou, eram na- turais de Mariana, a 1ª capital de Minas Gerais. Começaram o namoro desde crian- cinhas mesmo, ainda na escola primária (1ª à 4ª série). Eles moravam na mesma rua, uma casa em frente à outra. Iam para a escola e voltavam juntos. Meu pai nunca teve outra namorada. Minha mãe nunca teve outro namorado. E se casaram lá mesmo, em Mariana. Nos transferimos para Belo Horizonte em 1926, quando eu contava um ano de idade. Fomos sete irmãos, mas somente quatro escaparam – antigamente, a taxa de mortalidade infantil era muito alta. A 1ª, Iolanda, que eu não conheci e era a mais velha – nasceu antes de Dilico – e dois outros, que nasceram depois de mim, já na capital: Justino Guadalupe e José Clemente. Ambos antes de minhas outras irmãs, Jaci (em 1931) e Lourdinha (1934). Naquele tempo tinham, em Minas, o costume de colocar o segundo nome da criança de acordo com o santo do dia. É por isso que tenho o Antero no nome, nasci em 3 de janeiro, dia desse santo, padroeiro dos bibliotecários (coincidên- cia: Luiz hoje é o responsável voluntário pela biblioteca da Associação Beneficente dos Militares das Forças Armadas – Abemifa, de onde é sócio- fundador). Mas era dia de Santa Genoveva, também. Teria esse segundo nome se fosse mulher. Por causa daque- la tradição, Dilico tem o Martinho no nome. Engraçado, ele e Lourdinha têm os olhos muito azuis – puxaram minha avó materna, Ana Zeferina, filha de por- tugueses – mas a cor dos olhos de minha irmã caçula sempre foi a mesma. A dos de Dilico, não. Foi mudando com o tempo. De pequeno, tinha o apelido de olho-de-gato: era um verde-água-do- mar, claro mesmo. Depois foi ficando escuro, como um veludo de mesa de sinuca. Aí foi clareando para um azul bem claro, quase cinza. Quando virou Luiz (E) e Dilico, com os pais, Seu Juquita adulto, ficou um azul forte, já em Belo e D. Eliza Horizonte.
  • 10. livro 12/14/04 14:41 Page 10 A canecada Poucos meses antes da mudança para a capital, eu ainda não andava e a minha mãe lavava as vasilhas, as louças, em uma bica d’água. Ela me punha senta- do, com algumas batatinhas fritas e alguns bagos de feijão cozido (que eu gostava muito) em um cuité ao meu alcance, para eu ir comendo (e me distraindo) enquanto ela trabalhava. Meu irmão, Dilico (Jandir), três anos mais velho que eu, ia pondo as vasilhas já lavadas para secar. E ele viu que os franguinhos que minha mãe criava estavam comendo a minha comida. Para espantá-los, ele pegou um caneco (uma lata de azeite aberta com uma asa colocada do lado) que ia colocar para secar e atirou na direção das aves. Mas ele acertou mesmo foi a minha testa, fazendo um grande rombo. Eu nunca tinha visto sangue. Tenho e cicatriz funda aqui até hoje, marcando a fronte. Daquela época, pouco antes de nos mudarmos para a Capital, eu me lembro perfeitamente dos acontecimentos. Meu pai (da então Guarda Civil) chegava do tra- balho e ia logo me carregando e meu irmão levava uma toalha e sabão para papai se banhar no ribeirão próximo de casa. Ele me deixava sentado (ainda não sabia andar, aliás, demorei a aprender) e meu irmão depois já trazia de volta a toalha usada e eu voltava pra dentro de casa nos braços do meu pai. Me lembro disso perfeitamente. Dois anos depois disso, já aqui em Belo Horizonte, nasceu meu irmão José Clemente, que faleceu, e dois anos depois, nasceu Justino, que infelizmente também veio a falecer. Lembro-me com perfeição também do sepultamento deles. O transporte dos corpos era feito por carruagens, não era em viatura automotora, não. Para crianças, eram pintadas de azul e branco, com dois cavalinhos brancos. Nós morávamos no alto do (bairro) Colégio Batista e eu lembro muito bem da chegada delas. O coice Ainda residindo nesse bairro, tinha um comerciante, que também tinha muitos quartinhos para alugar, chamado José Cirilo Guedes, apelida- do de Seu Juquinha Guedes. Tinha também um senhor chamado Bernar- Luiz e Dilico (D).
  • 11. livro 12/14/04 14:41 Page 11 do, que cuidava da caixa d’água ali do alto (do Colégio Batista). E, montado em uma bestinha, ele (Seu Juquinha) vinha a uma vendinha toda noite, tomar a sua pinguin- ha. E amarrava o animalzinho, muito mansinho, ali na porta. Certa noite, meu irmão Dilico vinha brincando. O pneu que ele vinha rodan- do soltou da mão e bateu na bestinha. Ela se assustou e deu um coice, acertando Dilico. Abriu uma brecha na cabeça dele (ô gente que machucava a cabeça, era, canecada, era coice que tomava...). E o pessoal naquela época, os vizinhos, cada um vinha com uma receita de cura. Uns com ervas como gervão ou assa-peixe, outros com bálsamo, para pôr na ferida, junto com sal. “Não, pra estancar o sangue, o bom pra isso é picumã”, sugeriu uma senho- ra (um método pouco científico, com menos assepsia ainda). Picumã eram aquelas teias pretas de aranha, que escureciam com a fumaça, porque ficavam em cima do fogão à lenha. E encheram aquela cratera na cabeça de Dilico com o tal do picumã. Bom, acabou resolvendo, porque hoje ele também só tem a cicatriz. Não teve pro- blemas maiores, não. Para esse, para minhas irmãs e para mim, meus pais deixaram exemplos de austeridade, de trabalho, de honestidade. Eram, no entanto, muito rigorosos, muito disciplinadores. Meu pai, ele fez carreira na Guarda Civil, chegou a ser fiscal de turma, depois de ser guarda e fiscal rondante, comissionado a um cargo elevado. Só não foi promovido mais porque não tinha vaga. Mas ganhava como um cargo superior a fis- cal de turma. Por exemplo, ele detestava futebol. Não deixava a gente jogar e nem assis- tir. A gente tinha que jogar escondido, aproveitando as horas em que ele estava tra- balhando. Já tínhamos mudado do alto do Colégio Batista para a rua Jundiaí, esquina de Pitangui, nas imediações de rua Formiga e rua Angico, onde hoje é bairro São Cristóvão. Mas nós íamos longe. Voltávamos (Dilico e eu) para fazer as compras lá no Seu Juquinha Guedes. As compras, muito pesadas, a gente punha num balaio e o colocava na cabeça. Ali estava bom. Mas até chegar em casa, o peso parece que ia aumentando, o pescoço ia doendo. A gente não podia parar e descer o balaio, porque ele caia. Como tinha muito pedregulho no chão e a gente andava descalço, tropeçava, porque não dava direito para olhar para baixo. Chegava em casa com os dedos arrebenta- dos, sangrando, suados, cansados. “Isso é o fôôtibol!”, censurava meu pai. “É o raio (com muita ênfase no “R”, mas não trocando-o por “G” ou “J”, com a mãe dele) do fôôtibol!”. Só rindo! E ele, apesar de não gostar de fôôtibol, fez parte da primeira Diretoria de um clube que existe até hoje, o Pitangui Esporte Clube. O campo dele ficava onde tinha sido uma pedreira, perto da rua Diamantina. E a gente não podia assistir nem aos jogos do time dele, nem aos do Vila Concórdia, outro time de várzea lá de perto. “Olha o pastel” Jogar e assistir não podia, mas vender as coisas para a torcida podia. Como a coisa em casa estava muito apertada, minha mãe fazia uns pastéis para a gente vender na várzea. Certo dia o time do nosso bairro, o Vila Concórdia, foi jogar com o
  • 12. livro 12/14/04 14:41 Page 12 Imperial, no Alto do Colégio Batista (para onde eu fui), enquanto outros times estavam jogando no campo do Concórdia (para onde foi Dilico). À certa altura, eu já tinha vendido todos os pastéis e tinha os bolsos cheios de moedas. Já podia ser só torcedor. Então, o Concórdia fez mais um gol bonito, eu comecei a pular, comecei a pular, e nem vi que as moedas caíram do bolso. Depois que terminou o jogo, eu vim para casa alegre – o meu time tinha vencido fora de casa – rodando o balaio, todo tranqüilo. Falei que tinha vendido tudo, mas, na hora de prestar contas, tinha só uma meia dúzia de moedas nos bolsos. Eu disse que não sabia, que estava ali. E tive que contar a verdade, que tinha ficado para assistir ao resto do jogo, tinha pulado para comemorar um gol e o dinheiro só podia ter caído assim. Mas na hora que acabei de vender eu tinha que ter vindo embora. Não podia nem assistir. Resultado: levei uma surra tremenda. Mas valeu a pena porque assisti a um pouquinho do futebol. Outro motivo para surra era falar palavrão, pois fomos criados com muita austeridade. Não tinha brincadeira, não. Tinha um casal de italianos, donos de uma horta muito grande. Cada dia a minha mãe mandava ir lá comprar verdura. Às vezes, comprava repolho, às vezes, couve. Mas naquele dia ela queria fazer outra verdura: taioba. Então, me mandou ir comprar, mas com a recomendação. “Luizinho, vá, mas não fala taioba, não, porque isso é palavrão”, aconselhou minha mãe. “Chega lá e fala que você quer um maço de taiá”. Bom, eu obedeci. Cheguei lá, fiz o pedido, mas os italianos não sabiam o que era taiá. Eu tive que apontar: é aquilo lá que eu quero. Os italianos riram. “Isso é taioba, menino”, disseram. O pescador São umas coisas que a gente lembra da infância. Outras de que me lembro muito bem: os casos que contava o meu tio Francisco Alves de Almeida, o Chico Capeta, o homem mais mentiroso do mundo. Ele era o irmão mais velho de minha mãe. Era um indivíduo que não parava. Era andarilho. Nasceu em Mariana (MG), mas residia na cidade de São Paulo. Ele viajava muito e se fixou lá ainda rapazinho. Mas, periodicamente, quando ficava em dificuldades financeiras, ele corria para a nossa casa, em Belo Horizonte. Mas quando arrumava uns serviços pra fazer, ele fazia umas economias e voltava para São Paulo. Ele era muito papudo. Quem o escutasse falar, muitas vezes poderia pensar que ele era um alto-engenheiro, a não ser pelas muitas coisas erradas que dispara- va. Ele era semi-analfabeto, teve poucas oportunidades de estudar. Falava que nós tínhamos que conhecer a capital paulista de qualquer jeito. O qualquer jeito era enfa- tizado pelo fato de Belo Horizonte ser, na época, uma cidade-menina mesmo (na década de 30, a capital mineira contava apenas com cerca de 40 anos de existência – em 2005, a capital mineira completa seus 108 anos, com cerca de dois milhões e 200 mil habitantes). Chico Capeta vivia falando o nome de um dos maiores empresários paulistas da época. Ele falava que lá se entrava em uma rua, estava lá escrito Matarazzo S.A. Tomava uma avenida e lia Matarazzo S.A. Chegava numa praça e lá estava Matarazzo S.A. “E vocês sabem o que quer dizer S.A.?”, nos perguntava. A gente não sabia.
