1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ
PROGRAMA AVANÇADO DE CULTURA CONTEMPORÂNEA - PACC
PROGRAMA DE PÓS-DOUTORADO EM ESTUDOS CULTURAIS
PROJETO DE PÓS-DOUTORADO
AS ENTIDADES ‘BRASILEIRAS’ DA UMBANDA:
REPRESENTAÇÕES MÍTICAS DAS MINORIAS RACIAIS E NACIONAIS DO
BRASIL CONTEMPORÂNEO
Autor: Dr. Sulivan Charles Barros
BRASÍLIA
2008
2. 2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 03
OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA DESTA PROPOSTA, 06
O COMPROMISSO COM A TEORIA: ESTUDANDO COM GRUPOS SOCIAIS
SUBALTERNOS, 08
A possessão como expressão da “voz” subalterna, 12
ESTRATÉGIA METODOLÓGICA, 20
CRONOGRAMA, 23
REFERÊNCIAS, 24
3. 3
INTRODUÇÃO
No universo plural das religiões afro-brasileiras, ou afro-índio-brasileiras, as
entidades espirituais que constituem o panteão especialmente brasileiro, justaposto ao
panteão de origem africana formado pelos orixás, são conhecidos como caboclos, mestres
ou pelo nome genérico de encantados, concebidos como espíritos de homens e mulheres
comuns que morreram ou então passaram diretamente deste mundo para um mundo mítico,
invisível, sem ter conhecido a experiência de morrer: diz-se que se “encantaram”.
Em todos estes cultos, o sincretismo com o catolicismo é sempre muito expressivo.
Uns mais, outros menos, os cultos dos encantados não estão isolados, havendo trocas e
influências recíprocas entre eles. Destes cultos, certamente a umbanda é o mais conhecido.
Quem já teve a oportunidade de assistir a uma “gira” de um terreiro umbandista
pode perceber, no ritual e no ambiente, a presença de elementos de várias religiões. No altar
principal, chamado de “congá”, encontram-se imagens de Jesus Cristo, Nossa Senhora,
santos como São Lázaro, São Jorge, Cosme e Damião, Orixás, ao lado de estatuetas de
Buda, Iemanjá, índios, ciganos, pretos-velhos e, mais dissimuladas, representações que
sugerem a figura do diabo (representando os exus e as pombas-giras). Encontram-se,
também, nestes “congás”, objetos próprios do rito umbandista (“pembas”, “guias”,
“patuás”, etc.), bem como, velas brancas, flores e por vezes ícones cívicos, como a bandeira
nacional.
Ali, no espaço sagrado do terreiro, rezam-se padre-nossos, ave-marias e invocam-se
os orixás e as “entidades” da umbanda; os espíritos “descem” nos iniciados por meio do
transe, provocado pelo toque dos atabaques, cantigas (“pontos cantados”) e sinais
cabalísticos desenhados no chão (“pontos riscados”). A sessão começa com a defumação
da sala; durante a cerimônia os médiuns, tomados por seus “guias”, dançam, fumam
charutos ou cachimbos, dão passes e conversam com o público presente. A cor das roupas
é predominantemente branca, mas não faltam colares de todas as cores, chapéus de couro,
de palha, dentre outros acessórios rituais.
O culto é composto de músicas e danças sagradas. Os atabaques marcam o ritmo, os
médiuns cantam o “ponto” sob a liderança da mãe ou do pai-de-santo, dançam em roda, e
recebem as suas “entidades” espirituais, funcionando como seus “cavalos” e “aparelhos”.
4. 4
Além de se expressarem dançando a sua energia vital (segundo a concepção destas
comunidades religiosas), como ocorre com os orixás do candomblé, os “guias” da
umbanda, ao contrário daqueles, se apresentam para dar conselhos aos fiéis que deles se
aproximam. Orientam estes e purificam-os por meio de “passes”, protegendo-os de
possíveis ataques místicos de que são ou poderão se tornar vítimas.
A primeira impressão que se tem, é a de uma mistura indigesta de elementos
religiosos e profanos de origens européias, africanas e indígenas. Existe até um termo para
designar essa junção, num mesmo culto, de fragmentos de procedências tão diversas:
“sincretismo”. Tal denominação contém elementos da religião católica e do espiritismo
kardecista, de cultos trazidos para o Brasil pelos escravos, além de alguns de duvidosa
inspiração indígena.
Os terreiros de umbanda tornam-se, assim, centros de avaliação e de resolução de
uma infinidade de pequenos conflitos que afligem as pessoas em seu cotidiano profano. São
especialistas na identificação das causas dos infortúnios e profundos conhecedores da
psicologia social local. Ajudam-na a conformá-la, inclusive, emprestando-lhes um sentido
maior. As competições e os conflitos do cotidiano, cujos resultados desiguais semeiam a
inveja, o ódio e o ressentimento, resultam na produção de feitiços, ou mesmo na simples
geração de negatividades que fazem o mal.
Invenção cultural notável, a umbanda, traz para a interpretação e resolução de
conflitos, personagens marginais da hierarquia simbólica dominante: caboclos afoitos, que
representam os espaços não domesticados das matas; pretos-velhos, escravos já à margem
do trabalho, que têm a humildade e a sabedoria realista de uma vida sofrida; crianças, que
ainda não entraram na idade da razão; exus, malandros e pombas-giras, identificados com
os personagens das ruas, que não se escondem atrás de máscaras sociais bem comportadas e
que se movem com facilidade pelos meandros perversos dos conflitos humanos.
Partindo do princípio que o imaginário rompe com as fronteiras do tempo e do
espaço e, em sua lógica própria, as divindades são construídas a partir da revelação das
qualidades que simbolizam, outras categorias de espíritos vão se encaixando no panteão
umbandista segundo critérios variados. Eles passam a representar a inserção de novos
elementos e atores sociais para a identificação daquilo que se denomina Nação brasileira.
