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Filosofia


  TEXTOS E
COMENTÁRIOS




  JORGE NUNES BARBOSA
INTRODUÇÃO
Este conjunto de textos destina-se prioritariamente, se         ❖ Crença e razão;
não exclusivamente, aos meus alunos de Filosofia do
Ensino Secundário.                                              ❖ Dever e verdade;


Não me move qualquer motivação doutrinária, mas tão             ❖ Trabalho e utilidade;
só a intenção de fornecer aos estudantes alguns modelos
                                                                ❖ Estado e liberdade (Espinosa);
de resposta a perguntas, ou modelos de comentários de
textos de autor.
                                                                ❖ Estado e liberdade;

Para cada pergunta ou texto a comentar, foram
                                                                ❖ Uma Boa Lei (Hobbes).
elaborados dois modelos de resposta. Na maior parte
das vezes, a distinção entre eles é de natureza
estritamente técnica. No entanto, em alguns casos, para
além das diferenças estruturais, existem também                Tenham bom proveito.
algumas diferenças de substância. Nem sempre as
interpretações, presentes nos dois modelos, são                Julho de 2012
coincidentes.
                                                               Jorge Nunes Barbosa
Os temas abordados dizem respeito:

 ❖ Juízos de gosto;

 ❖ Conceito de educação (Rousseau);

 ❖ Verdade e dúvida;
                                                          ii
• CAPÍTULO 1 •

         APRECIAR OBRAS DE ARTE




Admitindo que nem todos os artistas
contemporâneos são charlatães, e que as suas obras
são, apesar de tudo, reconhecidas por um público
esclarecido, podemos, então, perguntar-nos se, para
apreciar uma obra de arte, precisamos de ser cultos.
• Secção 1 •

1. Ser-se culto não é
   uma condição
   necessária para se
   ser sensível à beleza
   ou à arte em geral.
   Mas a cultura é
   necessária se
   quisermos cultivar o
   nosso gosto.

2. A cultura afina o
   gosto, tal como o
   gosto gera a vontade
   de cultura, ou de nos
   cultivarmos.

3. Todos os homens,
   porque são homens,
   possuem uma
   cultura. É por isso                              Primeiro Modelo
   que todos os homens
   reúnem as condições     É preciso ser-se culto para apreciar     arte contemporâneas, somos tentados a
   para apreciar a arte?
                           uma obra de arte?                        seguir uma de duas formas de reagir:

                           Perante a nossa desorientação quando     ✤ Considerar que o artista nos propõe
                           nos é pedido que avaliemos as obras de      qualquer coisa, sem critério visível;



                                                      4
✤ Considerar, com muita modéstia, que somos                   I. A instrução e o conhecimento são necessários
   incompetentes e que não temos cultura bastante             para apreciar uma obra de arte.
   para apreciar essas obras.
                                                                 1. A cultura é indispensável para saborear, no seu
Admitindo, no entanto, que nem todos os artistas                    justo valor, uma obra de arte, porque é a cultura
contemporâneos são charlatães, e que as suas obras são,             que nos permite situarmo-nos a nós próprios e
apesar de tudo, reconhecidas por um público                         situar o artista numa época e num espaço
esclarecido, podemos, então, perguntar-nos se, para                 particulares.
apreciar uma obra de arte, precisamos de ser cultos. O
problema está em saber o que é que se entende por “ser           2. A cultura fornece-nos as chaves para a
culto”, sabendo-se, como se sabe, que a cultura não se              compreensão de uma obra de arte: permite
reduz à erudição e que o apreço não é talvez um simples             julgar, no sentido de avaliar uma obra,
juízo de gosto subordinado a normas, mas também uma                 respeitando os critérios de gosto de uma época
forma de obtenção de prazer, de gozo, que nos deve ser              determinada. Se nos ficarmos, no entanto, por
dado por uma obra artística. Qual é, então, o papel da              estas reflexões, teríamos de assumir que avaliar
cultura, isto é, de todos esses hábitos e aptidões                  uma obra de arte corresponderia ao uso de
aprendidas que pertencem à nossa educação e                         critérios, de normas. A obra de arte inscrever-
participam nos nossos juízos? Deveremos questionar-                 se-ia numa história particular
nos sobre se nos basta ter bom gosto, ou se nos é
                                                                 3. O que aprendemos, pelo esforço de nos
necessário ser cultos para apreciar uma obra de arte.
                                                                    cultivarmos, são regras, mas não é garantido
Finalmente, interrogar-nos-emos sobre a própria
                                                                    que a obra de arte se reduza a uma linguagem e
existência da obra de arte, independentemente dos
                                                                    que as regras (ou a gramática dessa linguagem)
juízos de apreço que possamos formular a seu respeito.
                                                                    que percebemos sejam aquelas que o artista

                                                          5
desejaria transmitir. Neste aspeto, a arte escapa           dos juízos de conhecimento. Os primeiros são
      às categorias que se transmitem pelo ensino, e              determinantes, isto é, partem do universal para
      depende da liberdade de pensar e de se ser                  se aplicar ao caso particular, os segundo são
      artista.                                                    determinados. Com efeito, o gosto é a relação de
                                                                  um sujeito com uma obra de arte particular, que
II. A obra de arte não é hermética, tem a ver                     permite tomar a decisão de dizer, com toda a
com o prazer.                                                     sua subjetividade, “isto é belo”.