  • 13. livro 12/14/04 14:41 Page 13 Nem ele. “S.A. quer dizer sociedade anômica”, completava meu tio. Alguns aviões em São Paulo, se acordo com Chico Capeta, tinham asas enormes. E comparava: elas iam como se fosse do bairro da Concórdia (Zona Leste de BH) a Nova Lima (cidade ao Sul da Região Metropolitana). Nem menino conseguia acreditar. Na hora do aperto, ele sempre corria para Belo Horizonte – a roça, como ele falava, carregando na pronúncia do “R” – e para a minha casa. Mas, depois que o negócio desmoronou lá em casa, com a separação do meu pai e depois com a doença da minha mãe, ele nunca mais apareceu. Tem muita gente ingrata mesmo. Dá raiva. Brigas fraternais E por falar em raiva, eu e Dilico brigávamos muito quando pequenos. O pau quebrava mesmo. Hoje, não, nos damos muito, muito bem. Mas naquele tempo o danado tinha a mania de me passar a perna. Naquelas ocasiões, minha mãe puxava a orelha dele, chamava-o de Alfredo – irmão dela, meu tio, com fama ter adquirido muitos imóveis em Mariana usando esperteza pura. A gente ia longe pegar, com uma peneira em lagoas, piabas, lambarizinhos. Eu é que ia nos lugares mais fundos, porque ele tinha um medo danado de água. Mas na hora de dividir os peixes nos dois aquários, ele sempre separava os maiores para si. Um dia, então, eu esperei ele ir para a escola eu peguei um canivetinho dele – que tinha forma de peixe – e arranquei os olhos dos peixes. Quando ele chegou, encontrou os peixes todos boiando. “Ai, mamãe, vem ver o que o Luiz fez com os meus peixes. Minha mãe veio ver. “Foi tu, mardito dos infernos?”, perguntou-me ela. “Por isso que eu vi os bichinhos esbraforidos, batendo no vidro”. Puxa, que couro eu levei! Surra de ripa. Quando ela cansou da madeira, pegou uns fios encapados com tecidos. Pegou uns retalhos daqueles, dobrou em dois e bateu nas minhas pernas. Nem pude ir à escola naquele dia. Sinto dor até hoje. De outra vez, mandei nele uma tesoura aberta. Ela foi rodando e pimba! Uma ponta ficou fincada nas costelas dele. Parecia até vingança pela canecada que ele me deu. Mas não foi, não.
  • 14. livro 12/14/04 14:41 Page 14 Os Radicchi O jeitão italiano de minha 2ª família Os avós de minha esposa eram italianos de Cocenza, na Calábria (Sul da Itália). No início do século passado, vieram trabalhar na lavoura brasileira (veja anexo 1). Mas, como havia crise de maquinistas na época para maria-fumaça, puseram Antônio Radicchi como maquinista, profissão que ele exercia na Velha Bota. A primeira viagem que ele fez era BH-Ponte Nova. Mas, na passagem para Mariana, o trem passava na beirada do abismo, uma viagem muito perigosa. Antônio ficou apa- vorado. Chegando ao destino, a calabrês afirmou categoricamente que não voltaria por aqueles trilhos nem guiando a máquina nem como passageiro. O filho dele, o meu sogro, Seu Amadeu, eu conheci muito pouco, só de cumprimentar. Quando Maria e eu oficializamos o namoro, o primeiro encontro – na missa das 9h na igrejinha de Nª Sª das Graças, na Concórdia – ele faleceu. Ela e eu morávamos no mesmo bairro, íamos juntos no ônibus – ela para o trabalho num escritório, eu para o quartel. Nos encontramos naquela manhã de domingo e eu fiquei de ir à casa dela à noite. Mas quando Maria chegou em casa, o pai tinha morrido, de infarto, dormindo – o mesmo veio a acontecer com ela 48 anos depois. Gustavo (de mãos dadas com a mãe), Luiz, Gino, Gerson (fundo) e Girselle (de braço dado com a avó, D. Esther), com parte da família Radicchi.
  • 15. livro 12/14/04 14:41 Page 15 Era um homem muito, muito trabalhador. Só morreu em casa porque era domingo. Se não fosse, teria morrido no trabalho, na Serraria Souza Pinto. Ele era um pai bravo, tudo indica que simpa- tizou comigo. Fiquei sabendo por vizinhos que ele faria muito gosto no namoro. Até estimulava a filha. “O rapaz é sargento da Aeronáutica, Maria”, disse Seu Amadeu. “Fiquei sabendo que ele quer um compromisso sério”. Lembro-me de alguns casos engraçados que Maria contava do pai dela. Na tradicional Missa do Galo, no Natal, a família Radicchi ia à igreja, menos ele, que ficava esperando em casa. Certa vez, a ceia já estava preparada à moda italiana, com destaque para o salame Perrela e para o vinho tinto Barbera. Mas quando a esposa e os filhos voltaram da igreja, acharam só um toquinho, um Maria. rabicó de mortadela amarrado com barbante, e alguns dedos de vinho no garrafão. O resto da família reclamou que ele tinha bebido quase tudo e que o salame tinha ido todo embora. “Vocês demoraram muito”, argumentou Seu Amadeu. “Ficaram comen- do galo lá na missa, eu fiquei comendo meu salame aqui”. O cruzeirense dos cruzeirenses Ele era um palestrino (torcedor do Palestra Itália de Minas, hoje Cruzeiro) doente. Quando o time batia, ele dava dinheiro para os filhos irem ao cinema e fica- va mais permissivo. “Hoje pode chegar um pouco mais tarde”, avisava, com cama- radagem. Por outro lado, quando o Palestra perdia, ele segurava os bolsos. “Como o Palestra apanhou, ninguém sai de casa hoje”. Então, os filhos ficaram palestrinos – e depois, cruzeirenses – também doentes. “Cruzeiro é bom até no bolso”, brincava, referindo-se à então moeda do país. Teve uma vez que o time de origem italiana foi jogar contra o Vila Nova, em Nova Lima (MG). Seu Amadeu foi ao Alçapão do Bonfim, com a bengala que sempre usava, não por necessidade, mas, sim, por elegância. E a bengala sumiu. Anos depois, um amigo dele foi almoçar na casa de Seu Amadeu e, lembrando de muitos casos, comentou o dia em que o palestrino quebrou a bengala na torcida vilanovense. “Ah, Amadeu, então é por isso que a bengala sumiu, né?”, perguntou D. Esther, mu- lher dele. Ela dava falta da bengala e ele falava que não sabia onde o objeto estava, que devia ter esquecido em algum lugar. Assim, era muito brincalhão, o Seu Amadeu. Às vezes as irmãs dele estavam cozinhando e ele chegava e desamarrava o laço do avental delas sem que vissem. O pano caía e elas só viam minutos depois, saindo desesperadas para procurar, enquanto ele gargalhava, satisfeito. Todas as três filhas dele (Maria, Célia e Ivone) eram muito bonitas. Assim, sempre chegava um gaiato conhecido chamando Seu Amadeu de sogro. “É, eu tenho
  • 16. livro 12/14/04 14:41 Page 16 mesmo aqui uma panela boa pra cozinhar macaco”, respondia ele, conciliando muito bem uma ponta de ciúme com bom humor. Isso ele também fazia para justificar o porquê de não deixar as filhas dormirem na casa de primos, quando iam a algum baile. D. Esther insistia, dizia que era a casa de um dos irmãos dele ou dela, que elas iam dormir com as primas, mas o homem ficava irredutível. “Vão dormir com as primas, mas lá não tem só primas, não, tem primos também”, justificava. “Não gosto de ruça-ruça nem com primo nem com padre”. Uma vez umas senhoras foram pedir para as meninas dele serem Filhas de Maria, na igreja. “Não, elas já são filhas de Esther, obrigado”, despachou. O filho de italianos era diabético e hipertenso, mas, cabeça-dura, recusava- se a fazer regimes. Chegava a comer meia dúzia de ovos de uma vez. “Não mandei ninguém colocar açúcar no meu sangue”, dava de ombros, quando alguém o cen- Maria. surava. “Quem pôs que tire”. E quando uma das filhas começava a cantar, acompanhando uma canção no rádio, ele mostra- va sua insatisfação. “Ô coitada, ela está querendo cantar e o rádio está atrapalhan- do”, dizia. “Espera aí que eu desligo”. Já D.Esther era menos brincalhona. Um caso engraçado é o dos abacates. Ela era louca com fru- tas. As favoritas, ela comia várias de cada vez. E numa noite ela mandou nada menos que três aba- cates compridos inteiros. Dois de meus filhos, Gerson e Gino, resolveram brincar com ela. Começaram a falar, fingindo que falavam sério, que comer muita comida pesada à noite pode fazer muito mal à saúde e que tinha gente que até perdia a vida com isso. E D.Esther, que dormia por volta de 21h30 – provavelmente lembrando que abacate tem muita gordura – ficou com os olhos abertos até, 23h, 23h30, meia-noite... Gustavo.