5. 5
Os boiadeiros, representantes do sertão brasileiro, são sérios e bravos, dedicam-se a
desmanchar os “trabalhos” realizados contra os seus clientes; os marinheiros, considerados
como alcoólatras e mulherengos, não acostumados com a terra firme, tem um gingado
oscilante decorrente do tombo do navio ou do efeito do álcool, levam os feitiços para as
zonas do mar sagrado; as sereias, sob a invocação de Iemanjá, são figuras mitológicas,
metade peixe e metade mulher, e se dedicam ao mesmo ofício dos marinheiros: levam as
agruras de seus consulentes às zonas mais profundas do mar.
Os ciganos e as ciganas, juntamente com a “linha” oriental, simbolizam os
estrangeiros, dão consultas particulares fora das “giras” em que lêem cartas e falam sobre o
destino de seus consulentes; os “baianos”, supostos espíritos de velhos pais-de-santo do
candomblé da Bahia e dos nordestinos em geral, falam com sotaque e gírias nordestinas e,
fora das “giras”, jogam o oráculo de búzios para os seus fiéis.
São estes os “guias” para a proteção e o aconselhamento. Distantes das autoridades
oficiais, sejam seculares ou sagradas, estes possuem os poderes que se acumulam nas
margens das estruturas burocráticas e simbólicas. São poderes usualmente descartados
pelas ideologias oficiais, que encontram abrigo na umbanda e que podem, por meio dela,
dar um sentido positivo à experiência e ao destino daqueles que procuram cotidianamente
os seus terreiros.
Há, neste campo simbólico e sócio-histórico específico e singular, a idéia de que
estas “entidades” representam tudo aquilo de que o povo brasileiro seria ou deveria ser: um
amálgama de raças que tendem a se “branquear” com um sabor único e uniforme. Ao invés
do padrão de diferenças aparadas, mas iguais, ter-se-ia aqui um desenho nacional para
misturados desiguais.
As mesmas categorias intermediárias e intersticiais encontradas na sociedade
brasileira mais ampla, passam a denunciar estruturas de poder diferenciadas e
hierarquizadas entre estes diversos “guias” que passam a compor o panteão umbandista.
Tem-se, aqui, a mesma preocupação em sempre buscar um “lugar para cada coisa”, de
modo que “cada coisa fique em seu lugar”.
6. 6
OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA DESTA PROPOSTA
O meu interesse pelo estudo da religiosidade afro-brasileira surgiu ainda na
graduação, com a elaboração de monografia para conclusão do curso de Geografia na
Universidade de Brasília (Barros, 1997). Àquela altura, a intenção foi a de apreender a
formação do imaginário umbandista e sua interlocução com o ambiente urbano.
Na dissertação de Mestrado, defendida no Departamento de Sociologia da mesma
universidade (Barros, 2000), busquei compreender de que forma o medo do feitiço aparecia
no discurso dos moradores de Codó no Maranhão, como idéia nuclear na construção do
imaginário local, que atuava como um sistema de valores que modificava comportamentos,
interferindo na conduta daqueles indivíduos, o que rendia àquela cidade a fama de “capital
da magia negra”.
Já no doutorado, também realizado no Departamento de Sociologia da UnB (Barros,
2004), meus objetivos foram o de buscar entender de que forma a umbanda, enquanto
manifestação religiosa brasileira, expressa por meio do seu universo simbólico, a formação
de um Brasil imaginário, numa espécie de continuidade com o plano social do Brasil real.
Constatei na referida tese que as entidades ‘brasileiras’ da umbanda, caracterizadas
como espíritos possuidores de atitudes, hábitos e modalidades de comportamento
estabelecidas a partir do pertencimento a categorias sociais marginalizadas, enquanto
representações coletivas, constituem fatores sociais projetados e vividos pelos seus médiuns
e fiéis religiosos.
Na unidade de construção destas figuras míticas e no entendimento de suas
narrativas se superpõem as diversidades indicadoras de sentimentos, aspirações e atitudes
individuais que os indivíduos possuem da sociedade. No plano ideológico, estas entidades
são codificadas, conceituadas e hierarquizadas dentro de um universo cósmico como
projeção e projeto do universo social. A própria hierarquia destes espíritos corresponde à
estratificação hierárquica das classes sociais. A noção de evolução espiritual passa a ser
adequada ao conceito de evolução social preconizada pela sociedade mais ampla.
Vale lembrar que a grande crítica que os estudos “subalternos” fazem atualmente é
justamente tentar demonstrar que quando o subalterno fala, ele busca desconstruir o olhar
do outro, abrindo espaço para a diferença em um mundo submetido a um processo de
7. 7
ocidentalização. Neste sentido, um grande paradoxo apareceu no decorrer de toda a tese:
sendo a umbanda a grande expressão mística da subalternidade, como explicar o fato de
que esta religião, no trato com suas entidades espirituais, demonstra justamente o inverso: o
reforço do sistema social vigente?
É claro que o sistema religioso não deve ser visto como algo de todo coerente,
sempre havendo fissuras, contradições, etc. podendo se colocar, como é no caso da
umbanda, nesta posição de ser, por um lado, um contradiscurso subalterno e, por outro,
reforçar esta própria subalternidade.
Desta forma, na presente investigação, me proponho a buscar a partir da
contribuição dos teóricos da “voz subalterna” e dos estudos culturais elementos, que
possam me guiar num maior entendimento deste grande paradoxo umbandista: Será que as
entidades “brasileiras” da umbanda podem mesmo falar? E se falam, como se dá este
campo de negociação com as próprias crenças religiosas e com os valores dominantes da
sociedade vigente? O fenômeno da possessão não seria para umbandistas o mecanismo de
dar “voz” aos seus subalternos? As entidades ‘brasileiras’ não seriam, antes de tudo,
representações míticas das minorias raciais e nacionais do Brasil contemporâneo?
A possessão, por outro lado, não apresentaria uma certa dificuldade para aceitar um
diálogo entre pares, dando uma preferência por uma sorte de monodiálogo ou quiçá
ventriloquismo, posto que o subalterno não pode mesmo falar? Será que estas entidades,
quando manifestadas no corpo de seus “cavalos”, também não assumem uma espécie de
representação por meio de um discurso estereotipado convenientemente celebratório do
reforço desta subalternidade? Não estariam presentes nestes discursos elementos que
acabam por reforçar a ideologia do racismo?