   4. É a relação que o espectador mantém com a                6. A obra de arte, por seu turno, tem a ver com o
      obra de arte que é decisiva na sua apreciação, e            livre jogo da imaginação e do entendimento. Na
      não um aparelho técnico, um léxico por                      ausência de um conceito que possa limitar a
      exemplo, ou dados históricos. Essa relação entre            liberdade desse jogo, diz-nos Kant, tudo se
      observador e obra de arte é necessariamente                 passa como se não pudéssemos impedir-nos a
      subjetiva: trata-se da relação entre uma                    nós mesmos de julgar e dizer “isto é belo”. Só
      sensibilidade e uma matéria. Vale pouco a pena              que este processo não se explica pela cultura; na
      saber tudo sobre um artista, ou sobre o                     verdade só se desencadeia quando, perante uma
      movimento no qual se inscreve a sua criação;                obra de arte, experimentamos prazer que
      isso não basta para a apreciar.                             tendemos, implicitamente, a partilhar com os
                                                                  outros: existe um juízo de gosto universal que é,
   5. Se a cultura nos ajuda a compreender a arte,
                                                                  de alguma forma, esta pretensão em partilhar o
      tratando-se de a apreciar, a situação é diferente,
                                                                  nosso próprio gosto com os outros.
      pois a apreciação tem a ver com o gosto, com o
      prazer e não com a reflexão. Temos de
      distinguir, à maneira de Kant, os juízos de gosto

                                                           6
III. Uma obra de arte basta-se a si mesma.                         9. Qualquer que seja a obra de arte, ela pertence a
                                                                      uma cultura sem hierarquia, sem critério de
   7. Esquecemo-nos muitas vezes, sobretudo                           reconhecimento. O que se aprende e pertence a
      perante a arte abstrata, que a obra de arte é uma               uma cultura determinada, é uma maneira de
      matéria que não se refere a outra coisa senão a                 ver, de ouvir, de sentir, em resumo, de
      si mesma. Neste sentido, o artista não                          participar na obra de arte. Mas isto acontece
      comunica, não envia uma mensagem por                            espontaneamente, pois todas as crianças são
      intermédio da sua obra. A criação é muito mais                  candidatas à cultura do seu país e do seu tempo,
      do que isso e, como afirmava Kant, nenhum                       tal como todas as obras de arte são candidatas a
      Homero, nenhum poeta seria capaz de relatar                     apreciação.
      aquilo que a obra de arte veicula. A obra de arte
      não remete nem para regras, nem para
      conceitos.
                                                               Conclusão: Uma obra de arte pode ser apreciada, sem
   8. A cultura pode ajudar a compreender, a situar            ser explicada, compreendida e encerrada em regras ou
      uma obra de arte no seu contexto, mas não                normas culturais. Neste sentido, pode dizer-se que a
      permite apreciá-la no seu justo valor. Com               obra de arte é independente do facto de se ser culto ou
      efeito, a obar de arte não é um signo que se             não. Entendamos por “ser culto” pertencer a uma
      referiria a um significado, a um sentido. Ela está       cultura particular, ter recebido uma educação
      para além da própria cultura, na medida em que           determinada, qualquer que seja a sua forma. O que os
      se constitui numa manifestação da liberdade              etnólogos nos ensinaram foi que cultura não significa
      humana e da sua infinita capacidade tanto para           necessariamente uma caminhada no sentido do
      criar como para apreciar as obras de arte.               progresso, e muito menos é a soma de conhecimentos
                                                               de uma elite reservada a alguns povos. Todos os

                                                           7
homens, porque são homens, possuem uma cultura. É
por isso que todos os homens reúnem as condições para
apreciar a arte? Sem dúvida, na condição de todos
compreenderem que a obra de arte não obedece a
nenhuma norma, mas é o fruto do seu criador e da
apreciação do observador.




