Novo projeto do MEC pretende alfabetizar todas as crianças até os 8 anos de idade. Reportagem divulgada na versão impressa da revista Carta Fundamental 43, de novembro de 2012.
A Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são os direitos que...
Na hora certa
1. r e p o rtag e m
Na hora certa
Novo projeto do MEC pretende alfabetizar
todas as crianças até os 8 anos de idade
Por Isabela Morais e Tory Oliveira
O
governo federal está investindo
em uma estratégia para acabar
com um dos principais gargalos
da educação brasileira, a alfabetização nas séries iniciais do
Ensino Fundamental. O objetivo é alfabetizar todas as crianças em Língua Portuguesa
e Matemática até os 8 anos de idade, ao final
do 3º ano, e eliminar, assim, os altos índices de analfabetismo funcional entre crianças que estão na escola. A ideia do chamado
Pacto Nacional de Educação na Idade Certa,
aderido por mais de 5 mil municípios, é que
as redes municipais e estaduais participem
de avaliações anuais aplicadas pelo Inep ao
fim do 3º ano do Ensino Fundamental e os
gestores cumpram a meta de alfabetizar seus
alunos, em troca do apoio técnico e financeiro do MEC. Na prática, o ministério disponibilizará material didático e pedagógico, como
jogos, obras de referência e tecnologias educacionais que auxiliem os educadores, e entregará os acervos baseado no número de turmas de alfabetização e não mais por escola.
Serão criadas também minibibliotecas, com
cerca de 25 livros, dentro de cada sala de aula
que receber essas turmas.
Além do material voltado especificamente para essa etapa do ensino, os professores
passarão a contar com um sistema informatizado para inserir os resultados da Provinha
Brasil de cada criança, no início e no final do
2º ano. A aplicação de uma avaliação pelo
Inep junto aos alunos do final do 3º ano vai
aferir o nível de alfabetização alcançado. Outra frente do programa é a formação de professores alfabetizadores. Quatro instâncias
vão gerir o Pacto: um Comitê Nacional, uma
Coordenação Institucional em cada estado e
coordenações estadual e municipal. Sem conhecer o que acontece dentro da sala de aula, porém, as melhorias podem ser restritas.
De acordo com Maria do Rosário Longo Mortatti, professora da Unesp de Marília e presidente da Associação Brasilei-
Escola e ensino
O aumento
de crianças
matriculadas não
é proporcional ao de
domínio de leitura
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2. ra de lfabetização, as políticas públicas
A
conseguem modificar o entorno das escolas, mas é difícil chegar ao universo da sala de aula. “As propostas em si não são nada se não chegarem à sala de aula. Naquele lugar específico da relação entre professor e alunos não temos clareza sobre o que
acontece, não há estudos. Ali dentro, quem
decide é o professor com seus alunos.” Para a especialista, a definição de uma “idade certa” para aprender a ler não é científica, mas diz respeito ao contexto atual,
em que as crem alfabetizadas. “Os índices
de analfabetismo estão relacionados também, mas não apenas, com as dificuldades da scola em ensinar a ler e screver”,
e
e
explica a professora da Unesp.
Dados do Indicador de Analfabetismo
Funcional 2011 mostram que o índice de
fernand o d ona sci/folhapre s s
analfabetismo funcional entre aqueles que
cursaram até a 5ª série caiu 8 pontos porcentuais de 2001 a 2011, passando de 73%
para 65%. Mas, entre as pessoas que estudaram até a 8ª série, há uma estabilidade na
proporção de analfabetos ao longo da década (entre 27% e 26%). Nos anos posteriores,
a situação não melhora. Dentre os brasileiros com Ensino Médio completo ou incompleto há um decréscimo nos níveis de alfabetização plena, de 49% para 35%. Apesar do
aumento da proporção de pessoas que chegam ao Médio, há uma forte diminuição do
nível de habilidades entre os estudantes. Ou
seja, o Brasil avançou nos níveis iniciais da
alfabetização, mas não conseguiu progressos visíveis ao longo de todo o ensino básico e deixou de formar pessoas capazes de
ler e compreender textos de média extensão, localizar informações, resolver problemas com sequência de operações simples e
com noções de proporcionalidade.
