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Pêro Vaz de Caminha escreveu um texto que é considerado, justamente, uma das jóias
da literatura portuguesa Carta do Achamento da Terra de Vera Cruz, que é como quem
diz, a informação mandada ao rei de Portugal a dar a notícia da descoberta do Brasil.
Nasceu no Porto em 1437, no seio de uma família pertencente à classe média letrada.
Seu pai exercia as importantes funções de mestre da Balança da Moeda dessa cidade,
funções que, a seguir, foram exercidas por Pêro Vaz de Caminha, depois de 1476.Após
diversos serviços prestados à coroa, Pêro Vaz de Caminha tornou-se, sucessiva-mente,
cavaleiro dos reis D. Afonso V, D. João II e D. Manuel. Em 1497, Pêro Vaz de
Caminha foi incumbido pela Câmara do Porto de redigir os capítulos a apresentar às
cortes, que se realizariam em Lisboa, no ano seguinte. Tal incumbência prova o
prestígio político e social, bem como o reconhecimento da competência literária do
autor da.Não admira, pois, que tenha recaído em Pêro Vaz de Caminha a escolha para
escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, que em 1500 descobriria o Brasil.A sua
celebridade ficou a dever-se, precisamente, a essa carta, datada de 1 de Maio de 1500,
endereçada ao rei D. Manuel a comunicar a descoberta da nova terra. A Carta de Pêro
Vaz de Caminha é um documento essencial e particularmente interessante de um
momento ímpar da História e da Cultura portuguesas, e, como tal, um paradigma da
literatura de viagens do Renascimento e da cultura nova, de base experimental e
tendência crítica.Trata-se, efectivamente, de uma verdadeira carta-narrativa, onde
descreve a geografia, a fauna, a flora do novo território, a aparência e a psicologia dos
índios (que descobriu nos oito dias de convivência com os nativos), os métodos e
experiências de contacto dos portugueses e as reacções mútuas, naturalmente a partir de
uma "perspectiva etnocêntrica".A preocupação com a «salvação» religiosa da população
nativa é típica deste período, na medida em que os portugueses de então associavam à
grandiosidade dos seus empreendimentos a expansão da fé cristã. É a mesma concepção
providencialista da História portuguesa que encontramos em Os Lusíadas, de Luís de
Camões. A expansão era encarada, como o alargamento da civilização e da cultura mas
também da fé cristã. A Carta do Achamento do Brasil é, por isso, um documento
fundamental para a compreensão do Renascimento português.A imposição de uma nova
civilização, de uma nova cultura e de uma nova religião sobre os povos dominados nem
sempre se fez de uma forma pacífica. Várias vezes deu origem a conflitos, que fizeram
vítimas. Uma dessas situações provocou a morte a Pêro Vaz de Caminha, ainda no ano
de 1500, quando os Mouros a mando do Samorim de Calecut, o assassinaram
juntamente com os outros portugueses que estavam na feitoria portuguesa daquela
cidade indiana.
A carta que o escrivão Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei d. Manuel é considerada o
primeiro documento da nossa história, e também como o primeiro texto literário do
Brasil e é o mais minucioso e importante documento relacionado à viagem da esquadra
de Cabral ao Brasil e foi publicada pela primeira vez apenas em 1817, mais de trezentos
anos após haver sido redigida, como parte do livro Corografia Brasílica..., de autoria de
Manuel Aires do Casal. Isto significa que, até essa época, a história contada sobre a
viagem de 1500 foi substancialmente diferente da narrada depois.


O texto de Pero Vaz de Caminha tem a preocupação básica de informar, procurando
transmitir o máximo possível de dados a respeito do que ocorria e do que o escrivão
via, ouvia e sentia.


O fato de ser um texto informativo alia-se a outras importantes dimensões do
documento, pois insere-se no esforço conjunto dos europeus, concretizado nos textos de
viagem da época (especialmente nos escritos por integrantes das expedições), no sentido
de construir alteridades, à medida mesmo que os navegantes entravam em contato com
diversas terras e povos — alguns, como os índios e o futuro Brasil, totalmente
desconhecidos deles —, com os quais seria preciso conviver dali em diante e, para
conseguir dominar, sobretudo conhecer.


O escrivão português foi minucioso na elaboração do seu inventário de diferenças,
incluindo não somente pessoas, mas animais, plantas, relevo, vegetação, clima, solo,
produtos da terra, etc.


O texto do escrivão foi além. Reunindo o que viu às categorias que construiu, Caminha
completou o ciclo: propôs ao rei, no final de seu texto, caminhos concretos para o
aproveitamento do território e de seus habitantes, a saber: o desenvolvimento da
agricultura e a cristianização dos índios. O escrivão viu o diferente, apreendeu-o
segundo a sua própria mentalidade e, porque fez isso, foi capaz de dar o terceiro passo:
sugerir ao monarca os caminhos do futuro, que eram os caminhos da desigualdade entre
visitantes e habitantes, os caminhos da dominação portuguesa. Os acontecimentos
descritos na carta — o tempo presente da chegada à terra — podiam incluir — como
efetivamente incluíram — congraçamentos e danças coletivas entre navegadores
portugueses e índios, além de atitudes legítimas de curiosidade, espanto e tolerância,
profundamente humanas, por parte do escrivão ou de outros tripulantes, frente à terra
bela e à sua gente agreste.