                                                        8
• Seção 2 •

                                          Segundo Modelo
Problematização/Introdução.                                    No entanto, a arte é uma manifestação cultural do
                                                               homem. As formas artísticas, os temas, as técnicas
                                                               utilizadas dependem de contextos históricos e culturais
                                                               particulares. O artista pertence sempre a uma época, e
A obra de arte é uma criação livre do espírito humano,
                                                               parece, pelo menos, difícil considerar uma obra de arte
que ao contrário da produção artesanal, não depende de
                                                               separando-a das significações culturais que possuem
um fim ou finalidade particular. Pode obedecer a certas
                                                               necessariamente, mesmo se o artista quis desligar-se da
regras de realização ou de composição, mas pode
                                                               sua época e propor uma nova forma artística. Sendo
também desligar-se delas, deixando o artista livre de
                                                               assim, podemos realmente separar conhecimento de
inventar as suas próprias regras ou até de não ter
                                                               arte e gosto artístico?
nenhumas. Esta ideia implica que aquele que recebe a
obra de arte seja também livre de apreciar o seu valor
de acordo com o seu gosto pessoal. Por outro lado, deve
notar-se que podemos gostar de uma obra de arte sem,           Primeira parte: O juízo estético não requer
antes, conhecer o tema ou o assunto que a inspirou.            conhecimentos particulares.
Pelo contrário, um especialista de história de arte pode
conhecer muito bem em detalhe a obra de um artista,            À partida, para apreciar uma obra de arte não é
sem a achar bela.                                              requerido nenhum conhecimento particular. Porquê?
                                                               Porque se gosto de uma obra de arte e a acho bela, não é
                                                               devido a qualidades objetivas que ela possua. Por

                                                           9
exemplo, posso achar belo o retrato de uma mulher              porque não o conhecemos? Para apreciar uma obra de
disforme, objetivamente pouco graciosa, ou então uma           arte não será preciso saber o que ela significa e,
natureza morta representando o cadáver de um animal,           portanto, possuir uma forma de cultura artística? A
que, em condições reais seria para mim pouco                   obra de arte, com efeito, possui um conjunto de
agradável.                                                     significados como as intenções do autor, os temas
                                                               escolhidos ou os meios de composição, que não se
Do mesmo modo, posso apreciar um trecho de música              manifestam, talvez, de forma imediata ao olhar ou à
sem compreender o significado das palavras. Parece,            audição, mas que a constituem de facto.
nesta ordem de ideias, que a apreciação estética é
desligada do conhecimento de eventuais significados            Poderíamos objetar que certas obras de arte não
culturais de uma obra (o seu tema, o seu lugar na              respeitam nenhuma regra definida ou que há artistas
história da arte, o seu autor, etc.).                          que inventam o seu próprio género, que criam um estilo
                                                               a partir de nada. Neste sentido, isso reforçaria a tese
Segunda parte: A arte é uma atividade significante             precedente, segundo a qual a arte é independente de um
(com significado).                                             saber cultural e, nesta ordem de ideias, se o artista se
                                                               consegue libertar da tradição cultural, o observador
Todavia, temos muitas vezes a experiência de que o
                                                               pode fazer o mesmo. No entanto, parece haver aqui
nosso gosto estético não nasce sem um mínimo de
                                                               alguma precipitação, na medida em que, mesmo que o
conhecimentos. Por exemplo, podemos realmente
                                                               artista se desligue da tradição para inventar novas
adquirir o gosto pela ópera ou pelo teatro, sem dominar
                                                               formas artísticas, não deixa de pertencer a uma época e
os códigos e as regras destes géneros artísticos? Por
                                                               a uma cultura particulares. Como podemos apreciar, no
vezes, dizemos não gostar de um género artístico,
                                                               seu justo valor, o movimento surrealista, sem conhecer
quando, na realidade, o que queremos dizer é que ele
                                                               o contexto cultural, histórico e até político em que
não nos interessa. Mas, se for esse o caso, não será
                                                               surgiu? Quando um movimento artístico se apresenta
                                                          10
como revolucionário, isso não significa que essa
revolução se produz exclusivamente no seio da história
da arte. A revolução artística tem também causas sociais
que não podem ser isoladas do contexto em que surgem
as obras de arte.

Terceira parte: Ser-se culto reforça a apreciação
estética

Assim, mesmo que nada nos impeça de experimentar
prazer numa obra de arte de que não se conhece o
contexto de criação, ou a biografia do autor, poder-se-á
dizer que ser-se culto reforça o gosto artístico. Com
efeito, esse gosto, sendo uma tarefa individual antes de
ser uma questão de conhecimento, pode e deve ser
cultivado. Neste sentido, a cultura afina o gosto, tal
como o gosto gera a vontade de cultura, ou de nos
cultivarmos.

Conclusão: Ser-se culto não é uma condição
necessária para se ser sensível à beleza ou à arte em
geral. Mas a cultura é necessária se quisermos cultivar o
nosso gosto.


                                                            11
• CAPÍTULO 2 •

   TEORIA DA EDUCAÇÃO - ROUSSEAU




“Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de
mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições
se contrariam, é mal educado, e nunca estará em
conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas
caem todas nos mesmos pontos e tendem para os
mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive
consequentemente.”
• Secção 1 •
1.Esta teoria da
  educação (muito ao
  contrário do que
  defendem, sobretudo,
  alguns políticos
  muito apressados em
  tirar as conclusões
  que lhes convêm)
  está em perfeita
  conformidade com o
  ideal do século das
  Luzes, mesmo
  concedendo
  Rousseau um lugar
  privilegiado ao
  sentimento (linhas 1
  a 6) e às lições da
  experiência.