“Isso mostra que temos uma maioria de
sujeitos alfabetizados, mas que são capazes
de ler apenas textos curtos, de fazer interpretações literais e que não se constituem
como leitores plenos”, explica Sílvia Colello,
especialista em alfabetização e autora do livro A Escola Que (não) Ensina a Escrever.
Para ela, o Brasil resolveu apenas o problema quantitativo com a democratização e
ampliação do acesso ao ensino nos últimos
anos, deixando de lado a qualidade. Despreparada para lidar com as diferentes origens
socioculturais das crianças, a escola acaba
privilegiando o público detentor de uma experiência letrada prévia. “Com isso, as outras crianças entram na escola, mas não conseguem alcançar o sucesso esperado.”
Responsável por uma turma de primeiro
ano na Emef Marechal Eurico Gaspar Dutra, localizada na zona sul de São Paulo, a professora Lupe Fernanda Marques conta que a
diferença entre os alunos é gritante. “Trabalho em uma escola pública que atende crianças de uma comunidade carente. Muitas não
têm contato com livros e revistas em casa, enquanto outras conseguem ter acesso a esse tipo de coisa. Mas meu papel como educadora
é amenizar essas diferenças”, diz. A mesma
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3. R e p o rtag e m
As pesquisas
indicam criar
oportunidades
para que
as crianças
escrevam desde
cedo, rompendo
a lógica de
aprender para
depois usar
a língua
escrita, afirma
Sílvia Colello
diferença entre seus alunos é observada por
Graziele Gonçalves da Rocha, professora de
Educação Infantil na Escola Materna de Santo André: “Alguns aprendem rápido, mas outros são ainda muito novinhos e imaturos para entrar no primeiro ano. Quando eles chegam lá, até acompanham, mas não sabem o
que estão fazendo”. Para a educadora, o Pacto será positivo se não apressar o letramento dos alunos, comportamento comum entre
os pais, que querem ver o quanto antes seus
filhos na educação básica. “Temos de respeitar o tempo de cada criança.”
Fundamental para o sucesso da trajetória
escolar, o conceito de alfabetização e de como alfabetizar mudou ao longo dos anos. O
processo já foi entendido como o domínio do
funcionamento do sistema de escrita, ou se-
ja, conhecer as letras e juntá-las para construir palavras, que, por sua vez, formam frases e textos. Para o ato de apenas decodificar, as antigas cartilhas cumpriam bem esse
papel, afirma Sérgio Leite, psicólogo e professor no Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação, na Unicamp. Uma das consequências históricas do
antigo modelo de alfabetização é que a escola não se interessava em envolver as crianças: “Como as gerações até os anos 80 sabiam identificar o código, mas eram incapazes de compreender o conteúdo do texto,
surgiu o conceito de analfabeto funcional”.
Atualmente, apenas dominar o código não
é mais considerado suficiente, e as práticas
que privilegiam esse tratamento mecânico
são consideradas ultrapassadas. “No sentido de ensinar a ler e escrever, o que os trabalhos de ponta estão fazendo é criar oportunidades para que as crianças escrevam desde muito cedo, rompendo com aquela lógica de primeiro aprender para depois usar a
língua escrita”, analisa Colello.
Um dos marcos dessa mudança de concepção foi a publicação no Brasil, na década de 1980, do livro Psicogênese da Língua
Escrita, da psicolinguista argentina Emilia
Ferreiro. A partir daí, estudos sobre o letramento passaram a levar em conta experiências socioculturais da criança e a importância de inserir a leitura e a escrita em seu contexto social. Ou seja, mais do que entender o
Do Ceará para o Brasil
O projeto do governo federal baseou-se no Programa
Alfabetização na Idade
Certa (Paic) do Ceará, que
nasceu por iniciativa do
Comitê Cearense para a Eliminação do Analfabetismo
Escolar, em 2004. O empurrão inicial deu-se por
um estudo de números
preocupantes: dos 8 mil
alunos avaliados naquele
ano, apenas 15% eram capazes de ler e compreen-
der um pequeno texto de
forma adequada. Em parceria com o Unicef, o Comitê iniciou o projeto para auxiliar as cidades do estado
na melhora da qualidade
do ensino, da escrita e da
leitura nas séries iniciais do
Ensino Fundamental.
