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O GUERRILHEIRO DAS MONTANHAS
              Beyond ransom
              Sophie Weston




A consciência de Roberta foi voltando aos poucos, fazendo-a compreender
sua terrível situação: havia sido sequestrada naquele pequeno país da
América Central! De repente, ouviu vozes a logo depois a porta se abriu.
Ao reconhecer seu raptor, Roberta começou a tremer. Tratava-se do
homem misterioso com quem havia dançado numa festa ali, em Oaxacam.
Agora podia conhecer sua verdadeira identidade: aquele era Rafael
Madariaga, o líder dos revolucionários que queriam derrubar o governo
militar de seu país!
Copyright: Sophie Weston
                   Título original: Beyond Ransom
Publicado originalmente em 1986 pela Mills & Boon Ltd., Londres,
                           Inglaterra

              Tradução: Fernando Simão Vugman

             Copyright para a língua portuguesa: 1987
             EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
            Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3.º andar
            CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil

              Esta obra foi composta na Artestilo Ltda.
           e impressa na Artes Gráficas Guaru S/A.

                    Foto da capa: Keystone




                                                                   2
CAPÍTULO I



     Incomodada, Roberta Lennox observou que o volume da música
tinha aumentado ainda mais depois de encerrado o espetáculo de dança
na boate. Com discrição, consultou o relógio. Nem meia-noite ainda!

     Percebendo sua inquietação, Larry Davidson se aproximou.

     — Quer ir embora? — perguntou em voz baixa.

     Por um instante Roberta sentiu-se tentada a aceitar a sugestão.
Havia tido um dia terrível. Passara a manhã toda negociando, usando cada
gota de sua apreciável capacidade de argumentação para chegar ao fim
do dia com a sensação de que se esgotara em vão. Estava cansada, com
uma dor de cabeça começando a incomodá-la e sentindo a alegria
artificial da mais cara boate da cidade exercer um efeito depressivo
sobre seu estado de espírito.

     Mas isso fazia parte do seu trabalho, e, até o presidente de
Oaxacan[1] se definir claramente sobre o contrato com a Technica
Associates, não sairia dali. Esboçou um sorriso a Larry.

     — Não, eu agüento — disse. — Não deixa de ser uma experiência
interessante.

     Ele deu de ombros.

     — Se você diz...

     Larry tinha um ar entediado. Ao contrário de Roberta, possuía
vasta experiência na América Central, e por isso fora designado para ser
seu assistente naquela missão. Falava com fluência o castelhano, embora
mesmo Roberta pudesse detectar um leve sotaque de Milwaukee. E ele é
quem havia descoberto que aquele era o lugar onde representantes do

                                                                      3
Ministério das Finanças esperavam ser levados para resolver negócios
com estrangeiros.

      “Eu devia estar grata a ele”, Roberta pensou, acomodando-se na cadeira
forrada de veludo. “Pelo menos nossos convidados parecem estar se divertindo.”



[1] Nota do editor: Oaxacan é um país fictício. Todos os personagens são imaginários.



       Lançavam-se com volúpia sobre as comidas finas e consumiam sem parar o
uísque importado, fartamente distribuído por belas garotas com sorrisos bem
treinados e roupas provocantes. No começo, os representantes do ministério tinham
ficado constrangidos com a presença de Roberta. Mas, diante de sua postura
imperturbável e sob o efeito dos primeiros copos de bebida, já se mostravam mais
relaxados. Agora conversavam animadamente com as garotas como se a anfitriã
fosse, afinal, um homem, como haviam imaginado a princípio.

      Larry também julgara que Roberta criaria problemas num programa
como aquele, tipicamente masculino, e não havia escondido sua opinião.
Ela, no entanto, não vacilara. Além de autorizar uma quantia substancial
para despesas de entretenimento, fizera questão de ser ela mesma a
anfitriã. O assistente ainda tinha argumentado, dizendo que iria se
aborrecer, e agora Roberta admitia que o rapaz estava com a razão.

      No entanto, não era a presença das garçonetes em seus trajes
diminutos que a constrangia. Chegava até a nutrir um certo sentimento
de camaradagem por elas. A qualquer momento, teria também de aceitar
o convite de algum dos seus “alegres” convidados para dançar.

      Foi quando se dirigia para a pista de dança com o porta-voz do
ministério que teve a nítida sensação de estar sendo observada. Olhou
para trás num movimento involuntário.

      E então localizou o homem. Estava de pé junto da cortina de veludo
que encobria a entrada. Vestia um elegante smoking, como a maioria dos
homens do salão, e acabava de dar um finíssimo casaco para a

                                                                                        4
recepcionista guardar. Tinha interrompido a seqüência de movimentos
para tirar as luvas, para estudá-la com olhos mais atentos.

     Espantada, Roberta estacou. Percebeu que ele a examinava de alto
a baixo, parecendo revelar um certo desprezo, mas também algum outro
sentimento... O que seria? Sim, seu olhar comparava-se ao de um velho
professor universitário que tivera, ao observar um inseto ao microscópio;
ao mesmo tempo que sentia fascínio tinha repugnância. Isso. Aquele
homem a olhava admirado, embora a contragosto.

     Esquecida dos que a cercavam, ela fitou o desconhecido. Ele era
alto, uns dez centímetros mais alto do que seus outros três
acompanhantes; possuía o corpo musculoso e atlético, e seu rosto era
sem dúvida seu ponto mais marcante. Na meia-luz da boate, Roberta não
podia distinguir os detalhes, mas estava claro o bastante para que
pudesse notar sua tez morena, o nariz fino e reto, o queixo quadrado e
decidido e a boca firme. Os olhos, embora não lhe fosse possível
distinguir a cor, eram argutos como os de um falcão.

     O acompanhante de Roberta percebeu sua reação e seguiu- lhe a
direção do olhar.

     — Ah, Don Rafael está aqui — ele comentou num tom estranho. —
Você o conhece, Señorita?

     — Não — ela disse devagar, imaginando se dizia a verdade.

     Não conseguia lembrar-se dele, mas ele a olhava com tal
intensidade que talvez já se conhecessem. Mas aquele não era o tipo de
homem que se conhece e se esquece depois.

     — Señor Rafael Madariaga é advogado... um advogado muito rico e
bem-sucedido. Presta muitos serviços para empresas internacionais. Tem
certeza de que não o conhece?



                                                                       5
Ela balançou a cabeça.

     — Nem mesmo ouvi falar em seu nome.

     — Não? — o outro perguntou, entre surpreso e aliviado. — Ah, bem,
existem outros advogados, afinal, e Don Rafael possui... — ele hesitou —
interesses mais audaciosos hoje em dia. Pelo menos é o que dizem.

     Ela deixou que seu acompanhante a conduzisse para o centro da
pista de dança e não pôde mais ver o homem que de forma tão estranha e
intensa havia despertado sua atenção. Por mais absurdo que fosse,
lamentou perder o estranho de vista...

     Devia ser resultado da música tão alta, disse a si mesma. Ou da
semi-obscuridade do ambiente. As duas coisas combinadas exerciam um
efeito desorientador. Era a única justificativa para a sua exagerada
perturbação.

     Enquanto isso, o porta-voz se esforçava ao máximo para manter
uma conversa educada.

     — Esta é sua primeira visita a Alto Rio, Señorita?

     — Sim.

     — Espero que durante sua estada aqui tenha tido a chance de
conhecer um pouco do meu país.

     — Muito pouco, receio. Larry e eu realmente não tivemos tempo
para fazer turismo.

     — De fato, o turismo é muito restrito em Oaxacan. Para nós, essa
ainda é uma atividade pouco explorada. E há o problema da altitude; como
a região é montanhosa, muitos dos estrangeiros que vêm nos visitar
passam muito mal nos primeiros dias.



                                                                      6
— Foi o que ouvi falar. Me considero uma pessoa de sorte; tenho me
sentido muito bem.

      O homem se mostrou surpreso.

      — Ah, aqui em Rio Alto a altitude é baixa, Señorita. Mal chega aos
três mil metros. É no interior que atinge até seis mil metros. Claro que
essas regiões são as mais interessantes, onde se encontram ruínas e
artesanato da era pré-colonial. — Fez um muxoxo. — Pena que turistas
sintam-se mal e não possam desfrutar muito desses passeios.

      — Realmente — Roberta foi respondendo sem prestar muita
atenção quando, após um rodopio, voltou a ver o estranho que lhe havia
causado tão profunda impressão. Ele continuava junto da entrada, a fitá-
la.

      O garçom havia se afastado, seguido dos três acompanhantes de
Don Rafael, de modo que ele estava agora sozinho, avaliando-a com ar
especulativo. Ela não gostou de sua expressão e levantou o queixo,
desafiadora.

      Os olhos de ambos se encontraram outra vez, e por um breve
instante ele pareceu despertar de um devaneio, reagindo com embaraço.
Mas logo se recobrou, e enquanto ela se virava ao som da música
estridente, ele seguiu seus companheiros, sem nunca perdê-la de vista.

      Roberta sentiu um calafrio. Engoliu em seco, surpresa com a própria
reação diante de alguém que via pela primeira vez. E então, como que
para exibir coragem, sorriu em resposta ao meio-sorriso que ele
guardava nos lábios. Era um desafio; procurava assim forçá-lo a
disfarçar, fingindo que não a estivera observando aquele tempo todo.

      Mas se ela esperava desconcertá-lo com sua atitude franca,
desapontou-se. Por um instante Don Rafael ergueu as finas sobrancelhas,
em espanto, mas em seguida reassumiu uma expressão de autoconfiança.

                                                                         7
Sem perder a pose, curvou-se de modo discreto e elegante, à guisa de
cumprimento.

      Ela corou, e ele sorriu com malícia, sugerindo uma perturbadora
intimidade. Em seguida virou-se para ir se juntar a seus amigos.

      O porta-voz do ministério não havia deixado de perceber a discreta
troca de olhares, embora não notasse o profundo efeito causado em sua
anfitriã.

      — Parece que Don Rafael a conhece, Señorita — comentou sem jeito.
— Ou, pelo menos, espera conhecer.

      Roberta recuperou o autocontrole com esforço.

      — Bobagem! Deve ter me confundido com alguma outra pessoa. Está
tão pouco iluminado aqui que isso não deve ser difícil de acontecer. — Ela
retomou decidida o assunto do artesanato e das ruínas pré-coloniais de
Oaxacan.

      À mesa, Larry discutia futebol americano com outro convidado, o
qual não se esforçava para disfarçar seu tédio. Por cima do ombro de
Larry, lançava olhares melosos para uma garota vestida no que parecia
ser um maiô de lamê e que vendia cigarros e balas. Larry, que não fumava,
não tinha reparado nem na moça nem na falta de atenção de seu
interlocutor.

      Roberta estava se sentando, de volta à mesa, quando ouviu o porta-
voz dizer no seu castelhano carregado, típico daquela região:

      — Madariaga está aqui. Procurando por alguém, eu diria.

      O outro funcionário do ministério se mostrou alarmado.

      — Quem? Não nós?



                                                                        8
Roberta baixou os olhos para ocultar seu interesse. Tinha achado
uma boa tática não revelar aos seus clientes em potencial o seu domínio
do castelhano e incumbira Larry da maior parte das conversas nessa
língua. Isso deixava-os mais à vontade para falarem entre si, seguros de
que ela não compreenderia mais do que algumas palavras soltas.

     Larry logo notou a conversa meio sussurrada entre os dois.

     — Você viu algum conhecido? — perguntou ao homem a seu lado.

     — Oh, em Alto Rio é impossível não se encontrar algum conhecido —
o porta-voz apressou-se a responder, em socorro ao colega. — Não é
como em Nova York, onde todos parecem estranhos. Aqui se vê pessoas
conhecidas em cada esquina. Ali, por exemplo... — e começou a apontar
celebridades, numa evidente tentativa de mostrar despreocupação.

     Roberta e seu assistente ouviram com atenção, e ela ia gravando na
mente os vários nomes que ia ouvindo. Afinal, se aquela missão comercial
fracassasse, nada indicava que no futuro não se pudesse voltar a
Oaxacan com novos projetos para outros clientes. Seria útil conhecer
pessoas de quem deveria se aproximar.

     Mesmo assim, ela teve a nítida impressão de que seus convidados
falavam ao acaso, como se procurassem desviá-los do assunto que havia
originado a conversa. O nome de Madariaga não foi mais mencionado.

     Mas o misterioso personagem ainda estava na boate, junto a uma
mesa não muito distante. Como Roberta pôde verificar, atrás da mesa se
erguia uma graciosa palmeira, próxima do palco erguido para a orquestra.
O homem se fazia acompanhar de dois outros e de uma mulher de
estonteante beleza, mas que exibia uma expressão do mais puro tédio. A
loira usava um vestido justo, de seda reluzente, e tanto ela quanto o
vestido pareciam ter vindo direto de Paris.

     Apenas um dos homens estava falando, e falava sem parar,

                                                                      9
gesticulando com exagero como que para enfatizar suas idéias.
Madariaga permanecia impassível. Roberta observou-lhe o perfil e a
expressão arrogante e considerou que, se estivesse no lugar do tagarela,
já teria se intimidado com o silêncio. O terceiro homem fumava
nervosamente, acendendo um cigarro após o outro. De vez em quando
fazia algum comentário curto, no que não era ouvido por ninguém. Seu
olhar vagava de Madariaga ao homem que não cessava de falar.

         As luzes escureceram ainda mais. O disc jockey desligou a
aparelhagem e abandonou sua cabina sob fracos aplausos. A pequena
banda retomou seu lugar no palco e começou a tocar um samba,
surpreendentemente bem.

         — Ah! — os funcionários do ministério se endireitaram em suas
cadeiras, em franca expectativa. O mais jovem sussurrou entre os
dentes:

         — É por isso que Madariaga está aqui!

         — Florita! — o outro disse, incrédulo. — Você pode estar certo,
mas...

         Um foco de luz verde foi lançado no pequeno palco, enquanto um
cenário era montado atrás. Na escuridão, um murmúrio de expectativa
percorreu as mesas.

         — O que está acontecendo? — Roberta quis saber.

         Foi o funcionário mais velho quem respondeu:

         — Florita vai dançar. Ela é muito famosa. Às vezes dança aqui,
quando está no país. Vive viajando pelo mundo — deu de ombros. — É
muito temperamental, por isso nunca anunciam o seu espetáculo com
antecedência, para o caso de ela resolver não aparecer — seu tom se
tornou cínico. — É um raro privilégio vê-la dançar. Se o Señor Madariaga


                                                                     10
não estivesse aqui, duvido muito que teríamos essa honra.

     Mas uma pausa da banda o fez calar-se, pois logo a platéia explodiu
em aplausos, com a entrada em cena da famosa bailarina.

     A primeira impressão de Roberta foi de que Florita era muito
bonita, com um corpo esbelto e bem esculpido, a pele morena de sol e os
cabelos castanhos com brilhos dourados sob a luz dos refletores. A
segunda impressão foi que, apesar de dançar com movimentos graciosos e
perfeitos, parecia preocupada com algo.

     Larry inclinou-se para a frente:

     — Ela não é fantástica? — perguntou, deixando transparecer um
entusiasmo quase pueril que contrastava com a imagem de um maduro
homem de negócios.

     — Bonita — Roberta concordou, enquanto a bailarina se curvava em
agradecimento e se preparava para um novo número. Cada vez mais
intrigada, ela reparou que Florita lançava um olhar ansioso para a mesa
de Don Rafael. Mas talvez fosse só uma impressão. De qualquer modo,
pressentia algo estranho no ar envolvendo aquele homem. Algo que, de
modo inexplicável, achava ameaçar a ela e a Larry.

     Florita abandonou o palco e pôs-se a executar um número
passeando entre as mesas. Roberta tratou de concentrar-se no
espetáculo, procurando tranqüilizar-se com o pensamento de que na
manhã seguinte estaria num avião, de volta a Nova York, provavelmente
tendo falhado nas negociações com o presidente de Oaxacan, em nome da
Technica Associates.

     Aparentemente dançando ao acaso, Florita acabou se aproximando
da mesa de Madariaga, seguida pelo facho de luz. Ele também foi
atingido pelo foco luminoso e mostrou-se aborrecido. De repente a
dançarina começou a rodear a vendedora de cigarros e, com um

                                                                     11
movimento inesperado, alcançou um charuto, fazendo a garota rir, no que
foi seguida pela platéia. Com graça e sensualidade, desembrulhou o
charuto e passou pelo nariz de alguns homens sentados por perto, que
fingiram aspirar fundo, apreciando o aroma. Em seguida, com as unhas,
cortou uma das pontas, acompanhada pelo som agora discreto da melodia
que os músicos executavam. Nesse momento um braço foi estendido com
um isqueiro aceso. Florita acendeu o charuto com longas e luxuriantes
baforadas. Avançou para o cavalheiro que lhe oferecera o isqueiro; agora
o refletor o iluminava em cheio: Don Rafael Madariaga. Os dois se
encararam. Roberta teve a sensação de que uma mensagem muda havia
sido trocada entre ambos, mas não deu continuidade ao pensamento, pois
a dança prosseguiu, com a bailarina oferecendo o charuto a ele, que
tragou fundo e soltou uma baforada contra seu rosto.

     Florita, porém, não pareceu nem um pouco ofendida. Ao contrário,
fez uma reverência indicando submissão e afastou-se de costas, com
passos curtos e ágeis. Roberta podia jurar que a moça zombava dele, mas
não saberia dizer por quê.

     A música se elevou mais uma vez, e Florita executou mais alguns
movimentos perto do palco. Então, de repente, Roberta percebeu que ela
vinha na direção de sua mesa. Por quê, se perguntava, ela sentia crescer
dentro do peito aquela sensação de desastre iminente? Acostumada a
seguir seus instintos, seu impulso foi de levantar-se e sair dali no mesmo
instante. Mas isso não seria possível naquele momento. Olhou em volta, e
os três homens que a acompanhavam pareciam completamente absortos.
Assim, tratou de relaxar e sorrir.

     Florita se aproximou e, sempre dançando, fez com que Larry se
levantasse. A seguir, saltou para a cadeira que ele ocupava e, com outro
belo salto, para cima da mesa. Por alguns minutos executou uma série de
passos rápidos e leves entre copos e garrafas, sem tocá-los. Então parou,
fitando Larry sem sorrir. Era, naquela pose, uma fonte de sensualidade.


                                                                       12
Com um gesto bem vagaroso, foi erguendo a saia, revelando milímetro a
milímetro sua bem torneada perna. Quando já descobria metade da coxa,
ouviu-se um estampido de revólver de brinquedo, e então as luzes se
apagaram.

      Um riso de surpresa percorreu a platéia, seguido de aplausos.
Roberta, porém, prendeu o fôlego, temendo de modo infantil que Larry
tivesse desaparecido na escuridão.

      Mas, quando as luzes voltaram, ele continuava ali, sorrindo como um
garoto, enquanto Florita, já no chão e sem o foco de luz, parecia muito
menor do que segundos antes. Ela se curvou em agradecimento aos
aplausos, mas logo sentou-se numa cadeira junto da de Larry, enquanto a
orquestra começava a tocar música para dançar.

      — Espero que não se importe — disse para Larry, desculpando-se
num tom agradável e bem nova-iorquino. — Era um número novo e eu
precisava testá-lo com alguém que não tentasse me agarrar.

      Roberta ficou curiosa:

      — É a primeira vez que faz esse número?

      A outra assentiu.

      — Sim, toda a “dança espanhola” é novidade — respondeu com
ironia.

      — Você não gosta? — Larry perguntou.

      — O quê? Criar suspense e desaparecer no escuro, com um tiro de
pólvora seca? Grande coisa. Sou uma dançarina, não uma maldita
ilusionista. — Levantou-se e avaliou-o com o olhar. — Fique por aí que eu
voltarei para mostrar que tipo de dançarina eu sou... quando tenho um
parceiro.


                                                                      13
Sem mais palavras, deu meia-volta e avançou entre as mesas, alheia
aos cumprimentos vindos de todos os lados. Os dois funcionários do
ministério mal disfarçavam a inveja.

        — Ora, esse é um convite que não se pode recusar — o mais jovem
disse cobiçoso. — Nunca soube que ela tenha dançado com um freguês
antes.

        — Talvez ela tenha discutido com Madariaga e essa seja sua
maneira de puni-lo — o mais velho ponderou com cinismo.

        Mas, sentado em sua mesa, Madariaga ainda fumava seu charuto
com ar impassível. Tinha olhado para eles uma única vez, quando Florita
se afastou, tornando a ficar absorto nos próprios pensamentos desde
então.    Sua    atitude,   ao   menos,   tranqüilizava   Roberta   quanto    à
possibilidade de ter seu assistente devorado por um latino ciumento
enfurecido. Procurando se acalmar, tratou de prestar atenção no que
acontecia em sua própria mesa.

        E foi quando se achava entretida pela conversa de seus
acompanhantes que uma voz macia quase fez seu coração saltar pela
boca.

        — Señorita.

        Ela se virou e percebeu Don Rafael em pessoa, muito tranqüilo e
elegante, oferecendo-lhe a mão de modo imperativo.

        — Gostaria de dançar? — Olhou para Larry. — Com a sua permissão,
é claro, Señor?

        Antes que ela pudesse externar a recusa ditada por todos os seus
instintos, Larry apressava-se em consentir sorrindo. Ela se levantou
furiosa. Não era uma feminista, mas a presunção dos modos de Don
Rafael e a “permissão” dada tão facilmente por seu assistente fizeram


                                                                             14
seu sangue ferver. Por um breve segundo ela o encarou disposta a dizer
que não dançava e que não a amolasse.

     Mas então lembrou-se: estava ali a trabalho, e aqueles eram os seus
clientes, que pertenciam a uma sociedade com seus próprios hábitos e
regras. Ela, como uma estrangeira, deveria ser capaz de responder com
civilidade. Assim, aceitou a mão estendida de Madariaga e levantou-se,
deixando para o dia seguinte, em Miami, para explicar a Larry que tipo de
assistência esperava dele em Alto Rio.

     A música era romântica e suave, e Madariaga revelou-se um bom
dançarino, conduzindo-a com elegância e sem tentar forcar um contato
mais íntimo entre seus corpos. Mesmo assim, a impressão que provocava
em Roberta era intensa; ao mesmo tempo uma estranha atração... e um
medo quase incontrolável.

     Para disfarçar as contraditórias emoções que a dominavam, ela
disse com frieza:

     — É hábito seu convidar mulheres desconhecidas para dançar,
senor Madariaga?

     — Apenas quando me intrigam — respondeu imperturbável.

     Ela percebeu que ele zombava, que pensava seduzi-la com seu jeito
insinuante, da mesma maneira que Florita tinha feito com Larry. Mordeu
os lábios de raiva.

     — Eu a ofendi? — ele perguntou numa voz suave e rouca.

     Roberta, reagindo de forma irracional, estremeceu. Ele notou.

     Apertou-a de leve e depois relaxou:

     — Eu a ofendi? — insistiu com certa apreensão.



                                                                      15
— Ainda não — ela respondeu, erguendo a cabeça para encará-lo.

     Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.

     — Ainda não? Então espera que eu o faça?

     Ela sorriu.

     — Acho muito provável — disse com falsa doçura. Com satisfação
viu que afinal o havia desconcertado.

     — Mas por quê? Porque eu a convidei para dançar?