2. O desafio colocado
   por Rousseau é
   crucial, pois a
   questão da educação
                                                  Primeiro Modelo
   é a questão da        Explicação de Texto - Rousseau,          educação. Mesmo que o homem nascesse
   realização do
   homem, do processo    Émile                                    grande e forte, o seu tamanho e a sua
   necessário (e                                                  força ser-lhe-iam inúteis antes de
   desejável) de
   transformação da                                               aprender a servir-se deles; ser-lhe-iam
   criança num                                                    prejudiciais por impedir os outros de lhe
   indivíduo             O texto: “Cuidamos das plantas através
                                                                  prestar assistência; e, abandonado a si
   autónomo.             da cultura, e os homens através da
                                                    13
mesmo, morreria de miséria, mesmo antes de ter                 consequentemente. Só deste se pode dizer que é bem
conhecido as suas necessidades. Lamentamo-nos da               educado”.
infância; não vemos que a raça humana teria perigado,
se o homem não começasse por ser criança. Nascemos
fracos, temos necessidade de força; nascemos
                                                               Tese: Neste texto, Rousseau estabelece um paralelo
desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência;
                                                               entre a cultura das plantas e a educação dos homens. O
nascemos estúpidos, temos necessidade de juízo. Tudo o
                                                               seu objetivo, para além de sublinhar a necessidade da
que não temos na altura do nascimento, e de que
                                                               educação e a feliz condição do homem apesar da sua
precisamos quando somos adultos, é-nos dado pela
                                                               fraqueza natural, é o de definir o que é uma boa
educação. Esta educação vem-nos da natureza, dos
                                                               educação. Este texto não é, como veremos, incompatível
homens e das coisas. O desenvolvimento interno das
                                                               com a crítica que faz Rousseau da cultura como
nossa faculdades e dos nossos órgãos corresponde à
                                                               desnaturação no Second Discours e no Discours sur les
educação da natureza; o uso que aprendemos a fazer
                                                               sciences et les arts. A tese dos três mestres (coisas,
deste desenvolvimento vem da educação dos homens; e
                                                               natureza e homem) permite repensar a educação e
o que adquirimos através da nossa experiência com os
                                                               descobrir o fundamento das teorias mais modernas da
objetos que nos afetam correponde à educação pelas
                                                               educação. Trata-se de um texto com atualidade, na
coisas. Cada um de nós é, assim, formado por três tipos
                                                               medida em que lembra que a educação não deve
de mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições
                                                               reduzir-se ao treino.
se contrariam, é mal educado, e nunca estará em
conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem
                                                               Elementos de explicação:
todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos
fins, encontra sozinho o seu caminho e vive                    ★ Linhas 1 a 6: Após um paralelo entre as plantas e
                                                                  os homens (associando a cultura a um

                                                          14
acompanhamento do movimento da natureza, ao                    como do espírito (“nascemos estúpidos”). Na
  facto de cuidar dela), Rousseau sublinha que a                 verdade, tudo é compensado pela educação.
  fraqueza natural do homem (ser inacabado, teoria da            Poderíamos pensar que Rousseau sugere que nós só
  neotenia, ser de Prometeu) é na realidade um dom               somos cultura e que tudo nos é dado pelos outros (o
  feliz da natureza. É o que quer dizer quando imagina           que colocaria questões inultrapassáveis à sua crítica
  um recém-nascido grande e forte, mas incapaz de                contra a cultura desnaturante; com efeito, se nada
  usar as suas forças. Se o recém-nascido, a criança,            existe de natural, como poderíamos falar de
  não tivesse essa aparência fraca, não cuidaríamos              desnaturação?)
  dela, nem se pensaria na hipótese de lhe prestar
  assistência. Talvez Rousseau queira sugerir que é a          ★ Mas nas linhas 11 a 15, vai sublinhar que a
  vulnerabilidade da criança que nos leva a cuidar               educação não se reduz àquela que é recebida dos
  dela. A fraqueza, a fragilidade da criança sublinha o          homens; há também a educação através da natureza
  seu inacabamento, a sua imaturidade e faz apelo à              e através das coisas. Mesmo sendo verdade que
  maturação pela cultura, pela educação. Conclui,                nascemos inacabados, a natureza encarrega-se de,
  assim, que não nos devemos queixar dessa                       através do “desenvolvimento interno das nossas
  fragilidade da infância (aliás, uma demasiada                  faculdades e órgãos”, de nos assegurar o
  robustez seria o sinal de um acabamento, que                   cumprimento de objetivos naturais; é portanto
  esconderia a plasticidade que é o ponto chave da               possível um movimento natural e um movimento
  possibilidade de aperfeiçoamento que caracteriza o             contra natura. E, tal como a cultura para a planta, a
  homem por oposição à rigidez do instinto no                    educação é já pré-orientada por este movimento
  animal).                                                       natural, inato. O adquirido não se opõe, então, ao
                                                                 inato, não vem preencher um vazio, vem prolongá-
★ Linhas 7 a 10: Rousseau limita-se a sublinhar que              lo, ajudar a fazer uso do que em nós é inato. À
  essa fraqueza exige cuidados tanto ao nível do corpo           educação recebida dos outros acrescenta-se a
                                                          15
experiência pessoal das coisas. O mundo físico, o
   mundo dos outros e a nossa própria natureza (são
   estes os nossos mestres) são as três fontes de
   educação que impede qualquer tentativa de reduzir a
   educação a um treino, deixando espaço para a
   autoformação e colocando limites à estruturação de
   si pelos outros.