  • 17. livro 12/14/04 14:41 Page 17 Infância Brincadeiras de gente simples Nós éramos muito pobres e tínhamos que fazer uso de nossa imaginação para fazermos nossos próprios brinquedos, as próprias recreações. Uma delas era um pneu de caminhão. Um sentava dentro dele e se encolhia todo ali e o outro ia rodando o pneu. Nós morávamos numa rua em declive e tinha um platô e nós ficáva- mos rodando (literalmente) por ali. Um dia, depois que eu já havia rodado Dilico bastante, chegou a minha vez. Mas Dilico perdeu o controle do pneu, que desceu à toda a rua Jundiaí, atravessou a rua Pitangui. E eu, sem parar, gritando para ele parar, ele que já tinha ficado para trás. O pneu já estava quicando e voando. Tinha um terreno baldio com um grande declive, onde o pessoal jogava lixo, louças e garrafas quebradas, tudo ali. E a Prefeitura estava fazendo um aterramento. Foi a minha sorte. O pneu bateu ali e amorteceu (hoje daria até manchete para campanha política para reeleição municipal: “Obra da Prefeitura salva menino”). Nas férias escolares, a diversão era soltar papagaio e correr atrás de um que arrebentasse a linha, como nas festas juninas a gente corria atrás de balões. E nisso a gente ia longe. Muitas vezes fomos da Concórdia até (o bairro de) Carlos Prates, atravessando a Pedreira Prado Lopes e o Santo André. E muitas vezes, por isso, a gente saía de dia e voltava já de noite. E aí era um couro mesmo, porque a permis- são para brincar era ali só nas imediações da casa. Os pais mandavam nos chamar, para nos recolher, e não sabiam da gente, ninguém dava notícia. E a gente dormia com o lombo quente mesmo. Já o nosso lazer domingueiro consistia em fazer pescarias e pequenas caçadas pela região do Ribeirão do Onça e pelos riachos nas imediações de Belo Horizonte, pelo bairro São Gabriel – que se chamava Gorduras. Para isso, tínhamos que atravessar um pasto enorme (de uma fazenda), que hoje é o belo bairro da Cidade Nova (o pasto era dos Silveira, bisavós da moça que viria a ser minha nora, Consuelo, esposa de Gino, meu filho). Passávamos o dia pescando e caçando pás- saros de pequeno porte e coelhos, quando eu era menino.
  • 18. livro 12/14/04 14:41 Page 18 Infância roubada Me virando aos 14 anos Tive uma infância muito dura, uma adolescência pior ainda, que se acentuou mais com o falecimento de minha mãe, em 1939, quando eu contava apenas 14 anos de idade. Foi muito difícil, porque meu pai se amasiou com uma mulher que não me aceitou. Minhas duas irmãs menores, sim, mas eu não. Aí tive que começar a enfrentar a vida sozinho. Por não aceitar que a mulher do meu pai espancasse as minhas duas irmãs pequenas, com ela fazia quase todos os dias, eu saí de casa por duas vezes. Na primeira, eu fui morar na Pedreira Prado Lopes. Aluguei um cubículo, um comodo- zinho pra dormir feito de tábua de compensado e papelão, porque eu não tinha co- ragem de dormir na rua, na via pública, debaixo de marquise ou em banco de jardim. Então, o dinheiro que eu ganhava capinando quintal, encerando o piso de casas – naquele tempo não tinha enceradeira elétrica, era com escovão – eu pagava ali pra dormir. Mas daquela primeira vez meu pai me localizou e me levou de volta pra casa. Da segunda vez, também foi porque a mu- lher estava batendo nas meninas. Então fui intervir, mas ela passou a mão em um por- rete e disse que faria o mesmo comigo. “Não, comigo a senhora não faz isso, não”, eu disse. E tentei sair para a rua, mas ela foi atrás de mim, no meu encalço. Eu falei com ela para parar (de vir atrás) porque eu não iria aceitar ser espancado. Ela não me escutou. Bom, tinha um monte de tijolos amontoados. Eu então peguei um. “Se a senhora der mais um passo, eu vou lhe ati- rar esse tijolo”, adverti. Aí ela escutou. “Joga, se você é homem”, desafiou a madrasta, dando as costas como alvo. E eu joguei. Atingi um dos rins. Ela desmontou. Tive que sair sem saber para onde ir. Mas como eu trabalhava para o advogado Dr. Hugo Pinheiro Soares, eu pensei “vou pra lá passar a noite” – eu tinha a chave, eu que abria e fechava o escritório. Mas, por coincidência, meu patrão tinha ido ao cinema – não me lembro se foi o Cine Glória, mais chique e próximo à Praça Sete, ou se foi ao Avenida, mais à frente um pouquinho, também na Afonso Pena, para Luiz (E) e oamigo Hernani.
  • 19. livro 12/14/04 14:41 Page 19 quem vem da Rodoviária. Tinha ido com a esposa dele, D. Neide Martins Soares, e também com o sócio dele, Dr. Vicente de Paula Santos. Quando terminou a projeção, eles resolveram passar no escritório para pegar uns documentos. E quando abriram a porta, ficaram muito surpresos ao me verem dormindo. Eu estava de costas para a porta, no sofá, fingindo que estava dormindo, porque tinha escutado as vozes chegando. Fizeram alguns segundos de silêncio, que foram quebrados pelo Dr. Vicente. “Que sujeitinho ordinário, hein?”, disse o advoga- do sócio de meu chefe. Mas este o repreendeu imediatamente. “Não, espera lá, não pense assim, não, eu conheço o Luiz melhor que você”, defendeu-me Dr. Hugo. “Amanhã eu converso com ele para saber o porquê de ele dormir aqui”. No dia seguinte, Dr. Hugo quis saber o motivo de eu ter passado a noite lá. Eu contei o caso da tijolada certeira. “Então está bem, você não tem mais ambiente para ficar lá”, disse meu patrão. “Eu vou lá na Guarda Civil pedir ao seu pai para que ele permita, você mora lá em casa”. Eles eram um casal sem filhos e me acolheram e eu passei três anos muito bem abrigado, um grande amparo. Devo isso a eles, essa acolhida tão generosa, tão humana. Respeito E por falar em humanidade, hoje, quando eu contemplo essa sociedade tão agressiva, essa insegurança em que nós vivemos, pessoas sendo assaltadas em plena luz do dia, me assombro. Hoje carros são roubados, mesmo tendo sofisticados sistemas de segurança. Naquele tempo (década de 40), não. Os automóveis não ti- nham nem chave nem fechadura, era apenas a maçaneta. D. Hugo tinha um modelo de Chevrolet apelidado pelo povo de guarda-louças, porque era quadradinho. O pessoal respeitava tanto que o carro ficava aberto, estacionado em plena avenida Afonso Pena, embaixo das árvores ficus que iam da Praça Sete até a Tiradentes. Dr. Hugo ia ao Fórum pela manhã e a gente tinha um combinado: às 11h, se ele não tivesse passado no escritório, eu já podia descer, que a gente ia pra casa almoçar. E, quando eu chegava primeiro ao carro, encontrava-o aberto, muitas vezes com livros de direito dentro, guarda-chuva, compras. Ficava tudo ali, ninguém mexia. Hoje não se pode deixar. Levam até o carro. De maneira que piorou muito essa questão de segurança em Belo Horizonte. Naquele tempo, ninguém tinha coragem sequer de passar o dedo, escrevendo em um carro empoeirado. As pessoas tinham medo não era de polícia, não. Era de o dono chegar e chamar a atenção. Naqueles três anos que eu morei com aquela caridosa família, uma das boas coisas era que eu tinha condição de assistir ao futebol. E não mais em campos de várzea, mas em gramados profissionais. Por sorte, Dr. Hugo – ao contrário de meu pai – gostava do esporte, torcia para o América (que tinha a camisa vermelha e não preta e verde como hoje) e não perdia jogos desse time. Mas tinha um probleminha: eu era (e sou) atleticano. Quando era América e Atlético (no campo do América, onde hoje é o hipermercado Extra, em Santa Efigênia) e este meu time fazia um gol, eu me esquecia de que ele era americano e estávamos na arquibancada da torcida verme- lha e vibrava muito. Quando eu assustava, estava o Dr. Hugo me olhando com uns olho brancos, censurando-me.
  • 20. livro 12/14/04 14:41 Page 20 Mas antes de trabalhar com Dr. Hugo, na minha infância, fiz vários trabalhos, como entrega de marmitas a operários, auxiliar de açougueiro, entregador de ternos de uma tinturaria. Eu fiquei conhecendo o Sr. Oscar Nicolai, dono de uma livraria na avenida Afonso Pena. Ele estava pretendendo comprar uma casa que eu conhecia, que ficava perto de onde eu morava, e me pediu algumas informações sobre a cons- trução. E então ele me perguntou se eu não gostaria de estudar. “Gostaria, mas não tenho condições, não tenho nem emprego”, respondi. Foi então que ele me apresen- tou ao Dr. Hugo, que precisava de um ajudante. Mas nos meus empregos civis, como o dinheiro era muito curto, não tinha muita condição de namorar. Eu também não era um freqüentador tão assíduo da Zona Boêmia. Naquela década de 40, essa região era muito tumultuada por dois per- sonagens: uma mulher, chamada Maria-Tomba-Homem, e um travesti, o Cintura- Fina. Eram criadores de caso e muitas vezes eram necessárias duas composições de rádio-patrulha para subjugá-los. Os dois eram bastante violentos, bastante difíceis de serem dominados.