     — Porque você perguntou ao meu acompanhante se podia dançar
comigo — ela o corrigiu.

     Madariaga deu de ombros.

     — Pode não acreditar, mas no meu país seria um insulto ao seu
acompanhante se eu tivesse agido de outra forma. É uma questão de
cortesia, apenas — animou-se. — Mas é claro que cortesia deve ser
considerada inaceitável num país de mulheres feministas como o seu, não
é, Señorita? E essa é toda a razão para sentir-se ofendida por mim?

     — Não — ela retrucou com calma. — Não gosto de homens que
sopram a fumaça de seus charutos no rosto das mulheres.

     Seguiu-se uma pausa. Então ele falou devagar:

     — Acha que eu fui rude com Florita?

     — Senor Madariaga, não é da minha conta como se comporta com
outras pessoas. Exceto — acrescentou — quando é uma indicação de
como pode se portar comigo.

     Ele a inquiriu com seus olhos de um castanho tão escuro que mal se
viam as pupilas.

                                                                      16
— Não gostaria que eu a tratasse como tratei, Florita? — zombou.

     Roberta enrubesceu de raiva.

     — Para ser frança, senor Madariaga, eu preferiria que não me
tratasse de jeito nenhum — disse com rispidez.

     Ele deu uma risada suave.

     — Mas isso é pedir o impossível, Señorita, já que é tão bonita que
nenhum homem poderia resistir.

     Diante de tal ousadia e poder de sedução, ela riu com certo
descontrole. Então ele a apertou junto a si, dessa vez não relaxando a
pressão.

     — Por que você ri? — disse em tom de reprovação, mas ainda
conservando uma nota divertida. — Acredita que eu seja o tipo de homem
que pode ver a beleza e se manter indiferente?

     — Não — ela retrucou com jovialidade. — Acho que é o tipo de
homem que não resiste à oportunidade de induzir as pessoas a se
fazerem de bobas.

     — Señorita, está sendo injusta — ele murmurou. — Acredita que
tentei lisonjeá-la?

     — Acredito que está tentando me pôr nas nuvens — Roberta disse
com bom humor.

     Ele suspirou.

     — Então, é porque a Señorita de fato não sabe a beleza que possui.
— E com isso levou-lhe a mão até os lábios, aplicando-lhe meia dúzia de
pequenos beijos, sem deixar de fitá-la.

     Foi a vez dela suspirar com infinita paciência.

                                                                    17
— Señor Madariaga, eu me conheço muito bem. Conheço cada
milímetro.

      — Eu não acredito. — Balançou a cabeça. — Fala de modo tão afiado
em milímetros e em ser feita de boba... está tudo errado. Que posso
dizer quando se imagina uma mulher de sonhos ... — enquanto falava, sua
mão corria as costas de Roberta numa carícia sensual — e de repente
despertamos com ela nos braços?

      Ela se afastou um pouco e olhou direto em seus olhos.

     — Não sei se estou habituada a cumprimentos tão lisonjeiros. Depois de dois
minutos começo a achar difícil suportar.

      Dançaram por algum tempo em silêncio. Então ele tornou a falar:

      — Eu desejaria que não fosse tão inteligente, Señorita. Permita-me
dizer que é um tanto desanimador mergulhar em um par de profundos e
misteriosos olhos azuis para apenas descobrir que estou sendo avaliado.

      Ela conteve um sorriso.

      — Sinto muito — disse educada. — Creio que somos apenas
incompatíveis. — Afastou-se ainda mais dele e lançou um olhar para sua
mesa. — Portanto, quem sabe se nos juntássemos ao meu acompanhante?

      Don Rafael Madariaga franziu o cenho, intrigado, mas logo
recuperava o ar divertido, dizendo numa voz rouca e baixa:

      — Não pode, com apenas uma dança, dizer se somos incompatíveis
ou não, minha pequena. E eu, que imagino possuir grande experiência
nesses assuntos, acredito que vamos acabar descobrindo uma grande
afinidade.

      Roberta não respondeu de imediato. Estava perturbada, tinha de
admitir. Algo lhe dizia que aquele homem sedutor estava jogando algum
obscuro jogo com ela. Ainda não tinha perdido o controle de si mesma,

                                                                             18
mas sentia uma sutil atração a ameaçar sua capacidade de resistir.

     Ele prosseguiu:

     — Você parece tão distante e, ainda assim, tão desejável; a
inalcançável dama no pedestal.

     Ela o encarou, confusa.

     — Penso que você mal percebe o seu poder — ele disse.

     Roberta engoliu em seco, lutando para romper o encanto que ele
exercia.

     — Señor Madariaga, por acaso está me dando uma cantada? —
perguntou direta.

     Ele se mostrou tão surpreso que quase parou de dançar. Mas logo
se recompôs:

     — Não, Señorita — disse com calma e bom humor, sem se mostrar
nem um pouco ofendido. — Quero crer que se eu desejasse fazer amor
com você — enfatizou as palavras como se a corrigisse — você saberia
muito bem. Isso apesar do meu mau inglês.

     Seu inglês era perfeito, ela pensou, como ele próprio devia saber.
Roberta recusou-se a se submeter.

     — Também acho — retrucou com um brilho frio no olhar.

     Ele sorriu.

     — Você saberá. Eu prometo — disse com suavidade. E parecia estar
mesmo falando sério.




                                                                     19
CAPÍTULO II



     Ele a estava conduzindo de volta à mesa quando as luzes se
apagaram e a boate mergulhou na escuridão. De algum ponto ouviu-se o
grito de uma mulher, e Roberta sentiu-o apertar-lhe o braço.

     — Não se preocupe — soou a voz grave e calma. — É só uma queda
de energia elétrica; acontece muito aqui em Alto Rio. De modo geral são
programadas, para que as pessoas estejam preparadas, mas às vezes —
havia uma nota bem-humorada em sua voz — as máquinas tomam suas
próprias decisões. Por isso a gerência prepara uma série de alternativas
para a iluminação... e aí vêm eles.

     Roberta viu os garçons se apressando de um lado para outro com
bandejas repletas de velas acesas. Os fregueses aceitavam uma vela em
cada mesa com a tranqüilidade de quem já fazia daquele ritual um hábito.

     — Muito eficiente — ela comentou, retomando seus passos. A seu
lado, Madariaga deu uma risada abafada, fazendo-a virar-se com uma
expressão inquiridora.

     — Eficiência — ele murmurou. — Que tristemente típico! Você não
acha a luz trêmula das velas romântico, acha eficiente.

     Sentindo-se outra vez criticada, suspirou.

     — Você é romântico, Señor?

     — Não, eu não me descreveria como um romântico — respondeu. —
Embora, comparado a você, eu provavelmente seja.

     — Estou certa que sim — ela concordou, sentando-se e despedindo-
o com um sorriso educado. — Obrigada pela dança.


                                                                      20
— O prazer, Señorita, foi meu — assegurou com gravidade. — E
espero ter outra oportunidade, mais tarde, quando a luz tiver voltado. —
Acenou para todos com elegância e retornou à sua própria mesa.

     Inclinando-se para servir a Roberta mais vinho, Larry cochichou:

     — Não sei quem é esse sujeito, mas os rapazes aqui não o apreciam.

     Roberta sorriu, bebericando o vinho e evitando olhar para seu
assistente. Este, por sua vez, fingiu olhar ao acaso para o salão em
penumbra, mas continuou falando num murmúrio:

     — Começaram a falar em contar ao ministro, talvez esta noite
mesmo. Acho que Madariaga os amedronta. E com certeza não
acreditaram que ele estava dançando com você apenas porque se sentiu
atraído.

     Ela absorveu aquela informação. Também não havia se iludido, mas
era interessante constatar que outras pessoas se mostravam tão
alarmadas quanto ela própria. Então, o que era ele, além de um advogado?
Quem sabe não pertencia a uma daquelas confrarias internacionais com
ação dirigida a vários países do mundo? Talvez a julgasse portadora de
alguma informação valiosa.

     Roberta comprimiu os lábios com preocupação. Sim, é claro que
possuía informações importantes, mas não pretendia revelar nada. Não se
a Technica Associates pretendesse fechar negócios na América Central
outra vez. E, acima de tudo, não se ela pretendesse conservar sua
reputação e também seu emprego, que era a única coisa significativa que
lhe havia restado desde que Hugh Hamilton a havia deixado para se casar
com outra. Então, tomou uma decisão:

     — Olhe, eu estou cansada — disse a seus convidados com seu
sorriso mais charmoso. — Acho que a altitude me afetou, afinal. Não
ficariam aborrecidos se tivessem de passar o resto sem mim, não é? —

                                                                        21
perguntou com uma ponta de ironia.

     Os      representantes   do   ministério    sorriram;   educadamente
lamentosos, mas sem dúvida, aliviados. A presença dela ali os inibia,
impedindo que se divertissem à vontade à custa da “grande empresa
norte-americana”. Agora, seus semblantes indicavam que estavam livres
para aproveitar de verdade.

     — Eu pago a conta do que foi consumido até agora — ela disse a
Larry. — Você cuida do resto. Eu usarei o carro, se não houver problemas
para você.

     O presidente de Oaxacan, antes de compreender que a Technica
Associates não ia facilitar-lhe a abertura de uma conta secreta num
banco suíço, tinha posto uma limusine com chofer à disposição da Señorita
Roberta Lennox e seu assistente.

     — Tudo bem, eu pego um táxi. — E acrescentou com seu sorriso
infantil! — Ainda bem que já fiz as malas. Pelo que vejo esses rapazes
estão dispostos a varar a noite. Eu não ficaria surpreso se amanhã tiver
tempo apenas para pegar minhas coisas e seguir para o avião.

     Ela sorriu.

     — Vou guardar um lugar para você. Você vai merecer.

     Levantou-se    com   despedidas   gerais,   pedindo     para que não
abandonassem seus lugares, enquanto uma garçonete surgia com mais
uma bandeja carregada de bebidas. A caminho da saída, parou junto ao
caixa para pagar a conta da mesa, o que causou uma reação de
estranheza no funcionário, embora este conservasse a discrição que a
sofisticação da casa exigia. Roberta entregou-lhe um cartão de crédito
com ar cansado.

     — Vou pegar o meu casaco — disse. — Poderia mandar chamar o


                                                                       22
meu carro, por favor? O nome é Lennox.

     Pouco depois, com tudo resolvido, ela saiu para encontrar o
motorista numa banca de flores, junto à porta de saída, rodando seu
quepe entre os dedos, parecendo meio nervoso. Assim que a viu,
apressou-se em abrir-lhe a porta de trás da limusine.

     O interior do luxuoso automóvel cheirava a charuto, colônia
masculina cara... e alguma coisa de odor adocicado, enjoativo. Roberta
fez uma careta, mas conformou-se, já que até o hotel seria uma curta
viagem de não mais de dez minutos.

     Enquanto ela ainda pensava nos odores do carro, o motorista fazia a
maior confusão para partir. Por duas vezes tinha dado a partida e
deixado o motor morrer. Talvez estivesse um pouco bêbado, já que na ida
havia se revelado um excelente chofer. Por fim partiram, mas com um
solavanco que quase a atirou contra o banco da frente. Tudo estava
escuro; a queda de energia parecia ter afetado toda a iluminação pública,
de modo que não havia movimento nas ruas mergulhadas na escuridão.

     Mal   haviam   avançado    cem   metros,   a   limusine   começou   a
ziguezaguear como se estivesse desgovernada. De repente o carro foi
para a esquerda e bateu em algo que Roberta julgou ser um outro veículo,
até parar atravessado na pista, num ângulo perigoso. Com o baque, ela se
viu lançada para o chão do carro.

     Recuperando-se do choque, ela procurava se levantar, mas foi
impedida. Entre vozes vindas não sabia de onde, sentiu que lhe cobriam a
cabeça com um pano negro. O cheiro adocicado ficou mais forte; por fim
compreendeu, era clorofórmio que lhe aplicavam à boca e ao nariz. Ainda
debateu-se, horrorizada, mas lentamente mergulhou no abismo da
inconsciência.

     Quando voltou a si já era dia. A primeira coisa que viu foi um facho


                                                                         23
de luz passando por uma fresta. Seria uma cortina? Não, estava com os
olhos vendados. Alguém a havia drogado, vendado seus olhos, e agora ela
não tinha a menor noção de onde se encontrava.

     Permaneceu deitada sem se mover, tentando achar algum sentido
em toda aquela confusão.

     Não havia sensação de movimento, portanto não estava num carro.
Ou, se estava, não se movia. Também não distinguiu nenhum ruído de
motor. De longe, teve a impressão de ouvir vozes. Prendeu o fôlego e não
escutou o barulho de nenhuma outra respiração. Estava sozinha ali.

     Passados alguns instantes, tentou se mover. Seus pulsos tinham
sido amarrados, não muito apertado. Os tornozelos estavam soltos. Onde
quer que estivesse deitada, era uma superfície dura. Moveu-se de novo e
algo caiu. Ao barulho, as vozes se calaram.

     Uma porta se abriu; ouviu o rangido atrás de sua cabeça. Uma voz
de menina disse em castelhano:

     — Ela acordou. O que fazer?

     Seguiu-se uma resposta que Roberta não pôde captar. Então sentiu
mãos sobre si, desajeitadas, mas não rudes, e então foi erguida. Sentiu a
cabeça girar com extremo desconforto. Disse no seu castelhano
perfeito:

     — Sinto muito, mas eu vou vomitar.

     A menina soltou uma exclamação e tratou de retirar o capuz que a
cobria. Bem a tempo uma tigela foi posta na sua frente.

     Quando terminou, reclinou-se para trás. O corpo todo tremia, e um
suor frio cobria-lhe a testa e as costas. A menina, que não era tão
criança quanto sua voz infantil fazia supor, olhou-a com ar de dúvida.


                                                                         24
— Você está bem?

     Com um pálido sorriso, Roberta respondeu com voz fraca:

     — Eu não sei.

     — Você tem alguma doença, quero dizer, sofre do coração, ou coisa
parecida?

     Ela negou com a cabeça.

     — Graças a Deus! Pelo menos os imbecis não trouxeram uma inválida
— a garota disse com irritação.

     Sentindo o corpo frio, Roberta tentou se recompor.

     — Onde... onde estou?

     No mesmo instante o rosto da outra se endureceu. Não houve
resposta.

     — Eu não estou ainda em Alto Rio, estou? — ela insistiu, sentindo
voltar algumas das lembranças da noite anterior.

     — Vou lhe dizer. Se for necessário que fique sabendo.

     — Oh... — Roberta digeriu aquela resposta devagar. Sentia-se
horrível, mas sua capacidade de raciocínio principiava a voltar. — Isto é
um seqüestro?

     A pergunta inquietou a garota, o que a Roberta pareceu
incompreensível, já que a haviam dopado e encapuzado. Quem sabe não
teriam se excedido em suas instruções? Resolveu fazer um teste:

     — Os meus braços estão doendo. Você não podia me desamarrar?

     A jovem ficou em dúvida. Então assentiu e se inclinou com uma faca


                                                                      25
de lâmina curta. Cortou as cordas com facilidade. Roberta torceu para
que seu sobressalto tivesse passado despercebido para a outra, pois
sabia que demonstrar medo não seria uma boa política para a situação.

     — Obrigada — disse, flexionando os ombros.

     — Por nada — a garota hesitou. — Teremos de esperar um pouco.
Talvez não muito. Aceita um café?

     Temendo a possibilidade de o café conter alguma droga, optou por
correr o risco e aceitar. Precisava de qualquer coisa que aliviasse aquele
gosto ruim da boca.

     — Sim, obrigada.

     — Então vou buscar. Fique aqui, por favor. — Avaliou-a por alguns
segundos. — Acho que não preciso lhe dizer que não deve tentar fugir,
não é, Señorita? Não queremos machucá-la, mas somos gente séria.

     Compreendendo a gravidade do aviso, Roberta engoliu em seco e
assentiu com um aceno de cabeça. A jovem se foi.

     O tempo foi se passando sem que a outra voltasse. Roberta,
sentindo-se esquecida, estudou seu cativeiro. Era um quarto comprido e
estreito. Duas janelas protegidas por venezianas. A um canto podia-se
ver uma escrivaninha de madeira maciça, junto da qual, pregado na
parede, havia um grande mapa cheio de alfinetes de cabeça colorida.
Parecia uma sala de táticas de guerra.

     Era isso mesmo o que devia ser: tinha ouvido falar da atividade
guerrilheira naquele país, mas o serviço de informações da Technica
afirmara que se tratava apenas de pequenos grupos confinados às
montanhas. Ela e Larry não seriam incomodados.

     Ela mal conteve uma risada sarcástica. Não seriam incomodados!
Massageou os pulsos doloridos. Sentia-se mal e não tinha a menor idéia

                                                                        26
de onde estava. Quando voltasse para casa diria a Tony para despedir o
departamento de informações inteiro, prometeu.

     De repente, interrompendo suas divagações, o barulho de várias
vozes alteradas falando ao mesmo tempo vieram do lado de fora. Então
ouviu-se um estrondo alto, como se alguém tivesse atirado longe um
móvel com um chute. As vozes sossegaram. Palavras começaram a ser
compreensíveis.

     — ...nenhum bom senso! — disse uma voz que estalou como um
chicote. Instintivamente ela se encolheu. Teve pena de quem quer que
estivesse levando aquela bronca. Ao mesmo tempo, rezava para não ter
que encarar aquele que era obviamente um homem enfurecido.

     — Você não recebeu ordens de capturar uma mulher! — a primeira
voz fulminou.

     Uma voz feminina se interpôs, como se procurasse acalmar os
ânimos. Parecia ser a jovem que tinha ido buscar o café:

     — Nós recebemos ordens de capturar esse tal de Lennox, e foi o
que fizemos.

     — Não fizeram nada disso. Agiram cedo demais. Lennox ainda
estava no clube quando vocês pularam no carro dessa mulher... e fizeram
um grande escândalo. O Exército foi avisado em menos de meia hora.
Vocês sabiam disso? Pensaram nisso quando decidiram bancar os super-
heróis?

     — Foi azar... — a garota começou mas foi interrompida.

     — Foi mais do que azar, foi uma grande estupidez! E um desastre.

     — A culpa foi de Gregório — disse a voz do rapaz. — Ele estava com
tanto medo que nem podia dirigir em linha reta.


                                                                        27
— Nesse caso devia ter se livrado dele e dirigido você mesmo.

     — Mas eles já o conheciam — o rapaz objetou.

     — Pessoas assim não prestam atenção em quem é o chofer. Não
teriam se importado com quem os estava conduzindo. Você é um tolo,
Pepe — o que parecia o chefe disse, mas já sem a fúria inicial. — É
melhor eu vê-la quando ela acordar.

     A resposta foi uma risada seca.

     — Ela enjoou? Deviam ter pensado nisso quando resolveram entupi-
la de clorofórmio!

     — Parece que ela está se recobrando — disse aquele que devia ser
Pepe. — Pediu café.

     — Ótimo. Então vá buscar. E traga um pouco para mim também.

     Roberta ouviu passos se aproximando. Procurou endireitar-se sobre
o duro colchão onde tinha ficado deitada. Esforçou-se para reprimir o
tremor que lhe dominava o corpo; era importante não deixar
transparecer medo.

     Mas, quando a porta foi aberta, tal foi sua surpresa que por um
momento esqueceu o medo. Ali, na soleira, surgiu ninguém menos do que
Don Rafael Madariaga.

     Não havia surpresa no rosto dele. Sua expressão era dura, mas era
óbvio que já sabia quem encontraria ali muito antes de abrir a porta.
Roberta começou a sentir indignação.

     — Bom-dia, Señor — cumprimentou-o.

     Parecendo ainda mais irritado, ele fechou a porta atrás de si e
avançou para ela.


                                                                     28
— O que foi que essas crianças cretinas fizeram a você?

     — O que você lhes ordenou, imagino — respondeu com frieza,
olhando bem em seus olhos.

     — Eu não os mandei transformá-la num fantasma — disse, áspero.

     Ela se permitiu um sorriso irônico.

     — Ou me drogar? Ou me seqüestrar?

     — Seqüestrar, sim. Embora não você — ele devolveu no mesmo tom
frio. — Você, devo dizer, é uma complicação a mais. E o clorofórmio foi
refinamento deles. Deus sabe onde o conseguiram. Não sabem como usá-
lo. O jipe está fedendo, e a limusine presidencial deve estar também,
imagino — concluiu com desgosto.

     — Que desajeitados, eles, não?

     — Mais que isso — disse mais calmo. Sentou-se na quina da
escrivaninha e ficou balançando uma perna, com a bota indo e vindo. Foi
então que ela reparou o quanto ele estava diferente naquela manhã. Mas,
de qualquer maneira, de smoking ou vestido com roupas rústicas, era
impossível negar seu enorme charme. — Eles deveriam ter capturado o
seu companheiro, o líder da missão, Roberto Lennox.

     Seguiu-se uma breve pausa. Então ela falou com cuidado:

     — Parece que você deu instruções conflitantes. Creio que não pode
culpá-los.

     Ele a examinou intrigado.

     — O que quer dizer com isso?

     — Estou dizendo que deveria ter mandado capturar meu assistente
ou Lennox. Eu sou a líder da missão, Roberta Lennox.

                                                                      29
Por um quase imperceptível segundo ele reagiu com choque,
cerrando os punhos com força. Mas logo se recompunha.

      — Eu não acredito que enviariam uma mulher para negociar com o
presidente Valetta.

      — Garanto-lhe que enviaram! — ela retrucou ofendida. — E ele
estava recebendo tratamento de primeira classe com isso. Sou a diretora
da Technica Associates desde a sua fundação. Costumava atuar apenas
em território africano. Foi só porque eu acabei de ser transferida para a
América Latina que vim pessoalmente. Era uma espécie de viagem de
familiarização.   Em   condições   normais,   Larry   teria   assumido   as
negociações sozinho. Eu viria apenas para o acerto final.

      Madariaga levou um tempo para assimilar aquelas novas e más
notícias.

      — Nós estávamos querendo um diretor, sem dúvida. Por isso
escolhemos a Technica em vez de qualquer outra companhia estrangeira.
Mas... uma mulher? — ele fechou os olhos.

      — Sabia que alguns dos mais brilhantes cérebros deste país
trabalham colhendo informações para mim?

      Ela teria achado cômico seu desespero se as circunstâncias fossem
outras. Mas naquela situação Roberta Lennox achou melhor não rir. Além
do mais, começou a tremer de modo convulsivo, tanto pelo efeito da
droga quanto pela tensão emocional. Queria disfarçar, mas era difícil, já
que seus dentes não paravam de bater.

      — Talvez devesse ter especificado, dizendo que uma mulher não
servia — disse numa derradeira tentativa de se controlar.

      Ele a considerou por um longo momento.

      — Talvez eu devesse, mas agora é tarde demais. O seu assistente

                                                                         30
já deixou o país, sem sombra de dúvida. E você está aqui. Terei de
alterar os meus planos.

     Sob aquele olhar frio e calculista, ela se sentia cada vez pior.
Precisava falar rápido.

     — A Technica Associates não vai pagar resgate. É parte de sua
política. Trabalhamos por todo o mundo, inclusive em países com
problemas políticos, e não podemos arcar com a possibilidade de ficar
pagando resgates um em cima do outro.

     Madariaga não se perturbou.