Estes últimos esclarecimento permitem a Rousseau
distinguir a boa da má educação: a boa educação seria
aquela que concilia os três mestres, que permite
salientar no ser educado aquilo para que tenderia
naturalmente. A educação não é, portanto, um treino,
uma formatação, ela só é aquilo que permite ao
indivíduo tornar-se por si mesmo aquilo que ele é. Esta
teoria da educação (muito ao contrário do que
defendem, sobretudo, alguns políticos muito apressados
em tirar as conclusões que lhes convêm) está em
perfeita conformidade com o ideal do século das Luzes,
mesmo concedendo Rousseau um lugar privilegiado ao
sentimento (linhas 1 a 6) e às lições da experiência.




                                                          16
• Secção 2 •

                                          Segundo Modelo
Explicação de Texto. Rousseau                                   natureza; o uso que aprendemos a fazer deste
                                                                desenvolvimento vem da educação dos homens; e o que
	

   O texto: “Cuidamos das plantas através da                 adquirimos através da nossa experiência com os objetos
cultura, e os homens através da educação. Mesmo que o           que nos afetam correponde à educação pelas coisas.
homem nascesse grande e forte, o seu tamanho e a sua            Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de
força ser-lhe-iam inúteis antes de aprender a servir-se         mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições se
deles; ser-lhe-iam prejudiciais por impedir os outros de        contrariam, é mal educado, e nunca estará em
lhe prestar assistência; e, abandonado a si mesmo,              conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem
morreria de miséria, mesmo antes de ter conhecido as            todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos
suas necessidades. Lamentamo-nos da infância; não               fins, encontra sozinho o seu caminho e vive
vemos que a raça humana teria perigado, se o homem              consequentemente. Só deste se pode dizer que é bem
não começasse por ser criança. Nascemos fracos, temos           educado”.
necessidade de força; nascemos desprovidos de tudo,
temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos,
temos necessidade de juízo. Tudo o que não temos na
altura do nascimento, e de que precisamos quando                Elementos de problematização e de Introdução.
somos adultos, é-nos dado pela educação. Esta
                                                                “O Emílio” constitui um tratado consagrado por
educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou das
                                                                Rousseau à questão da educação. Para Rousseau, neste
coisas. O desenvolvimento interno das nossa faculdades
                                                                excerto, trata-se de nos interrogarmos sobre a
e dos nossos órgãos corresponde à educação da

                                                           17
articulação entre a natureza e a cultura e a passagem de        sentido. Num segundo tempo (que corresponde às
uma para a outra. A educação é, com efeito, o processo          últimas linhas), Rousseau deduz dessa primeira
que permite ao homem sair do seu estado natural para            abordagem a natureza da educação, que não é um
que se realize e atinja o seu estado final. Ora, este           simples processo artificial, mas que tem origem em três
processo tem os seus perigos. Se a educação nos faz sair        “mestres”.
da natureza para acedermos à cultura, como garantir
que não se trata de um processo de desnaturação?                ❖ Num primeiro tempo, então, Rousseau explica por
Rousseau aborda, então, a noção de educação para                   que razão a educação é necessária. O paralelo com a
estudar as suas modalidades, o seu sentido, a sua                  cultura, a transformação de uma semente
função. Mas porque é que o homem precisa de                        insignificante numa planta vistosa, indica que a
educação? Esta pergunta parece ter uma resposta óbvia.             educação tem uma função que poderíamos comparar
Trata-se, no entanto, de uma questão essencial que                 com o amanho das terras. A noção de “amanho” ou
desempenha um papel fundamental na atribuição de                   de cultivo remete para a noção de produção. É a
sentido à educação, concebida não como uma                         educação que produz o homem.
desnaturação, mas como uma forma de prolongar e
                                                                ❖ Esta primeira abordagem é justificada pelo facto de
perfazer ou aperfeiçoar a natureza do homem.
                                                                   o homem nascer fraco e desprovido (como já dizia
Estes elementos são apresentados em dois momentos,                 Platão no Protágoras) o que, no final de contas, é
em dois tempos, digamos assim. Primeiro, Rousseau                  uma coisa boa: é esta fraqueza que faz com que os
esclarece a necessidade da educação. Poder-se-ia                   outros homens se interessem pela criança e cuidem
lamentar que a natureza não tenha criado o homem                   dela. Não fosse assim, o homem morreria antes de
completo desde o nascimento, mas a fraqueza da                     tomar consciência das suas necessidades, nas suas
infância preenche uma função que Rousseau esclarece                palavras “antes de ter conhecido as suas
na primeira parte do texto, dando à educação todo o seu            necessidades”, expressão esta um pouco enigmática,