  • 21. livro 12/14/04 14:41 Page 21 Militarismo Amor febril pelo Brasil Depois de trabalhar com Dr. Hugo, eu fazia as entregas menores, de bicicle- ta, trabalhando para um armazém-atacadista – meu último emprego civil – chamado Soares e Cia. Ltda. Eu fui o primeiro e depois entraram dois outros ciclistas, para aju- dar. Depois disso, me alistei na Força Aérea, fui incorporado na então Base Aérea de Belo Horizonte (hoje CIAAR), onde fiz carreira. Mas também sou muito identificado com o Exército Brasileiro, onde fiz três cursos, na área da Infantaria. A minha incor- poração foi no dia 1º de julho de 1944, dia em que a unidade estava comemorando seu 8º aniversário. Eu já tinha me alistado no Exército no ano anterior. Antes da minha convocação para o Exército foi aberto o voluntariado para a Base Aérea. Naquela época, as instalações eram bastante precárias, consistindo apenas nos hangares, com alojamentos em suas laterais para os soldados antigos, sargen- tos, e também enfermaria, refeitórios. Mas para nós, recrutas daquele ano, foi cedi- do um hangar destinado ao Aeroclube de Belo Horizonte – que funcionava lá na Pampulha e tinha sido transferido para o Progresso. Como era inverno, nós sofremos bastante com o frio em um lugar muito amplo, com o telhado muito elevado e sem forro. Mas isso contrastava com as disputas acaloradas nos esportes que praticava nos horários de educação física, na Base (Aérea). Eram dois esportes que eu pra-ticava mais: vôlei e futebol. Eu era levantador e ponta- direita, respectivamente. E fomos pioneiros em muita coisa. Aquele saque que um jogador aqui do Brasil dava, mandando a bola lá pra cima (o Jornada nas Estrelas, do Bernard), um colega – o 1º sar- gento - mecânico - de - vôo Nilo Giorni – já fazia na década de 50. Ninguém pegava aquilo, vindo daquela altura: espirrava, ia pra fora. E olha que naquele tempo se podia amortecer a bola com as mãos – eu usava isso, era uma recepção extraordinária, pra rece- ber cortada era comigo. E no futebol, muitos anos Luiz com uniforme de gala da FAB.
  • 22. livro 12/14/04 14:41 Page 22 depois, o Yustrick apareceu com aquele negócio da cavadinha (avançar pela ponta direita e depois em direção à meta). Mas muito antes eu já fazia isso, por instinto. É tanto que eu poderia ter sido o maior goleador, mas eu achava que a minha função era correr e dar condição aos ata- cantes de fa-zerem os gols. Como eu corria muito e nem os compa- nheiros de ataque nem os adver- sários conseguiam me acompa- nhar, eu ficava esperando. O Yustrick, portanto, apenas oficiali- zou a cavadinha, mas eu já fazia aquilo há muito tempo. Luiz (D) e companheiros em acampamento militar em BH. As surpresas do Brigadeiro Ainda sobre os tempos de Base Aérea da Pampulha, presenciei episódios memoráveis. Alguns dos mais marcantes foram as visitas-surpresa do brigadeiro Eduardo Gomes à minha unidade, em Belo Horizonte. Ele chegava sozinho com o avião C-47, sem co-piloto, sem mecânico. E era um Deus-nos-acuda, porque ele dispensava formalidades, dispensava tudo, chegava quase na hora do almoço. O comandante o convidava para ir ao refeitório dos oficiais, mas o brigadeiro sempre recusava. E entrava na fila dos solda- dos, pegava a bandeja e ia comer junto com eles, acompanhado pelo comandante e por vários oficiais. Não admitia nem ser servido à mesa por um taifeiro. Queria ver como estava o rancho dos homens e normalmente entrava na fila de novo, repetia a refeição, bom-garfo que era. Certa vez, elogiou a comida, mas fez uma crítica. “Só lamento que aqui, nesta unidade, em Minas Gerais, terra da banana e do leite, não tenha nenhum dos dois na mesa dos soldados”. Depois disso, a gente até cansava de tomar leite e comer banana na hora das refeições. Devia ser medo do homem voltar e ter que fazer a mesma crítica. Já a minha atividade como sargento de infantaria era muito dura, porque eu era monitor: dava instrução para duas turmas de recrutas, dois cursos de cabo e um curso de sargento. Isso anualmente e sem prejuízo da escala de serviço interna e a externa (patrulha mista). Lembro-me que em certo ano, a Aeronáutica incorporou um grande número de soldados, não só para a própria Base Aérea, mas como também para Lagoa Santa, para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, de Barbacena, e o QG da 3ª Zona Aérea. Vieram alguns sargentos dessas unidades e o comandante ainda solicitou ao 12RI (12º Regimento de Infantaria) que cedesse alguns sargentos também para nos ajudar na instrução. E numa daquelas noites – era uma sexta-feira – em um alojamento superlota-
  • 23. livro 12/14/04 14:41 Page 23 do, os soldados simplesmente decidiram não dormir: resolveram fazer uma baderna generalizada. Eu fui solicitado várias vezes para comparecer lá e, como era o meu setor, eu não quis pedir a intervenção do oficial de dia, porque depois que ele fosse lá, eles não fariam mais coisa alguma: o problema era comigo. Queriam desmoralizar o sargento. Como eles só interrompiam por alguns instantes, mas não me atendiam, con- tinuando a bagunça, e como no dia seguinte – sábado – seria dia de limpeza geral no quartel, eu resolvi comunicar minha decisão. “Já que vocês não querem dormir, vamos antecipar a faxina”, disse eu. Então, forneci material de limpeza e pus todo mundo para trabalhar do lado de fora do alojamento. A Base amanheceu varridinha. E, logo depois, todos os baderneiros foram punidos pelo então Comandante, Tenente-Coronel Sindímio Teixeira Pereira. Exército e copa Os três cursos que tive oportunidade de fazer no Exército Brasileiro, todos eles foram com muita dificuldade, porque eu tinha pouco tempo para estudar. Mas consegui fazer, com êxito, todos. O último deles, em 1950, foi feito no CPOR de Belo Horizonte, ainda lá no Barro Preto (antes de se mudar para a Pampulha), onde foram as instalações do 3º Batalhão, que tinha sido desativado. Eu tinha que fazer o curso, estava em vésperas de provas finais, quando houve a primeira copa do mundo no Brasil. Foi quando teve o único jogo realizado em Belo Horizonte: Inglaterra e Estados Unidos, em pleno domingo. Para a surpresa de todos (em linguagem futebolística se diz zebra), os Estados Unidos venceram o Luiz (o 4º, da esquerda para a direita) entre amigos da Abemifa.
  • 24. livro 12/14/04 14:41 Page 24 país-inventor do futebol por 1 a 0. Ah, e eu não pude comparecer àquele jogo! Eu estava com deficiência em algumas matérias e aproveitei aquele domingo para estu- dar. Foi assim que eu consegui fazer o Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos – que me deu o direito de passar à inatividade como oficial, como 2º Tenente. Mas fui de sorte. Um militar normalmente é transferido com muito freqüência. Fui transferido apenas duas vezes, ambas para a cidade do Rio de Janeiro. Eu já era noivo e tinha sido designado para prestar serviço na criação do Centro de Instrução Militar, O CIM dos Afonsos, que estava em fase de organização. Da primeira vez que fui transferido eu era recém-casado. Minha esposa engravidou logo após o casamento e apesar de o Rio de Janeiro dispor de muitos hospitais (do Galeão, Central, dos Afonsos e o Santa Cruz), eu preferi que ela viesse para Belo Horizonte quando estivesse aproximando dos dias do parto, para ser assis- tida no Hospital São Francisco de Assis, que ficava próximo da casa da mãe dela e dos irmãos. Achei mais prudente. Mas infelizmente o primeiro filho não sobreviveu. Foi um parto muito difícil, de fórceps, e ele não resistiu. Naquele período em que ela veio para Beagá, eu continuei residindo no Rio em uma pensão de um casal de portugueses, que ficava em Marechal Hermes, próxi- ma ao quartel e, por isso, hospedava vários militares. Era um pessoal sem filhos, já idoso, que tratava os hóspedes como filhos. Eu me lembro que aos domingos, quan- do a gente ia ao Maracanã assistir a uma partida, a portuguesa D. Glória preparava um tanto de sanduíches para nós. “Para vocês não ficarem comendo por- caria em campo de futebol”, justificava ela. Tenho esta grata lembrança. Anos depois, com a desativação desse centro, eu fui transferido de volta para Belo Horizonte. Fui o único. Uns colegas meus foram para São José dos Campos, outros para a Escola da Aeronáutica, outros para a Escola Preparatória de Cadetes, de Barbacena. Antes de eu ir para o Rio pela primeira vez, eu residi na Pampulha, no bairro (então Vila) São Francisco. Meu pai, minha avó Jovita, minhas duas irmãs (uma seis anos mais nova e outra, nove) e eu moráva- mos em uma casa com terreno grande. Meu pai cuidava de várias árvores frutíferas. De lá saí para me casar. Luiz no Centro de BH.
  • 25. livro 12/14/04 14:41 Page 25 O casamento A pessoa certa na hora certa O meu namoro, noivado e casamento foram em um curto período, dois anos. No noivado, fui pedir a mão de Maria à D. Esther. Já estava mais ou menos previsto a irmandade da minha futura sogra ir lá. Eles estavam arrumando as coisas lá. Eu ainda estava pensando como ia começar a falar, quando D. Esther chegou, ficou parada e me encorajou, dizendo que já tinha feito tudo. Como quem dissesse “sou toda ouvidos”. Ainda solteiro, eu já tinha ido prestar serviços no Rio. Mas, uma vez que eu estava lá, acabei sendo transferido em definitivo, como todos os que lá estavam na mesma situação. Eu cheguei e falei: “Olha, eu fui por quatro meses para prestar Luiz e Maria recém-casados.