O governo estadual assumiu a execução do programa em 2007, tornando-o
política pública, com a meta de alfabetizar todas as
crianças até o 2º ano. No
projeto cearense, o estado
se compromete a oferecer
apoio às gestões municipais, formação continuada
para os professores, livros
de literatura infantil para as
salas de aula e material didático para as escolas. Uma
ampliação do projeto foi
lançada em 2005, com o
nome Paic Mais, com as
metas de melhorar a aprendizagem dos alunos da
rede pública até o 5º ano.
Em 2007, das 184 cidades
cearenses, 15 possuíam nível desejável de alfabetização infantil e duas encontravam-se em situação crítica. No último levantamento realizado em 2011
pela Secretaria de Educação, o número de cidades
com nível desejável
aumentou para 178, cerca
de 96% das redes públicas
municipais do estado.
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4. joão c alda s/folhapre s s
código, o aluno precisa ser leitor e também
produtor de textos. Dentro da escola, houve
uma mudança também no foco do conteúdo
do que era ensinado para o sujeito que aprende, o aluno. Além disso, a mudança acabou
causando confusões. “De repente, saiu-se do
modelo cartilhesco centrado no professor e se
caminhou para uma posição radical, em que
tudo dependia do aluno”, conta Leite.
Ao lado das mudanças teóricas houve também influência do cenário político internacional, a partir da globalização ocorrida na
década de 1990. Foi quando organismos multilaterais lançaram desafios para que os países, em especial os subdesenvolvidos, reorganizassem suas estruturas sociais e educacionais em torno de metas de desenvolvimento.
paradigma
Com os estudos
de Emilia Ferreiro,
mais do que entender
o código, o aluno
precisa ser leitor
e produtor de textos
É o caso, por exemplo, dos Objetivos do Milênio da Organização das Nações Unidas, que
estabelecem como meta a educação de qualidade para todos. “O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa é uma iniciativa
do atual MEC para tentar enfrentar essas dificuldades históricas e, em particular, atingir as metas dos organismos internacionais”,
contextualiza Maria do Rosário Mortatti.
Outro ponto de tensão é que a cultura escolar é muito enraizada, habitando não só o
imaginário dos professores, mas também o
dos pais, que esperam ver na alfabetização
de seus filhos os mesmos procedimentos vividos por eles. “Os professores, mesmo aqueles que recebem cursos e atualizações, no sufoco, recorrem aos métodos que para eles são
a referência”, afirma Colello. A mudança, no
entanto, vem sendo assimilada desde então
tanto nos cursos de formação inicial quanto
nos de formação continuada. “Houve avanços. É uma ingenuidade acreditar que se alfabetiza hoje como nos anos 80”, completa.
Na linha de frente da sala de aula, Lupe
Marques demonstra que as mudanças estão
acontecendo. “Hoje as crianças já nascem no
mundo da informação. Seria muito sem graça apresentar para o menino de 5 ou 6 anos
uma cartilha com lições do tipo ‘a vovó usa
xale’. Está completamente fora do contexto.
As coisas se transformam.”
Além disso, a leitura parece não ocupar um
espaço privilegiado dentro da sala de aula.
“Ou a leitura é de livro didático ou é feita no
tempo que sobra”, resume Maria do Rosário.
No mais das vezes, ler um bom texto em sala é encarado como luxo. Maria do Rosário
defende que a utilização de textos literários
de qualidade na escola são pontos de partida para que o aluno aprenda, de fato, a gostar de ler. Nesse ponto, é importante que o
professor seja ele próprio um intenso leitor
e produtor de textos, até para que seja capaz
de estimular essa vivência em seus alunos.
“Um bom texto literário ajuda a compreender que ler é muito bom. A motivação tem de
partir da relação dos leitores e de quem ensina com o texto”, explica a organizadora do
livro Alfabetização no Brasil: Uma história
de sua história, vencedor do Prêmio abuti
J
2012 na categoria Educação.
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