Estas são algumas das questões que me guiarão através desta pesquisa de pós-
doutorado na área de Estudos Culturais.
8. 8
O COMPROMISSO COM A TEORIA: ESTUDANDO COM GRUPOS SOCIAIS
SUBALTERNOS
A idéia de que somos capazes de refletir de uma maneira racional, coerente e
inteligente sobre a natureza do ser humano, sobre as relações que estes mantém com seus
semelhantes e com as forças espirituais, e sobre as estruturas sociais que ele mesmo
engendrou e dentro das quais se move, é uma idéia pelo menos tão antiga quanto a própria
história conhecida. Estas, contudo, são questões já versadas pelos textos religiosos que
chegaram até nós, como pelos textos a que chamamos filosóficos. E há ainda a sabedoria
oral transmitida ao longo dos tempos e tantas vezes passada a registro escrito.
É evidente e natural que muita desta sabedoria foi resultado de um processo de
pesquisa indutiva, nas mais diversas paragens e ao longo de um grande período de tempo,
feita a partir da plenitude da experiência vivencial humana, não obstante os resultados
serem apresentados sob a forma de revelação ou de uma dedução racional a partir de
algumas verdades eternas e intrínsecas.
Aquilo a que hoje chamamos de ciências sociais são o herdeiro desta sabedoria. Mas
trata-se de um herdeiro distante e porventura freqüentemente ingrato e nada reconhecido,
visto que as ciências sociais se definiram a si próprias como sendo a busca de verdades para
lá dessa sabedoria obtida por legado ou por dedução. As ciências sociais constituíram um
empreendimento do mundo moderno no intuito de desenvolver um saber sistemático e
secular acerca da realidade, que de algum modo possa ser empiricamente validado.
Não é de surpreender que as ciências sociais, cuja construção teve lugar na Europa e
na América do Norte no século XIX, fossem eurocêntricas. O mundo europeu da época
sentia-se culturalmente triunfante, e de fato era-o em muitos aspectos. A Europa tinha
conquistado o mundo, tanto política como economicamente. As suas grandes realizações
tecnológicas tinham desempenhado um papel crucial nesta conquista, pelo que parecia
lógico atribuir essa tecnologia superior a uma ciência e a uma mundivisão igualmente
superiores.
É, pois, num contexto de mudanças na distribuição do poder no mundo, que ganha
relevo a questão da estreiteza cultural das ciências sociais tal como historicamente se foram
desenvolvendo. O surgimento deste problema não foi senão o correlato civilizacional da
perda, por parte do Ocidente, do incontestado domínio econômico e político de que
9. 9
desfrutava na cena mundial. Mas a questão civilizacional não revestiu a forma de um
conflito linear. As atitudes em presença eram profundamente ambíguas, não se podendo
dizer que tanto os estudiosos do Ocidente como os não ocidentais se agrupassem em torno
de posições unânimes sobre esta questão (e muito do outro).
Sob a égide das ideologias dominantes, as ciências sociais viam a si próprias como
reflexo e encarnação da razão, simultaneamente presidindo à ação e determinando
paradigmas presumidamente universais. Além disso, esta missão das ciências sociais
ocidentais foi bastante atraente para os estudiosos do resto do mundo, que viram na adoção
dessas concepções, práticas, epistemologias, metodologias e teorizações, uma maneira de
aderirem à comunidade universal de investigações e cientistas.
O questionamento, a partir de meados da década de 60 do século passado, do pendor
localizado e circunscrito das ciências sociais foi inicialmente, e porventura acima de tudo,
um questionamento da sua ambição de universalismo. As vozes críticas sustentavam que
elas eram, efetivamente, limitadas no seu âmbito de aplicação.
Quanto à crítica em si, ela partiu inicialmente das feministas, que puseram em causa
o pendor masculinista; dos vários grupos que vieram pôr em causa o eurocentrismo; e, mais
tarde, dos inúmeros grupos que vieram levantar ainda outras questões relativas a certos
preconceitos a seu ver incrustados nas próprias premissas das ciências sociais.
Ao analisar estas críticas, é importante distinguir o questionamento epistemológico
do questionamento de natureza política, ainda que, do ponto de vista de muita gente situada
de cada um dos lados desta discussão intelectual, ambos estivessem ligados. O
questionamento político teve a ver com o recrutamento de pessoas (estudantes, professores,
intelectuais) dentro das estruturas universitárias (e foi indissociável de um questionamento
idêntico ocorrido no mundo político em sentido mais amplo).
Argumentava-se, assim, existir toda uma variedade de grupos “esquecidos” pelas
ciências sociais: as mulheres, o mundo não ocidental no seu conjunto, os grupos
“minoritários”, existentes dentro dos países ocidentais, e outros grupos historicamente
definidos política e socialmente como subalternos.
Segundo Wallerstein et al. (1996), um dos argumentos principais proferidos a favor
do fim da exclusão de indivíduos das estruturas do saber foi o das implicações potenciais
que esta medida teria para a aquisição de um conhecimento válido. No nível mais imediato,
10. 10
dizia-se, que na sua grande maioria, os cientistas sociais tinham andado a fazer ao longo
dos últimos duzentos anos não fora mais que estudar a si próprios, e isso
independentemente do modo como a si mesmos se definiam; e mesmo aqueles que se
tinham dedicado ao estudo dos “outros” teriam mostrado tendência para definir esses
grupos como reflexo ou como imagem contrastante de si próprios.
Diante deste quadro, percebe-se que o problema é que aqueles que detêm o poder
social têm uma tendência natural para considerar universal a situação vigente, uma vez que
ela os beneficia. Assim, a definição daquilo que é verdade universal tem mudado de acordo
com as próprias mudanças verificadas na constelação do poder.
A verdade científica é, ela própria, de natureza histórica. A própria produção
intelectual ocidental é, de muitas formas, cúmplice dos interesses econômicos das classes
dominantes. Muito tem sido os questionamentos de que as ciências sociais ocidentais
tornaram-se instrumentos poderosos para subalternizar o conhecimento estabelecendo, ao
mesmo tempo, um padrão epistemológico planetário.