  • 26. livro 12/14/04 14:41 Page 26 serviço, mas agora estou é transferido mesmo”. Então antecipamos o casamento, que estava previsto para o ano seguinte (1954). O casamento foi no dia 20 de janeiro de 1953 (aniversário do Ministério da Aeronáutica e dia de São Sebastião, Padroeiro do Rio de Janeiro, onde estávamos indo morar em pouco mais de uma semana), na Igreja de Nossa Senhora das Graças, na Concórdia, em Belo Horizonte. Meus padrinhos de casamento foram o Dr. Hugo Pinheiro Soares, meu antigo chefe, e sua esposa, Dona Neide Martins Soares. Eu já estava com eles e com o padre lá na frente. Ela ficou me orientando, porque eu não sabia direito o que tinha que fazer – hoje é diferente, se fazem uns preparativos, tem um ensaio na igreja, mas naquele tempo, não. Aí tocou a Marcha Nupcial, a noiva veio entrando com o ex-patrão dela, o Seu Láu (Ladislaw Sales). À proporção que a noiva foi se aproximando, eu fiquei sem saber o que fazer. “E agora, Dona Neide?”, perguntei eu. Ela respondeu com rapidez. “Quando ela se aproximar mais um pouco ali, você avança, cumprimenta quem está trazendo a noiva, a recebe com um beijo na testa ou na face”, disse minha madrinha de casamento. Fotos Depois do casamento, fomos para a casa da mãe da noiva, que ficava a pou- cas quadras da igreja. A gente já tinha tirado algumas fotos normais com um fotó- grafo. Mas Maria fez questão que a gente fosse tirar uma foto melhor. Fomos então ao Foto Enzo, que era um dos melhores fotó- grafos daquela época, em Belo Horizonte. Mas, no caminho para o foto, furou um pneu do carro e nós tivemos que chamar um táxi para conseguir chegar ao Enzo. Ficava ali na onde hoje é uma (sapataria) Elmo, na esquina de São Paulo, Afonso Pena e Tupinambás. A entrada ficava na Afonso Pena. Era um sobrado, onde tiramos a foto oficial do casamento, que está na parede do meu quarto. O táxi ficou nos esperan- do – em 1953 não tinha taxímetro, a gente com- binava a corrida com o motorista. Então, volta- mos nele para a casa de minha sogra, onde já estavam alguns convidados, entre vizinhos e amigos, para uma recepçãozinha. Depois disso, saímos, fomos para o Hotel Macedo (que, antes, já tinha se chamado Gontijo, na rua Rio de Janeiro – onde ficava a entrada – esquina com rua dos Tupinambás). Ficamos lá por uns oito dias – período de licença a que eu tinha direito pela Aeronáutica, por me casar, o que era chamado gala – e, Maria. então, seguimos para o Rio, de trem maria-
  • 27. livro 12/14/04 14:41 Page 27 fumaça, já que eu também tinha direito às passagens, por estar sendo transferido. Mas, pela janela, algo caiu em um dos olhos de Maria e o ficou irritando até o Rio. Lá, fomos logo ao médico para ver aquilo: era um pequeno pedaço de pedra de carvão alojado na superfície do globo ocular dela. Fomos dividir uma residência – no Rio de Janeiro, no bairro Bento Ribeiro – com a família de um dos primos de Maria, Walter Radicchi. Era uma grande casa, com quatro quartos. Eu já o conhecia há tempos: fomos incorporados juntos, como recrutas, fizemos curso de Cabo também juntos, no 10º RI (Regimento de Infantaria). No ano seguinte, fui fazer um curso de Sargento no Exército e ele estava se preparando para ir para Guara- tinguetá, fazer esse curso por lá. Bom, meu irmão, Dilico, marceneiro de mão cheia, é que estava fazendo nossos móveis todos. Falamos com ele Maria, logo após o casamento. que, como dividiríamos uma casa grande com Walter e a família dele, só iríamos precisar de móveis de quarto e que o resto ele podia ir fazendo devagar. Então despachamos a cama de casal e um guarda-roupa.
  • 28. livro 12/14/04 14:41 Page 28 Meus filhos Gerson, Gino e Girselle. “Nunca me deram trabalho” Um episódio nada fácil Maria ficou grávida ainda em 1953. Quando estava perto da criança nascer, no final de dezembro, achamos melhor ela vir para Belo Horizonte, para perto dos cuidados da mãe dela. Eu permaneci no Rio, não podia deixar minha unidade. Nesse período, fiquei residindo na pensão do casal de portugueses, que já citei. Às vezes eu e mais três amigos militares estávamos de folga, a gente ficava por lá tomando uma cervejinha. E em um daqueles dias, na passagem do ano, à noite, pouco antes de dormir, alguém disse: “Eh, nasceu!”. Tinha chegado um telegra- ma de Belo Horizonte. Fui todo alegre para receber a correspondência, que abri lá ainda no portão da pensão. Mas, em vez de chegar alegre de volta onde meus cole- gas estavam, cheguei com o rosto transtornado. “E aí?”, um deles perguntou. “Infelizmente houve um acidente de parto, que foi muito difícil, por fórceps”, respondi. A criança não tinha escapado, teve poucos minutos de vida depois do parto. Foi uma decepção tremenda, porque a gente fica naquela expectativa, primeiro filho. Foi uma experiência bem dura. Lacônico, o texto do telegrama, enviado por meu cunhado Oswaldo, dizia: “Criança nasceu. Não sobreviveu. Maria passando bem”.
  • 29. livro 12/14/04 14:41 Page 29 Isso era num domingo. No dia seguinte, eu tinha que ir para o expediente no quartel. Mas pedi a um amigo, o Faria, para comunicar ao meu Comandante de Companhia de Agrupamento, Capitão Júlio, que eu ia ver a esposa em Minas. Mas ele estava de férias. Estava respondendo por ele o Capitão Ney Noronha, um cama- rada bem duro. Faria contou a história do telegrama, mas o capitão não concordou com a minha ida. É que militar não pode se ausentar da guarnição sem ser autorizado. Só que eu já tinha vindo para Belo Horizonte, onde fiquei um ou dois dias. Dona Esther, minha sogra, era muito corajosa para discutir, por exemplo, mas para emergências assim, não. No hospital, quem ficou com minha esposa foi Dona Geralda, uma vizinha. Quando eu cheguei, ela, que assistiu a tudo, me contou que o Gustavo. parto foi muito difícil mesmo e que era para eu agrade- cer a Deus porque era para eu ter perdido a esposa também. “Não perdeu porque Maria é uma mulher muito forte”, afirmou Dona Geralda. “Desculpa, Luiz, desculpa”, me pediu Maria, ao me ver, coitada! “Minha filha, não foi sua culpa!”, respondi. Quando voltei ao Rio, com o telegrama, o oficial não queria saber. “Negativo”, disse o Capitão Noronha. “Você não podia fazer mais nada lá”. E queria, de qualquer jeito, me dar uma punição. “Eu sei que errei, me ausentei sem permissão, mas foi por um motivo de força maior, que o senhor não está aceitando”, eu disse. “O senhor, Capitão, o que faria na minha situação?” Então ele não conseguiu responder. “Tá bom, Sargento, tá bom”, acabou concordando. Outra mulher que tivesse passado por isso, talvez, nunca mais ia querer ter filho, ou adotar, ou então já ia querer cesariana para o próximo parto. Mas ela, não. Fez questão logo de ficar grávida novamente. Nossa filha nasceu menos de dois anos depois. Uma gracinha de menina Girselle nasceu no dia 6 de outubro de 1955 e ficou sendo nossa primogêni- ta. O parto foi normal, foi tudo muito bem e eu me senti muito bem recompensado pela decepção da não-sobrevivência de meu primeiro filho. Quando a enfermeira a levou para o quarto, saiu do bloco cirúrgico e a deixou arrumadinha na cama, aí eu tive autorização para entrar. Ela estava com o cabelinho parecendo uma folhinha de coqueiro, molhadinho para a frente, tinham pingado um remédio vermelho nos olhos dela, que estava escorrendo nos cantinhos. E ela me acompanhava com os olhinhos. Eu me lembro que minhas duas irmãs nasceram com os olhos colados – aquilo leva- va muitos dias, talvez até uma semana, para descolar. Mas Girselle, recém-nascida, estava me acompanhando com os olhinhos. “Que coisa, já nasce esperta, mesmo”, admirei. Acho que era ela pensando “quem será esse bicho aí?” Era “Giselle” ou “Gisselle” (sem o “R”). Maria leu em uma revista. Eu tinha
  • 30. livro 12/14/04 14:41 Page 30 deixado a critério dela escolher. “Já tenho um nome para a nossa filha”, anunciou minha esposa. Eu perguntei qual era. “Girselle”, ela respondeu. E no dia de registrar no cartório, o escrivão, Wilson Batista, não queria registrar, não. “Mas que nome é esse, de onde é que você tirou esse nome?”, atreveu-se a perguntar. “Não é um nome comum”. Então eu soletrei “G-I-R-S-E-L-L-E”. Como ele estava relutante, ble- fei. “Me admira o senhor não Luiz e Maria com os filhos Girselle, Gerson e Gino, conhecer um nome francês tão em Guarapari, ES. famoso, puxa, tá fazendo esse mistério todo, parece que eu inventei”. Ele me olhou – era vesgo – e registrou. “Ah, vá lá”, disse ele. O Dr. Hugo achava uma graça quando eu contava isso, porque ele era amigo desse Wilson Batista. Chegou até a ficar com calos nas mãozinhas de tanto andar no chiqueirinho. Quando eu chegava do trabalho, abria o portãozinho e ela me via, nossa! Ela só fal- tava voar do chiqueirinho. Nossa, que alegria! Coitadinha! Naquela época, moráva- mos no nº 1.011 da rua Jataí, em frente à casa da minha sogra (nº 1.034). Quando morávamos no Rio pela segunda vez, estava na moda aquela músi- ca eu vou pra Maracangalha, eu vou, eu vou com chapéu de palha eu vou. Se Anália não quiser ir eu vou só. E ela, pequenininha, cantava: “Ô fô pra Maracangalha, ô fô. Ô fô com chapéu de palha, ô fô. Se Anália não quiser ir, ô fô só, ô fô só. Ô fô sem Anália, mas ô fô”. Era uma gracinha a Girselle! Quando era pequenininha, Girselle tinha muito cuidado com o irmãozinho que ganhou, o Gerson. Mas ele, brincando, caía muito, estava sempre se esfolando. E, naquele tempo, a primeira coisa que a gente fazia para não inflamar o machucado era vir com o Merthiolate, para passar no local, o que ardia para danar, queimava mesmo. “Coitado, ele vai p... fogo”, eu dizia para Maria. Girselle me viu falando aqui- lo uma ou duas vezes e, então, sempre que ela via a gente com o vidrinho de Merthiolate vermelho na mão – hoje tem o incolor, mas não naquele tempo –, quan- do o Gerson caía e vinha chorando, minha menininha dizia “Ih, vai fidá fogo!” Ela era muito boazinha, muito mansinha, mas muito ativa. Era uma filha de ouro, nunca me deu trabalho na escola nem em lugar algum. Aliás, filho nenhum. Só comparecíamos à escola nas reuniões normais, nunca por indisciplina ou falta de aproveitamento nos estudos. Mas Ninguém tirava farinha com os irmãos, não. Dois anos mais velha que o Gerson e cinco que o Gino, ela defendia, mesmo. Era o anjo da guarda deles, defensora. Tomava partido, avançava, era cada merenderada!