     — Nem mesmo por um diretor?

     Ela sorriu com desânimo.

     — Especialmente por um diretor que contribui para a adoção dessa
política de não pagar.

     — Mas e sua família? Não fariam pressão?

     Roberta não respondeu de imediato. De modo geral, não possuir uma
família não a incomodava. Pelo contrário, com seu espírito independente e
temperamento de jogador, ser sozinha significava liberdade para tomar
decisões e correr o risco que bem entendesse. Mas, naquele momento,
sentiu uma solidão terrível. E, quando falou, desejou que a desolação não
aparecesse na voz:

     — Não há família.

     — Não? — ele recebeu a informação sem nenhum traço de emoção.
— Bem, por uma questão de honestidade devo lhe dizer que não pensei
em pedir um resgate por você, Señorita. — E, percebendo o medo em seus
olhos azuis, acrescentou: — E em nada violento, também. Não é preciso
ter receio.

                                                                      31
O tremor aumentava, incontrolável. Roberta comprimiu as mãos,
desesperada, mas conseguiu falar com calma:

     — Bem, você deve admitir que ser capturada por um grupo
guerrilheiro não é a melhor maneira de se passar as férias — disse,
procurando demonstrar bom humor.

     Por um breve instante os olhos escuros de Madariaga refletiram a
admiração por aquela mulher corajosa; em seguida, seu rosto recuperou
um ar inexpressivo.

     — O que sabe da história do meu país, Señorita? — perguntou de
repente, com um leve tom de zombaria. Mas ela levou a questão a sério:

     — Oito milhões de habitantes, dois centros de alta densidade
populacional, mas a maioria das pessoas é camponesa, vivendo no meio
rural e subsistindo da agricultura. Interior montanhoso e bacia
hidrográfica rica, sujeita a enchentes. Solo fértil, mas chuvas
irregulares e terreno escarpado tornaram a agricultura precária. — Ela
pôde ver a surpresa em seu rosto, o que a deixou satisfeita, apesar do
medo. — Eu sou agrônoma, disse com naturalidade.

     — Entre outras coisas, parece.

     — Uma agrônoma que queria vender um projeto de irrigação — ela
prosseguiu, pensativa. — Um bom projeto que seu presidente recusou.

     — Não se preocupe, ele talvez ainda o aceite. Ou alguém o fará.
Meu Deus, é preciso que algo seja feito pelo interior. Tem sido
negligenciado por muito tempo.

     Como pensasse da mesma maneira sobre o assunto, Roberta não
disse nada. Não compreendia aquele homem. Parecia muito frio, muito
desapaixonado para ser um guerrilheiro da liberdade, como diziam os
noticiários na televisão. E, no entanto, o modo como havia sido


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seqüestrada e era mantida cativa sugeria que se adaptava àquela
definição.

     — Bem, você está bem informada quanto à geografia, devo admitir
— ele retomou o assunto. — Mas é de história que eu estava falando.

     — Governo militar nos últimos quatro anos — ela apressou- se em
dizer. — É tudo o que eu sei.

     — Sim — Madariaga confirmou com rispidez. — Imagino que isso
deva ser tudo que a maior parte do mundo saiba. — Fez uma pausa, seus
lábios se retraíram numa expressão amarga. — Não é tão simples assim...
— Ergueu-se da escrivaninha e deu alguns passos a esmo, nervoso. —
Oaxacan, por muitos anos, era uma nação apenas no nome. Na verdade,
depois da independência, continuou a ser apenas um aglomerado de
grandes latifúndios, com a maior parte da população vivendo em situação
de miséria.

     Ela sentiu interesse.

     — Era uma colônia espanhola, não?

     — Sim. E sua história tem sido marcada pela sucessão de golpes de
Estado e de governos autoritários, culminando com a ditadura militar,
quando o último presidente eleito resolveu implantar a reforma agrária.
— Respirou fundo e prosseguiu. — Bem, com a deposição de Gonzalez
Arcade surgiram vários grupos terroristas, de esquerda e de direita.
Vivemos um momento de revolução.

     — Revolução? — ela perguntou chocada.

     — Sim — respondeu com um sorriso cansado. — E acredito que
estamos perto do dia em que todos terão direito a um teto e comida. O
que atrapalha é a interferência das grandes nações, que enviam mais
armas do que alimentos. A violência se generalizou por aqui; tivemos vinte


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anos de guerra civil.

     — Eu não fazia idéia! — ela reagiu, confusa.

     Ele deu de ombros.

     — Somos um povo muito atrasado, moça. Com alto índice de
analfabetismo e tradições culturais muito antigas. É difícil organizar uma
população despolitizada. Há uma geração inteira no meu país que não
conheceu um tempo de paz, Señorita Lennox.

     — Mas o governo militar mantém uma certa estabilidade, não? —
ela argumentou.

     — Sua observação mostra o quanto ignora sobre Oaxacan, minha
cara — seus lábios esboçaram um sorriso de desdém. — Os militares não
estão interessados num desenvolvimento social. Há uma repressão feroz,
e a guerra civil prossegue. Nosso povo luta entre si.

     — E você está engajado nessa luta...

     — Naturalmente.

     Ela olhou ao redor e perguntou;

     — E você comanda um desses grupos de guerrilha, é isso?




     CAPÍTULO III



     Depois que Madariaga se foi, acabaram lhe trazendo o café. Estava

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quente, bem forte e açucarado. Roberta segurou a caneca com ambas as
mãos, procurando aquecê-las. Não costumava adoçar o café, e no começo
achou-o intragável.

     A jovem que o trouxera observou-a intrigada.

     — Você ainda se sente... mal?

     Ela balançou a cabeça.

     — Não. Mas estou com muito frio.

     A outra fungou.

     — Você não está vestida para as montanhas — replicou em voz
neutra.

     Roberta evitou um comentário sarcástico sobre não ter planejado
visitar as montanhas. Fez um gesto de assentimento disse;

     — Eu estava com um casaco ontem à noite. Sumiu?

     A garota foi até a ponta do colchão onde estava e pegou algo que
mais parecia um trapo amarrotado. Era o casaco.

     — Isso não vai esquentar — disse, estendendo a peça de tecido
fino. — É leve demais — prosseguiu pensativa. — Mas é bonito. A minha
irmã gostaria...

     Roberta bebericou o café. Achou que, se conseguisse fazê-la
continuar falando, talvez obtivesse alguma informação útil. Deu um
sorriso simpático.

     — Que idade tem sua irmã?

     — Minha irmã não é uma criança — a garota respondeu com ironia.
— É que ela gosta de coisas bonitas, Señorita. Ela é a dançarina Florita;

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acho que a viu ontem à noite.

        Ela considerou aquilo por um momento. As duas eram tão
diferentes! Mas é claro que nem sempre duas irmãs se parecem
ponderou.

        — E sua irmã partilha dos seus pontos de vista? Do seu modo de
vida?

        A outra sorriu.

        — Não vai encontrá-la nas vilas das montanhas, quebrando as unhas
num tear, se é o que quer dizer, Señorita. Por outro lado, ela e Rafael
trabalham muito juntos. Foram eles que planejaram a operação de ontem.

        Roberta lembrou de ter tido a sensação de que os dois trocavam
alguma mensagem durante a dança. Com um calafrio, prometeu-se nunca
mais duvidar de seus instintos.

        A jovem guerrilheira prosseguiu, orgulhosa;

        — Florita é muito famosa. Rafael está sempre dizendo que não
saberia o que fazer sem ela.

        — Estou certa que sim — ela retrucou com frieza, cobrindo as
costas com o delicado casaco.

        — Você está com frio — a garota constatou condoída. — Quando a
gente chegar a... quando a gente chegar, vou arranjar uma roupa quente
para você.

        — Obrigada — Roberta agradeceu, procurando ocultar seu
desânimo. Então iriam levá-la a outro lugar; com certeza para mais longe
da capital, pensou. — Hã... e vai demorar muito?

        A outra lançou-lhe um olhar desconfiado.


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— Quem sabe? — disse evasiva. — E seria melhor a Señorita não
ficar fazendo perguntas. Rafael não está de bom humor, não é bom
irritá-lo.

      — Tudo o que eu fiz para irritá-lo foi não ser um homem — ela
replicou com um muxoxo. — Acho que não podem me culpar por isso, não
é?

      A garota se mostrou surpresa.

      — Oh, mas você o fez ficar muito bravo. Não sei o que lhe disse,
mas ele ficou furioso. — Um certo respeito transpareceu na sua voz. —
Não é fácil fazer Rafael perder a calma. Normalmente ele é muito
controlado e sensato. — Então abriu um sorriso que a fez parecer uma
menininha: — Às vezes é muito chato.

      — Faz tempo que o conhece?

      — Toda a minha vida. Ele é como um irmão; talvez venha a ser
mesmo um irmão, um dia. É o que a minha mãe sempre quis. Mas quando
Florita começou a dançar, mamãe disse que ela já não servia para ser a
mulher de um homem público e que Rafael nunca se casaria com ela. —
Parou de repente, compreendendo que estava transmitindo informações
pessoais à “inimiga”. — Mas isso tudo não deve interessar a você, não é?
Preciso ir preparar as coisas para a viagem.

      Vendo-se mais uma vez sozinha, Roberta se pôs de pé, sentindo os
músculos doloridos. A cabeça parecia leve, como se estivesse se
recobrando de uma longa enfermidade. Curiosa, foi espiar pelas frestas
da janela.

      Pelo que parecia, achava-se numa cabana à beira de uma estrada
não pavimentada. Havia dois carros e um caminhão de médio porte
estacionados junto da cabana. Mas não via sinal de vida. Além da estrada
se erguia uma vegetação baixa e espessa que impedia a visão da

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paisagem. O céu estava azul sem nuvens.

      Por alguns minutos Roberta perdeu-se em divagações, imaginando
se Larry teria pegado o avião sozinho, acreditando que ela iria no
seguinte. Perguntou-se o que Tony acharia da situação. Normalmente ele
ficava muito irritado com qualquer imprevisto que interrompesse o curso
suave do sucesso da Technica. Segundo a opinião de Tony, pessoas que se
deixavam seqüestrar provavelmente não haviam tomado o devido cuidado
por isso não mereciam que se pagasse resgate, ainda que alguém pudesse
fazê-lo.

      Ela suspirou. Não achava que tinha sido descuidada.

      A porta se abriu com barulho e entrou um rapaz que ela ainda não
vira. Pareceu fitá-la com antipatia, mas, quando falou foi educado:

      — Deve vir comigo, Señorita Lennox. Agora, por favor.

      O medo voltou. Aquele rapaz era muito jovem, dava a sensação de
que poderia agir com violência caso sentisse que estava perdendo o
controle da situação. Ela respondeu com muito cuidado.

      — Está bem. Mas será que eu poderia... hã... me lavar?

      Seguiu-se um instante em que ele pareceu não compreender. Então
ficou muito ruborizado.

      — É claro — disse prestativo. — Marta vai mostrar onde. Não
demore, por favor.

      Mais tarde, sentada no jipe que seguia por um caminho de terra batida,
Roberta considerava a situação. Todos ali, exceto Madariaga, pareciam nervosos.
Pepe, que ia ao volante, e a jovem irmã de Florita, Marta. Ao chegar a uma
encruzilhada, Pepe passou para o caminhão e desapareceu pelo caminho mais largo.
Marta o substituiu no volante, e prestava extrema atenção à estradinha íngreme e
acidentada. Por todo o percurso não se viu vivalma. Cada vez mais o terreno ia
ficando pedregoso, e o ar rarefeito. Roberta foi ficando enjoada de novo. Começou a
empalidecer e a suar frio.

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— É a altitude — alguém disse com naturalidade, mas num tom amigável.

     E isso foi a última coisa que ouviu antes de desmaiar.

     Dessa vez ela foi retomando a consciência devagar, ouvindo um
murmúrio de vozes e sentindo um gostoso calor subir pelo corpo.

     — Ah, pobrezinha — disse uma voz desconhecida, com uma
pronúncia carregada.

     Roberta abriu os olhos devagar. Uma mulher se inclinava sobre ela,
agasalhando-a com um cobertor. Deu-lhe tapinhas encorajadores no
ombro.

     — Vai se sentir melhor, já, já, pobre criança.

     Roberta acreditou. Tornou a fechar os olhos para abri-los em
seguida. Tentou se apoiar sobre um cotovelo, mas a mulher a impediu.

     — Não, não! Deite-se. Você precisa recuperar as forças. Precisa de
tempo para se alimentar. Aqui é muito alto — disse a mulher com
preocupação.

     Ela ainda levou alguns segundos para compreender, mas, quando viu
ternura no rosto da outra, fez o que não fazia havia muitos anos;
começou a chorar.

     Na mesma hora a mulher sentou-se na beira do velho sofá e tomou-
a nos braços, consolando-a como a uma criança.

     — Vamos, vamos, já passou. Agora você está segura. — dirigiu-se a
alguém mais atrás, que não se podia distinguir no escuro. — Pobre menina,
está gelada! Don Rafael deveria ter vergonha. Afinal, ele não é um
moleque bobo como Pepe. Oh, o que Doña Eleonora não diria! Pobre
menina, pobre menina, pronto, pronto!

     Roberta, que não se lembrava de um dia ter sido chamada de “pobre

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menina”, continuou chorando e se deixando consolar amparada nos braços
daquela senhora grande e forte. Por fim, o pranto cessou e ela se
endireitou, passando a mão pelo cabelo para afastá-lo do rosto.

     — Está se sentindo melhor agora, não é? — a inesperada protetora
perguntou com um sorriso maternal.

     Roberta fez que sim.

     — Bom, bom. Marta foi pegar umas roupas para você ficar mais
confortável. E eu, Angelina, vou preparar algo quente para você beber. É
uma coisa que eu dou aos meus netinhos para curar enjôo da altitude. —
Ela se pôs de pé. — Mas não faça nenhum movimento brusco, por
enquanto. — Abriu um largo sorriso, que revelou a falta de alguns dentes.

     Roberta viu Angelina desaparecer, seguida por uma mulher mais
moça, talvez uma filha, ou mesmo uma neta. Deitou-se com a cabeça
apoiada sobre as mãos. Tudo ali lhe era tão estranho; toda aquela
conversa de família e parentes. Ela não era capaz de se lembrar da mãe,
e não chegara a conhecer o pai. Se tinha avós vivos, não sabia quem eram
nem onde encontrá-los.

     Aos poucos foi deixando surgir as lembranças de infância. Seu tio
Geoffrey nunca a quis, e não fazia segredo disso. Quando o funcionário
da instituição de menores disse que ela não ficaria num orfanato
enquanto tivesse parentes vivos, Geoffrey não gostou nem um pouco. Ela
ainda podia se lembrar com clareza de ouvi-lo dizer que, se ele e a esposa
quisessem ter filhos, teriam os próprios, e não uma pestinha horrível
como aquela. Toda a cena numa cozinha fria, diante de um funcionário
irredutível, onde ninguém parecia se importar com ela.

     Ela fungou e recolheu um resto de choro. Não que aquilo ainda
doesse. Nunca havia doído tanto quanto a traição de Hugh Hamilton.
Além disso, nunca tinha gostado do tio Geoffrey. Aprendera a se manter


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quieta e longe do caminho, transformando-se numa criança muda e
reservada, escondendo o espírito rebelde que herdara da mãe.

      E fora com sua grande força de vontade que, contra o desinteresse
do tio, tinha conseguido entrar para a universidade. Sustentara-se com
uma série de pequenos empregos que lhe rendiam o bastante para o
aluguel e para os livros de que precisava. Nessa época era uma garota
franzina, magra e cheia de olheiras.

      No escuro Roberta sorriu da imagem de si mesma nos tempos de
faculdade; determinada, orgulhosa e quase sempre embrulhada em
montes de malha por não ter dinheiro para comprar um bom casaco
contra o frio. Como tinha sido pobre! A maioria dos seus colegas de
Manhattan não acreditaria nas privações que sofrera em Glasgow. Mas se
sentia feliz, livre pela primeira vez do intratável tio Geoffrey e
completamente absorvida pelos estudos. Hugh havia achado graça de sua
devoção aos estudos.

      O sorriso nos lábios dela se apagou. A traição de Hugh a havia
ferido muito. Mesmo agora, cerca de dez anos depois, aquela era uma
recordação capaz de fazer seu coração doer. Lembrou-se de uma tarde
de amor na qual, em sua ingenuidade, julgou estar apaixonada. Depois,
chegou Caroline, surpreendendo-os e partindo em seguida, com ar
ofendido.

      — Não se preocupe — Hugh havia dito com voz macia. — Ela sabe
que isso não significa nada. Não precisa ficar tão assustada, minha
gatinha.

       Mas é claro que ela havia ficado assustada. E magoada. Tudo bem para
Caroline, que desde que concordara em se casar com seu tutor já devia esperar por
aquele tipo de cena. Ambos vinham do mesmo nível social, e o que importava era
que estavam comprometidos. Mas ela, Roberta, não estava preparada para ser tratada
como um bom programa para o que teria sido uma tarde aborrecida. Voltando a
pensar nisso, tanto tempo depois, não era difícil compreender. Hugh tinha sido
gentil, persuadindo-a a abandonar os livros de vez em quando, para que passassem

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juntos horas agradáveis fazendo amor. Na época, nem lhe passara pela cabeça que
ele não estivesse tão apaixonado por ela quanto ela por ele. E só depois do episódio
com Caroline foi que ficou sabendo que os dois estavam noivos, com data marcada
para o casamento. Hugh se mostrara surpreso por ela desconhecer o fato. Afinal
constava em todas as colunas sociais, e era incompreensível para alguém como
Hugh Hamilton, que Roberta não tomasse conhecimento dessa parte dos jornais.

      No final, mesmo Hugh sendo delicado e compreensivo, a mágoa era grande
demais para ser esquecida. Prosseguiu os estudos com maior dedicação ainda.
Continuava vendo Hugh, já que ele era seu supervisor. E, quando se formou, ainda
teve de suportar vê-lo um pouco ofendido por ela não aceitar as ofertas de emprego
que ele lhe havia arranjado.

      — Vou para os Estados Unidos — Roberta lhe havia dito com simplicidade.

      — Estados Unidos? — Hugh mal podia acreditar. — Você tem uma
colocação?

      — Não vou a trabalho, vou viajar, conhecer. Descobrir o que está
acontecendo além deste meu cantinho no globo.

      — Sem nenhuma segurança? — ele perguntou com ar de desaprovação, mal
se dando conta de que quando a havia decepcionado ela havia desistido de buscar
qualquer segurança.

      — Não. Só pela aventura — Roberta dissera, zombando.

       E desde então sua vida tinha sido mesmo uma grande aventura, Roberta
pensou, ajeitando melhor a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas. Gostava do seu
trabalho. Gostava de ajudar as pessoas a desenvolver seus negócios, de resolver
problemas, de viajar pelo mundo e viver em todo tipo de lugar. Possuía um luxuoso
apartamento em Manhattan, mas não ficava lá mais do que três meses por ano.
Ocupava o restante do tempo contatando representantes de outros países,
conhecendo culturas diferentes e muitas vezes exóticas. Adorava o trabalho de
campo. E pensou que quando se sentisse melhor não perderia a chance de dar um
passeio pela vila onde estava para conhece-la.

       Então, enquanto lhe ocorriam essas idéias, percebeu que devia ter
adormecido. A casinha ainda estava escura, mas pela porta não se via mais nenhuma
réstia de luz. Ouviu sons de pessoas se movendo do lado de fora. Junto do braço,
sentiu uma caneca de barro com um líquido morno. Imaginou que devia estar
fervendo. Tomando ânimo, sentou-se na beira do sofá e sorveu a bebida amarga.
Depois se levantou e foi até a porta. O que viu foi muito extraordinário.

      Estava escuro. Havia luzes em todas as casinhas que acompanhavam a única
rua da vila, sinuosa e não pavimentada. Mulheres velhas sentavam-se em pequenos

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grupos diante das portas abertas, enquanto velhos, crianças, moças, gatos, cachorros
e galinhas vagavam entre as duas fileiras de casas. Um burburinho de conversa
pairava no ar.

       Roberta permaneceu um bom tempo com o ombro apoiado no batente da
porta, e, como atrás de si não havia luz, os outros demoraram a perceber sua
presença.

      — Señorita Lennox? — era Marta, muito séria, quem falava. — Eu
trouxe algumas roupas. São de Florita; sou muito pequena, acho, para as
minhas servirem para você. A blusa é minha — acrescentou. — Espero que
sirvam.

      — Obrigada — Roberta agradeceu com sinceridade. — Eu estava me
perguntando o que esperam que eu faça.

      Na semi-escuridão, Marta lhe sorriu.

     — Por favor, fique à vontade para fazer o que quiser. Esta é uma vila comum.
Você é bem-vinda.

      — Mas... — ela hesitou — onde querem que eu fique?

      A outra riu.

      — Não temos nenhum lugar para mantê-la presa, aqui. Esta casa é para você
usar enquanto precisar.

      — Mas não é a casa de Angelina? Eu não gostaria de obriga-la a...

      Marta balançou a cabeça.

       — É muita consideração sua, mas não. Angelina mora naquela casa grande
ali, no fim da vila. Depois que se trocar, pode ir falar com ela.

      — Mas, então... quem eu desalojei? — Roberta insistiu.

      — Ninguém. Esta casa foi herdada por uma pessoa que não mora aqui.
Angelina só cuida para que esteja sempre arrumada e limpa. — De modo um tanto
inesperado, tocou de leve no braço de sua “prisioneira”. — Pode ficar à vontade.
Você não desalojou ninguém.

      E, assim, Roberta ficou. Era uma casa de um só cômodo, como pode
verificar na manhã seguinte. Tinha uma grande cama de casal de madeira


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maciça em um canto, uma mesa sob a única janela, várias cadeiras e uma
arca alta, também de madeira. As paredes e o chão de pedra eram
cobertos por belas tapeçarias de cores naturais. A roupa de cama era de
algodão, um pouco amarelecida pelo tempo, coberta por uma colcha
bordada a mão. Tudo era simples e meticulosamente bem cuidado.

     A única coisa que faltava eram utensílios de cozinha.

     Mas Roberta logo descobriu que não precisava cozinhar. Toda noite
ela jantava com Marta, Angelina e mais meia dúzia de pessoas, e o jantar
era a principal refeição do dia. Falavam com prazer sobre artesanato e
métodos de plantio. Só se recusavam a discutir política.

     Falavam com simpatia do homem a quem chamavam de Don Rafael.
Não tardou para que Roberta percebesse que para Angelina e para a
maioria dos aldeões a razão de sua presença ali era muito simples: Don
Rafael havia se apaixonado por ela à primeira vista. E de nada adiantou
ela protestar, pois suas objeções foram recebidas com sorrisos
cúmplices e indulgentes.

     Logo na manhã seguinte ouviu-se o barulho do motor de um veículo
subindo em direção à vila. Pouco depois, o pequeno Tônio abandonava suas
cabras pastando sozinhas para avisar que Don Rafael estava a caminho.
Angelina apressou-se em chamar Roberta:

     — Venha depressa! Venha depressa! Ele vai querer vê-la —
apressou-a, empurrando-a para fora da cabana.

     E a primeira coisa que ele fez ao chegar foi perguntar a Marta:

     — Onde ela está?