"De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito fremosa. (...) Nela até agora não
pudemos saber que haja ouro nem prata... porém a terra em si é de muitos bons ares
assim frios e temperados como os de Entre-Doiro-e-Minho. Águas são muitas e
infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar~ dar-se-á nela tudo
por bem das águas que tem, porém o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que
será salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que vossa alteza em ela deve
lançar"


Assim o escrivão da Armada de Cabral conclui sua carta-relatório ao Rei D. Manuel,
informando sobre o descobrimento do Brasil. Observe a convivência, no mesmo
parágrafo, do propósito mercantilista da viagem (a preocupação com o ouro e a prata)
com o espírito missionário (a salvação do índio), que oferecia uma justificativa para a
exploração econômica.


A Carta de Pero Vaz de Caminha marca, também, o início de uma longa tradição, o
ufanismo ou nativismo, que consiste na exaltação (geralmente exagerada) das virtudes
da terra e da gente, e que se irá desdobrar em todos os períodos subseqüentes.


Com relação ao índio, a atitude de Caminha foi de certa simpatia:


"Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa de cobrir nem
mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostrar
no rosto. (...) Eles porém contudo andam muito bem curados e muito limpos e naquilo
me parece ainda mais que são como as aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar
melhor pena e melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus são tão limpos e
tão gordos e tão fremosos que não pode mais ser."


Alude também, maliciosamente, à nudez das índias:
"(...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças bem novinhas e gentis, com cabelo
mui pretos e compridos pelas costas e suas vergonhas tão altas e tão saradinhas e tão
limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma
vergonha."


A Carta de Caminha é o relato mais rico e confiável da primeira semana após o
Descobrimento. É um diário atípico, ou uma crônica de viagem, revestida das
características estilísticas da literatura de viagem do Quinhentismo: a linguagem
clássica, simplificada pela necessidade de tratamento objetivo da matéria; clareza;
simplicidade; realismo nas observações; crítica equilibrada e, dentro do espírito
humanista, uma constante curiosidade e uma persistente capacidade de maravilhar-se.


Como documento é muito mais revelador e muito mais bem escrito do que a carta de
Américo Vespúcio, que logrou o tamanho sucesso na Europa renascentista, a ponto de
fazer do nome de seu autor o nome do novo continente.

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Carta de Caminha relata descoberta do Brasil