  • 31. livro 12/14/04 14:41 Page 31 Quando ela fez 15 anos, em 1970, nós demos uma festinha muito boa, muito bonita lá em casa. Na época, as folhas do coqueiro da frente de casa ainda estavam saindo do chão, não tinha tronco ainda. E Girselle foi sempre uma boa filha, que sabia escolher as companhias, como as filhas do Sr. Oscar, Elaine e Adriana. Era sempre muito amorosa e ajuizada, a minha filha. Uma boa menina. O coração de ouro Com dois anos e pouco de idade, Girselle recebeu um irmãozinho. Gerson foi o primeiro menino que nasceu na recém-inaugurada Vila dos Sargentos da Força Aérea (em frente ao Aeroporto da Pampulha), a Vila Cabangu – em homenagem à região que Santos Dumont nasceu, perto de Palmira, hoje cidade mineira que leva o nome do Pai da Aviação. O nascimento dele foi em um domingo de carnaval, 3 de março de 1957. Eu, como sócio do Clube dos Sub-Oficiais e Sargentos da Aeronáutica, tinha direito à hospitalização de minha mulher no Hospital Samaritano, onde Girselle nasceu. A guia já estava pronta há um ou dois dias, mas Maria quis deixar para ir na última hora. Quando era quase meia-noite, ela começou a sentir as dores do parto. Para telefonar e pedir um táxi lá da cidade, eu teria que ir à Base Aérea. Mas, como faria? Até o táxi chegar à Pampulha... O jeito era pedir ao Oficial de Dia, que era o Tenente Coragem. Cheguei lá, à portaria da Base, tive um problema. Naquele tempo, sargentos, cabos e soldados não podiam chegar à paisana nem à porta do quartel. Aquilo era privilégio só de ofi- ciais. Eu cheguei ao portão das armas e disse à sentinela que estava precisando falar com o Oficial de Dia. Pedi para ele pegar a extensão da guarita e ligar. O tenente me mandou entrar, mas eu disse que estava à paisana. Ele mandou me dizer que ele esta- va me autorizando a entrar, para conversar pessoalmente com ele. Quando cheguei lá, ele estava com o adjunto dele, Sargento René Bernedetti. Eu disse a ele que minha esposa estava em trabalho de parto e eu precisava de uma viatura para levá-la ao hospital, porque não tinha ônibus nem táxi àquela hora na região do aeroporto (da Pampulha). O tenente me disse que estava proibida a saída de ambulância, o comandante tinha recomen- dado, o carro de sair até para a mãe dele. Tudo porque certa vez, bem quando a ambulância tinha saído, um avião fez um pouso de emergência, pois não conseguia baixar o trem-de-pouso. Ninguém se feriu Gerson, Gino, Sérgio, Simone e gravemente. Mas a ambulância tinha saído Girselle, no Pq. Municipal (BH)
  • 32. livro 12/14/04 14:41 Page 32 para outra coisa. Então, como a ambulância estava impossi- bilitada de sair, o Tenente Coragem me ofereceu três outras viaturas: um dos jipes – muito rústi- co para a situação –, a caminhonete dos oficiais – confortável, mas muito alta para uma mulher em trabalho de parto entrar - ou um furgão, que foi a minha escolha. O motorista seria o Cabo Expedito Lopes. Mas esse veículo, quando estava na subida da Antônio Carlos, pouco pra cima de onde hoje é o Corpo de Bombeiros – não era asfalto, era Gerson, Gino e Girselle. calçamento pé-de-moleque – caiu uma peça do carro. Continuamos e felizmente conseguimos chegar à região da Lagoinha, ao Hospital Samaritano. Correu tudo bem. Ele teve que ficar um pouco na estufa, porque passou um pouquinho da hora de nascer, mas ficou tudo bem. “Ah, nasceu empeli- cado, é gente de muita sorte”, disse uma enfermeira. “Na vida, tudo vai dar certo pra ele”. Um dia, eu o levei para passear no Parque Municipal, mas ele não queria andar de mão dada comigo, não. E em uma daquelas, que ele soltou da mão, eu escondi atrás de uma árvore, uma jaqueira, e ele foi embora, andando na frente, admirando tudo, admirando as coisas. Depois, quando Gerson deu pela minha falta, ele ficou apavorado, coitado. “Cadê papai?”, ele perguntou a um senhor que estava perto. “Mas quem é seu pai?”, perguntou de volta o homem. Aí ele começou a chorar, eu saí de trás da árvore e fui lá. Ele não quis mais soltar a minha mão. De menino, o Gerson era patola. O Miguel (filho de Gerson e Júnia, com um ano de idade em 2004) vai ser tipo ele. Ele sempre foi um bom garfo, sempre teve bom apetite. Então, a mãe punha comida pra ele e logo na primeira garfada, quando ele achava bom, ele dizia “Hum, vou querer mais”, sem saber se ia dar conta do que estava no prato. E por falar nisso, teve o caso do sorvete. Todos os três (Girselle, Gerson e Gino) tinham problemas de (inflamação de) amídalas. Os médicos resolveram operar os três no mesmo dia, poxa! A gente falava com o Gerson que quando ele operasse poderia tomar muito sorvete (o que é bom para cicatrização e para não inflamar), que ele adorava. Ele estava Maria e Gerson, em Washington, numa farra, doido pra chegar o dia de operar. EUA.
  • 33. livro 12/14/04 14:41 Page 33 Gustavo, Girselle, Gino e Gerson, em 1987. Mas no pós-operatório, quando ele tomou a primeira pazinha, doeu muito e ele empurrou o sorvete pra lá. Foi difícil, os três operados das amídalas, convalescendo, pegaram sarampo e logo depois, catapora. Eles ficaram magrinhos que só vendo, os meninos. “Eu fico com uma pena, vocêch vêm de Minach com och meninoch coradoch e daí a pouqui- nho elech ficam magrinhoch e descoradoch como och nossoch daqui”, falava a car- ioca Dona Isaurinha – mulher do sargento Ubaldo e que ficou muito amiga de Maria, depois que mudamos da Rua 28 para a 98, no Rio. Chegou a ocasião do meu Gerson ir para a escola, quando tinha sete anos. E ele estava doido pra ir pra escola, que ficava quase em frente. Como ficava muito perto, deixamos para levar a merenda quando fosse chegando a hora do recreio. Mas, quando chegou a hora do recreio e a merenda não tinha chegado, a primeira coisa que ele pensou foi subir na grade. “Minha m-e-r-e-n-d-a, minha m-e-r-e-n-d- a!”, gritou, com um vozeirão. De pequeno, vivia dizendo que não gostava de velho. Ele devia achar muito feio. Um dia, a minha sogra, a avó dele, Dona Esther, estava perto quando ele falou.
  • 34. livro 12/14/04 14:41 Page 34 “Uai, quer dizer que você não gosta da sua avó?”, perguntou ela. Gerson titubeou um pouco e disse: “Não, eu não gosto é de velho dos outros”. E quando o pessoal perguntava o que ele ia fazer quando crescesse, ele respondia: “Vou estudar na Faculdade Mental”. Ele tinha umas tiradas muito interessantes. Hoje ele é cinegrafista. Ele sempre foi muito prestativo Se tinha alguém precisando de alguma coisa e ele pudesse, já estava lá. Uma vez teve um incêndio em uma loja de móveis na avenida Antônio Carlos. Ele estava voltando pra casa e viu. Quando chegou em casa para deixar umas coisas, pegou a moto e foi pra lá. Gerson tem um instinto de aventu- ra muito grande. Morou quase três Girselle. anos nos Estados Unidos e mais três em Portugal, onde aprendeu o ofício de cinegrafista, que exerce até hoje e é a paixão profissional dele. Lá em Portugal, presenciou vários casos engraçados. Tinha um português, onde ele estava trabalhando, que disse para ele escutar: “eu não gochto de brasiláiros”. E o Gerson, no maior bom humor e saindo-se muito bem, contra-atacou. “Eu também não, eu gosto é de brasileiras”, respondeu ele. O cara riu e eles acabaram amigos. É jogo-de-cintura. Outra vez, ele estava contando umas piadas para uns portugueses, contou aquela do urubu tem pena no pé. Eles riram, riram, mas tinham uma dúvida. “Mas o que vem a ser urubu?”, perguntaram. Aí quem riu foi o Gerson. “Urubu é abutre”, explicou. E riram todos juntos. O Gerson tem o gênio muito bom. Quando é preciso ele explode, mas é só naquele momento. Depois que passou ele não guarda rancor, não alimenta sentimen- tos de vingança, de retaliação. Outra característica dele é o desprendimento, não tem aquele apego às coisas materiais. É igual ao tio materno dele, Antônio Radicchi, o Tunim, que podia ter R$ 1. Se alguém pedisse, dissesse que estava apertado, ele soltava aquele R$ 1 e ficava sem nada. Tem um coração de ouro, o Gerson. É muito amigo e amoroso também. A aplicação em pessoa O nascimento do Gino, meu terceiro filho, foi numa noite muito fria, 21 de junho de 1960, no Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG). Daquela vez, eu não fiz a vontade da mulher, de deixar para a última hora. Fomos mais cedo. Eram umas 10h da noite e ele nasceu de madrugada. Naquele ano, a Base (Aérea, hoje CIAAR) não tinha só uma ambulância, tinha três. E nós em uma delas, pela Estrada
  • 35. livro 12/14/04 14:42 Page 35 Velha de Lagoa Santa. Mas, pesar de termos saído cedo, os trabalhos de parto foram se acentuan- do na viagem (cerca de 30km). Chegamos e a enfermeira que estava de serviço (ela estava grávida também, uns três dias depois ela teve gêmeos) percebeu que já esta- va bem adiantado, já tinha bastante dilatação. “Olha, o Dr. Mauro (obstetra) está na Várzea (bairro afastado da cidade) e não vai dar tempo de chamá-lo”, disse a moça. “Nós mesmos vamos ter que fazer o parto, o senhor me ajuda?”. Eu disse que sim, claro. Então, o Gino foi o único filho que eu vi e ajudei a nascer. E eu achei engraça- do foi que ele, antes de chorar, deu três espirros. Era uma madrugada muito fria mesmo. A enfermeira cortou o umbigo com aquela tesoura de pressão, ajeitou a cri- ança e foi cuidar da mãe. Eu, então, a chamei, falei que estava achando o saco do menino muito grande e roxo, não sabia que a criança do sexo masculino nascia com a bolsa escrotal inchada. “É assim mesmo”, tranqüilizou-me ela. “Nesta vida, a gente já chega de saco cheio”. O Gino chorando, eu percebi que a língua dele era presa e formava o dese- nho de um coração. O freio não começava embaixo, mas sim na ponta da língua. Eu podia ter falado, cortava ali naquela mesma noite. Mas eu pensei que fosse assim mesmo, depois chegava no normal. No Rio, quando ele já tinha mais de um ano, é que o Dr. Aldo Mirando o operou. Mas até quase adolescente, ele ainda falava com a língua meio presa, ao contrário de hoje, quando ele fala com desembaraço. Quando ele era bem pequeno, fui transferido e nos mudamos para o Rio. Moramos a 200m da praia de São Bento, na Ilha do Governador. E quando eu já tinha passado para a inatividade militar e já estava aguardando a oficialização disso (1964), a gente ia muito pescar, Gino, Gerson e eu. Um dia não estávamos conseguindo pescar quase nada, fomos longe. E quando já estávamos voltando, já querendo escurecer, a maré já estava subindo e não percebi. Tinha uma ponte desmoronada, que avançava para dentro do mar. Nós fomos lá e estava dando muito peixe, muita cocoroca, justamente porque a maré já estava subindo. A gente já estava com a sacola cheia de peixe. Maria estava preocupada por causa da nossa demora, estava aflita lá com os vizinhos. Iam à praia infor- mar, perguntar por um senhor e dois meninos. Mas ninguém tinha nos visto. Saímos pouco depois do almoço e só fomos chegar em casa lá pelas 9h da noite. De longe, um pescador – que Girselle, em show do ídolo, Fábio Jr.