     Mas, antes que a moça pudesse dizer qualquer coisa, Angelina
surgiu, trazendo uma relutante Roberta.

     — Aqui está ela, Don Rafael. Nós cuidamos bem dela para você.

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Ele se aproximou e segurou-a pelos ombros, fitando-a com firmeza.
Roberta, de cabeça baixa, pôde ouvir o suspiro de alívio e satisfação de
Angelina. Ergueu os olhos e Don Rafael abriu um sorriso.

     — Estou vendo que sim, Angelina — ele disse, demonstrando
aprovação. — Ela parece outra. — Puxou-a para si e beijou-a na testa,
como uma bênção. E então, não apenas a boa senhora mas a vila inteira
suspirou sonhadora. Roberta teve vontade de chutá-lo.

     — Viu o presidente? — Marta interrompeu.

     — Vi — ele respondeu impassível. Tomou Roberta pelo braço e se
afastou do carro, cumprimentando um e outro enquanto caminhava, ora
com um sorriso, ora com um aperto de mão. Marta vinha atrás:

     — E daí?

     — Ele está considerando o assunto.

     A moça ficou desapontada.

     — Você não lhe deu um prazo?

     — Dei.

     — Quanto?

     — Curto o bastante para mantê-lo preocupado, mas não tão curto
para que ele entre em pânico — ele disse com frieza. — Valetta vai
passar umas semanas ruins.

     — Semanas! — Roberta gemeu. — Mas... e quanto a mim?

     Don Rafael olhou-a com calma.

     — Isso é uma coisa sobre a qual teremos de conversar. Mas não em
público nem agora, que estou cansado da viagem.

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Ela puxou o braço num gesto brusco.

     — Desculpe-me — disse com ironia.

     — Sua ansiedade é compreensível — ele replicou com indulgência. —
Como eu disse, vamos conversar. Depois.

     Roberta conteve o impulso de esbofeteá-lo. De nada adiantaria, e
sua situação poderia acabar ficando muito pior. Precisava pensar logo
numa alternativa de fuga ou salvação. Antes mesmo da conversa
prometida, quando seu destino seria selado. Decidida, afastou-se um
passo.

     — Vou deixá-lo para rever seus amigos — disse. — Tenho umas
coisas para fazer...

     — Se está indo para casa, vou com você — ele interrompeu. —
Preciso me livrar destas roupas.

     Ela o encarou.

     — Eu vou para a minha casa!

     Don Rafael sorriu.

     — Você ainda não é uma proprietária no meu país. Deve estar se
referindo à casa de que se apropriou.

     — Eu não me apropriei — ela rebateu irritada. — Foi emprestada
para mim. Me disseram que o dono não se importaria... — interrompeu-se
diante da terrível possibilidade que lhe ocorreu. Percebeu que ele sorria,
divertido.

     — Isso mesmo — ele concordou tranqüilo. — E agora o dono chegou.
Por isso receio que, no futuro imediato, tenha de dividi-la comigo.



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CAPÍTULO IV



     Roberta sentou-se numa das cadeiras de madeira e ficou olhando-o
com expressão neutra. Não dissera uma palavra desde que ele a havia
conduzido para dentro. Depois do brilho do dia lá fora, o interior da
casinha de um cômodo parecia mergulhado na escuridão. Mesmo depois
de os olhos se terem acostumado, era difícil distinguir os traços do seu
captor.

     De repente, ele a surpreendeu num tom divertido:

     — Você entrou em choque com a perspectiva de dividir a casa
comigo?

     Ela sentia a garganta seca e muito pouca disposição para conversar.
De mau humor, respondeu:

     — Sim.

     Ele riu, tirando o casaco e jogando-o na beira da cama. Os olhos de
Roberta seguiram a peça de roupa, e o medo a assaltou.

     — Pensei que fosse mais liberada — brincou.

     Vendo-o desabotoar a camisa, ela ficou tensa. Aquilo era ridículo!
Ele era um homem sofisticado, tentou convencer-se. Em nenhum
momento havia dado algum sinal de ser do tipo que violenta moças
indefesas, portanto não havia motivo para sentir-se tão ameaçada.
Usando toda sua fibra, ela falou com a maior frieza possível:



                                                                     47
— Não vejo o que ser liberada tem a ver com não querer repartir a
casa com o meu carcereiro. O que, afinal, você é.

     Aquelas palavras o enfureceram. Mesmo no cômodo escuro era
possível perceber sua irritação.

     — Eu não sou carcereiro — ele disse entre dentes, tirando a camisa
e atirando-a para junto do casaco.

     — Não? — ela replicou sem se perturbar.

     Don Rafael encarou-a franzindo as sobrancelhas.

     — Você se sente como uma prisioneira? Marta a trancou em alguma
cela? As pessoas a deixaram passar fome, a ignoraram?

     — Não — Roberta admitiu. — Todos têm sido muito bons comigo.

     — Ah! — ele pareceu divertido de novo. — Acha então que eu devia
ter sido mais gentil. — Deu alguns passos até ela. — É isso mesmo o que
quer de mim, Señorita Lennox? Gentileza?

     — Não.

     — Também achei que não.

     Roberta esforçou-se para sustentar aquele olhar, com o qual ele
parecia dominá-la sem nem mesmo tocá-la. Mas ela era uma mulher
independente, responsável. Não poderia se olhar no espelho mais tarde
se permitisse que aquele homem a humilhasse com uma insinuação tão
torpe. Assim, filando-o com sua expressão mais doce, disse:

     — O que eu realmente espero de você, Don Rafael... — sorriu com
enorme delicadeza — é a minha liberdade.

     Ela o havia atingido. O rosto dele assumiu uma expressão tensa, e
seus olhos brilhavam muito.

                                                                    48
— Imaginei que diria algo assim. — Passou a mão pelo rosto de
Roberta, como quem avalia uma mercadoria em exposição.

        — Eu acho que está precisando de algo mais além da liberdade, —
disse, afastando-se. — Pena que eu não possa agora atendê-la, minha
cara.

        Ela mal acreditava que estivesse sendo tão insultada. Ele queria
dizer que a possuiria, se ela ficasse disponível, mas que não a respeitava
nem estimava. Revelava-se, assim, um inimigo frio e desprezível. Roberta
sentiu-se só e abandonada, mas recusava-se a deixar que ele percebesse
seus sentimentos.

        — Isso significa que você vai embora? — perguntou com cinismo.

        — Não, eu não pretendia dizer isso — Don Rafael respondeu com
uma careta. — Vou ficar aqui. E você, minha pequena prisioneira, também.
Mas eu não vim para passar férias... ou pela oportunidade de dedicar
minha atenção a você. Vou estar muito ocupado.

        Ela se perguntou o que um advogado teria para se ocupar numa vila
como aquela e concluiu que preferia não saber.

        — Nesse caso, é claro que eu devo deixar a sua cama — disse, num
tom educado. — Não vou incomodá-lo, se vai estar trabalhando.

        — E acredita que vai me incomodar menos se se mudar? — ele
perguntou com desprezo., Como ela não respondesse, continuou: — A
menos que vá acampar nas cavernas, não há nenhum outro lugar. E as
noites nas montanhas são muito frias. Se quer que eu seja gentil, Señorita,
então deve permitir que eu não a deixe morrer congelada à noite.

        Ela respondeu com toda a calma;

        — Não sei como agradecer tanta consideração, Don Rafael. O que
você sugere?

                                                                         49
— Eu não sugiro nada. — De repente, tornou-se ameaçador. —
Valetta está preocupado, mas no momento não está concordando com
nada. Portanto, como objeto de barganha, vai permanecer aqui escondida.
Vai continuar fazendo o que tem feito nestes últimos dias, além de
conservar esta casa limpa e arejada. Vai lavar as minhas roupas, cozinhar
minha comida e fazer qualquer serviço que eu pedir. Isso está claro?

     Por um momento Roberta ficou paralisada. Então conseguiu
responder:

     — Perfeitamente. Mas está me parecendo muito parcial. O que eu
recebo em troca? — quis saber com admirável ousadia.

     — Você ganha um protetor — ele disse num tom que lhe causou
arrepios.

     — Um protetor? Para me proteger do quê?

     — De mordida de cobra — ele disse em tom ofensivo. — E de
deslizamentos de terra. E do interesse dos jovens locais. E, é claro, de
congelamentos.

     — Eu não vou dormir com você — afirmou ela com determinação.

     — Obrigado — ele disse, abrindo o móvel. — Aqui estão as minhas
camisas limpas. Depois que tiver lavado esta — e apontou para a que tinha
acabado de tirar —, ponha de volta aqui. Creio que não vai encontrar
dificuldade em diferenciar as minhas camisas de usar no campo das de
usar na cidade.

     Minutos depois, Don Rafael Madariaga saía, deixando-a sozinha e
num terrível estado de nervos. A muito custo, e só após obrigar-se a
sentar e a fazer exercícios respiratórios por alguns minutos, ela
conseguiu se acalmar o bastante para raciocinar com clareza.

     Vencido o pânico, tentou esquematizar a questão: em primeiro

                                                                       50
lugar, estava claro que não pretendiam feri-la. Mesmo porque, de nada
valeria ela morta. Em segundo lugar, os moradores da vila haviam se
convencido de que seu precioso Don Rafael se apaixonara por ela;
portanto, num caso de briga entre ambos, provavelmente ninguém iria
querer se envolver, pois acreditariam tratar-se de uma discussão de
namorados. Concluindo, não a feririam, mas também não a protegeriam.

     “Então, o que ele pretende fazer comigo, sabendo que não tenho
para onde ir?”, ela se perguntou. E aí estava uma pergunta que não sabia
como responder. Ele agia de modo tão imprevisível, ora parecendo querer
trucidá-la, ora parecendo até mesmo... desejá-la. E, por mais estranho
que fosse, era essa última possibilidade que mais a perturbava.

     Inquieta, ela se levantou e foi até a janela. A rua estava vazia.
Então tentou imaginar quanto tempo suportaria aquela situação de
incerteza antes de explodir numa crise de histeria. Quanto tempo seus
nervos suportariam a pressão? Não podia se dar ao luxo de esperar para
descobrir. Só havia uma alternativa: fugir antes que ele voltasse. Sem
demora.

     Mas, ao tentar seguir pela rua, Roberta descobriu que a vila não
estava tão deserta quanto lhe havia parecido. Notou que era observada
por muitos rostos desconhecidos, não hostis, mas suspeitosos. Resolveu
abandonar o plano de escapar pela estrada principal e começou a subir.
Sabia que as montanhas eram riscadas por trilhas de lhamas e cabras.
Uma dessas trilhas teria de levá-la para longe dali.

     Assim, caminhando como se estivesse apenas dando um passeio, ela
conseguiu se afastar sem levantar suspeitas.

     Após    duas   horas   de   caminhada   por   um   terreno   íngreme,
escorregadio e pedregoso, Roberta começou a se perguntar se aquela sua
tentativa de fuga não seria a idéia mais estúpida que já tinha tido. Seus
pés doíam, e os mocassins emprestados por Marta começavam a dar

                                                                       51
sinais de rompimento. Várias vezes ela tropeçou e caiu.

     No fim, foi quase com alívio que ouviu seu nome sendo chamado.
Não tinha mais energia para correr, mesmo que houvesse algum lugar
para onde ir. Exausta e abatida, afastou o cabelo embaraçado do rosto.
Não ficou surpresa ao ver Rafael. A elegância e serenidade que ele
apresentava depois de empreender aquela caminhada chegava a ser um
insulto, em comparação ao estado em que ela se encontrava.

     Sem alternativa, parou e ficou esperando que ele se aproximasse,
tentando acalmar a respiração ofegante. O ar daquelas montanhas
parecia nunca bastar.

     — Sabe — ele disse quando chegou perto —, é realmente uma
mulher decidida. Eu a congratulo, Señorita Lennox.

     — Obrigada — ela disse simplesmente, procurando conservar o
pouco fôlego que ainda lhe restava.

     Ele sorriu.

     — Não muito previdente, é claro, mas, mesmo assim, decidida. E
corajosa. — Com a mesma segurança de quem caminha por uma calçada,
ele terminou de subir o trecho que os separava, no qual ela mal
conseguira dar um passo sem tropeçar. — Contra a minha vontade, estou
descobrindo em você motivos de admiração.

     Seu tom era irônico, e ela sabia que ele estava querendo dizer
justamente o contrário.

     — Não ria de mim! — fulminou numa voz sufocada.

     — Não seja ridícula! Não vê que poderia se matar num terreno
inseguro como este? Nem sequer está usando um equipamento ou roupas
adequadas! — E apontou para os mocassins arrebentados que ela calçava.
— O que pretendia fazer quando anoitecesse? E para quê? Para chegar

                                                                   52
até o topo? Acredita que conquistaria a liberdade passando por cima das
montanhas, como a heroína de algum melodrama?

        Roberta mordeu o lábio. Era isso mesmo o que havia imaginado.

        — Você devia esperar que eu fizesse alguma coisa — ela retrucou.

        — Talvez eu tenha esperado — ele admitiu, sorrindo para si mesmo.
— Mas não isso.

        — O quê, então? — Apesar do cansaço extremo e de sentir-se
tonta, Roberta acreditava que, descobrindo o que ele imaginava que ela
faria, estaria mais bem preparada para o futuro.

        Ele deu de ombros.

        — Algo mais sutil e feminino, eu acho. — Antes que ela pudesse
responder, segurou-a por um braço e puxou-a para si, de volta à trilha de
terra batida. Nesse momento, sentindo-se segura, ela foi dominada por
um cansaço mortal. Seus joelhos bambearam, e o corpo afrouxou. — Você
está exausta!

        Supondo que ele estivesse aborrecido com sua fraqueza, com
enorme esforço endireitou-se sobre os próprios pés e desvencilhou-se
dele.

        — Uma boa caminhada nunca faz mal a ninguém — desafiou. — Ao
contrário de terroristas.

        Por um momento achou que o imperturbável Don Rafael Madariaga
hesitava. Mas, como sempre, ele logo se recompôs.

        — Creio que sabe que não somos terroristas — disse. — Ou não se
atreveria a dizer isso a mim.

        Ela se aprumou e olhou bem nos olhos dele.


                                                                           53
— Não gosta da verdade, Don Rafael? — arriscou, transformando o
medo em zombaria.

     Houve um silêncio, então ele falou:

     — Quando souber a verdade, talvez eu debata o assunto com você.
Mas você é uma ignorante, uma estrangeira que nada sabe do meu país e
de mim.

     — Sei que me seqüestrou — ela replicou com simplicidade.

     O olhar com que a fulminou quase a pôs em pânico. Roberta precisou
de toda sua fibra para não deixar transparecer o pavor que teve naquele
momento. De repente ele rompeu o pesado silêncio num tom brutal.

     — Então não se esqueça disso. — E puxou-a para si. — Nós vamos
voltar para a vila. Agora. Se resistir, eu a carregarei. Se tentar fugir, eu
a amarrarei — declarou sem emoção. — Será esperta se não me criar
problemas.

     A descida de volta foi silenciosa. Várias vezes ela tropeçou, e ele
teve de ajudá-la. Mas escorava-a com mãos frias e impessoais. Quando
paravam para que ela tomasse fôlego, ele se restringia a fitá-la sem
interesse.

     Na vila, embora já fosse noite, Angelina correu para recebê-los,
como se tivesse ficado esperando. Estava ansiosa, mas Don Rafael
respondia com monossílabos, e, quando a velha senhora tentou amparar
Roberta, a fez recuar com o olhar, segurando sua prisioneira com tanta
força que arrancou-lhe um gemido de dor.

     — Vejo-a mais tarde, Angelina. A Señorita precisa descansar de sua
pequena aventura, por isso não vai jantar com vocês esta noite —
anunciou, antes de conduzir Roberta para casa, fingindo grande
solicitude.


                                                                         54
Lá dentro, a claridade produzida por um lampião a querosene criava
um clima de aconchego. Lágrimas inesperadas brotaram nos olhos de
Roberta, que virou a cabeça para que ele não as visse.

     Don Rafael, porém, não tinha sua atenção voltada para ela; ocupava-
se em trancar a porta e a janela, criando uma tensão insuportável no ar.
Para rompê-la, ela precisava dizer alguma coisa.

     — Vai me bater por ter fugido? Não quer que ninguém na vila veja?

     Ele virou-se para encará-la.

     — Bem que você merecia. Como pôde ser tão irresponsável? Não viu
que podia ter quebrado uma perna com essa brincadeira? Ou mesmo o
pescoço!

     — Qual é o problema? Tem medo de perder o poder de barganha se
tiver apenas um corpo para oferecer? — ela zombou.

     — Nem um pouco — retrucou com calma.

     — Então o que pretende fazer comigo?

     — Bem, mantê-la viva. Por bem ou por mal.

     — Eu quis dizer... agora.

     — Ah, agora... — Ficou pensativo. — Eu disse à Angelina que você ia
descansar. Talvez seja a melhor idéia. — Aproximou-se dela.

     Recusando-se a ceder, ela levantou o queixo e desafiou-o com o
olhar.

     — Se encostar a mão em mim eu vou gritar tão alto que vão ouvir no
outro vale!

     Mas, para decepção de Roberta, ele pareceu apenas divertido.

                                                                     55
— Isso vai aumentar a minha reputação enormemente.

     — Reputação de violento? — ela disparou sarcástica.

     Mais uma vez ele a frustrou, rindo alto.

     — Você está mesmo determinada a me enfurecer, não é?

     Não havia nada que ela desejasse mais, mas de modo algum iria
admitir. Disse:

     — Eu só quero deixar clara a situação.

     — Mas a situação está clara. Você é minha... hóspede — ele replicou
sorrindo. — Seu bem-estar é minha responsabilidade. Você pode não
gostar, mas também não pode mudar isso.

     — Meu bem-estar? — ela repeliu com desdém.

     — Sua segurança física, conforto e, espero, prazer — explicou com
falsa inocência.

     Sem saber o que dizer, Roberta deixou-se cair na cama. Ele a
estudou com interesse.

     — Está cansada? Talvez tenha se cansado mais com o esforço da
caminhada do que pensou, não?

     — Eu não estou nem um pouco cansada...

     — Ótimo — ele interrompeu, alcançando-a em dois passos.
Segurando-a pelos ombros, fez com que se levantasse e pôs-se a estudá-
la com cuidado. — Por que está com tanto medo? Deve ter percebido que
se não a assassinei até agora é porque isso não está nos meus planos.

     Vencendo o nó que se formava na garganta, ela deu um jeito de
responder:

                                                                        56
— Eu não estou com medo.

     Ele tomou-lhe uma das mãos e levou-a até o próprio peito, onde
ambos podiam senti-la tremer.

     — Não? — Ergueu as sobrancelhas desconfiado. Roberta baixou os
olhos, e ele segurou-a pelo queixo, obrigando-a a encará-lo. — Então por
que está tremendo? Acha mesmo que eu a machucaria?

     Ela engoliu em seco.

     — Eu não sei.

     — Ajudaria se eu lhe dissesse que possuir mulheres indefesas
nunca foi meu passatempo favorito?

     Roberta, para sua própria surpresa, descobriu que a afirmação não
ajudava em nada. Não temia ser possuída por ele. Era algo mais
complicado do que aquilo. Interpretando mal seu silêncio, ele prosseguiu:

     — Admito que me deixou muito bravo. Até encontrar você eu
sempre me considerei um homem de paz — disse pensativo. — Mas nestes
últimos dias eu cheguei umas duas vezes tão perto de bater numa mulher
como nunca havia imaginado ser possível para mim,

     Pela primeira vez desde sua captura, sentindo-o tão perto, Roberta
foi dominada por uma estranha sensação. Tinha vontade de que ele não a
soltasse, embora soubesse que devia resistir a uma aproximação.

     — Pretende me dizer que está me ameaçando por minha culpa? —
perguntou incrédula. E, para sua total surpresa, viu-o corar, soltando-lhe
a mão e virando-se, de forma que só podia ver seu perfil decidido.

     — Você me causa as piores emoções — ele admitiu. — Não sei se é
culpa sua ou minha.



                                                                       57
O medo foi passando, e em seu lugar foi vindo apenas uma espécie
de torpor.

     — Então você não sabe? — ela perguntou.

     Ele deu de ombros.

     — Bem, sim, creio que sei. Nós dois não somos mais crianças, e acho
que ambos sabemos.

     Como não o entendesse, Roberta calou.

     — E o tempo só pode piorar tudo.

     — Não entendi.

     — Não? — tornou a olhá-la. — Pois acredite-me, não podia ser pior.
O país está prestes a explodir. Para ser sincero, nem sei se já não
explodiu. As estações de rádio não estão transmitindo nada há vinte e
quatro horas. Só a emissora do exército, mas só põe música no ar.

     — Está dizendo que vai haver uma revolução?

     — Isso é quase certo, — Passou a mão pelo cabelo num gesto
distraído. — E muito breve, se não está acontecendo agora, enquanto
falamos.

     Ela estremeceu.

     — Que terrível!

     — Não tão terrível para nós, que estamos em guerra civil há tantos
anos. .Agora, ao menos, talvez tenhamos uma chance de estabelecer um
governo decente para este pobre país.

     Apesar de tudo, ela não o achou com jeito de um revolucionário
apaixonado pela causa. De fato, parecia muito preocupado.


                                                                     58
— De que modo você vai estar envolvido? Vai... — ela hesitou —
lutar?

     Ele a encarou com dureza.

     — Lutar? O que você entende por lutar? Luta com os seus
competidores, não é? Oferecendo melhores acordos e quantias fora do
contrato, não é?

     Ela se lembrou do presidente Valetta pedindo que uma soma extra
fosse depositada em seu nome numa conta secreta na Suíça. Deu risada,
balançando a cabeça.

     — Não me diga que acredita em tudo o que lê nos jornais.

     — Não? — olhou-a com curiosidade. — Está me dizendo que não usa
suborno nos seus acordos, quando necessário, Señorita Lennox? Quer
dizer, por exemplo, que se eu estivesse em condições de fazer valer esse
seu maldito projeto você não tentaria me persuadir a fazê-lo?

     Ela olhou-o nos olhos.

     — Bem, sim, é claro. É um bom projeto, e seu país precisa dele. A
Technica não é a única empresa que pensa assim. Mas eu não lançaria mão
de nenhum fundo extra imaginário para poder fechar um contrato.

     — Devo entender, então, que usaria de outros meios? — ele
perguntou, grosseiro. — Bem, isso não deixa de ser muito inteligente.

     Sentindo a boca seca, ela esforçou-se para dizer:

     — Eu não sei do que está falando.

     — Oh, eu acho que sabe, minha querida. É uma mulher muito
inteligente.

     Ela balançou a cabeça.

                                                                        59
— Nesse caso, deixe-me ser bem claro: como ficou evidente desde
o começo, eu quero você. Isso lhe dá uma arma, certo? Mas Deus a ajude
se tentar usá-la!

     Roberta empalideceu, mas conseguiu falar com bastante calma.

     — Você fala como se eu fosse uma combatente dessa sua revolução.
Mas acontece que não sou.

     — Não — ele concordou, voltando a falar num tom mais suave. —
Não. Você está segura aqui, e é onde vai ficar.

     — Aqui? — Seus olhos voltaram-se para a cama.

     Rafael deu um suspiro de impaciência.