                                                           18
que significa simplesmente que sem a ajuda dos seus            educação da natureza educa-nos muito
   semelhantes, o homem não acederia ao                           simplesmente fazendo-nos crescer e transformando-
   conhecimento de si mesmo, muito menos a ser capaz              nos espontaneamente em homens
   de assegurar a sua sobrevivência. No seu Second                (“desenvolvimento interno”). Mas isto não basta,
   discours, Rousseau completa esta ideia descrevendo             pois ainda nos falta saber e poder conhecer o ser em
   este sentimento que leva os homens a preocupar-se              que nos tornamos para saber como fazer uso dele. A
   com os seus semelhantes sempre que estes parecem               educação dos homens, inculcando-nos saberes e
   mais fracos (na velhice, na infância, na doença...).           princípios, ensina-nos a fazer bom uso das
                                                                  liberdades e das faculdades com que a natureza nos
❖ A fraqueza do homem recém-nascido é portanto                    vai progressivamente completando. Por fim, a “lição
   uma feliz providência da natureza (não temos de nos            das coisas” corresponde à aprendizagem pela
   lamentar por o homem nascer inacabado), e é ela                experiência, pela prática.
   que explica a necessidade da educação, definindo,
   por essa via, o seu sentido. A educação é o processo        ❖ A parte final do texto atribui a estes três mestre as
   que deve permitir dotar o homem de tudo aquilo de              suas respetivas funções. Nenhuma é mais
   que originalmente ele é desprovido. Ela organiza a             importante do que as outras e esta ideia de igual
   passagem da infância para a idade adulta, dotando o            importância dos três mestres parece ser a ideia
   indivíduo de tudo o que lhe falta, para fazer dele,            central que Rousseau quer transmitir no “Emílio”. A
   retomando a fórmula do Contrato Social, “um ser                educação só tem sucesso e a criança só é bem
   inteligente, e um homem”.                                      educada se a educação respeitar a natureza da
                                                                  criança e a natureza em geral. Por isso, é
❖ Esta educação é proteiforme (polimorfa) e não se                absolutamente indispensável garantir a harmonia
   reduz à educação académica. Rousseau identifica                entre os três mestres, que devem prosseguir os
   três mestres: a natureza, os homens e as coisas. A             mesmos objetivos tendo em vista assegurar a
                                                          19
coerência do indivíduo consigo mesmo. A noção de
   harmonia é fundamental, pois trata-se, antes de
   mais, de não desnaturar o homem, mas de preservar
   aquilo que ele é naturalmente. Temos, então, de
   prestar atenção àquilo que a natureza e as coisas – e
   não só os homens – têm para nos ensinar.




Conclusão: Este excerto do início do livro “O Emílio”
permite compreender o interesse que Rousseau concede
à educação. O desafio colocado por Rousseau é crucial,
pois a questão da educação é a questão da realização do
homem, do processo necessário (e desejável) de
transformação da criança num indivíduo autónomo.




                                                           20
• CAPÍTULO 3 •

  BUSCA DA VERDADE E DÚVIDA




A busca da verdade exige que tenhamos algumas
certezas, por exemplo, a respeito dos passos que nos
permitem alcançar o conhecimento.
• Secção 1 •

1. A busca da verdade
   exige que tenhamos
   algumas certezas,
   por exemplo, a
   respeito dos passos
   que nos permitem
   alcançar o
   conhecimento.

2. Acontece que a
   dúvida em filosofia
   não é uma incerteza
   que, de forma
   negativa, nos
   distancia do
   verdadeiro.