Contudo, é com a configuração do pensamento crítico subalterno já em fins do
século XX, com as chamadas teorias pós-coloniais, que ocorre uma luta para deslocar do
primeiro mundo para o terceiro mundo o lócus da enunciação teórica, reivindicando a
legitimidade da “localização filosófica” (Mignolo, 2003).
Bhabha (2003) afirma que estas perspectivas pós-coloniais emergem dos
testemunhos coloniais dos países colonizados e dos discursos das “minorias” dentro das
divisões geopolíticas de Leste, Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos
ideológicos da modernidade que tentam dar uma certa “normalidade” hegemônica ao
desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades,
povos, culturas.
Segundo este mesmo autor, estas teorias, também denominadas de estudos
subalternos, passam a formular “suas revisões críticas em torno de questões de diferença
cultural, autoridade social e discriminação política a fim de revelar os momentos
antagônicos e ambivalentes no interior das “racionalizações” da modernidade” (2003: 239).
O foco principal destas teorias reside nas forças institucionais que moldam e
estabelecem os limites da representação do que foram/são considerados os seres humanos
subordinados e os esforços desses grupos subalternos para desafiar as representações.
11. 11
Partindo para uma contribuição mais específica ao campo das ciências sociais,
Spivak em seu polêmico artigo Can the Subaltern speak?1
, questionou a credibilidade do
subalterno em se expressar. Para a autora, o subalterno se refere especificamente aos grupos
oprimidos e sem voz onde seus discursos são, por definição, “não-discursos”2
.
Além disso, Spivak critica a postura do intelectual que tenta falar pelo subalterno,
visto que isto implica proteger e reforçar a subalternidade e a opressão sobre eles. Ao agir
desta forma, o intelectual dá continuidade ao projeto imperialista que legitima sua condição
e existência pela negação de voz aos Outros. O subalterno, por outro lado, ao se entregar,
tão somente às mediações da representação de sua condição, corre o risco de se tornar um
objeto nas mãos do seu procurador.
Ao contrastar o marco conceitual do olhar etnográfico com a recente teoria pós-
colonial, José Jorge de Carvalho em seu artigo “O olhar etnográfico e a voz subalterna”
(1999) critica a promessa de uma geração anterior de cientistas sociais que se propunham a
uma prática etnográfica crítica que se ligava às vozes dos oprimidos, dos subalternos, dos
excluídos.
Para este autor, os cientistas sociais devem incorporar a discussão além de refazer
um projeto etnográfico que recupere explicitamente sua crítica à nossa posição de periferia
do ocidente e que denuncie, antes de tudo, o silenciamento sistemático da fala subalterna.A
idéia de trabalho etnográfico deve ser vista como um processo de tradução cultural, onde os
etnógrafos devem ouvir e tentar inscrever as vozes silenciadas, rompendo com as práticas
de poder e silenciamento tão difundidas na nossa academia.
Se representar é, antes de tudo, mediar. Quem sabe, seja justamente no momento em
que assumirmos de forma crítica a “nossa” posição de fala, possamos nos tornar capazes de
estimular um maior número de vozes que clamam para serem ouvidas?
1
Utilizei a versão em espanhol: SPIVAK, Gayatri C. (2003), “¿Puede hablar el subalterno?” In. Revista
colombiana de antropología. Vol. 30, enero-diciembre.
2
O discurso, nessa concepção, diz respeito não tanto à habilidade dos grupos de articulá-los mas à recepção
por eles obtida. Para Spivak, o subalterno é um conceito e, por definição, nunca se encontra empiricamente
(nem fala).
12. 12
A possessão como expressão da “voz” subalterna
O que caracteriza uma religião seja ela qual for, é o estabelecimento de um contato
entre o mundo profano dos homens e o mundo do sagrado, o dos deuses ou das forças
sobrenaturais. Mas se na maior parte das religiões ocidentais é o homem que, com
dificuldade, por meio de um esforço geral e penoso se eleva até Deus, em outras religiões
ditas “ritualísticas”, são as divindades que “descem” e vem por momentos habitar o corpo
de seus fiéis.
O núcleo central de algumas religiões é, pois, esta “entrada” de “entidades”
espirituais no organismo, na cabeça, nos músculos; é a “queda dos santos” vindos de
espaços míticos até os seus santuários religiosos. E os fiéis que assim são “possuídos”
buscam a experiência direta do sagrado tendo como único intermediário seus próprios
corpos.
Como primeiro passo, para uma explicação e entendimento sócio-antropológico deste
tipo de contato direto com o sagrado, torna-se necessário conceituar e precisar os termos
transe e possessão.
Na maior parte dos estudos sobre este tipo de experiência religiosa, os dois termos são
utilizados como sinônimos. Contudo, alguns estudiosos fazem questão de fazer a devida
diferenciação.
Geralmente, o transe é visto como estado alterado de consciência (total ou parcial),
isto é, descontinuidade das funções da personalidade, descontinuidade das modalidades
sensoriais, descontinuidade da memória, descontinuidade dos padrões comportamentais.
Além disso, é necessário reconhecer que uma série de fatores pode induzir o
indivíduo ao transe: agentes físicos, agentes bioquímicos, agentes psíquicos, etc. No
contexto de transe religioso, pode-se encontrar exemplos das mais variadas fórmulas de
indução: jejum, auto-flagelação, uso do tabaco e bebidas alucinógenas, efeito hipnótico, uso
da música, uso da dança, etc. Com freqüência, mais de um ao mesmo tempo.
Ao contrário do termo transe, que enquanto termo técnico pode ser vinculado ao
contexto psiquiátrico porque se refere a estados alterados de consciência, o termo possessão
tem, assim, uma gama muito mais ampla de significados. Possessão, necessariamente,
13. 13
define uma crença e, como tal, tecnicamente só pode ser vinculada a um contexto cultural,
isto é, remetido a um conjunto de convicções explicativas, de caráter místico.
Possessão implica pois, a presença em determinado indivíduo, de seres ou forças
sobrenaturais que apropriam de seu corpo enquanto que o transe pode estar desligado destas
crenças. O melhor exemplo é dado pelo transe hipnótico e pelos estados alterados de
consciência conseguidos com o auxílio de alucinógenos.