     — Em segurança, eu disse. Não vou tocá-la. Estarei muito ocupado
para isso; você pode ser muito útil cuidando dos afazeres domésticos,
mas asseguro-lhe que serão as únicas coisas que lhe pedirei. — Atirou a
jaqueta de brim sobre o ombro e foi até a porta. Então parou e se virou.
— A menos, é claro, que você decida que prefere de outro modo.

     Depois disso, saiu.




     CAPÍTULO V



     Roberta não tornou a vê-lo naquela noite, embora tivesse lutado
para se manter desperta até literalmente não conseguir mais conservar
os olhos abertos. No final, acabou se enfiando debaixo das cobertas sem


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nem mesmo terminar de se despir.

     Quando despertou na manhã seguinte, ainda estava escuro, mas era
possível ouvir claros sinais de atividade do lado de fora. Apoiou-se num
cotovelo para consultar o relógio, mas ele tinha parado. Reparou então
nas venezianas fechadas; por isso estava mergulhada na escuridão.

     De Rafael nenhum sinal. Durante o sono ela havia desarrumado os
lençóis, mas só um travesseiro revelava ter sido usado, o que provava que
ele não tinha dormido ali.

     Olhando em volta, viu, pendurada no encosto de uma cadeira, a
jaqueta com que ele tinha saído à noite. E no assento da mesma cadeira
identificou uma pequena pilha formada pelas roupas que ele havia usado
no dia anterior. Portanto, em algum momento ele tinha estado ali, pelo
menos para trocar de roupa.

     Olhou para os próprios trajes com desgosto. Também precisava se
vestir, mas só de pensar em pôr a mesma roupa usada no dia anterior
sentiu um mal-estar.

     Aborrecida, olhou para a arca onde Rafael guardava as camisas.
Talvez encontrasse uma blusa limpa, esquecida por alguma outra visitante
da cabana. Ou, na pior das hipóteses, pegaria uma das camisas dele.
Levantou-se e, mal havia dado dois passos, percebeu o quanto se sentia
fraca. Mal podia andar.

     Deixando escapar um gemido, tornou a se sentar. Os músculos da
coxa pareciam em chamas. Pelo jeito, sua estúpida tentativa de fuga
ainda ia lhe causar muito mais transtornos. Compreendeu a sorte que
tivera em ser alcançada por Rafael. Analisando os fatos com frieza, foi
obrigada a reconhecer que lhe devia um agradecimento.

     Mancando, chegou até o baú, onde encontrou livros, mapas e um
aparelho que à primeira vista deu a impressão de ser um toca-fitas, mas

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Sophie weston   o guerrilheiro das montanhas
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Sophie weston o guerrilheiro das montanhas