3. A dúvida é o meio
   seguro para
   filosofar, isto é, para                          Primeiro Modelo
   pôr à prova as nossas
   crenças, as nossas        A busca da verdade pode dispensar     conseguimos elaborar um juízo
   ilusões e falsos
                             a dúvida?                             definitivo, isto é, dizer “isto é verdadeiro”
   saberes que
   ensombram o nosso                                               ou “isto é falso”. Estar em dúvida
   espírito.                 Problematização/Introdução.           significa, ou suspender totalmente o
                                                                   juízo, ou afirmar algo, tendo consciência
                             Sentimos dúvidas quando não estamos
                                                                   de que nos podemos estar a enganar.
                             seguros de nada, quando não
                                                      22
Neste caso, o juízo é provisório. Estar na verdade, pelo        corro o risco de não tomar consciência da minha
contrário, exclui a dúvida. Mas, como indica a pergunta,        ignorância. A dúvida permite tomar consciência da
buscar a verdade não é ainda estar na posse dela. Muito         ignorância. Duvidando, sei, pelo menos, que não sei. Ou
frequentemente, para obter a verdade, é preciso                 que aquilo em que acredito não é seguro ou não está
começar por pôr em dúvida aquilo em que se acredita,            provado; portanto, pode ser falso. Nesta ordem de
pois os nossos preconceitos, as nossas opiniões, as             ideias, a dúvida oferece-me uma primeira verdade, é
nossas ideias recebidas encerram no seu interior juízos         certo que pobre em conhecimento, mas mesmo assim
sem fundamento ou juízos falsos. Por outras palavras, a         fundamental para me pôr a caminho em busca da
dúvida seria o motor da busca da verdade: é por duvidar         verdade. Revela-me que aquilo em que acredito é um
que estamos em busca da verdade.                                preconceito, isto é, uma opinião que se impôs a mim,
                                                                sem que eu próprio a tenha fundamentado, ou sequer
No entanto, a busca da verdade exige que tenhamos               analisado.
algumas certezas, por exemplo, a respeito dos passos
que nos permitem alcançar o conhecimento. Com efeito,           Segunda parte: A busca da verdade exige a
para progredir na pesquisa da verdade temos                     posse de certezas.
necessidade de nos apoiar em certezas. Não podemos,
portanto, duvidar sempre, ou duvidar de tudo, se                Podemos admitir que a dúvida é inseparável da busca
quisermos progredir na via da ciência e do saber.               da verdade, mas a busca da verdade deve também ser
                                                                capaz de dispensar a dúvida. Com efeito, se estou a
Primeira parte: Duvidar é a primeira etapa do                   fazer, por exemplo, uma demonstração matemática, não
conhecimento.                                                   posso deixar de fundamentar a minha argumentação em
                                                                princípios que aceito sem os demonstrar e sem duvidar
Aquele que não duvida corre o risco de não progredir no         da sua verdade. Neste sentido, a busca da verdade pode
conhecimento e na verdade. Com efeito, se não duvidar,          dispensar a dúvida, pelo menos, em certos etapas da

                                                           23
demonstração. Se, no momento em que utilizo o                    teoria é verdadeira até ao momento em que se
teorema de Pitágoras para determinar a superfície de             demonstre que ela é falsa. Isto implica que
um triângulo, fosse necessário voltar atrás para me              mantenhamos a ideia de que ela possa ser falsa, mesmo
assegurar da verdade desse teorema, não seria capaz de           que nenhum facto, nenhuma prova tenha, até ao
avançar na resolução do meu problema, até porque                 momento, estabelecido a possibilidade da sua falsidade.
antes de encontrar os fundamentos do teorema teria               Considerar que a verdade é, de alguma forma,
ainda de demonstrar os fundamentos desses                        provisória ainda é o melhor meio para fazer avançar a
fundamentos e assim por diante. A busca da verdade               busca dela. A dúvida desempenha, portanto, a função de
corresponderia a uma regressão sem fim, e recuaria em            motor da descoberta.
vez de avançar. É, então claro: saber duvidar é também
saber quando não ou já não duvidar, para progredir no            Conclusão.
caminho da verdade
                                                                 A busca da verdade não pode, de facto, dispensar a
Terceira parte: A certeza nunca é absoluta;                      dúvida. Ela é o motor desta busca num duplo sentido: é
temos sempre de encarar a hipótese de nos                        a dúvida que desencadeia essa busca, e é também ela
estarmos a enganar.                                              que alimenta o movimento de pesquisa. E isto é assim,
                                                                 mesmo que, por vezes, a busca da verdade deva
Até agora, o que foi já exposto não permite afirmar que          dispensar a dúvida para que possa progredir.
existem verdades absolutas que escapem a todos os
tipos de dúvida. Com efeito, uma teoria da Física só é
verdadeira, por exemplo enquanto não existir uma
prova (um acontecimento natural ou uma experiência
de laboratório) que contradiga as predições que podem
ser estabelecidas a partir dela. Por outras palavras, uma