  • 1. Pêro Vaz de Caminha escreveu um texto que é considerado, justamente, uma das jóias da literatura portuguesa Carta do Achamento da Terra de Vera Cruz, que é como quem diz, a informação mandada ao rei de Portugal a dar a notícia da descoberta do Brasil. Nasceu no Porto em 1437, no seio de uma família pertencente à classe média letrada. Seu pai exercia as importantes funções de mestre da Balança da Moeda dessa cidade, funções que, a seguir, foram exercidas por Pêro Vaz de Caminha, depois de 1476.Após diversos serviços prestados à coroa, Pêro Vaz de Caminha tornou-se, sucessiva-mente, cavaleiro dos reis D. Afonso V, D. João II e D. Manuel. Em 1497, Pêro Vaz de Caminha foi incumbido pela Câmara do Porto de redigir os capítulos a apresentar às cortes, que se realizariam em Lisboa, no ano seguinte. Tal incumbência prova o prestígio político e social, bem como o reconhecimento da competência literária do autor da.Não admira, pois, que tenha recaído em Pêro Vaz de Caminha a escolha para escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, que em 1500 descobriria o Brasil.A sua celebridade ficou a dever-se, precisamente, a essa carta, datada de 1 de Maio de 1500, endereçada ao rei D. Manuel a comunicar a descoberta da nova terra. A Carta de Pêro Vaz de Caminha é um documento essencial e particularmente interessante de um momento ímpar da História e da Cultura portuguesas, e, como tal, um paradigma da literatura de viagens do Renascimento e da cultura nova, de base experimental e tendência crítica.Trata-se, efectivamente, de uma verdadeira carta-narrativa, onde descreve a geografia, a fauna, a flora do novo território, a aparência e a psicologia dos índios (que descobriu nos oito dias de convivência com os nativos), os métodos e experiências de contacto dos portugueses e as reacções mútuas, naturalmente a partir de uma "perspectiva etnocêntrica".A preocupação com a «salvação» religiosa da população nativa é típica deste período, na medida em que os portugueses de então associavam à grandiosidade dos seus empreendimentos a expansão da fé cristã. É a mesma concepção providencialista da História portuguesa que encontramos em Os Lusíadas, de Luís de Camões. A expansão era encarada, como o alargamento da civilização e da cultura mas também da fé cristã. A Carta do Achamento do Brasil é, por isso, um documento fundamental para a compreensão do Renascimento português.A imposição de uma nova civilização, de uma nova cultura e de uma nova religião sobre os povos dominados nem sempre se fez de uma forma pacífica. Várias vezes deu origem a conflitos, que fizeram vítimas. Uma dessas situações provocou a morte a Pêro Vaz de Caminha, ainda no ano de 1500, quando os Mouros a mando do Samorim de Calecut, o assassinaram
  • 2. juntamente com os outros portugueses que estavam na feitoria portuguesa daquela cidade indiana.
  • 3. A carta que o escrivão Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei d. Manuel é considerada o primeiro documento da nossa história, e também como o primeiro texto literário do Brasil e é o mais minucioso e importante documento relacionado à viagem da esquadra de Cabral ao Brasil e foi publicada pela primeira vez apenas em 1817, mais de trezentos anos após haver sido redigida, como parte do livro Corografia Brasílica..., de autoria de Manuel Aires do Casal. Isto significa que, até essa época, a história contada sobre a viagem de 1500 foi substancialmente diferente da narrada depois. O texto de Pero Vaz de Caminha tem a preocupação básica de informar, procurando transmitir o máximo possível de dados a respeito do que ocorria e do que o escrivão via, ouvia e sentia. O fato de ser um texto informativo alia-se a outras importantes dimensões do documento, pois insere-se no esforço conjunto dos europeus, concretizado nos textos de viagem da época (especialmente nos escritos por integrantes das expedições), no sentido de construir alteridades, à medida mesmo que os navegantes entravam em contato com diversas terras e povos — alguns, como os índios e o futuro Brasil, totalmente desconhecidos deles —, com os quais seria preciso conviver dali em diante e, para conseguir dominar, sobretudo conhecer. O escrivão português foi minucioso na elaboração do seu inventário de diferenças, incluindo não somente pessoas, mas animais, plantas, relevo, vegetação, clima, solo, produtos da terra, etc. O texto do escrivão foi além. Reunindo o que viu às categorias que construiu, Caminha completou o ciclo: propôs ao rei, no final de seu texto, caminhos concretos para o aproveitamento do território e de seus habitantes, a saber: o desenvolvimento da agricultura e a cristianização dos índios. O escrivão viu o diferente, apreendeu-o segundo a sua própria mentalidade e, porque fez isso, foi capaz de dar o terceiro passo: sugerir ao monarca os caminhos do futuro, que eram os caminhos da desigualdade entre visitantes e habitantes, os caminhos da dominação portuguesa. Os acontecimentos descritos na carta — o tempo presente da chegada à terra — podiam incluir — como efetivamente incluíram — congraçamentos e danças coletivas entre navegadores
  • 4. portugueses e índios, além de atitudes legítimas de curiosidade, espanto e tolerância, profundamente humanas, por parte do escrivão ou de outros tripulantes, frente à terra bela e à sua gente agreste. "De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito fremosa. (...) Nela até agora não pudemos saber que haja ouro nem prata... porém a terra em si é de muitos bons ares assim frios e temperados como os de Entre-Doiro-e-Minho. Águas são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar~ dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem, porém o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que vossa alteza em ela deve lançar" Assim o escrivão da Armada de Cabral conclui sua carta-relatório ao Rei D. Manuel, informando sobre o descobrimento do Brasil. Observe a convivência, no mesmo parágrafo, do propósito mercantilista da viagem (a preocupação com o ouro e a prata) com o espírito missionário (a salvação do índio), que oferecia uma justificativa para a exploração econômica. A Carta de Pero Vaz de Caminha marca, também, o início de uma longa tradição, o ufanismo ou nativismo, que consiste na exaltação (geralmente exagerada) das virtudes da terra e da gente, e que se irá desdobrar em todos os períodos subseqüentes. Com relação ao índio, a atitude de Caminha foi de certa simpatia: "Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa de cobrir nem mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostrar no rosto. (...) Eles porém contudo andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como as aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode mais ser." Alude também, maliciosamente, à nudez das índias:
  • 5. "(...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças bem novinhas e gentis, com cabelo mui pretos e compridos pelas costas e suas vergonhas tão altas e tão saradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha." A Carta de Caminha é o relato mais rico e confiável da primeira semana após o Descobrimento. É um diário atípico, ou uma crônica de viagem, revestida das características estilísticas da literatura de viagem do Quinhentismo: a linguagem clássica, simplificada pela necessidade de tratamento objetivo da matéria; clareza; simplicidade; realismo nas observações; crítica equilibrada e, dentro do espírito humanista, uma constante curiosidade e uma persistente capacidade de maravilhar-se. Como documento é muito mais revelador e muito mais bem escrito do que a carta de Américo Vespúcio, que logrou o tamanho sucesso na Europa renascentista, a ponto de fazer do nome de seu autor o nome do novo continente.