  • 1. O GUERRILHEIRO DAS MONTANHAS Beyond ransom Sophie Weston A consciência de Roberta foi voltando aos poucos, fazendo-a compreender sua terrível situação: havia sido sequestrada naquele pequeno país da América Central! De repente, ouviu vozes a logo depois a porta se abriu. Ao reconhecer seu raptor, Roberta começou a tremer. Tratava-se do homem misterioso com quem havia dançado numa festa ali, em Oaxacam. Agora podia conhecer sua verdadeira identidade: aquele era Rafael Madariaga, o líder dos revolucionários que queriam derrubar o governo militar de seu país!
  • 2. Copyright: Sophie Weston Título original: Beyond Ransom Publicado originalmente em 1986 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra Tradução: Fernando Simão Vugman Copyright para a língua portuguesa: 1987 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3.º andar CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil Esta obra foi composta na Artestilo Ltda. e impressa na Artes Gráficas Guaru S/A. Foto da capa: Keystone 2
  • 3. CAPÍTULO I Incomodada, Roberta Lennox observou que o volume da música tinha aumentado ainda mais depois de encerrado o espetáculo de dança na boate. Com discrição, consultou o relógio. Nem meia-noite ainda! Percebendo sua inquietação, Larry Davidson se aproximou. — Quer ir embora? — perguntou em voz baixa. Por um instante Roberta sentiu-se tentada a aceitar a sugestão. Havia tido um dia terrível. Passara a manhã toda negociando, usando cada gota de sua apreciável capacidade de argumentação para chegar ao fim do dia com a sensação de que se esgotara em vão. Estava cansada, com uma dor de cabeça começando a incomodá-la e sentindo a alegria artificial da mais cara boate da cidade exercer um efeito depressivo sobre seu estado de espírito. Mas isso fazia parte do seu trabalho, e, até o presidente de Oaxacan[1] se definir claramente sobre o contrato com a Technica Associates, não sairia dali. Esboçou um sorriso a Larry. — Não, eu agüento — disse. — Não deixa de ser uma experiência interessante. Ele deu de ombros. — Se você diz... Larry tinha um ar entediado. Ao contrário de Roberta, possuía vasta experiência na América Central, e por isso fora designado para ser seu assistente naquela missão. Falava com fluência o castelhano, embora mesmo Roberta pudesse detectar um leve sotaque de Milwaukee. E ele é quem havia descoberto que aquele era o lugar onde representantes do 3
  • 4. Ministério das Finanças esperavam ser levados para resolver negócios com estrangeiros. “Eu devia estar grata a ele”, Roberta pensou, acomodando-se na cadeira forrada de veludo. “Pelo menos nossos convidados parecem estar se divertindo.” [1] Nota do editor: Oaxacan é um país fictício. Todos os personagens são imaginários. Lançavam-se com volúpia sobre as comidas finas e consumiam sem parar o uísque importado, fartamente distribuído por belas garotas com sorrisos bem treinados e roupas provocantes. No começo, os representantes do ministério tinham ficado constrangidos com a presença de Roberta. Mas, diante de sua postura imperturbável e sob o efeito dos primeiros copos de bebida, já se mostravam mais relaxados. Agora conversavam animadamente com as garotas como se a anfitriã fosse, afinal, um homem, como haviam imaginado a princípio. Larry também julgara que Roberta criaria problemas num programa como aquele, tipicamente masculino, e não havia escondido sua opinião. Ela, no entanto, não vacilara. Além de autorizar uma quantia substancial para despesas de entretenimento, fizera questão de ser ela mesma a anfitriã. O assistente ainda tinha argumentado, dizendo que iria se aborrecer, e agora Roberta admitia que o rapaz estava com a razão. No entanto, não era a presença das garçonetes em seus trajes diminutos que a constrangia. Chegava até a nutrir um certo sentimento de camaradagem por elas. A qualquer momento, teria também de aceitar o convite de algum dos seus “alegres” convidados para dançar. Foi quando se dirigia para a pista de dança com o porta-voz do ministério que teve a nítida sensação de estar sendo observada. Olhou para trás num movimento involuntário. E então localizou o homem. Estava de pé junto da cortina de veludo que encobria a entrada. Vestia um elegante smoking, como a maioria dos homens do salão, e acabava de dar um finíssimo casaco para a 4
  • 5. recepcionista guardar. Tinha interrompido a seqüência de movimentos para tirar as luvas, para estudá-la com olhos mais atentos. Espantada, Roberta estacou. Percebeu que ele a examinava de alto a baixo, parecendo revelar um certo desprezo, mas também algum outro sentimento... O que seria? Sim, seu olhar comparava-se ao de um velho professor universitário que tivera, ao observar um inseto ao microscópio; ao mesmo tempo que sentia fascínio tinha repugnância. Isso. Aquele homem a olhava admirado, embora a contragosto. Esquecida dos que a cercavam, ela fitou o desconhecido. Ele era alto, uns dez centímetros mais alto do que seus outros três acompanhantes; possuía o corpo musculoso e atlético, e seu rosto era sem dúvida seu ponto mais marcante. Na meia-luz da boate, Roberta não podia distinguir os detalhes, mas estava claro o bastante para que pudesse notar sua tez morena, o nariz fino e reto, o queixo quadrado e decidido e a boca firme. Os olhos, embora não lhe fosse possível distinguir a cor, eram argutos como os de um falcão. O acompanhante de Roberta percebeu sua reação e seguiu- lhe a direção do olhar. — Ah, Don Rafael está aqui — ele comentou num tom estranho. — Você o conhece, Señorita? — Não — ela disse devagar, imaginando se dizia a verdade. Não conseguia lembrar-se dele, mas ele a olhava com tal intensidade que talvez já se conhecessem. Mas aquele não era o tipo de homem que se conhece e se esquece depois. — Señor Rafael Madariaga é advogado... um advogado muito rico e bem-sucedido. Presta muitos serviços para empresas internacionais. Tem certeza de que não o conhece? 5
  • 6. Ela balançou a cabeça. — Nem mesmo ouvi falar em seu nome. — Não? — o outro perguntou, entre surpreso e aliviado. — Ah, bem, existem outros advogados, afinal, e Don Rafael possui... — ele hesitou — interesses mais audaciosos hoje em dia. Pelo menos é o que dizem. Ela deixou que seu acompanhante a conduzisse para o centro da pista de dança e não pôde mais ver o homem que de forma tão estranha e intensa havia despertado sua atenção. Por mais absurdo que fosse, lamentou perder o estranho de vista... Devia ser resultado da música tão alta, disse a si mesma. Ou da semi-obscuridade do ambiente. As duas coisas combinadas exerciam um efeito desorientador. Era a única justificativa para a sua exagerada perturbação. Enquanto isso, o porta-voz se esforçava ao máximo para manter uma conversa educada. — Esta é sua primeira visita a Alto Rio, Señorita? — Sim. — Espero que durante sua estada aqui tenha tido a chance de conhecer um pouco do meu país. — Muito pouco, receio. Larry e eu realmente não tivemos tempo para fazer turismo. — De fato, o turismo é muito restrito em Oaxacan. Para nós, essa ainda é uma atividade pouco explorada. E há o problema da altitude; como a região é montanhosa, muitos dos estrangeiros que vêm nos visitar passam muito mal nos primeiros dias. 6
  • 7. — Foi o que ouvi falar. Me considero uma pessoa de sorte; tenho me sentido muito bem. O homem se mostrou surpreso. — Ah, aqui em Rio Alto a altitude é baixa, Señorita. Mal chega aos três mil metros. É no interior que atinge até seis mil metros. Claro que essas regiões são as mais interessantes, onde se encontram ruínas e artesanato da era pré-colonial. — Fez um muxoxo. — Pena que turistas sintam-se mal e não possam desfrutar muito desses passeios. — Realmente — Roberta foi respondendo sem prestar muita atenção quando, após um rodopio, voltou a ver o estranho que lhe havia causado tão profunda impressão. Ele continuava junto da entrada, a fitá- la. O garçom havia se afastado, seguido dos três acompanhantes de Don Rafael, de modo que ele estava agora sozinho, avaliando-a com ar especulativo. Ela não gostou de sua expressão e levantou o queixo, desafiadora. Os olhos de ambos se encontraram outra vez, e por um breve instante ele pareceu despertar de um devaneio, reagindo com embaraço. Mas logo se recobrou, e enquanto ela se virava ao som da música estridente, ele seguiu seus companheiros, sem nunca perdê-la de vista. Roberta sentiu um calafrio. Engoliu em seco, surpresa com a própria reação diante de alguém que via pela primeira vez. E então, como que para exibir coragem, sorriu em resposta ao meio-sorriso que ele guardava nos lábios. Era um desafio; procurava assim forçá-lo a disfarçar, fingindo que não a estivera observando aquele tempo todo. Mas se ela esperava desconcertá-lo com sua atitude franca, desapontou-se. Por um instante Don Rafael ergueu as finas sobrancelhas, em espanto, mas em seguida reassumiu uma expressão de autoconfiança. 7
  • 8. Sem perder a pose, curvou-se de modo discreto e elegante, à guisa de cumprimento. Ela corou, e ele sorriu com malícia, sugerindo uma perturbadora intimidade. Em seguida virou-se para ir se juntar a seus amigos. O porta-voz do ministério não havia deixado de perceber a discreta troca de olhares, embora não notasse o profundo efeito causado em sua anfitriã. — Parece que Don Rafael a conhece, Señorita — comentou sem jeito. — Ou, pelo menos, espera conhecer. Roberta recuperou o autocontrole com esforço. — Bobagem! Deve ter me confundido com alguma outra pessoa. Está tão pouco iluminado aqui que isso não deve ser difícil de acontecer. — Ela retomou decidida o assunto do artesanato e das ruínas pré-coloniais de Oaxacan. À mesa, Larry discutia futebol americano com outro convidado, o qual não se esforçava para disfarçar seu tédio. Por cima do ombro de Larry, lançava olhares melosos para uma garota vestida no que parecia ser um maiô de lamê e que vendia cigarros e balas. Larry, que não fumava, não tinha reparado nem na moça nem na falta de atenção de seu interlocutor. Roberta estava se sentando, de volta à mesa, quando ouviu o porta- voz dizer no seu castelhano carregado, típico daquela região: — Madariaga está aqui. Procurando por alguém, eu diria. O outro funcionário do ministério se mostrou alarmado. — Quem? Não nós? 8
  • 9. Roberta baixou os olhos para ocultar seu interesse. Tinha achado uma boa tática não revelar aos seus clientes em potencial o seu domínio do castelhano e incumbira Larry da maior parte das conversas nessa língua. Isso deixava-os mais à vontade para falarem entre si, seguros de que ela não compreenderia mais do que algumas palavras soltas. Larry logo notou a conversa meio sussurrada entre os dois. — Você viu algum conhecido? — perguntou ao homem a seu lado. — Oh, em Alto Rio é impossível não se encontrar algum conhecido — o porta-voz apressou-se a responder, em socorro ao colega. — Não é como em Nova York, onde todos parecem estranhos. Aqui se vê pessoas conhecidas em cada esquina. Ali, por exemplo... — e começou a apontar celebridades, numa evidente tentativa de mostrar despreocupação. Roberta e seu assistente ouviram com atenção, e ela ia gravando na mente os vários nomes que ia ouvindo. Afinal, se aquela missão comercial fracassasse, nada indicava que no futuro não se pudesse voltar a Oaxacan com novos projetos para outros clientes. Seria útil conhecer pessoas de quem deveria se aproximar. Mesmo assim, ela teve a nítida impressão de que seus convidados falavam ao acaso, como se procurassem desviá-los do assunto que havia originado a conversa. O nome de Madariaga não foi mais mencionado. Mas o misterioso personagem ainda estava na boate, junto a uma mesa não muito distante. Como Roberta pôde verificar, atrás da mesa se erguia uma graciosa palmeira, próxima do palco erguido para a orquestra. O homem se fazia acompanhar de dois outros e de uma mulher de estonteante beleza, mas que exibia uma expressão do mais puro tédio. A loira usava um vestido justo, de seda reluzente, e tanto ela quanto o vestido pareciam ter vindo direto de Paris. Apenas um dos homens estava falando, e falava sem parar, 9
  • 10. gesticulando com exagero como que para enfatizar suas idéias. Madariaga permanecia impassível. Roberta observou-lhe o perfil e a expressão arrogante e considerou que, se estivesse no lugar do tagarela, já teria se intimidado com o silêncio. O terceiro homem fumava nervosamente, acendendo um cigarro após o outro. De vez em quando fazia algum comentário curto, no que não era ouvido por ninguém. Seu olhar vagava de Madariaga ao homem que não cessava de falar. As luzes escureceram ainda mais. O disc jockey desligou a aparelhagem e abandonou sua cabina sob fracos aplausos. A pequena banda retomou seu lugar no palco e começou a tocar um samba, surpreendentemente bem. — Ah! — os funcionários do ministério se endireitaram em suas cadeiras, em franca expectativa. O mais jovem sussurrou entre os dentes: — É por isso que Madariaga está aqui! — Florita! — o outro disse, incrédulo. — Você pode estar certo, mas... Um foco de luz verde foi lançado no pequeno palco, enquanto um cenário era montado atrás. Na escuridão, um murmúrio de expectativa percorreu as mesas. — O que está acontecendo? — Roberta quis saber. Foi o funcionário mais velho quem respondeu: — Florita vai dançar. Ela é muito famosa. Às vezes dança aqui, quando está no país. Vive viajando pelo mundo — deu de ombros. — É muito temperamental, por isso nunca anunciam o seu espetáculo com antecedência, para o caso de ela resolver não aparecer — seu tom se tornou cínico. — É um raro privilégio vê-la dançar. Se o Señor Madariaga 10
  • 11. não estivesse aqui, duvido muito que teríamos essa honra. Mas uma pausa da banda o fez calar-se, pois logo a platéia explodiu em aplausos, com a entrada em cena da famosa bailarina. A primeira impressão de Roberta foi de que Florita era muito bonita, com um corpo esbelto e bem esculpido, a pele morena de sol e os cabelos castanhos com brilhos dourados sob a luz dos refletores. A segunda impressão foi que, apesar de dançar com movimentos graciosos e perfeitos, parecia preocupada com algo. Larry inclinou-se para a frente: — Ela não é fantástica? — perguntou, deixando transparecer um entusiasmo quase pueril que contrastava com a imagem de um maduro homem de negócios. — Bonita — Roberta concordou, enquanto a bailarina se curvava em agradecimento e se preparava para um novo número. Cada vez mais intrigada, ela reparou que Florita lançava um olhar ansioso para a mesa de Don Rafael. Mas talvez fosse só uma impressão. De qualquer modo, pressentia algo estranho no ar envolvendo aquele homem. Algo que, de modo inexplicável, achava ameaçar a ela e a Larry. Florita abandonou o palco e pôs-se a executar um número passeando entre as mesas. Roberta tratou de concentrar-se no espetáculo, procurando tranqüilizar-se com o pensamento de que na manhã seguinte estaria num avião, de volta a Nova York, provavelmente tendo falhado nas negociações com o presidente de Oaxacan, em nome da Technica Associates. Aparentemente dançando ao acaso, Florita acabou se aproximando da mesa de Madariaga, seguida pelo facho de luz. Ele também foi atingido pelo foco luminoso e mostrou-se aborrecido. De repente a dançarina começou a rodear a vendedora de cigarros e, com um 11
  • 12. movimento inesperado, alcançou um charuto, fazendo a garota rir, no que foi seguida pela platéia. Com graça e sensualidade, desembrulhou o charuto e passou pelo nariz de alguns homens sentados por perto, que fingiram aspirar fundo, apreciando o aroma. Em seguida, com as unhas, cortou uma das pontas, acompanhada pelo som agora discreto da melodia que os músicos executavam. Nesse momento um braço foi estendido com um isqueiro aceso. Florita acendeu o charuto com longas e luxuriantes baforadas. Avançou para o cavalheiro que lhe oferecera o isqueiro; agora o refletor o iluminava em cheio: Don Rafael Madariaga. Os dois se encararam. Roberta teve a sensação de que uma mensagem muda havia sido trocada entre ambos, mas não deu continuidade ao pensamento, pois a dança prosseguiu, com a bailarina oferecendo o charuto a ele, que tragou fundo e soltou uma baforada contra seu rosto. Florita, porém, não pareceu nem um pouco ofendida. Ao contrário, fez uma reverência indicando submissão e afastou-se de costas, com passos curtos e ágeis. Roberta podia jurar que a moça zombava dele, mas não saberia dizer por quê. A música se elevou mais uma vez, e Florita executou mais alguns movimentos perto do palco. Então, de repente, Roberta percebeu que ela vinha na direção de sua mesa. Por quê, se perguntava, ela sentia crescer dentro do peito aquela sensação de desastre iminente? Acostumada a seguir seus instintos, seu impulso foi de levantar-se e sair dali no mesmo instante. Mas isso não seria possível naquele momento. Olhou em volta, e os três homens que a acompanhavam pareciam completamente absortos. Assim, tratou de relaxar e sorrir. Florita se aproximou e, sempre dançando, fez com que Larry se levantasse. A seguir, saltou para a cadeira que ele ocupava e, com outro belo salto, para cima da mesa. Por alguns minutos executou uma série de passos rápidos e leves entre copos e garrafas, sem tocá-los. Então parou, fitando Larry sem sorrir. Era, naquela pose, uma fonte de sensualidade. 12
  • 13. Com um gesto bem vagaroso, foi erguendo a saia, revelando milímetro a milímetro sua bem torneada perna. Quando já descobria metade da coxa, ouviu-se um estampido de revólver de brinquedo, e então as luzes se apagaram. Um riso de surpresa percorreu a platéia, seguido de aplausos. Roberta, porém, prendeu o fôlego, temendo de modo infantil que Larry tivesse desaparecido na escuridão. Mas, quando as luzes voltaram, ele continuava ali, sorrindo como um garoto, enquanto Florita, já no chão e sem o foco de luz, parecia muito menor do que segundos antes. Ela se curvou em agradecimento aos aplausos, mas logo sentou-se numa cadeira junto da de Larry, enquanto a orquestra começava a tocar música para dançar. — Espero que não se importe — disse para Larry, desculpando-se num tom agradável e bem nova-iorquino. — Era um número novo e eu precisava testá-lo com alguém que não tentasse me agarrar. Roberta ficou curiosa: — É a primeira vez que faz esse número? A outra assentiu. — Sim, toda a “dança espanhola” é novidade — respondeu com ironia. — Você não gosta? — Larry perguntou. — O quê? Criar suspense e desaparecer no escuro, com um tiro de pólvora seca? Grande coisa. Sou uma dançarina, não uma maldita ilusionista. — Levantou-se e avaliou-o com o olhar. — Fique por aí que eu voltarei para mostrar que tipo de dançarina eu sou... quando tenho um parceiro. 13
  • 14. Sem mais palavras, deu meia-volta e avançou entre as mesas, alheia aos cumprimentos vindos de todos os lados. Os dois funcionários do ministério mal disfarçavam a inveja. — Ora, esse é um convite que não se pode recusar — o mais jovem disse cobiçoso. — Nunca soube que ela tenha dançado com um freguês antes. — Talvez ela tenha discutido com Madariaga e essa seja sua maneira de puni-lo — o mais velho ponderou com cinismo. Mas, sentado em sua mesa, Madariaga ainda fumava seu charuto com ar impassível. Tinha olhado para eles uma única vez, quando Florita se afastou, tornando a ficar absorto nos próprios pensamentos desde então. Sua atitude, ao menos, tranqüilizava Roberta quanto à possibilidade de ter seu assistente devorado por um latino ciumento enfurecido. Procurando se acalmar, tratou de prestar atenção no que acontecia em sua própria mesa. E foi quando se achava entretida pela conversa de seus acompanhantes que uma voz macia quase fez seu coração saltar pela boca. — Señorita. Ela se virou e percebeu Don Rafael em pessoa, muito tranqüilo e elegante, oferecendo-lhe a mão de modo imperativo. — Gostaria de dançar? — Olhou para Larry. — Com a sua permissão, é claro, Señor? Antes que ela pudesse externar a recusa ditada por todos os seus instintos, Larry apressava-se em consentir sorrindo. Ela se levantou furiosa. Não era uma feminista, mas a presunção dos modos de Don Rafael e a “permissão” dada tão facilmente por seu assistente fizeram 14
  • 15. seu sangue ferver. Por um breve segundo ela o encarou disposta a dizer que não dançava e que não a amolasse. Mas então lembrou-se: estava ali a trabalho, e aqueles eram os seus clientes, que pertenciam a uma sociedade com seus próprios hábitos e regras. Ela, como uma estrangeira, deveria ser capaz de responder com civilidade. Assim, aceitou a mão estendida de Madariaga e levantou-se, deixando para o dia seguinte, em Miami, para explicar a Larry que tipo de assistência esperava dele em Alto Rio. A música era romântica e suave, e Madariaga revelou-se um bom dançarino, conduzindo-a com elegância e sem tentar forcar um contato mais íntimo entre seus corpos. Mesmo assim, a impressão que provocava em Roberta era intensa; ao mesmo tempo uma estranha atração... e um medo quase incontrolável. Para disfarçar as contraditórias emoções que a dominavam, ela disse com frieza: — É hábito seu convidar mulheres desconhecidas para dançar, senor Madariaga? — Apenas quando me intrigam — respondeu imperturbável. Ela percebeu que ele zombava, que pensava seduzi-la com seu jeito insinuante, da mesma maneira que Florita tinha feito com Larry. Mordeu os lábios de raiva. — Eu a ofendi? — ele perguntou numa voz suave e rouca. Roberta, reagindo de forma irracional, estremeceu. Ele notou. Apertou-a de leve e depois relaxou: — Eu a ofendi? — insistiu com certa apreensão. 15
  • 16. — Ainda não — ela respondeu, erguendo a cabeça para encará-lo. Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso. — Ainda não? Então espera que eu o faça? Ela sorriu. — Acho muito provável — disse com falsa doçura. Com satisfação viu que afinal o havia desconcertado. — Mas por quê? Porque eu a convidei para dançar? — Porque você perguntou ao meu acompanhante se podia dançar comigo — ela o corrigiu. Madariaga deu de ombros. — Pode não acreditar, mas no meu país seria um insulto ao seu acompanhante se eu tivesse agido de outra forma. É uma questão de cortesia, apenas — animou-se. — Mas é claro que cortesia deve ser considerada inaceitável num país de mulheres feministas como o seu, não é, Señorita? E essa é toda a razão para sentir-se ofendida por mim? — Não — ela retrucou com calma. — Não gosto de homens que sopram a fumaça de seus charutos no rosto das mulheres. Seguiu-se uma pausa. Então ele falou devagar: — Acha que eu fui rude com Florita? — Senor Madariaga, não é da minha conta como se comporta com outras pessoas. Exceto — acrescentou — quando é uma indicação de como pode se portar comigo. Ele a inquiriu com seus olhos de um castanho tão escuro que mal se viam as pupilas. 16
  • 17. — Não gostaria que eu a tratasse como tratei, Florita? — zombou. Roberta enrubesceu de raiva. — Para ser frança, senor Madariaga, eu preferiria que não me tratasse de jeito nenhum — disse com rispidez. Ele deu uma risada suave. — Mas isso é pedir o impossível, Señorita, já que é tão bonita que nenhum homem poderia resistir. Diante de tal ousadia e poder de sedução, ela riu com certo descontrole. Então ele a apertou junto a si, dessa vez não relaxando a pressão. — Por que você ri? — disse em tom de reprovação, mas ainda conservando uma nota divertida. — Acredita que eu seja o tipo de homem que pode ver a beleza e se manter indiferente? — Não — ela retrucou com jovialidade. — Acho que é o tipo de homem que não resiste à oportunidade de induzir as pessoas a se fazerem de bobas. — Señorita, está sendo injusta — ele murmurou. — Acredita que tentei lisonjeá-la? — Acredito que está tentando me pôr nas nuvens — Roberta disse com bom humor. Ele suspirou. — Então, é porque a Señorita de fato não sabe a beleza que possui. — E com isso levou-lhe a mão até os lábios, aplicando-lhe meia dúzia de pequenos beijos, sem deixar de fitá-la. Foi a vez dela suspirar com infinita paciência. 17
  • 18. — Señor Madariaga, eu me conheço muito bem. Conheço cada milímetro. — Eu não acredito. — Balançou a cabeça. — Fala de modo tão afiado em milímetros e em ser feita de boba... está tudo errado. Que posso dizer quando se imagina uma mulher de sonhos ... — enquanto falava, sua mão corria as costas de Roberta numa carícia sensual — e de repente despertamos com ela nos braços? Ela se afastou um pouco e olhou direto em seus olhos. — Não sei se estou habituada a cumprimentos tão lisonjeiros. Depois de dois minutos começo a achar difícil suportar. Dançaram por algum tempo em silêncio. Então ele tornou a falar: — Eu desejaria que não fosse tão inteligente, Señorita. Permita-me dizer que é um tanto desanimador mergulhar em um par de profundos e misteriosos olhos azuis para apenas descobrir que estou sendo avaliado. Ela conteve um sorriso. — Sinto muito — disse educada. — Creio que somos apenas incompatíveis. — Afastou-se ainda mais dele e lançou um olhar para sua mesa. — Portanto, quem sabe se nos juntássemos ao meu acompanhante? Don Rafael Madariaga franziu o cenho, intrigado, mas logo recuperava o ar divertido, dizendo numa voz rouca e baixa: — Não pode, com apenas uma dança, dizer se somos incompatíveis ou não, minha pequena. E eu, que imagino possuir grande experiência nesses assuntos, acredito que vamos acabar descobrindo uma grande afinidade. Roberta não respondeu de imediato. Estava perturbada, tinha de admitir. Algo lhe dizia que aquele homem sedutor estava jogando algum obscuro jogo com ela. Ainda não tinha perdido o controle de si mesma, 18
  • 19. mas sentia uma sutil atração a ameaçar sua capacidade de resistir. Ele prosseguiu: — Você parece tão distante e, ainda assim, tão desejável; a inalcançável dama no pedestal. Ela o encarou, confusa. — Penso que você mal percebe o seu poder — ele disse. Roberta engoliu em seco, lutando para romper o encanto que ele exercia. — Señor Madariaga, por acaso está me dando uma cantada? — perguntou direta. Ele se mostrou tão surpreso que quase parou de dançar. Mas logo se recompôs: — Não, Señorita — disse com calma e bom humor, sem se mostrar nem um pouco ofendido. — Quero crer que se eu desejasse fazer amor com você — enfatizou as palavras como se a corrigisse — você saberia muito bem. Isso apesar do meu mau inglês. Seu inglês era perfeito, ela pensou, como ele próprio devia saber. Roberta recusou-se a se submeter. — Também acho — retrucou com um brilho frio no olhar. Ele sorriu. — Você saberá. Eu prometo — disse com suavidade. E parecia estar mesmo falando sério. 19
  • 20. CAPÍTULO II Ele a estava conduzindo de volta à mesa quando as luzes se apagaram e a boate mergulhou na escuridão. De algum ponto ouviu-se o grito de uma mulher, e Roberta sentiu-o apertar-lhe o braço. — Não se preocupe — soou a voz grave e calma. — É só uma queda de energia elétrica; acontece muito aqui em Alto Rio. De modo geral são programadas, para que as pessoas estejam preparadas, mas às vezes — havia uma nota bem-humorada em sua voz — as máquinas tomam suas próprias decisões. Por isso a gerência prepara uma série de alternativas para a iluminação... e aí vêm eles. Roberta viu os garçons se apressando de um lado para outro com bandejas repletas de velas acesas. Os fregueses aceitavam uma vela em cada mesa com a tranqüilidade de quem já fazia daquele ritual um hábito. — Muito eficiente — ela comentou, retomando seus passos. A seu lado, Madariaga deu uma risada abafada, fazendo-a virar-se com uma expressão inquiridora. — Eficiência — ele murmurou. — Que tristemente típico! Você não acha a luz trêmula das velas romântico, acha eficiente. Sentindo-se outra vez criticada, suspirou. — Você é romântico, Señor? — Não, eu não me descreveria como um romântico — respondeu. — Embora, comparado a você, eu provavelmente seja. — Estou certa que sim — ela concordou, sentando-se e despedindo- o com um sorriso educado. — Obrigada pela dança. 20
  • 21. — O prazer, Señorita, foi meu — assegurou com gravidade. — E espero ter outra oportunidade, mais tarde, quando a luz tiver voltado. — Acenou para todos com elegância e retornou à sua própria mesa. Inclinando-se para servir a Roberta mais vinho, Larry cochichou: — Não sei quem é esse sujeito, mas os rapazes aqui não o apreciam. Roberta sorriu, bebericando o vinho e evitando olhar para seu assistente. Este, por sua vez, fingiu olhar ao acaso para o salão em penumbra, mas continuou falando num murmúrio: — Começaram a falar em contar ao ministro, talvez esta noite mesmo. Acho que Madariaga os amedronta. E com certeza não acreditaram que ele estava dançando com você apenas porque se sentiu atraído. Ela absorveu aquela informação. Também não havia se iludido, mas era interessante constatar que outras pessoas se mostravam tão alarmadas quanto ela própria. Então, o que era ele, além de um advogado? Quem sabe não pertencia a uma daquelas confrarias internacionais com ação dirigida a vários países do mundo? Talvez a julgasse portadora de alguma informação valiosa. Roberta comprimiu os lábios com preocupação. Sim, é claro que possuía informações importantes, mas não pretendia revelar nada. Não se a Technica Associates pretendesse fechar negócios na América Central outra vez. E, acima de tudo, não se ela pretendesse conservar sua reputação e também seu emprego, que era a única coisa significativa que lhe havia restado desde que Hugh Hamilton a havia deixado para se casar com outra. Então, tomou uma decisão: — Olhe, eu estou cansada — disse a seus convidados com seu sorriso mais charmoso. — Acho que a altitude me afetou, afinal. Não ficariam aborrecidos se tivessem de passar o resto sem mim, não é? — 21