Lewis (1977) define o transe como uma condição de dissociação caracterizada pela
falta de movimento voluntário e freqüentemente por atos e pensamentos automáticos que
envolvem dissociação mental ou parcial e é, freqüentemente, acompanhada de excitantes
visões ou alucinações.
Lewis diz também que possessão se refere ao diagnóstico cultural do transe ou de
outros estados (patológicos ou não), ou ainda de situações independentemente da existência
do transe. O fator essencial da possessão é a crença de que uma pessoa foi invadida por um
ser sobrenatural e está, portanto temporariamente fora de autocontrole, estando seu ego
subordinado ao do intruso.
Contudo, a possessão deve ser vista mais do que a invasão de um espírito no corpo
de alguém. É o próprio espírito que se manifesta por meio de um veículo humano; se há
contato, é do espírito que possui com a comunidade ou representantes desta comunidade e,
não apenas do espírito com este “veículo”.
Na possessão a individualidade do “cavalo” deixa de existir, cedendo lugar à
individualidade do espírito e, por conseguinte, não parecendo possível o uso do espírito por
ele mesmo. O espírito para se manifestar necessita deste veículo a partir da indução do
transe, portanto na consecução de um estado peculiar. O indivíduo se converte apenas em
receptáculo da divindade, e é a personalidade deste que irá se apresentar em seu
comportamento.
A crença na possessão é geralmente apoiada em alterações comportamentais,
sensoriais, perceptivas e memoriais evidentes, isto é, a possessão parece ligada ao transe,
como o transe de possessão, vinculado à manifestação do sobrenatural (qualquer que seja a
forma que assuma), naturalmente porque o transe de possessão (ou de “incorporação”)
sempre aparece estudado no contexto religioso (é este o termo que será empregado no
decorrer de todo o trabalho).
14. 14
Este tipo de transe de possessão por espírito é socialmente aceitável quando se
integra à cultura de um determinado grupo social, mas é considerado um distúrbio quando
fora deste contexto. Vale ressaltar, que mesmo no grupo que o admite e valoriza, o transe
de possessão por espírito não será aceito fora do contexto específico (os ritos, cultos e
situações em que os espíritos devem intervir na comunidade) em que ele se integra, pois,
neste caso ele perde sua função social e se torna não adaptado e incômodo para esta
comunidade.
O transe de possessão deve ser visto como um fenômeno no qual o coletivo e o
individual se entrecruzam. Contudo, não é qualquer indivíduo que pode ser assim
“possuído” por divindades que os “guiam”.
O fenômeno da possessão é geralmente o atributo de indivíduos especializados,
votados à adoração ou ao culto divino, formando grupos religiosos, nas quais se entra por
iniciação e que comportam graus hierárquicos. Estes indivíduos, os iniciados, não irão
sofrer a possessão a qualquer hora, ao acaso da vida cotidiana; o transe que os acomete e os
agita é um dos momentos da festa religiosa, de cerimônia sagrada, de momento sagrado.
Geralmente, o transe é conseqüência da iniciação destes indivíduos; mas pode
acontecer que uma divindade “possua” alguém que não tenha ainda sofrido as provas da
iniciação. Isto, provavelmente, significa que tal pessoa lhe agrada, que ele quer fazer dela
seu “cavalo”, seu “veículo”, que ele a reclama para o seu culto. Diz-se então, que é “um
santo bruto” ou ainda “um santo não feito” que clama para ser desenvolvido.
A possessão implica o preparo de um corpo concreto e é, essencialmente, um
fenômeno de comunicação. A manifestação de uma divindade no corpo do iniciado, pela
aprendizagem que implica, pelo domínio do código gestual, pela intensidade das trocas
afetivas e emocionais que ocorrem durante as cerimônias religiosas, não se pode reduzir à
simples descrição de fenômenos “intrapsíquicos”. Quando isolada do seu contexto, perde o
significado.
É evidente que todo culto de transe de possessão necessita da existência de não
“possuídos”. O fenômeno da possessão para se realizar possui uma estreita dependência
daqueles que irão assistí-la, dialogar com as divindades “incorporadas”, cantar para eles,
cumprimentá-los, conversar com eles. A sua legitimidade depende, em grande medida, do
reconhecimento destes outros fiéis.
15. 15
Há, entretanto, uma outra característica no transe de possessão que coloca em
questão outro dos mais arraigados dogmas culturais da sociedade moderna. O indivíduo
“possuído” é, evidentemente, um ser unitário e, no entanto, de modo paradoxal, ele é mais
do que um. Ela consiste em uma mudança radical de personalidade pois o indivíduo
“possuído” se encontra, obviamente, “fora de si”, “inconsciente”.
A possessão também se constitui em um lócus privilegiado para o entendimento de
fenômenos intrapsíquicos tais como a projeção, a transferência e a identidade, em suas
relações com padrões comunitários ritualizados. Freud descreveu este fenômeno como
alguma coisa de terrífico, que leva alguém a algo além de si mesmo, a um só tempo
desconhecido e familiar.
Ficaram célebres os estudos de Freud sobre a epilepsia, atribuída na Idade Média, à
influência demoníaca. Ali a pessoa comum descobria forças insuspeitas em pessoas que lhe
estavam próximas, forças essas que, de alguma forma, estavam escondidas em seu próprio
ser. A possessão era entendida como produto da resistência de complexos infantis
reprimidos, identificados a manifestações de histeria.
A histeria, segundo a perspectiva freudiana, seria uma anomalia do sistema nervoso
que se fundamentaria na distribuição diferente das excitações sexuais, provavelmente
acompanhada de excesso de estímulos no órgão da mente, em parte, de natureza física e,
em parte, de natureza diretamente psíquica. Sua essência deveria ser expressa numa
fórmula que levaria em consideração as condições de excitabilidade nas diferentes partes do
sistema nervoso.
Os estados de possessão corresponderiam, portanto, a neuroses, para cuja explicação
deveria se recorrer aos poderes psíquicos. Estas manifestações consideradas em muitas
ocasiões como demoníacas, nada mais seriam que desejos maus e repreensíveis derivados
de impulsos instintivos que foram repudiados ou reprimidos (Freud, s/d)3
.