  • 36. livro 12/14/04 14:42 Page 36 estava saindo de tardinha para passar a noite inteira pescando camarão – nos viu lá e viu que a maré estava subindo e a gente não estava percebendo. Aí ele veio com o barco a motor dele e mandou a gente entrar. Mas eu quis pegar as varas de pescar, os chinelos e os peixes. “Não, entrem que não dá tempo, não”, disse ele. E foi a conta de a gente entrar: a maré subiu de vez e cobriu tudo aquilo. Foi Deus mesmo que mandou aquele pescador lá naquela hora! Uma vez, houve um concurso de perguntas e respostas que a Rádio Guarani promoveu, pela televisão. O apresentador era o Bernardo Grimberg, que era da arma de Luiz (E), Gino, Maria e Gerson (1998). Infantaria, quando fiz o curso de sar- gento no CPOR. E o Gino quase ganhou, ficou em segundo lugar. Nós ficávamos em casa reunidos, esperando torcendo, vendo pela televisão. Ele errou uma ou duas questões e por isso não levou o prêmio, um autorama. Mas Maria disse que ele ficaria frustrado e ele já estava fazendo jus. Saiu e comprou um autorama para ele e para o Gerson. Mas antes disso tudo, na Praça 12, o Gino ganhou 1º lugar em um concurso de rei, competindo com várias crianças, na Escola Chapeuzinho Vermelho. Ele tem guardado, em casa, o retrato dessa ocasião – muito bem guardado, diz ele, que é para ninguém ver. Foi também naquele bairro que ele, brincando de atirar na cidade, tomou um tiro, caiu, fingiu que morreu e dormiu de verdade. Todo mundo o procuran- do e ele foi aparecer só depois. Embaixo do nosso apartamento ficava uma fábrica de calçados – onde mandamos fazer o sapato de veludo de quando Gino foi o Rei do Jardim da Infância, vestido de Dartagnan. Quando ele e o irmão já eram maiorzinhos, resolvemos matricular os dois na academia de judô do Edson Izoni, a Lutadores Unidos, onde eles foram muito bem- sucedidos, chegando à faixa laranja. Uma das quedas mais difíceis do judô é o chi- matá (quando se passa a panturrilha pegando a parte interna da coxa do adversário, jogando-o por cima do corpo). Eram vários tatames e o Izoni pôs o Gino para treinar esse golpe. Eu estava conversando com algumas pessoas que iam assistir, quando o professor me chamou. “Seu Luiz, vem cá, vem ver como o Gino está aplicando bem o chimatá”. E quando eu cheguei, ele estava aplicando bem mesmo, dando umas quedas bonitas. Eu me lembro que uma vez o Izoni pediu que o Gino ficasse fazendo um aquecimento, para um determinado tipo de queda que ele ia aprender e exigia um preparo melhor. Então, o professor, muito atarefado, foi orientar outros alunos, super-
  • 37. livro 12/14/04 14:42 Page 37 visionar algumas coisas e recepcionar quem estava indo se inscrever na academia. E se esqueceu do aquecimento. “Gino, meu filho, você ainda está aí, coitado!”, disse Izoni. E o menino lá, já há umas duas horas, suando, mas sem parar com a determi- nação dada pelo professor. Foi até dispensado do restante da aula, estava estafado. Ele gostava muito de jogar umas peladas com a turma: o Gerson, os meni- nos da Dona Nicinha, com o Sílvio da Dona Rosa e com aquele que tinha o apelido de Boca Branca. Até esquecia da hora do almoço, a gente tinha que chamar. E às vezes jogava também à tarde, depois que fazia os deveres da escola. Numa daque- las, quebrou o dedo mínimo de um dos pés, um dedo que é enguiçado até hoje. É nós levamos ao hospital, mas acho que o ortopedista que o atendeu – pelo plano da saúde Saber, acho que foi o pioneiro aqui, na Previdência, atrás do Parque Municipal – não fez o trabalho direito e volta e meia o dedo quebra de novo ou sai do lugar. O Gino gostava muito também de fazer papagaios. Eu ensinava o pouco que aprendi, mas nunca fui muito habilidoso, não, ao contrário do meu irmão, Dilico – que inventava sempre umas modificações, eu fazia aqueles mais simples mesmo. Mas depois o Gino, pela cabeça dele mesmo, foi aperfeiçoando, inovando alguma coisa, com bastante imaginação, uns papagaios bem feitinhos. Já falando da escola, eu levava os quadro (meus três na época, mais minha sobrinha Simone) para o Ângelo Roncali, na avenida Assis Chateaubriand, na Floresta. Como era muito longe (cerca de 15km), eu ficava por lá, esperando a aula acabar. Eu ficava lendo, escutando música ou batendo papo com o Toné, dono de uma loja de baterias de automóveis ali perto, que tinha sido meu soldado na Base. E o Gino, era muito estudioso, gostava muito de ler e, adolescente, estava sempre muito bem-informado para a idade dele. E o Dr. Hugo adorava bater papo com ele, admirava essas características dele, que estava sempre atualizado com os assuntos. O Gino sempre foi muito aplicado, muito compenetrado. Gustavo e Gino (D) com Luiz, no Dia dos Pais, 2004.