  • 22. perguntou com uma ponta de ironia. Os representantes do ministério sorriram; educadamente lamentosos, mas sem dúvida, aliviados. A presença dela ali os inibia, impedindo que se divertissem à vontade à custa da “grande empresa norte-americana”. Agora, seus semblantes indicavam que estavam livres para aproveitar de verdade. — Eu pago a conta do que foi consumido até agora — ela disse a Larry. — Você cuida do resto. Eu usarei o carro, se não houver problemas para você. O presidente de Oaxacan, antes de compreender que a Technica Associates não ia facilitar-lhe a abertura de uma conta secreta num banco suíço, tinha posto uma limusine com chofer à disposição da Señorita Roberta Lennox e seu assistente. — Tudo bem, eu pego um táxi. — E acrescentou com seu sorriso infantil! — Ainda bem que já fiz as malas. Pelo que vejo esses rapazes estão dispostos a varar a noite. Eu não ficaria surpreso se amanhã tiver tempo apenas para pegar minhas coisas e seguir para o avião. Ela sorriu. — Vou guardar um lugar para você. Você vai merecer. Levantou-se com despedidas gerais, pedindo para que não abandonassem seus lugares, enquanto uma garçonete surgia com mais uma bandeja carregada de bebidas. A caminho da saída, parou junto ao caixa para pagar a conta da mesa, o que causou uma reação de estranheza no funcionário, embora este conservasse a discrição que a sofisticação da casa exigia. Roberta entregou-lhe um cartão de crédito com ar cansado. — Vou pegar o meu casaco — disse. — Poderia mandar chamar o 22
  • 23. meu carro, por favor? O nome é Lennox. Pouco depois, com tudo resolvido, ela saiu para encontrar o motorista numa banca de flores, junto à porta de saída, rodando seu quepe entre os dedos, parecendo meio nervoso. Assim que a viu, apressou-se em abrir-lhe a porta de trás da limusine. O interior do luxuoso automóvel cheirava a charuto, colônia masculina cara... e alguma coisa de odor adocicado, enjoativo. Roberta fez uma careta, mas conformou-se, já que até o hotel seria uma curta viagem de não mais de dez minutos. Enquanto ela ainda pensava nos odores do carro, o motorista fazia a maior confusão para partir. Por duas vezes tinha dado a partida e deixado o motor morrer. Talvez estivesse um pouco bêbado, já que na ida havia se revelado um excelente chofer. Por fim partiram, mas com um solavanco que quase a atirou contra o banco da frente. Tudo estava escuro; a queda de energia parecia ter afetado toda a iluminação pública, de modo que não havia movimento nas ruas mergulhadas na escuridão. Mal haviam avançado cem metros, a limusine começou a ziguezaguear como se estivesse desgovernada. De repente o carro foi para a esquerda e bateu em algo que Roberta julgou ser um outro veículo, até parar atravessado na pista, num ângulo perigoso. Com o baque, ela se viu lançada para o chão do carro. Recuperando-se do choque, ela procurava se levantar, mas foi impedida. Entre vozes vindas não sabia de onde, sentiu que lhe cobriam a cabeça com um pano negro. O cheiro adocicado ficou mais forte; por fim compreendeu, era clorofórmio que lhe aplicavam à boca e ao nariz. Ainda debateu-se, horrorizada, mas lentamente mergulhou no abismo da inconsciência. Quando voltou a si já era dia. A primeira coisa que viu foi um facho 23
  • 24. de luz passando por uma fresta. Seria uma cortina? Não, estava com os olhos vendados. Alguém a havia drogado, vendado seus olhos, e agora ela não tinha a menor noção de onde se encontrava. Permaneceu deitada sem se mover, tentando achar algum sentido em toda aquela confusão. Não havia sensação de movimento, portanto não estava num carro. Ou, se estava, não se movia. Também não distinguiu nenhum ruído de motor. De longe, teve a impressão de ouvir vozes. Prendeu o fôlego e não escutou o barulho de nenhuma outra respiração. Estava sozinha ali. Passados alguns instantes, tentou se mover. Seus pulsos tinham sido amarrados, não muito apertado. Os tornozelos estavam soltos. Onde quer que estivesse deitada, era uma superfície dura. Moveu-se de novo e algo caiu. Ao barulho, as vozes se calaram. Uma porta se abriu; ouviu o rangido atrás de sua cabeça. Uma voz de menina disse em castelhano: — Ela acordou. O que fazer? Seguiu-se uma resposta que Roberta não pôde captar. Então sentiu mãos sobre si, desajeitadas, mas não rudes, e então foi erguida. Sentiu a cabeça girar com extremo desconforto. Disse no seu castelhano perfeito: — Sinto muito, mas eu vou vomitar. A menina soltou uma exclamação e tratou de retirar o capuz que a cobria. Bem a tempo uma tigela foi posta na sua frente. Quando terminou, reclinou-se para trás. O corpo todo tremia, e um suor frio cobria-lhe a testa e as costas. A menina, que não era tão criança quanto sua voz infantil fazia supor, olhou-a com ar de dúvida. 24
  • 25. — Você está bem? Com um pálido sorriso, Roberta respondeu com voz fraca: — Eu não sei. — Você tem alguma doença, quero dizer, sofre do coração, ou coisa parecida? Ela negou com a cabeça. — Graças a Deus! Pelo menos os imbecis não trouxeram uma inválida — a garota disse com irritação. Sentindo o corpo frio, Roberta tentou se recompor. — Onde... onde estou? No mesmo instante o rosto da outra se endureceu. Não houve resposta. — Eu não estou ainda em Alto Rio, estou? — ela insistiu, sentindo voltar algumas das lembranças da noite anterior. — Vou lhe dizer. Se for necessário que fique sabendo. — Oh... — Roberta digeriu aquela resposta devagar. Sentia-se horrível, mas sua capacidade de raciocínio principiava a voltar. — Isto é um seqüestro? A pergunta inquietou a garota, o que a Roberta pareceu incompreensível, já que a haviam dopado e encapuzado. Quem sabe não teriam se excedido em suas instruções? Resolveu fazer um teste: — Os meus braços estão doendo. Você não podia me desamarrar? A jovem ficou em dúvida. Então assentiu e se inclinou com uma faca 25
  • 26. de lâmina curta. Cortou as cordas com facilidade. Roberta torceu para que seu sobressalto tivesse passado despercebido para a outra, pois sabia que demonstrar medo não seria uma boa política para a situação. — Obrigada — disse, flexionando os ombros. — Por nada — a garota hesitou. — Teremos de esperar um pouco. Talvez não muito. Aceita um café? Temendo a possibilidade de o café conter alguma droga, optou por correr o risco e aceitar. Precisava de qualquer coisa que aliviasse aquele gosto ruim da boca. — Sim, obrigada. — Então vou buscar. Fique aqui, por favor. — Avaliou-a por alguns segundos. — Acho que não preciso lhe dizer que não deve tentar fugir, não é, Señorita? Não queremos machucá-la, mas somos gente séria. Compreendendo a gravidade do aviso, Roberta engoliu em seco e assentiu com um aceno de cabeça. A jovem se foi. O tempo foi se passando sem que a outra voltasse. Roberta, sentindo-se esquecida, estudou seu cativeiro. Era um quarto comprido e estreito. Duas janelas protegidas por venezianas. A um canto podia-se ver uma escrivaninha de madeira maciça, junto da qual, pregado na parede, havia um grande mapa cheio de alfinetes de cabeça colorida. Parecia uma sala de táticas de guerra. Era isso mesmo o que devia ser: tinha ouvido falar da atividade guerrilheira naquele país, mas o serviço de informações da Technica afirmara que se tratava apenas de pequenos grupos confinados às montanhas. Ela e Larry não seriam incomodados. Ela mal conteve uma risada sarcástica. Não seriam incomodados! Massageou os pulsos doloridos. Sentia-se mal e não tinha a menor idéia 26
  • 27. de onde estava. Quando voltasse para casa diria a Tony para despedir o departamento de informações inteiro, prometeu. De repente, interrompendo suas divagações, o barulho de várias vozes alteradas falando ao mesmo tempo vieram do lado de fora. Então ouviu-se um estrondo alto, como se alguém tivesse atirado longe um móvel com um chute. As vozes sossegaram. Palavras começaram a ser compreensíveis. — ...nenhum bom senso! — disse uma voz que estalou como um chicote. Instintivamente ela se encolheu. Teve pena de quem quer que estivesse levando aquela bronca. Ao mesmo tempo, rezava para não ter que encarar aquele que era obviamente um homem enfurecido. — Você não recebeu ordens de capturar uma mulher! — a primeira voz fulminou. Uma voz feminina se interpôs, como se procurasse acalmar os ânimos. Parecia ser a jovem que tinha ido buscar o café: — Nós recebemos ordens de capturar esse tal de Lennox, e foi o que fizemos. — Não fizeram nada disso. Agiram cedo demais. Lennox ainda estava no clube quando vocês pularam no carro dessa mulher... e fizeram um grande escândalo. O Exército foi avisado em menos de meia hora. Vocês sabiam disso? Pensaram nisso quando decidiram bancar os super- heróis? — Foi azar... — a garota começou mas foi interrompida. — Foi mais do que azar, foi uma grande estupidez! E um desastre. — A culpa foi de Gregório — disse a voz do rapaz. — Ele estava com tanto medo que nem podia dirigir em linha reta. 27
  • 28. — Nesse caso devia ter se livrado dele e dirigido você mesmo. — Mas eles já o conheciam — o rapaz objetou. — Pessoas assim não prestam atenção em quem é o chofer. Não teriam se importado com quem os estava conduzindo. Você é um tolo, Pepe — o que parecia o chefe disse, mas já sem a fúria inicial. — É melhor eu vê-la quando ela acordar. A resposta foi uma risada seca. — Ela enjoou? Deviam ter pensado nisso quando resolveram entupi- la de clorofórmio! — Parece que ela está se recobrando — disse aquele que devia ser Pepe. — Pediu café. — Ótimo. Então vá buscar. E traga um pouco para mim também. Roberta ouviu passos se aproximando. Procurou endireitar-se sobre o duro colchão onde tinha ficado deitada. Esforçou-se para reprimir o tremor que lhe dominava o corpo; era importante não deixar transparecer medo. Mas, quando a porta foi aberta, tal foi sua surpresa que por um momento esqueceu o medo. Ali, na soleira, surgiu ninguém menos do que Don Rafael Madariaga. Não havia surpresa no rosto dele. Sua expressão era dura, mas era óbvio que já sabia quem encontraria ali muito antes de abrir a porta. Roberta começou a sentir indignação. — Bom-dia, Señor — cumprimentou-o. Parecendo ainda mais irritado, ele fechou a porta atrás de si e avançou para ela. 28
  • 29. — O que foi que essas crianças cretinas fizeram a você? — O que você lhes ordenou, imagino — respondeu com frieza, olhando bem em seus olhos. — Eu não os mandei transformá-la num fantasma — disse, áspero. Ela se permitiu um sorriso irônico. — Ou me drogar? Ou me seqüestrar? — Seqüestrar, sim. Embora não você — ele devolveu no mesmo tom frio. — Você, devo dizer, é uma complicação a mais. E o clorofórmio foi refinamento deles. Deus sabe onde o conseguiram. Não sabem como usá- lo. O jipe está fedendo, e a limusine presidencial deve estar também, imagino — concluiu com desgosto. — Que desajeitados, eles, não? — Mais que isso — disse mais calmo. Sentou-se na quina da escrivaninha e ficou balançando uma perna, com a bota indo e vindo. Foi então que ela reparou o quanto ele estava diferente naquela manhã. Mas, de qualquer maneira, de smoking ou vestido com roupas rústicas, era impossível negar seu enorme charme. — Eles deveriam ter capturado o seu companheiro, o líder da missão, Roberto Lennox. Seguiu-se uma breve pausa. Então ela falou com cuidado: — Parece que você deu instruções conflitantes. Creio que não pode culpá-los. Ele a examinou intrigado. — O que quer dizer com isso? — Estou dizendo que deveria ter mandado capturar meu assistente ou Lennox. Eu sou a líder da missão, Roberta Lennox. 29
  • 30. Por um quase imperceptível segundo ele reagiu com choque, cerrando os punhos com força. Mas logo se recompunha. — Eu não acredito que enviariam uma mulher para negociar com o presidente Valetta. — Garanto-lhe que enviaram! — ela retrucou ofendida. — E ele estava recebendo tratamento de primeira classe com isso. Sou a diretora da Technica Associates desde a sua fundação. Costumava atuar apenas em território africano. Foi só porque eu acabei de ser transferida para a América Latina que vim pessoalmente. Era uma espécie de viagem de familiarização. Em condições normais, Larry teria assumido as negociações sozinho. Eu viria apenas para o acerto final. Madariaga levou um tempo para assimilar aquelas novas e más notícias. — Nós estávamos querendo um diretor, sem dúvida. Por isso escolhemos a Technica em vez de qualquer outra companhia estrangeira. Mas... uma mulher? — ele fechou os olhos. — Sabia que alguns dos mais brilhantes cérebros deste país trabalham colhendo informações para mim? Ela teria achado cômico seu desespero se as circunstâncias fossem outras. Mas naquela situação Roberta Lennox achou melhor não rir. Além do mais, começou a tremer de modo convulsivo, tanto pelo efeito da droga quanto pela tensão emocional. Queria disfarçar, mas era difícil, já que seus dentes não paravam de bater. — Talvez devesse ter especificado, dizendo que uma mulher não servia — disse numa derradeira tentativa de se controlar. Ele a considerou por um longo momento. — Talvez eu devesse, mas agora é tarde demais. O seu assistente 30
  • 31. já deixou o país, sem sombra de dúvida. E você está aqui. Terei de alterar os meus planos. Sob aquele olhar frio e calculista, ela se sentia cada vez pior. Precisava falar rápido. — A Technica Associates não vai pagar resgate. É parte de sua política. Trabalhamos por todo o mundo, inclusive em países com problemas políticos, e não podemos arcar com a possibilidade de ficar pagando resgates um em cima do outro. Madariaga não se perturbou. — Nem mesmo por um diretor? Ela sorriu com desânimo. — Especialmente por um diretor que contribui para a adoção dessa política de não pagar. — Mas e sua família? Não fariam pressão? Roberta não respondeu de imediato. De modo geral, não possuir uma família não a incomodava. Pelo contrário, com seu espírito independente e temperamento de jogador, ser sozinha significava liberdade para tomar decisões e correr o risco que bem entendesse. Mas, naquele momento, sentiu uma solidão terrível. E, quando falou, desejou que a desolação não aparecesse na voz: — Não há família. — Não? — ele recebeu a informação sem nenhum traço de emoção. — Bem, por uma questão de honestidade devo lhe dizer que não pensei em pedir um resgate por você, Señorita. — E, percebendo o medo em seus olhos azuis, acrescentou: — E em nada violento, também. Não é preciso ter receio. 31
  • 32. O tremor aumentava, incontrolável. Roberta comprimiu as mãos, desesperada, mas conseguiu falar com calma: — Bem, você deve admitir que ser capturada por um grupo guerrilheiro não é a melhor maneira de se passar as férias — disse, procurando demonstrar bom humor. Por um breve instante os olhos escuros de Madariaga refletiram a admiração por aquela mulher corajosa; em seguida, seu rosto recuperou um ar inexpressivo. — O que sabe da história do meu país, Señorita? — perguntou de repente, com um leve tom de zombaria. Mas ela levou a questão a sério: — Oito milhões de habitantes, dois centros de alta densidade populacional, mas a maioria das pessoas é camponesa, vivendo no meio rural e subsistindo da agricultura. Interior montanhoso e bacia hidrográfica rica, sujeita a enchentes. Solo fértil, mas chuvas irregulares e terreno escarpado tornaram a agricultura precária. — Ela pôde ver a surpresa em seu rosto, o que a deixou satisfeita, apesar do medo. — Eu sou agrônoma, disse com naturalidade. — Entre outras coisas, parece. — Uma agrônoma que queria vender um projeto de irrigação — ela prosseguiu, pensativa. — Um bom projeto que seu presidente recusou. — Não se preocupe, ele talvez ainda o aceite. Ou alguém o fará. Meu Deus, é preciso que algo seja feito pelo interior. Tem sido negligenciado por muito tempo. Como pensasse da mesma maneira sobre o assunto, Roberta não disse nada. Não compreendia aquele homem. Parecia muito frio, muito desapaixonado para ser um guerrilheiro da liberdade, como diziam os noticiários na televisão. E, no entanto, o modo como havia sido 32
  • 33. seqüestrada e era mantida cativa sugeria que se adaptava àquela definição. — Bem, você está bem informada quanto à geografia, devo admitir — ele retomou o assunto. — Mas é de história que eu estava falando. — Governo militar nos últimos quatro anos — ela apressou- se em dizer. — É tudo o que eu sei. — Sim — Madariaga confirmou com rispidez. — Imagino que isso deva ser tudo que a maior parte do mundo saiba. — Fez uma pausa, seus lábios se retraíram numa expressão amarga. — Não é tão simples assim... — Ergueu-se da escrivaninha e deu alguns passos a esmo, nervoso. — Oaxacan, por muitos anos, era uma nação apenas no nome. Na verdade, depois da independência, continuou a ser apenas um aglomerado de grandes latifúndios, com a maior parte da população vivendo em situação de miséria. Ela sentiu interesse. — Era uma colônia espanhola, não? — Sim. E sua história tem sido marcada pela sucessão de golpes de Estado e de governos autoritários, culminando com a ditadura militar, quando o último presidente eleito resolveu implantar a reforma agrária. — Respirou fundo e prosseguiu. — Bem, com a deposição de Gonzalez Arcade surgiram vários grupos terroristas, de esquerda e de direita. Vivemos um momento de revolução. — Revolução? — ela perguntou chocada. — Sim — respondeu com um sorriso cansado. — E acredito que estamos perto do dia em que todos terão direito a um teto e comida. O que atrapalha é a interferência das grandes nações, que enviam mais armas do que alimentos. A violência se generalizou por aqui; tivemos vinte 33
  • 34. anos de guerra civil. — Eu não fazia idéia! — ela reagiu, confusa. Ele deu de ombros. — Somos um povo muito atrasado, moça. Com alto índice de analfabetismo e tradições culturais muito antigas. É difícil organizar uma população despolitizada. Há uma geração inteira no meu país que não conheceu um tempo de paz, Señorita Lennox. — Mas o governo militar mantém uma certa estabilidade, não? — ela argumentou. — Sua observação mostra o quanto ignora sobre Oaxacan, minha cara — seus lábios esboçaram um sorriso de desdém. — Os militares não estão interessados num desenvolvimento social. Há uma repressão feroz, e a guerra civil prossegue. Nosso povo luta entre si. — E você está engajado nessa luta... — Naturalmente. Ela olhou ao redor e perguntou; — E você comanda um desses grupos de guerrilha, é isso? CAPÍTULO III Depois que Madariaga se foi, acabaram lhe trazendo o café. Estava 34
  • 35. quente, bem forte e açucarado. Roberta segurou a caneca com ambas as mãos, procurando aquecê-las. Não costumava adoçar o café, e no começo achou-o intragável. A jovem que o trouxera observou-a intrigada. — Você ainda se sente... mal? Ela balançou a cabeça. — Não. Mas estou com muito frio. A outra fungou. — Você não está vestida para as montanhas — replicou em voz neutra. Roberta evitou um comentário sarcástico sobre não ter planejado visitar as montanhas. Fez um gesto de assentimento disse; — Eu estava com um casaco ontem à noite. Sumiu? A garota foi até a ponta do colchão onde estava e pegou algo que mais parecia um trapo amarrotado. Era o casaco. — Isso não vai esquentar — disse, estendendo a peça de tecido fino. — É leve demais — prosseguiu pensativa. — Mas é bonito. A minha irmã gostaria... Roberta bebericou o café. Achou que, se conseguisse fazê-la continuar falando, talvez obtivesse alguma informação útil. Deu um sorriso simpático. — Que idade tem sua irmã? — Minha irmã não é uma criança — a garota respondeu com ironia. — É que ela gosta de coisas bonitas, Señorita. Ela é a dançarina Florita; 35
  • 36. acho que a viu ontem à noite. Ela considerou aquilo por um momento. As duas eram tão diferentes! Mas é claro que nem sempre duas irmãs se parecem ponderou. — E sua irmã partilha dos seus pontos de vista? Do seu modo de vida? A outra sorriu. — Não vai encontrá-la nas vilas das montanhas, quebrando as unhas num tear, se é o que quer dizer, Señorita. Por outro lado, ela e Rafael trabalham muito juntos. Foram eles que planejaram a operação de ontem. Roberta lembrou de ter tido a sensação de que os dois trocavam alguma mensagem durante a dança. Com um calafrio, prometeu-se nunca mais duvidar de seus instintos. A jovem guerrilheira prosseguiu, orgulhosa; — Florita é muito famosa. Rafael está sempre dizendo que não saberia o que fazer sem ela. — Estou certa que sim — ela retrucou com frieza, cobrindo as costas com o delicado casaco. — Você está com frio — a garota constatou condoída. — Quando a gente chegar a... quando a gente chegar, vou arranjar uma roupa quente para você. — Obrigada — Roberta agradeceu, procurando ocultar seu desânimo. Então iriam levá-la a outro lugar; com certeza para mais longe da capital, pensou. — Hã... e vai demorar muito? A outra lançou-lhe um olhar desconfiado. 36
  • 37. — Quem sabe? — disse evasiva. — E seria melhor a Señorita não ficar fazendo perguntas. Rafael não está de bom humor, não é bom irritá-lo. — Tudo o que eu fiz para irritá-lo foi não ser um homem — ela replicou com um muxoxo. — Acho que não podem me culpar por isso, não é? A garota se mostrou surpresa. — Oh, mas você o fez ficar muito bravo. Não sei o que lhe disse, mas ele ficou furioso. — Um certo respeito transpareceu na sua voz. — Não é fácil fazer Rafael perder a calma. Normalmente ele é muito controlado e sensato. — Então abriu um sorriso que a fez parecer uma menininha: — Às vezes é muito chato. — Faz tempo que o conhece? — Toda a minha vida. Ele é como um irmão; talvez venha a ser mesmo um irmão, um dia. É o que a minha mãe sempre quis. Mas quando Florita começou a dançar, mamãe disse que ela já não servia para ser a mulher de um homem público e que Rafael nunca se casaria com ela. — Parou de repente, compreendendo que estava transmitindo informações pessoais à “inimiga”. — Mas isso tudo não deve interessar a você, não é? Preciso ir preparar as coisas para a viagem. Vendo-se mais uma vez sozinha, Roberta se pôs de pé, sentindo os músculos doloridos. A cabeça parecia leve, como se estivesse se recobrando de uma longa enfermidade. Curiosa, foi espiar pelas frestas da janela. Pelo que parecia, achava-se numa cabana à beira de uma estrada não pavimentada. Havia dois carros e um caminhão de médio porte estacionados junto da cabana. Mas não via sinal de vida. Além da estrada se erguia uma vegetação baixa e espessa que impedia a visão da 37
  • 38. paisagem. O céu estava azul sem nuvens. Por alguns minutos Roberta perdeu-se em divagações, imaginando se Larry teria pegado o avião sozinho, acreditando que ela iria no seguinte. Perguntou-se o que Tony acharia da situação. Normalmente ele ficava muito irritado com qualquer imprevisto que interrompesse o curso suave do sucesso da Technica. Segundo a opinião de Tony, pessoas que se deixavam seqüestrar provavelmente não haviam tomado o devido cuidado por isso não mereciam que se pagasse resgate, ainda que alguém pudesse fazê-lo. Ela suspirou. Não achava que tinha sido descuidada. A porta se abriu com barulho e entrou um rapaz que ela ainda não vira. Pareceu fitá-la com antipatia, mas, quando falou foi educado: — Deve vir comigo, Señorita Lennox. Agora, por favor. O medo voltou. Aquele rapaz era muito jovem, dava a sensação de que poderia agir com violência caso sentisse que estava perdendo o controle da situação. Ela respondeu com muito cuidado. — Está bem. Mas será que eu poderia... hã... me lavar? Seguiu-se um instante em que ele pareceu não compreender. Então ficou muito ruborizado. — É claro — disse prestativo. — Marta vai mostrar onde. Não demore, por favor. Mais tarde, sentada no jipe que seguia por um caminho de terra batida, Roberta considerava a situação. Todos ali, exceto Madariaga, pareciam nervosos. Pepe, que ia ao volante, e a jovem irmã de Florita, Marta. Ao chegar a uma encruzilhada, Pepe passou para o caminhão e desapareceu pelo caminho mais largo. Marta o substituiu no volante, e prestava extrema atenção à estradinha íngreme e acidentada. Por todo o percurso não se viu vivalma. Cada vez mais o terreno ia ficando pedregoso, e o ar rarefeito. Roberta foi ficando enjoada de novo. Começou a empalidecer e a suar frio. 38
  • 39. — É a altitude — alguém disse com naturalidade, mas num tom amigável. E isso foi a última coisa que ouviu antes de desmaiar. Dessa vez ela foi retomando a consciência devagar, ouvindo um murmúrio de vozes e sentindo um gostoso calor subir pelo corpo. — Ah, pobrezinha — disse uma voz desconhecida, com uma pronúncia carregada. Roberta abriu os olhos devagar. Uma mulher se inclinava sobre ela, agasalhando-a com um cobertor. Deu-lhe tapinhas encorajadores no ombro. — Vai se sentir melhor, já, já, pobre criança. Roberta acreditou. Tornou a fechar os olhos para abri-los em seguida. Tentou se apoiar sobre um cotovelo, mas a mulher a impediu. — Não, não! Deite-se. Você precisa recuperar as forças. Precisa de tempo para se alimentar. Aqui é muito alto — disse a mulher com preocupação. Ela ainda levou alguns segundos para compreender, mas, quando viu ternura no rosto da outra, fez o que não fazia havia muitos anos; começou a chorar. Na mesma hora a mulher sentou-se na beira do velho sofá e tomou- a nos braços, consolando-a como a uma criança. — Vamos, vamos, já passou. Agora você está segura. — dirigiu-se a alguém mais atrás, que não se podia distinguir no escuro. — Pobre menina, está gelada! Don Rafael deveria ter vergonha. Afinal, ele não é um moleque bobo como Pepe. Oh, o que Doña Eleonora não diria! Pobre menina, pobre menina, pronto, pronto! Roberta, que não se lembrava de um dia ter sido chamada de “pobre 39
  • 40. menina”, continuou chorando e se deixando consolar amparada nos braços daquela senhora grande e forte. Por fim, o pranto cessou e ela se endireitou, passando a mão pelo cabelo para afastá-lo do rosto. — Está se sentindo melhor agora, não é? — a inesperada protetora perguntou com um sorriso maternal. Roberta fez que sim. — Bom, bom. Marta foi pegar umas roupas para você ficar mais confortável. E eu, Angelina, vou preparar algo quente para você beber. É uma coisa que eu dou aos meus netinhos para curar enjôo da altitude. — Ela se pôs de pé. — Mas não faça nenhum movimento brusco, por enquanto. — Abriu um largo sorriso, que revelou a falta de alguns dentes. Roberta viu Angelina desaparecer, seguida por uma mulher mais moça, talvez uma filha, ou mesmo uma neta. Deitou-se com a cabeça apoiada sobre as mãos. Tudo ali lhe era tão estranho; toda aquela conversa de família e parentes. Ela não era capaz de se lembrar da mãe, e não chegara a conhecer o pai. Se tinha avós vivos, não sabia quem eram nem onde encontrá-los. Aos poucos foi deixando surgir as lembranças de infância. Seu tio Geoffrey nunca a quis, e não fazia segredo disso. Quando o funcionário da instituição de menores disse que ela não ficaria num orfanato enquanto tivesse parentes vivos, Geoffrey não gostou nem um pouco. Ela ainda podia se lembrar com clareza de ouvi-lo dizer que, se ele e a esposa quisessem ter filhos, teriam os próprios, e não uma pestinha horrível como aquela. Toda a cena numa cozinha fria, diante de um funcionário irredutível, onde ninguém parecia se importar com ela. Ela fungou e recolheu um resto de choro. Não que aquilo ainda doesse. Nunca havia doído tanto quanto a traição de Hugh Hamilton. Além disso, nunca tinha gostado do tio Geoffrey. Aprendera a se manter 40
  • 41. quieta e longe do caminho, transformando-se numa criança muda e reservada, escondendo o espírito rebelde que herdara da mãe. E fora com sua grande força de vontade que, contra o desinteresse do tio, tinha conseguido entrar para a universidade. Sustentara-se com uma série de pequenos empregos que lhe rendiam o bastante para o aluguel e para os livros de que precisava. Nessa época era uma garota franzina, magra e cheia de olheiras. No escuro Roberta sorriu da imagem de si mesma nos tempos de faculdade; determinada, orgulhosa e quase sempre embrulhada em montes de malha por não ter dinheiro para comprar um bom casaco contra o frio. Como tinha sido pobre! A maioria dos seus colegas de Manhattan não acreditaria nas privações que sofrera em Glasgow. Mas se sentia feliz, livre pela primeira vez do intratável tio Geoffrey e completamente absorvida pelos estudos. Hugh havia achado graça de sua devoção aos estudos. O sorriso nos lábios dela se apagou. A traição de Hugh a havia ferido muito. Mesmo agora, cerca de dez anos depois, aquela era uma recordação capaz de fazer seu coração doer. Lembrou-se de uma tarde de amor na qual, em sua ingenuidade, julgou estar apaixonada. Depois, chegou Caroline, surpreendendo-os e partindo em seguida, com ar ofendido. — Não se preocupe — Hugh havia dito com voz macia. — Ela sabe que isso não significa nada. Não precisa ficar tão assustada, minha gatinha. Mas é claro que ela havia ficado assustada. E magoada. Tudo bem para Caroline, que desde que concordara em se casar com seu tutor já devia esperar por aquele tipo de cena. Ambos vinham do mesmo nível social, e o que importava era que estavam comprometidos. Mas ela, Roberta, não estava preparada para ser tratada como um bom programa para o que teria sido uma tarde aborrecida. Voltando a pensar nisso, tanto tempo depois, não era difícil compreender. Hugh tinha sido gentil, persuadindo-a a abandonar os livros de vez em quando, para que passassem 41