O indivíduo neste estado sofreria uma perda de consciência e, além disso,
apresentaria um quadro de alteração de comportamento rapidamente identificado como
doença mental.
3
Consultar: FREUD, Sigmund. (s/d). “Uma neurose demoníaca do século XVII (1923[1922])” In. Edição
eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (versão 2.0). Rio de Janeiro,
Imago.
16. 16
A ação da pessoa em estado de possessão, “tomada” por um espírito, estaria sendo
vítima de um processo psíquico que interferia na coerência do seu ego, gerando em
conseqüência essas variações de personalidade.
Enquanto comportamento, a possessão estaria relacionada, sobretudo, à matriz
biográfica e cultural do paciente. A possessão seria sempre seguida de manifestações do
exorcismo, ritualmente padronizadas. Os significados culturais seriam manipulados pelos
indivíduos de forma a expressar suas necessidades e emoções mais pessoais.
As “entidades” seriam, antes de tudo, estereótipos de personalidades que
representariam complexos inconscientes que às vezes criticam e falam da personalidade
ordinária do indivíduo que se acredita estar “possuído”. Estas mesmas “entidades” seriam
formas de alternativas de existência, uma personagem, que dramatizaria um desejo de ser
numa personalidade que geralmente levaria uma vida monótona, desinteressante e
demasiadamente censurada ou recalcada, seja pela família ou grupo, seja pela situação
econômica ou pessoal.
Desta forma, a possessão traria luz às relações entre a personalidade e a cultura, por
integração do nível da experiência intrapsíquica com significados culturais. De um lado, o
sujeito estaria absorvido pelos valores morais de sua sociedade, sem admitir em si o que
tivesse condenado como uma das faces do Mal. De outro lado, a razão como império da
consciência negaria e expulsaria tudo que se assemelhasse a uma perda de coerência do
sujeito.
Partindo de uma perspectiva mais globalizante, a psiquiatria moderna demonstra
que o indivíduo sob condições de estresse pode sofrer uma dissociação como uma espécie
de defesa contra a repressão e censura, sem que isto caracterize um estado psicótico,
embora possa ser confundido como tal.
Também não deve ser classificado como histeria, embora o fosse no passado,
simplesmente porque a palavra histeria denota uma doença decorrente de um distúrbio
nervoso do cérebro devido a “excesso de excitações”, enquanto isto possa apontar para um
fenômeno de transe fora do controle, manifestada em pessoas habitualmente possuidoras de
uma alta capacidade para o transe sob pressão de estresse emocional contínuo.
A capacidade de transe pode ser acentuada em alguns indivíduos e menos em
outros, mas é de ocorrência universal e pode ser controlada por treinamento. A
17. 17
manifestação de personalidades “secundárias”, para as quais a personalidade ordinária ou
comum aparentemente não tem conhecimento de sua manifestação ou existência,
caracteriza a típica dissociação que se denomina de transe e possessão.
Isto não é normalmente visto quando o grupo social reprime e censura esta forma
de manifestação ou de defesa, porém, quando o grupo é permissivo e aceita como parte de
sua cultura, estas formas se expressam mais freqüentemente, sempre dentro de um contexto
onde a manifestação é permitida no grupo.
Contudo, o transe de possessão não será aceito, conforme já discutido
anteriormente, fora do contexto específico (os ritos, cultos e situações em que os espíritos
devem intervir na comunidade) em que ele deve se integrar, pois, neste caso ele perde a sua
função social e se torna incômodo para a comunidade.
É por isso que o fenômeno da possessão não deve ser visto como um fenômeno
individual, mas coletivo, social. Tanto pelo caráter público e generalizado de sua prática
como também pelo fato de que a própria possessão é uma construção social, um estado que
só existe pela credibilidade e eficácia que se lhe outorga socialmente, um estado que serve
de instrumento coletivo de comunicação com o sagrado.
As possessões devem ser desejadas, impostas pela coletividade. Se o fato social é
definido por Durkheim pela coerção, tais possessões são efetivamente fatos sociais. Elas se
situam no cruzamento de um duplo eixo, um de origem nitidamente sociológica, o outro
ligado a níveis mais individuais, mas ambos indissociáveis um do outro.
Nos ambientes sociais, onde predominam a cultura do transe, a censura e a
repressão desaparecem dando lugar a uma atmosfera permissiva e incentivadora da livre
expressão. Nestes ambientes as possessões são desejadas, onde o ritual de transe místico
passa a ser coletivo, imposição do meio social, sempre o mesmo, por meio das variações
individuais, e não expressão dos traumatismos de infância ou de circunstâncias particulares.
Contudo, aqui o argumento essencial é que os fenômenos extáticos não devem
ocorrer a qualquer momento, sob a ingestão de substâncias tóxicas, o enervamento da
música ou na superexcitação da multidão. O transe tem lugar unicamente quando ressoa o
cântico particular no local apropriado e, somente neste instante. O momento está, pois,
determinado pela sociedade, não é um produto da constituição mental.
18. 18
Não é apenas o momento que sofre determinação sociológica, mas ainda as pessoas.
O controle social é tão grande que, ao mesmo tempo em que impõe o transe a certos
membros do grupo, proíbe-o formalmente a outros.
Bastide (1975) alerta que o transe de possessão, para ser aceito como legítimo deve,
antes de tudo, sofrer um certo tipo de controle social. Este controle social se faz notar pelo
poder dos tabus ou das proibições religiosas. Contudo, a coerção coletiva não impede o
jogo individual dos fatores psicológicos; a psicologia, todavia, se inscreve em quadros
fixados pela tradição, funciona dentro de uma rede de representações coletivas.
Para o autor, a necessidade deste controle responde a todo um conjunto de razões
que são de ordem social quanto religiosa. A primeira razão, é que este sagrado não deve ser
interpretado como uma crise de loucura, mas como um chamado divino. A segunda razão,
diz respeito a importância do sentimento de vergonha nas sociedades não cristianizadas (o
cristianismo substituindo o sentimento de culpabilidade, que é interior, ao sentimento da
vergonha que é uma resposta sociológica ao olhar do outro).