  • 38. livro 12/14/04 14:42 Page 38 Desde pequeno, leva tudo em quanto é tarefa a sério. O vejo muito dinâmi- co, muito empreendedor, muito competente, muito bem-intencionado. Economista, ele se saiu muito bem na área da publicidade, trabalhando em quase todas as agên- cias de Belo Horizonte. E também no jornal Estado de Minas, onde foi superinten- dente de Publicidade. Como filho, como os outros, é muito dedicado, amigo e amoroso. O raspa-do-tacho Meu último filho, o caçula, a raspa-do-tacho, o Gustavo, nasceu também no Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG), no dia 28 de fevereiro de 1973. Foi o único que nasceu de cesariana. Devido à idade da minha mulher (39 anos), o médi- co achou melhor fazer a cesariana. E eles lá em casa ficaram naquela expectativa – naquele tempo não tinha esse negócio de ultra-som, para ficar sabendo o sexo do neném. A Girselle queria uma menina. Gerson e Gino, um menino. Quando cheguei de Lagoa Santa – estavam todos reunidos, esperando, a Girselle com a prima, a Simone, e os meninos – não sei o porquê, elas perguntam: “É menino, né?”. Eu disse que era. Parece que elas já, por intuição, estavam sabendo. A concepção dele foi uma surpresa geral. É tanto que, quando Maria me con- tou que estava grávida – ela disse “Luiz, eu tenho uma coisa pra te contar, eu tô gorda” – eu me espantei e disse: “Não brinca?”. Já tinha passado tanto tempo desde o Gino, a gente não evitava e não vinha mais filho, eu pensei que já tinha encerrado. O engraçado foi que Girselle, já mocinha, com 16 anos, deu uma sermão em Maria. O Gino tinha 11 anos e o Gerson, 14. “Eu não acredito, mãe, a senhora grávida, nessa idade?”, indignou-se minha filha – e ela parecia mesmo não acreditar. “Ih, o que é que tem?”, respondeu Maria. Mas Girselle era louca com o Gustavo, que a gente chama- va de Gugu. Uma coisa interessante é que parece que Maria pagou língua. A minha cu- nhada Ruth, mulher de Dilico, tinha ficado grávida (de uma menina, a Moabi) também em idade madura, alguns meses antes. “Ô Ruth, vai tomar vergonha na cara”, disse Maria. “Uma mulher dessa idade, já na hora de pendurar as chuteiras, esperando menino outra vez?”. E pouco tempo depois, ela ficou esperando o Gustavo. “Pois é, a língua fala, a língua paga, né?”, riu a Ruth. No dia do nascimento, tinha um casal lá no hospital com uma filha internada. A senhora ficou sabendo que estava pra nascer um filho meu ali e ficou no aparta- mento comigo conversando e na maio expectativa. Nós ficávamos sempre olhando lá para o final do corredor, para o Bloco Cirúrgico, de onde a enfermeira saiu, com o recém-nascido nos braços. “O senhor não se importa de eu ver primeiro, não?”, perguntou a senhora. Como eu disse que não, ela saiu correndo para ver. Depois, quando ele estava na es- tufa, eu achei engraçado o tamanho da mão. “Puxa, parece mão de goleiro, parece a mão do Kafunga!”, eu disse. E ele estava com a ponta do paninho dentro da boca, sugando. “O bicho já nasceu com fome mesmo!”, comentei. Em casa, tínhamos muitas árvores frutíferas, muitas laranjeiras, abacateiros, e muitos pés de amora, de que o Gustavo gostava demais. Uma vez, ele tinha pouco
  • 39. livro 12/14/04 14:42 Page 39 mais de um ano e procuramos por ele, mas não o estávamos encontrando. Fomos achar embaixo de um pé de amora, com a boca pretinha e a fralda roxinha, porque ele tinha sentado em cima das amoras que tinham caído no chão. Quando o Gustavo estava com dois anos, nós fomos morar no Anchieta, onde ficamos uns dois anos. Toda manhã eu saía com ele para passear ali pelos bair- ros Cruzeiro, Anchieta, Carmo-Sion. A gente ia andando devagarinho. Tinha uma lagoa ali no Carmo Sion, onde a gente ficava jogando miolo de pão para uns lam- barizinhos e uma piabinhas. E também lembro que tinha uma caixa-d’água no Cruzeiro, com uns pés de mamona ao lado. A gente apanhava e ficava jogando as bolinhas em uma rampa grande ali ao lado, vendo as mamonas quicando até caírem lá embaixo. Era muito divertido. Ele fez o 1º período no Arnaldinum (no Anchieta). Já o 2º foi no Colégio Loyola Pampulha, no Planalto, onde fez também o pré-primário e a 2ª série (a 1ª ele fez no Colégio Tito Fulgêncio, no ano em que moramos na Renascença). No final dessa série, o Colégio Loyola Pampulha virou um seminário, chamando-se Instituto Santo Inácio (ISI). Construíram ao lado dele o Colégio Arquidiocesano, onde o Gustavo estudou da 3ª série até o final do 2º grau. Sempre foi bom aluno, não pre- cisava mandar estudar. Hoje é jornalista. Tinha umas brincadeiras engraçadas com os animais de estimação. O Sérgio – um primo, irmão da Simone, Samira e Samuel – ficava encarnando nele porque o viu uma vez, aos seis anos, esticando o gato, pegando no rabo e no pescoço, enquanto exigia: “Mia, gato, mia!”. Também brincava de rodeio com a pretinha, sua cachorrinha pequenez. Corria atrás dela na terra, dava uma rasteira – levantando um poeirão danado – amarrava as quatro patas juntas, com uma corda de pular, e levan- tava os braços. Ele gostava muito daqueles seriados japoneses de super-heróis, principal- mente o Ultraman e o Ultraseven. Um homem se transformava em Ultraman tirando um bastãozinho do bolso e o levantava, virando um gigante, para enfrentar o mons- tro. Então, no chuveiro, o Gustavo agachava, pegava o vidrinho de condicionador, e esticava o braço para o alto, enquanto ficava em pé de uma vez – para ter a sensação do Ultraman virando um gigante. Em 1981, o Gerson morava nos Estados Unidos, em Washington, e a mãe dele foi lá visitá-lo e ficou três meses. Em casa, o Gustavo era o responsável por aguar a horta e as plantas. Eu era religioso (veja anexo 2) e saía para fazer trabalhos missionários, estudos bíblicos, nos bairros adjacentes ao nosso Santo Inácio (hoje Planalto). O Gustavo, com oito anos de idade, me ajudava muito a encontrar as pas- sagens bíblicas, já que as pessoas de pouca instrução tinham muita dificuldade de encontrá-las. Ele foi de muita valia porque as encontrava fácil. Lembro-me de um caso daquela época. O Gustavo se interessava muito por horóscopo, que o Jornal Hoje apresentava diariamente na televisão. Naquela época, o Gustavo era o responsável por molhar a horta e as plantas todas as manhãs. E ele estava de férias no meio do ano, passando uns dias na casa da Girselle. E quando a voz da apresentadora anunciava um, ele dizia quem da família era daquele signo. Quando aparecia “Capricórnio”, ele falava: “papai”. “Áries”, ele soltava: “mamãe”. E
  • 40. livro 12/14/04 14:42 Page 40 assim ia: Câncer/“Gino”; Peixes/“eu e Gerson”; Sagitário/“Tio Dilico”. E chegou num ponto que a minha filha se aborreceu. “Ô, Gugu, pára com isso aí, deixa só a mulher falar”, disse ela. Aí ele se encolheu e ficou calado. Mas quando chegou a vez de libra, ele, calado, dando um sorrizinho amarelo, olhou para trás, para a Girselle – libriana, nascida em outubro - como quem diz “é o seu, né?”. Aí ela não agüentou, caiu na risada e o abraçou. Gustavo sempre gostou muito de praticar esportes. No futebol, era goleiro. E tinha também o vôlei – este ele joga até hoje, como meio-de-rede. Ele e os compa- nheiros armavam a rede na rua, que tinha pouco movimento de carros. Eu o vejo Gustavo também como um bom filho, amigo, amoroso comigo e com os irmãos, muito estudioso. Sempre escolheu bem suas amizades. É um homem de bem, uma pessoa temente a Deus e que pauta a sua vida no temor ao Senhor, que é o princípio da sabedoria. *** Todos os meus filhos têm muito bom caráter. Nenhum me deu trabalho. Nunca fui chamado a colégio algum por problema de indisciplina. São todos amorosos, companheiros, amigos. Graças a Deus, eu tive a ventura de só ter filhos extraordinários.
  • 41. livro 12/14/04 14:42 Page 41 Moradias Zona urbana e zona rural A vida em apartamentos Quando Humberto casou, ele fez um puxado lá atrás da casa, na rua Jataí. Célia morava na casa da frente. Quando nós compramos essa casa da Dona Esther e fomos morar lá, Célia foi morar lá no fundo. Depois nos desentendemos com eles e eu, Maria e os meninos fomos morar na Praça 12. Era a época daquela música do Jair Rodrigues “deixe que digam, que pensem, que falem... batendo um papo gos- toso com alguém”. De lá, fomos para o apartamento de Dona Esperança, onde moramos mais ou menos um ano. Era um prédio. O apartamento 101, no terraço. Por isso, brinco que já moramos em uma cobertura. o nosso, era todo independente tinha uma cober- tura onde os meninos brincavam. E tinha uma vista belíssima da cidade, do Centro de BH. Maria encerava a escada e os meninos ficavam brincando, escorregando nela, descendo sentados, quicando até chegar no chão e rasgar o short. Isso era porque o sol começava a bater forte no pátio e na escada dava sombra, era coberta. Tinha uma comunicação, uma espécie de ponte, do nosso para o outro ter- raço. Um menino que morava ao lado – acho que se chamava Edmundo – naquele outro apartamento, uma vez deu uma sugestão de brincadeira para o Gino e o Gerson: ir jogando tijolos e garrafas, que estavam ajuntados no terraço, lá embaixo, no pátio – que parecia daquele seriado Chaves. Eles jogaram todos. E aí tem uma história que o Gino conta: Gerson levou uma surra e o Gino, não, porque eu o devo ter visto rezan- do, no quarto, para não apanhar. De lá, mudamos para o Santo Inácio – hoje, Planalto – para a casa onde moro hoje com o Gustavo. Moramos também no Anchieta de 1975 a 1978, na rua Luiz Signorelli, esquina com Vitório Marçola. Em 1980 moramos na Renascença, na rua Tapira. Ambas as vezes moramos em apartamento. Resolvi morar uns tempos assim para os filhos ficarem mais perto da escola e Girselle, da faculdade. Fazia letras na Fafich, da Federal, que ainda Luiz, na casa do Santo Inácio.
  • 42. livro 12/14/04 14:42 Page 42 era no Santo Antônio, na rua Carangola. A história da nossa vida nesses apartamentos perto da agitação do Centro da cidade contrasta com a calma da nossa casa no Santo Inácio, com três lotes e cerca de mil metros quadrados. Uma verdadeira chácara a 15 km da Praça Sete (ponto mais central de BH). A fazendinha do Santo Inácio A casa era do Zé Denuci, um homem muito trabalhador, que tinha uma empresa de pintar edifícios. A família dele não queria morar longe, no Santo Inácio, queria ir só no final de semana, fazer churrasco. Um dia ele chegou e a família já tinha mudado. Então ele resolveu vender – Humberto, meu cunhado, me deu essa dica – nós fomos ver a casa, gostamos e compramos. Para lá mudamos em 2 de janeiro de 1967, um dia de calor e umidade tremendos. A região era úmida, com brejos e muitas árvores. Quando nos deu fome, Maria foi à venda do Josué – uma mercearia como as do interior, balcão de vidro, ven- dia fatias de queijo, banana na unidade – comprar pão, fez uns sanduíches. Os meni- nos já ficaram amigos do cachorro que tinha na casa, o Tiu. Gerson e Gino adoraram, era quintal grande. Girselle, nem tanto, já era mocinha, tinha 12 anos. O Tibiriçá fez a mudança, o Jonas, que trabalhava para ele, veio dirigindo. Já era quase noite quan- do acabaram de descarregar. E o Gerson e o Gino subiram no caminhão e ficaram lutando telequete. No dia seguinte, meu aniversário, já amanhecemos arrancando mandioca e amendoim, no quintal. Tinha também cajueiro, pé de mexerica, 18 de laranjas de en- xerto, de muitas variedades, dois abacateiros. Tinha também banana-ouro, morangos nos canteiros, amora, ameixa, siriguela. O pé de laranja-serra- d’água ficava exatamente embaixo da janela de onde hoje é o quarto do Gustavo. Tinha as instalações vazias, uma criação de porco. Chegamos a ter até uma cabrita, que compramos lá onde hoje é o bairro vizinho do Floramar. Como eram três lotes juntos – quase mil metros quadra- dos –cercados com arame farpa- do – não tinha muro, não – o pes- soal de fora (vizinhos e passantes) chamava nossa casa de Fazendinha. Na nossa rua (então rua Sete, atual Vereador Orlando Bonfim) só tinha umas quatro Luiz em Guarapari, ES.