  • 42. juntos horas agradáveis fazendo amor. Na época, nem lhe passara pela cabeça que ele não estivesse tão apaixonado por ela quanto ela por ele. E só depois do episódio com Caroline foi que ficou sabendo que os dois estavam noivos, com data marcada para o casamento. Hugh se mostrara surpreso por ela desconhecer o fato. Afinal constava em todas as colunas sociais, e era incompreensível para alguém como Hugh Hamilton, que Roberta não tomasse conhecimento dessa parte dos jornais. No final, mesmo Hugh sendo delicado e compreensivo, a mágoa era grande demais para ser esquecida. Prosseguiu os estudos com maior dedicação ainda. Continuava vendo Hugh, já que ele era seu supervisor. E, quando se formou, ainda teve de suportar vê-lo um pouco ofendido por ela não aceitar as ofertas de emprego que ele lhe havia arranjado. — Vou para os Estados Unidos — Roberta lhe havia dito com simplicidade. — Estados Unidos? — Hugh mal podia acreditar. — Você tem uma colocação? — Não vou a trabalho, vou viajar, conhecer. Descobrir o que está acontecendo além deste meu cantinho no globo. — Sem nenhuma segurança? — ele perguntou com ar de desaprovação, mal se dando conta de que quando a havia decepcionado ela havia desistido de buscar qualquer segurança. — Não. Só pela aventura — Roberta dissera, zombando. E desde então sua vida tinha sido mesmo uma grande aventura, Roberta pensou, ajeitando melhor a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas. Gostava do seu trabalho. Gostava de ajudar as pessoas a desenvolver seus negócios, de resolver problemas, de viajar pelo mundo e viver em todo tipo de lugar. Possuía um luxuoso apartamento em Manhattan, mas não ficava lá mais do que três meses por ano. Ocupava o restante do tempo contatando representantes de outros países, conhecendo culturas diferentes e muitas vezes exóticas. Adorava o trabalho de campo. E pensou que quando se sentisse melhor não perderia a chance de dar um passeio pela vila onde estava para conhece-la. Então, enquanto lhe ocorriam essas idéias, percebeu que devia ter adormecido. A casinha ainda estava escura, mas pela porta não se via mais nenhuma réstia de luz. Ouviu sons de pessoas se movendo do lado de fora. Junto do braço, sentiu uma caneca de barro com um líquido morno. Imaginou que devia estar fervendo. Tomando ânimo, sentou-se na beira do sofá e sorveu a bebida amarga. Depois se levantou e foi até a porta. O que viu foi muito extraordinário. Estava escuro. Havia luzes em todas as casinhas que acompanhavam a única rua da vila, sinuosa e não pavimentada. Mulheres velhas sentavam-se em pequenos 42
  • 43. grupos diante das portas abertas, enquanto velhos, crianças, moças, gatos, cachorros e galinhas vagavam entre as duas fileiras de casas. Um burburinho de conversa pairava no ar. Roberta permaneceu um bom tempo com o ombro apoiado no batente da porta, e, como atrás de si não havia luz, os outros demoraram a perceber sua presença. — Señorita Lennox? — era Marta, muito séria, quem falava. — Eu trouxe algumas roupas. São de Florita; sou muito pequena, acho, para as minhas servirem para você. A blusa é minha — acrescentou. — Espero que sirvam. — Obrigada — Roberta agradeceu com sinceridade. — Eu estava me perguntando o que esperam que eu faça. Na semi-escuridão, Marta lhe sorriu. — Por favor, fique à vontade para fazer o que quiser. Esta é uma vila comum. Você é bem-vinda. — Mas... — ela hesitou — onde querem que eu fique? A outra riu. — Não temos nenhum lugar para mantê-la presa, aqui. Esta casa é para você usar enquanto precisar. — Mas não é a casa de Angelina? Eu não gostaria de obriga-la a... Marta balançou a cabeça. — É muita consideração sua, mas não. Angelina mora naquela casa grande ali, no fim da vila. Depois que se trocar, pode ir falar com ela. — Mas, então... quem eu desalojei? — Roberta insistiu. — Ninguém. Esta casa foi herdada por uma pessoa que não mora aqui. Angelina só cuida para que esteja sempre arrumada e limpa. — De modo um tanto inesperado, tocou de leve no braço de sua “prisioneira”. — Pode ficar à vontade. Você não desalojou ninguém. E, assim, Roberta ficou. Era uma casa de um só cômodo, como pode verificar na manhã seguinte. Tinha uma grande cama de casal de madeira 43
  • 44. maciça em um canto, uma mesa sob a única janela, várias cadeiras e uma arca alta, também de madeira. As paredes e o chão de pedra eram cobertos por belas tapeçarias de cores naturais. A roupa de cama era de algodão, um pouco amarelecida pelo tempo, coberta por uma colcha bordada a mão. Tudo era simples e meticulosamente bem cuidado. A única coisa que faltava eram utensílios de cozinha. Mas Roberta logo descobriu que não precisava cozinhar. Toda noite ela jantava com Marta, Angelina e mais meia dúzia de pessoas, e o jantar era a principal refeição do dia. Falavam com prazer sobre artesanato e métodos de plantio. Só se recusavam a discutir política. Falavam com simpatia do homem a quem chamavam de Don Rafael. Não tardou para que Roberta percebesse que para Angelina e para a maioria dos aldeões a razão de sua presença ali era muito simples: Don Rafael havia se apaixonado por ela à primeira vista. E de nada adiantou ela protestar, pois suas objeções foram recebidas com sorrisos cúmplices e indulgentes. Logo na manhã seguinte ouviu-se o barulho do motor de um veículo subindo em direção à vila. Pouco depois, o pequeno Tônio abandonava suas cabras pastando sozinhas para avisar que Don Rafael estava a caminho. Angelina apressou-se em chamar Roberta: — Venha depressa! Venha depressa! Ele vai querer vê-la — apressou-a, empurrando-a para fora da cabana. E a primeira coisa que ele fez ao chegar foi perguntar a Marta: — Onde ela está? Mas, antes que a moça pudesse dizer qualquer coisa, Angelina surgiu, trazendo uma relutante Roberta. — Aqui está ela, Don Rafael. Nós cuidamos bem dela para você. 44
  • 45. Ele se aproximou e segurou-a pelos ombros, fitando-a com firmeza. Roberta, de cabeça baixa, pôde ouvir o suspiro de alívio e satisfação de Angelina. Ergueu os olhos e Don Rafael abriu um sorriso. — Estou vendo que sim, Angelina — ele disse, demonstrando aprovação. — Ela parece outra. — Puxou-a para si e beijou-a na testa, como uma bênção. E então, não apenas a boa senhora mas a vila inteira suspirou sonhadora. Roberta teve vontade de chutá-lo. — Viu o presidente? — Marta interrompeu. — Vi — ele respondeu impassível. Tomou Roberta pelo braço e se afastou do carro, cumprimentando um e outro enquanto caminhava, ora com um sorriso, ora com um aperto de mão. Marta vinha atrás: — E daí? — Ele está considerando o assunto. A moça ficou desapontada. — Você não lhe deu um prazo? — Dei. — Quanto? — Curto o bastante para mantê-lo preocupado, mas não tão curto para que ele entre em pânico — ele disse com frieza. — Valetta vai passar umas semanas ruins. — Semanas! — Roberta gemeu. — Mas... e quanto a mim? Don Rafael olhou-a com calma. — Isso é uma coisa sobre a qual teremos de conversar. Mas não em público nem agora, que estou cansado da viagem. 45
  • 46. Ela puxou o braço num gesto brusco. — Desculpe-me — disse com ironia. — Sua ansiedade é compreensível — ele replicou com indulgência. — Como eu disse, vamos conversar. Depois. Roberta conteve o impulso de esbofeteá-lo. De nada adiantaria, e sua situação poderia acabar ficando muito pior. Precisava pensar logo numa alternativa de fuga ou salvação. Antes mesmo da conversa prometida, quando seu destino seria selado. Decidida, afastou-se um passo. — Vou deixá-lo para rever seus amigos — disse. — Tenho umas coisas para fazer... — Se está indo para casa, vou com você — ele interrompeu. — Preciso me livrar destas roupas. Ela o encarou. — Eu vou para a minha casa! Don Rafael sorriu. — Você ainda não é uma proprietária no meu país. Deve estar se referindo à casa de que se apropriou. — Eu não me apropriei — ela rebateu irritada. — Foi emprestada para mim. Me disseram que o dono não se importaria... — interrompeu-se diante da terrível possibilidade que lhe ocorreu. Percebeu que ele sorria, divertido. — Isso mesmo — ele concordou tranqüilo. — E agora o dono chegou. Por isso receio que, no futuro imediato, tenha de dividi-la comigo. 46
  • 47. CAPÍTULO IV Roberta sentou-se numa das cadeiras de madeira e ficou olhando-o com expressão neutra. Não dissera uma palavra desde que ele a havia conduzido para dentro. Depois do brilho do dia lá fora, o interior da casinha de um cômodo parecia mergulhado na escuridão. Mesmo depois de os olhos se terem acostumado, era difícil distinguir os traços do seu captor. De repente, ele a surpreendeu num tom divertido: — Você entrou em choque com a perspectiva de dividir a casa comigo? Ela sentia a garganta seca e muito pouca disposição para conversar. De mau humor, respondeu: — Sim. Ele riu, tirando o casaco e jogando-o na beira da cama. Os olhos de Roberta seguiram a peça de roupa, e o medo a assaltou. — Pensei que fosse mais liberada — brincou. Vendo-o desabotoar a camisa, ela ficou tensa. Aquilo era ridículo! Ele era um homem sofisticado, tentou convencer-se. Em nenhum momento havia dado algum sinal de ser do tipo que violenta moças indefesas, portanto não havia motivo para sentir-se tão ameaçada. Usando toda sua fibra, ela falou com a maior frieza possível: 47
  • 48. — Não vejo o que ser liberada tem a ver com não querer repartir a casa com o meu carcereiro. O que, afinal, você é. Aquelas palavras o enfureceram. Mesmo no cômodo escuro era possível perceber sua irritação. — Eu não sou carcereiro — ele disse entre dentes, tirando a camisa e atirando-a para junto do casaco. — Não? — ela replicou sem se perturbar. Don Rafael encarou-a franzindo as sobrancelhas. — Você se sente como uma prisioneira? Marta a trancou em alguma cela? As pessoas a deixaram passar fome, a ignoraram? — Não — Roberta admitiu. — Todos têm sido muito bons comigo. — Ah! — ele pareceu divertido de novo. — Acha então que eu devia ter sido mais gentil. — Deu alguns passos até ela. — É isso mesmo o que quer de mim, Señorita Lennox? Gentileza? — Não. — Também achei que não. Roberta esforçou-se para sustentar aquele olhar, com o qual ele parecia dominá-la sem nem mesmo tocá-la. Mas ela era uma mulher independente, responsável. Não poderia se olhar no espelho mais tarde se permitisse que aquele homem a humilhasse com uma insinuação tão torpe. Assim, filando-o com sua expressão mais doce, disse: — O que eu realmente espero de você, Don Rafael... — sorriu com enorme delicadeza — é a minha liberdade. Ela o havia atingido. O rosto dele assumiu uma expressão tensa, e seus olhos brilhavam muito. 48
  • 49. — Imaginei que diria algo assim. — Passou a mão pelo rosto de Roberta, como quem avalia uma mercadoria em exposição. — Eu acho que está precisando de algo mais além da liberdade, — disse, afastando-se. — Pena que eu não possa agora atendê-la, minha cara. Ela mal acreditava que estivesse sendo tão insultada. Ele queria dizer que a possuiria, se ela ficasse disponível, mas que não a respeitava nem estimava. Revelava-se, assim, um inimigo frio e desprezível. Roberta sentiu-se só e abandonada, mas recusava-se a deixar que ele percebesse seus sentimentos. — Isso significa que você vai embora? — perguntou com cinismo. — Não, eu não pretendia dizer isso — Don Rafael respondeu com uma careta. — Vou ficar aqui. E você, minha pequena prisioneira, também. Mas eu não vim para passar férias... ou pela oportunidade de dedicar minha atenção a você. Vou estar muito ocupado. Ela se perguntou o que um advogado teria para se ocupar numa vila como aquela e concluiu que preferia não saber. — Nesse caso, é claro que eu devo deixar a sua cama — disse, num tom educado. — Não vou incomodá-lo, se vai estar trabalhando. — E acredita que vai me incomodar menos se se mudar? — ele perguntou com desprezo., Como ela não respondesse, continuou: — A menos que vá acampar nas cavernas, não há nenhum outro lugar. E as noites nas montanhas são muito frias. Se quer que eu seja gentil, Señorita, então deve permitir que eu não a deixe morrer congelada à noite. Ela respondeu com toda a calma; — Não sei como agradecer tanta consideração, Don Rafael. O que você sugere? 49
  • 50. — Eu não sugiro nada. — De repente, tornou-se ameaçador. — Valetta está preocupado, mas no momento não está concordando com nada. Portanto, como objeto de barganha, vai permanecer aqui escondida. Vai continuar fazendo o que tem feito nestes últimos dias, além de conservar esta casa limpa e arejada. Vai lavar as minhas roupas, cozinhar minha comida e fazer qualquer serviço que eu pedir. Isso está claro? Por um momento Roberta ficou paralisada. Então conseguiu responder: — Perfeitamente. Mas está me parecendo muito parcial. O que eu recebo em troca? — quis saber com admirável ousadia. — Você ganha um protetor — ele disse num tom que lhe causou arrepios. — Um protetor? Para me proteger do quê? — De mordida de cobra — ele disse em tom ofensivo. — E de deslizamentos de terra. E do interesse dos jovens locais. E, é claro, de congelamentos. — Eu não vou dormir com você — afirmou ela com determinação. — Obrigado — ele disse, abrindo o móvel. — Aqui estão as minhas camisas limpas. Depois que tiver lavado esta — e apontou para a que tinha acabado de tirar —, ponha de volta aqui. Creio que não vai encontrar dificuldade em diferenciar as minhas camisas de usar no campo das de usar na cidade. Minutos depois, Don Rafael Madariaga saía, deixando-a sozinha e num terrível estado de nervos. A muito custo, e só após obrigar-se a sentar e a fazer exercícios respiratórios por alguns minutos, ela conseguiu se acalmar o bastante para raciocinar com clareza. Vencido o pânico, tentou esquematizar a questão: em primeiro 50
  • 51. lugar, estava claro que não pretendiam feri-la. Mesmo porque, de nada valeria ela morta. Em segundo lugar, os moradores da vila haviam se convencido de que seu precioso Don Rafael se apaixonara por ela; portanto, num caso de briga entre ambos, provavelmente ninguém iria querer se envolver, pois acreditariam tratar-se de uma discussão de namorados. Concluindo, não a feririam, mas também não a protegeriam. “Então, o que ele pretende fazer comigo, sabendo que não tenho para onde ir?”, ela se perguntou. E aí estava uma pergunta que não sabia como responder. Ele agia de modo tão imprevisível, ora parecendo querer trucidá-la, ora parecendo até mesmo... desejá-la. E, por mais estranho que fosse, era essa última possibilidade que mais a perturbava. Inquieta, ela se levantou e foi até a janela. A rua estava vazia. Então tentou imaginar quanto tempo suportaria aquela situação de incerteza antes de explodir numa crise de histeria. Quanto tempo seus nervos suportariam a pressão? Não podia se dar ao luxo de esperar para descobrir. Só havia uma alternativa: fugir antes que ele voltasse. Sem demora. Mas, ao tentar seguir pela rua, Roberta descobriu que a vila não estava tão deserta quanto lhe havia parecido. Notou que era observada por muitos rostos desconhecidos, não hostis, mas suspeitosos. Resolveu abandonar o plano de escapar pela estrada principal e começou a subir. Sabia que as montanhas eram riscadas por trilhas de lhamas e cabras. Uma dessas trilhas teria de levá-la para longe dali. Assim, caminhando como se estivesse apenas dando um passeio, ela conseguiu se afastar sem levantar suspeitas. Após duas horas de caminhada por um terreno íngreme, escorregadio e pedregoso, Roberta começou a se perguntar se aquela sua tentativa de fuga não seria a idéia mais estúpida que já tinha tido. Seus pés doíam, e os mocassins emprestados por Marta começavam a dar 51
  • 52. sinais de rompimento. Várias vezes ela tropeçou e caiu. No fim, foi quase com alívio que ouviu seu nome sendo chamado. Não tinha mais energia para correr, mesmo que houvesse algum lugar para onde ir. Exausta e abatida, afastou o cabelo embaraçado do rosto. Não ficou surpresa ao ver Rafael. A elegância e serenidade que ele apresentava depois de empreender aquela caminhada chegava a ser um insulto, em comparação ao estado em que ela se encontrava. Sem alternativa, parou e ficou esperando que ele se aproximasse, tentando acalmar a respiração ofegante. O ar daquelas montanhas parecia nunca bastar. — Sabe — ele disse quando chegou perto —, é realmente uma mulher decidida. Eu a congratulo, Señorita Lennox. — Obrigada — ela disse simplesmente, procurando conservar o pouco fôlego que ainda lhe restava. Ele sorriu. — Não muito previdente, é claro, mas, mesmo assim, decidida. E corajosa. — Com a mesma segurança de quem caminha por uma calçada, ele terminou de subir o trecho que os separava, no qual ela mal conseguira dar um passo sem tropeçar. — Contra a minha vontade, estou descobrindo em você motivos de admiração. Seu tom era irônico, e ela sabia que ele estava querendo dizer justamente o contrário. — Não ria de mim! — fulminou numa voz sufocada. — Não seja ridícula! Não vê que poderia se matar num terreno inseguro como este? Nem sequer está usando um equipamento ou roupas adequadas! — E apontou para os mocassins arrebentados que ela calçava. — O que pretendia fazer quando anoitecesse? E para quê? Para chegar 52
  • 53. até o topo? Acredita que conquistaria a liberdade passando por cima das montanhas, como a heroína de algum melodrama? Roberta mordeu o lábio. Era isso mesmo o que havia imaginado. — Você devia esperar que eu fizesse alguma coisa — ela retrucou. — Talvez eu tenha esperado — ele admitiu, sorrindo para si mesmo. — Mas não isso. — O quê, então? — Apesar do cansaço extremo e de sentir-se tonta, Roberta acreditava que, descobrindo o que ele imaginava que ela faria, estaria mais bem preparada para o futuro. Ele deu de ombros. — Algo mais sutil e feminino, eu acho. — Antes que ela pudesse responder, segurou-a por um braço e puxou-a para si, de volta à trilha de terra batida. Nesse momento, sentindo-se segura, ela foi dominada por um cansaço mortal. Seus joelhos bambearam, e o corpo afrouxou. — Você está exausta! Supondo que ele estivesse aborrecido com sua fraqueza, com enorme esforço endireitou-se sobre os próprios pés e desvencilhou-se dele. — Uma boa caminhada nunca faz mal a ninguém — desafiou. — Ao contrário de terroristas. Por um momento achou que o imperturbável Don Rafael Madariaga hesitava. Mas, como sempre, ele logo se recompôs. — Creio que sabe que não somos terroristas — disse. — Ou não se atreveria a dizer isso a mim. Ela se aprumou e olhou bem nos olhos dele. 53
  • 54. — Não gosta da verdade, Don Rafael? — arriscou, transformando o medo em zombaria. Houve um silêncio, então ele falou: — Quando souber a verdade, talvez eu debata o assunto com você. Mas você é uma ignorante, uma estrangeira que nada sabe do meu país e de mim. — Sei que me seqüestrou — ela replicou com simplicidade. O olhar com que a fulminou quase a pôs em pânico. Roberta precisou de toda sua fibra para não deixar transparecer o pavor que teve naquele momento. De repente ele rompeu o pesado silêncio num tom brutal. — Então não se esqueça disso. — E puxou-a para si. — Nós vamos voltar para a vila. Agora. Se resistir, eu a carregarei. Se tentar fugir, eu a amarrarei — declarou sem emoção. — Será esperta se não me criar problemas. A descida de volta foi silenciosa. Várias vezes ela tropeçou, e ele teve de ajudá-la. Mas escorava-a com mãos frias e impessoais. Quando paravam para que ela tomasse fôlego, ele se restringia a fitá-la sem interesse. Na vila, embora já fosse noite, Angelina correu para recebê-los, como se tivesse ficado esperando. Estava ansiosa, mas Don Rafael respondia com monossílabos, e, quando a velha senhora tentou amparar Roberta, a fez recuar com o olhar, segurando sua prisioneira com tanta força que arrancou-lhe um gemido de dor. — Vejo-a mais tarde, Angelina. A Señorita precisa descansar de sua pequena aventura, por isso não vai jantar com vocês esta noite — anunciou, antes de conduzir Roberta para casa, fingindo grande solicitude. 54
  • 55. Lá dentro, a claridade produzida por um lampião a querosene criava um clima de aconchego. Lágrimas inesperadas brotaram nos olhos de Roberta, que virou a cabeça para que ele não as visse. Don Rafael, porém, não tinha sua atenção voltada para ela; ocupava- se em trancar a porta e a janela, criando uma tensão insuportável no ar. Para rompê-la, ela precisava dizer alguma coisa. — Vai me bater por ter fugido? Não quer que ninguém na vila veja? Ele virou-se para encará-la. — Bem que você merecia. Como pôde ser tão irresponsável? Não viu que podia ter quebrado uma perna com essa brincadeira? Ou mesmo o pescoço! — Qual é o problema? Tem medo de perder o poder de barganha se tiver apenas um corpo para oferecer? — ela zombou. — Nem um pouco — retrucou com calma. — Então o que pretende fazer comigo? — Bem, mantê-la viva. Por bem ou por mal. — Eu quis dizer... agora. — Ah, agora... — Ficou pensativo. — Eu disse à Angelina que você ia descansar. Talvez seja a melhor idéia. — Aproximou-se dela. Recusando-se a ceder, ela levantou o queixo e desafiou-o com o olhar. — Se encostar a mão em mim eu vou gritar tão alto que vão ouvir no outro vale! Mas, para decepção de Roberta, ele pareceu apenas divertido. 55
  • 56. — Isso vai aumentar a minha reputação enormemente. — Reputação de violento? — ela disparou sarcástica. Mais uma vez ele a frustrou, rindo alto. — Você está mesmo determinada a me enfurecer, não é? Não havia nada que ela desejasse mais, mas de modo algum iria admitir. Disse: — Eu só quero deixar clara a situação. — Mas a situação está clara. Você é minha... hóspede — ele replicou sorrindo. — Seu bem-estar é minha responsabilidade. Você pode não gostar, mas também não pode mudar isso. — Meu bem-estar? — ela repeliu com desdém. — Sua segurança física, conforto e, espero, prazer — explicou com falsa inocência. Sem saber o que dizer, Roberta deixou-se cair na cama. Ele a estudou com interesse. — Está cansada? Talvez tenha se cansado mais com o esforço da caminhada do que pensou, não? — Eu não estou nem um pouco cansada... — Ótimo — ele interrompeu, alcançando-a em dois passos. Segurando-a pelos ombros, fez com que se levantasse e pôs-se a estudá- la com cuidado. — Por que está com tanto medo? Deve ter percebido que se não a assassinei até agora é porque isso não está nos meus planos. Vencendo o nó que se formava na garganta, ela deu um jeito de responder: 56
  • 57. — Eu não estou com medo. Ele tomou-lhe uma das mãos e levou-a até o próprio peito, onde ambos podiam senti-la tremer. — Não? — Ergueu as sobrancelhas desconfiado. Roberta baixou os olhos, e ele segurou-a pelo queixo, obrigando-a a encará-lo. — Então por que está tremendo? Acha mesmo que eu a machucaria? Ela engoliu em seco. — Eu não sei. — Ajudaria se eu lhe dissesse que possuir mulheres indefesas nunca foi meu passatempo favorito? Roberta, para sua própria surpresa, descobriu que a afirmação não ajudava em nada. Não temia ser possuída por ele. Era algo mais complicado do que aquilo. Interpretando mal seu silêncio, ele prosseguiu: — Admito que me deixou muito bravo. Até encontrar você eu sempre me considerei um homem de paz — disse pensativo. — Mas nestes últimos dias eu cheguei umas duas vezes tão perto de bater numa mulher como nunca havia imaginado ser possível para mim, Pela primeira vez desde sua captura, sentindo-o tão perto, Roberta foi dominada por uma estranha sensação. Tinha vontade de que ele não a soltasse, embora soubesse que devia resistir a uma aproximação. — Pretende me dizer que está me ameaçando por minha culpa? — perguntou incrédula. E, para sua total surpresa, viu-o corar, soltando-lhe a mão e virando-se, de forma que só podia ver seu perfil decidido. — Você me causa as piores emoções — ele admitiu. — Não sei se é culpa sua ou minha. 57
  • 58. O medo foi passando, e em seu lugar foi vindo apenas uma espécie de torpor. — Então você não sabe? — ela perguntou. Ele deu de ombros. — Bem, sim, creio que sei. Nós dois não somos mais crianças, e acho que ambos sabemos. Como não o entendesse, Roberta calou. — E o tempo só pode piorar tudo. — Não entendi. — Não? — tornou a olhá-la. — Pois acredite-me, não podia ser pior. O país está prestes a explodir. Para ser sincero, nem sei se já não explodiu. As estações de rádio não estão transmitindo nada há vinte e quatro horas. Só a emissora do exército, mas só põe música no ar. — Está dizendo que vai haver uma revolução? — Isso é quase certo, — Passou a mão pelo cabelo num gesto distraído. — E muito breve, se não está acontecendo agora, enquanto falamos. Ela estremeceu. — Que terrível! — Não tão terrível para nós, que estamos em guerra civil há tantos anos. .Agora, ao menos, talvez tenhamos uma chance de estabelecer um governo decente para este pobre país. Apesar de tudo, ela não o achou com jeito de um revolucionário apaixonado pela causa. De fato, parecia muito preocupado. 58
  • 59. — De que modo você vai estar envolvido? Vai... — ela hesitou — lutar? Ele a encarou com dureza. — Lutar? O que você entende por lutar? Luta com os seus competidores, não é? Oferecendo melhores acordos e quantias fora do contrato, não é? Ela se lembrou do presidente Valetta pedindo que uma soma extra fosse depositada em seu nome numa conta secreta na Suíça. Deu risada, balançando a cabeça. — Não me diga que acredita em tudo o que lê nos jornais. — Não? — olhou-a com curiosidade. — Está me dizendo que não usa suborno nos seus acordos, quando necessário, Señorita Lennox? Quer dizer, por exemplo, que se eu estivesse em condições de fazer valer esse seu maldito projeto você não tentaria me persuadir a fazê-lo? Ela olhou-o nos olhos. — Bem, sim, é claro. É um bom projeto, e seu país precisa dele. A Technica não é a única empresa que pensa assim. Mas eu não lançaria mão de nenhum fundo extra imaginário para poder fechar um contrato. — Devo entender, então, que usaria de outros meios? — ele perguntou, grosseiro. — Bem, isso não deixa de ser muito inteligente. Sentindo a boca seca, ela esforçou-se para dizer: — Eu não sei do que está falando. — Oh, eu acho que sabe, minha querida. É uma mulher muito inteligente. Ela balançou a cabeça. 59
  • 60. — Nesse caso, deixe-me ser bem claro: como ficou evidente desde o começo, eu quero você. Isso lhe dá uma arma, certo? Mas Deus a ajude se tentar usá-la! Roberta empalideceu, mas conseguiu falar com bastante calma. — Você fala como se eu fosse uma combatente dessa sua revolução. Mas acontece que não sou. — Não — ele concordou, voltando a falar num tom mais suave. — Não. Você está segura aqui, e é onde vai ficar. — Aqui? — Seus olhos voltaram-se para a cama. Rafael deu um suspiro de impaciência. — Em segurança, eu disse. Não vou tocá-la. Estarei muito ocupado para isso; você pode ser muito útil cuidando dos afazeres domésticos, mas asseguro-lhe que serão as únicas coisas que lhe pedirei. — Atirou a jaqueta de brim sobre o ombro e foi até a porta. Então parou e se virou. — A menos, é claro, que você decida que prefere de outro modo. Depois disso, saiu. CAPÍTULO V Roberta não tornou a vê-lo naquela noite, embora tivesse lutado para se manter desperta até literalmente não conseguir mais conservar os olhos abertos. No final, acabou se enfiando debaixo das cobertas sem 60
  • 61. nem mesmo terminar de se despir. Quando despertou na manhã seguinte, ainda estava escuro, mas era possível ouvir claros sinais de atividade do lado de fora. Apoiou-se num cotovelo para consultar o relógio, mas ele tinha parado. Reparou então nas venezianas fechadas; por isso estava mergulhada na escuridão. De Rafael nenhum sinal. Durante o sono ela havia desarrumado os lençóis, mas só um travesseiro revelava ter sido usado, o que provava que ele não tinha dormido ali. Olhando em volta, viu, pendurada no encosto de uma cadeira, a jaqueta com que ele tinha saído à noite. E no assento da mesma cadeira identificou uma pequena pilha formada pelas roupas que ele havia usado no dia anterior. Portanto, em algum momento ele tinha estado ali, pelo menos para trocar de roupa. Olhou para os próprios trajes com desgosto. Também precisava se vestir, mas só de pensar em pôr a mesma roupa usada no dia anterior sentiu um mal-estar. Aborrecida, olhou para a arca onde Rafael guardava as camisas. Talvez encontrasse uma blusa limpa, esquecida por alguma outra visitante da cabana. Ou, na pior das hipóteses, pegaria uma das camisas dele. Levantou-se e, mal havia dado dois passos, percebeu o quanto se sentia fraca. Mal podia andar. Deixando escapar um gemido, tornou a se sentar. Os músculos da coxa pareciam em chamas. Pelo jeito, sua estúpida tentativa de fuga ainda ia lhe causar muito mais transtornos. Compreendeu a sorte que tivera em ser alcançada por Rafael. Analisando os fatos com frieza, foi obrigada a reconhecer que lhe devia um agradecimento. Mancando, chegou até o baú, onde encontrou livros, mapas e um aparelho que à primeira vista deu a impressão de ser um toca-fitas, mas 61