Não é de bom tom ter transes violentos, em momentos de possessão se despir ou
insultar as pessoas. Os indivíduos, mesmo no mais profundo do seu transe, devem respeitar
às regras do pudor; não é de bom tom cometer excentricidades e não representar, seguindo
escrupulosamente o mito, o papel que lhe é devido; existe em toda cerimônia, mesmo a
mais agitada (aos olhos dos de fora), indivíduos que não podem entrar em transe, como os
músicos, porque isto introduziria a desordem na harmonia das danças extáticas.
O comportamento do indivíduo “possuído” segue, como todos os outros
comportamentos, leis de boas maneiras. A crise selvagem não é aceita, porque ela não
pode, por definição, obedecer a este código superior do permitido e não permitido, ao qual
as sociedades tradicionais atentam particularmente porque toda ordem social é constituída
sobre o respeito a esse código (Bastide, 1975).
A sociedade e a religião jogam, portanto, igualmente, visando transformar o
espontâneo em institucional. Torna-se necessário, sociologicamente falando, “batizar” o
deus selvagem, ou seja, domesticá-lo.
Antes, é importante, evitar a confusão existente entre o transe selvagem
propriamente dito e o transe violento. Uma vez que a possessão consiste em determinado
indivíduo ser habitado por uma divindade e em representar esta divindade, é evidente que
19. 19
se ele é “possuído” por um deus guerreiro ou visto como potencialmente mau, a crise que
se exprimirá será violenta e com o desencadeamento muscular, enquanto que se ele é
“possuído” por um deus do amor, da água doce ou infantil, a crise que se exprimirá será,
pelo contrário, calma. Segundo Bastide:
“A violência não é selvageria, e talvez o erro de certas descrições provenha da
confusão entre estes dois conceitos. Mas o transe selvagem existe ainda desta forma
porque é preciso naturalmente passar por ele para que se possa, em seguida,
domesticá-lo”4
(minha tradução, Bastide, op.cit:218-219).
O transe domesticado é funcional em relação à sociedade mais ampla no interior da
qual ele está inserido, seja que lhe favoreça uma melhor complementaridade entre os sexos
e os estatutos sociais, seja que ele sirva para atrair, de algum modo magicamente, a benção
das divindades que “desceram” na comunidade. O sagrado é investido numa instituição que
o gere em benefício de todos.
E é aqui, talvez, que se separa mais nitidamente o sagrado selvagem do sagrado
domesticado. É que o sagrado domesticado é um sagrado coletivo, mesmo se um único dos
indivíduos se torna o “possuído” por sua “entidade” espiritual.
Ao analisar a possessão como expressão da “voz” subalterna, percebe-se que este
fenômeno é, essencialmente, uma filosofia do poder. Os espíritos são ao menos hipóteses
que, para aqueles que neles acreditam, fornecem uma filosofia de causas últimas e uma
teoria de tensões sociais e relações de poder.
O corpo desenha uma linguagem que não tem no sagrado um referente separado,
mas que indica que se tornou sagrado. A “matéria”, o “aparelho” que é o médium, ao entrar
em transe, deixa em poder do espírito não um indicador deste: mas é ele em pessoa. O
“cavalo” em transe já não é um intermediário entre os homens e os espíritos: desaparece
para que esse contato seja direto.
Além do corporal, um contato verbal entre cliente e espírito é travado. É no diálogo
entre eles que se chega ao cerne da questão: pedido de ajuda, descrição dos problemas do
cliente, elaboração do diagnóstico, estipulação de “trabalhos” e oferendas, etc. estabelecem
4
“La violence n’est pas sauvagerie, et peut-être l’erreur de certaines descriptions provient de la confusión
entre ces deux concepts. Mais la transe sauvage existe bien tout de même, car il faut naturellement passer par
elle pour qu’on ensuite la domestiquer” (Bastide, op.cit.:218-219).
20. 20
o lugar central da resolução da aflição, o reordenamento da desordem que levou o cliente à
consulta.
Aqui o espírito fala, pergunta, descreve, ordena, aconselha, promete, pede, exige; o
que ele diz tem “poder” que o desempenho corporal lhe ordena, afinal é a sua palavra que
está em jogo.
Por último, o poder da “entidade” deve ser confirmado, seus gestos rituais (passes,
cruzamentos, danças, “trabalhos”) devem transformar as palavras ditas em fatos materiais
concretos, e assim, os maus fluidos se descarregarão, o agressor místico sofrerá punição, os
caminhos se abrirão...
A dramatização da resolução da aflição do cliente é a forma última de manifestar a
veracidade do diagnóstico, de reforçar o poder simbólico5
destas divindades. Assim, a
palavra recebida pelo cliente não é uma interpretação de um intermediário, mas a
intervenção direta e personalizada do sagrado que não só fala mas que conjura em ações
materiais o que sua palavra ditou.
ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
Em dez anos de pesquisa sobre religião afro-brasileira, realizei visitas a diversos
terreiros de umbanda, candomblé e outros cultos afro-tradicionais em diversas cidades
brasileiras tais como: Brasília/DF, Campinas/SP, Codó/MA, Picos/PI, Recife/PE,
Salvador/BA e São Luís/MA.
As atividades de campo efetuadas nestes terreiros variaram desde uma simples visita
onde foram realizadas entrevistas com os chefes e membros daqueles terreiros (sem a
participação em suas “giras” rituais) até a permanência em outros terreiros com atividade
de observação participante que chegou a durar períodos de quase dois anos, perfazendo um
total de mais de vinte terreiros visitados com objetivos de pesquisa.
Realizei, ao longo destes dez anos, mais de quarenta entrevistas estruturadas com
pais e mães-de-santo, médiuns de “incorporação” e freqüentadores assíduos de terreiros
afro-brasileiros.
5
Em seu livro O poder simbólico, Bordieu (1998) afirma que este tipo de poder permite obter o equivalente
daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito físico de mobilização. Para que este
tipo de poder possa ser exercido ele deve ser reconhecido como tal, quer dizer, ignorado com arbitrário.
21. 21
Efetuei também outras vinte e cinco entrevistas, refletindo enunciações do
imaginário umbandista, formuladas a partir de suas “entidades” cultuadas, postas nos seus
próprios termos, proferidas pela boca de seus “cavalos” (médiuns). Vale lembrar que um
único médium pode “receber” vários grupos de “entidades” espirituais que compõem
diversas “linhas” religiosas. Desta forma, tive acesso a quinze médiuns de “incorporação”6
(de terreiros distintos, mas na sua maioria do Centro Espírita de Umbanda Xangô Sambará
Sem Camisa, localizado na periferia de Brasília, sendo entre eles, cinco homens e dez
mulheres) que puderam fazer com que o diálogo com suas “entidades” fosse feito.
Nesta etapa do pós-doutorado pretendo realizar mais dez entrevistas com integrantes
de comunidades religiosas afro-brasileiras a fim de averiguar as relações entre identidade e
etnicidade, assim como questões relacionadas às relações raciais e a consciência subalterna
interna aos terreiros.
Ao abordar a entrevista como uma prática discursiva, ou seja, como ação situada e
contextualizada, por meio da qual se produzem sentidos e se constroem versões da
realidade, tornou-se necessário compreender que este tipo de interação se deu em um certo
contexto, numa relação que foi constantemente negociada. Visto que numa conversa o
locutor posiciona-se e posiciona o outro, ou seja, quando se fala, seleciona-se o tom, as
figuras, os trechos de histórias, de lembranças, os personagens que correspondem ao
posicionamento assumido diante do outro que é posicionado por ele. As posições não são
irrevogáveis, mas continuamente negociadas.
A entrevista, enquanto técnica de coleta de dados, torna-se de fundamental
importância para o presente trabalho, visto que o universo sagrado da umbanda se
corporifica em histórias de tipos sociais cujas narrativas têm valor exemplar. Em seu
discurso mítico-religioso parece que o subjugado dá a volta por cima. O “baixo”
aparentemente torna-se alto. Honra-se o popular. Há, em termos ideológicos, a busca de
uma certa harmonia entre os sentidos de todas as “linhas” rituais (tipificações de formas de
transe decalcadas de “modelos” sociais) e um valor de inclusão de todo o marginalizado.
6
É importante lembrar que tanto homens quanto mulheres podem ser “possuídos” por “entidades” espirituais
masculinas ou femininas indistintamente.
22. 22
À medida que as transcrições foram lidas e relidas, tomarei nota das idéias que
vinham em mente. Tentei sempre à sua frente conservar as finalidades e os objetivos da
pesquisa, procurando padrões e conexões, tentando descobrir um referencial mais amplo
que fosse além do detalhe particular.
A análise terá como finalidade apresentar resultados. Para tal será necessário
mergulhar no material coletado. Uma boa maneira de começar será simplesmente ler e reler
as transcrições até adquirir familiaridade com elas.
Este processo tenderá a ser uma preliminar necessária para a codificação. As
categorias usadas para a codificação serão, obviamente, determinadas pelas questões de
interesse e que na realidade, serão aquelas que compuseram o roteiro de entrevista.
Uma estratégia analítica útil, sugerida por Widdicombe (Apud Gill, 2002), será a de
considerar as maneiras como as coisas são ditas como sendo potenciais soluções de
problemas. Desta forma, será identificado cada problema como se o que foi dito se
constituísse em uma possível solução, exigindo, antes de tudo, rigor a fim de produzir um
sentido analítico do material coletado a partir de sua confusão fragmentada e contraditória.
A preocupação não será a de identificar processos universais, visto que o material
coletado é sempre circunstancial – construído a partir de recursos interpretativos
particulares, e tendo em mira contextos específicos.
23. 23
CRONOGRAMA
A minha proposta de permanência no Programa Avançado de Cultura
Contemporânea – PACC da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, na categoria
de pós-doutorando, será de dois semestres.
Segue então o cronograma das atividades propostas:
ETAPAS
2008 2009
JUL/AGO SET/OUT NOV/DEZ JAN/FEV MAR/ABR MAI/JUN
Revisão
Bibliográfica
x x x
Pesquisa de
Campo
x x
Análise de
Dados
x x
Elaboração
do Trabalho
(Redação)
x
Vale lembrar que toda a minha produção intelectual a ser realizada neste período, fará
referência à minha filiação ao PACC/UFRJ.
24. 24
REFERÊNCIAS
BARROS, Sulivan Charles. (2004), Brasil imaginário: umbanda, poder, marginalidade
social e possessão. Tese de doutorado em sociologia. Brasília, Departamento de Sociologia,
Universidade de Brasília.
______________________ . (2000), Encantaria de bárbara soeira: a construção do
imaginário do medo em Codó/MA. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Brasília,
Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília.
_____________________ . (1997), Urbanização e umbanda: o espaço dos homens e o
espaço dos deuses. Monografia de Graduação em Geografia. Brasília, Departamento de
Geografia, Universidade de Brasília.
BHABHA, Homi K. (2003), O local da cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG.
BOURDIEU, Pierre. (1998), O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
CARVALHO, José Jorge. (1999), O olhar etnográfico e a voz subalterna. Brasília,
Departamento de Antropologia, UnB [Série Antropologia, 261]
FREUD, Sigmund. (s/d), Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud (versão 2.0). Rio de Janeiro, Imago.
GILL, Rosalind. “Análise de discurso” (2002), In. BAUER, Martin W.; GASKELL,
George (Orgs.) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático.
Petrópolis, Vozes.
LEWIS, Ioan M. (1977), Êxtase Religioso. São Paulo: Perspectiva.
MIGNOLO, Walter D. (2003), Histórias locais/projetos globais: colonialidade, sabers
subalternos e pensamento laminar. Belo Horizonte, Editora UFMG.
SPIVAK, Gayatri C. (2003), ¿Puede hablar el subalterno? In. Revista colombiana de
antropología. Vol. 30, enero-diciembre.
WALLERTEIN, Immanuel et alii. (1996), Para abrir as ciências sociais [Comissão
Gulbenkian para a reestruturação das ciências sociais]. São Paulo, Cortez.