                                                            24
• Secção 2 •

                                          Segundo Modelo
A busca da verdade pode dispensar a dúvida?                    com forma de objetos ou realidades sensíveis. Estes
                                                               homens são prisioneiros das aparências, pois não põem
                                                               em dúvida aquilo que veem. A dúvida relativamente ao
                                                               conhecimento é, então, definida como o contrário do
Ávido de certezas, o senso comum não confia na dúvida.
                                                               conformismo, da adesão, sem provas, a uma ideia, a
Com efeito, é vulgar haver quem critique o juiz por não
                                                               dúvida é o recuo necessário da reflexão contra a crença.
ter a certeza dos atos de um criminoso, ou o médico que
                                                               Será que, mesmo assim, ela desempenha um papel na
afirma não ter a certeza do diagnóstico e do tratamento
                                                               busca da verdade? Mais do que isso, será ela é tão
de uma doença. No entanto, a dúvida não significa uma
                                                               necessária que podemos afirmar que a busca do
renúncia à verdade, se for utilizada como um meio de a
                                                               verdadeiro não pode dispensá-la? A busca da verdade,
procurar. Duvidar é não receber no nosso espírito o que
                                                               os antigos chamavam-lhe filosofia, implica que
nos vem do exterior sem o ter submetido a um exame
                                                               compreendamos paradoxalmente que esta exigência da
crítico. As nossas sensações, as nossas perceções
                                                               dúvida é sempre um meio, uma maneira particular de
parecem estar ao abrigo da dúvida, por exemplo,
                                                               pesquisar a verdade, sem estar seguro de a encontrar.
quando admitimos saber alguma coisa por ouvir dizer,
                                                               Se não pode dispensar a dúvida, então a filosofia nunca
ou quando vemos aquilo que consideramos uma
                                                               está acabada.
evidência. Assim, os prisioneiros da caverna no célebre
texto da República de Platão não duvidam das imagens
que percecionam no fundo da caverna, mesmo que
saibamos que elas não passam de sombras, de imagens

                                                          25
I. A busca da verdade é a busca do saber, não de                   lógico Tarski que diz que a proposição “a neve é
   certezas.                                                       branca” é verdadeira, se e somente se a neve for
                                                                   branca! Neste caso, a dúvida pode ser o meio de
✤ Platão afirmava que a origem da filosofia é o                    interrogar a realidade e fazê-la corresponder a um
   espanto, isto é, a atitude que consiste em interrogar-          discurso verdadeiro
   se, em não se satisfazer com respostas indiscutíveis e
   com opiniões. A filosofia não possui a verdade,               II. A dúvida como método de pesquisa da
   procura por ela.                                                verdade.

✤ O reconhecimento da sua própria ignorância é a                 ✤ Foi Descartes quem utilizou a dúvida no Discurso do
   condição para a pesquisa da verdade. Como pensava               método explicitamente para alcançar a verdade.
   Sócrates que pretendia não saber nada, mas                      Descartes começa por pôr em dúvida os dados dos
   procurar o saber, a busca da verdade é uma pesquisa             nossos sentidos, sob o pretexto de que eles são
   e não uma posse. É preciso, portanto, num primeiro              enganadores e nos conduzem a ilusões. Claro, não
   tempo, pôr em dúvida as nossas certezas e                       basta duvidar para fazer cessar as nossas ilusões,
   preconceitos.                                                   mas a dúvida permite detetar certezas que podem
                                                                   enganar-nos, como é o caso das ilusões óticas.
✤ A dúvida é um momento essencial da busca da
   verdade, pois permite interrogar a realidade sem a            ✤ O segundo momento da dúvida no Discurso do
   confundir com o que vemos nela. A verdade não é a               método é o questionamento dos erros de raciocínio.
   realidade; a verdade é definida como a adequação de             Desta vez, o argumento para pôr em dúvida os
   uma representação com o que ela representa. O                   nossos erros é a possibilidade de todos nós, e até os
   verdadeiro, neste sentido, é um enunciado que                   melhores matemáticos, fazermos erros de cálculo,
   corresponde à realidade. Tomemos o exemplo do                   por desatenção ou precipitação. Neste caso, a dúvida

                                                            26
é aplicada também às ciências, apesar de parecerem                céticos que duvidam por duvidar de maneira
   ao abrigo de incertezas e serem um meio seguro de                 confortável, a dúvida cartesiana seria insustentável,
   pesquisar o verdadeiro.                                           a partir do momento em que já não sabemos
                                                                     distinguir o real do imaginário.
✤ Finalmente, Descartes utiliza a dúvida para pôr à
   prova da verdade a própria realidade. Utiliza o             ✤ Para os céticos, a dúvida torna-se uma espécie de
   argumento do sonho para mostrar que não                           filosofia de vida que consiste na suspensão do juízo e
   possuímos nenhum critério fiável para distinguir a                a só colocar uma questão sem esperar resposta: “O
   realidade do imaginário. Para aceder ao real, somos               que é que eu sei?”. No termos da dúvida, isto é,
   obrigados a fiar-nos nos nossos sentidos, sem                     tendo-a levado ao extremo de duvidar da nossa
   sabermos se estamos a dormir ou se estamos                        própria realidade e do que nos envolve, Descartes
   acordados.                                                        alcança a verdade: “penso, logo existo”. Este é o
                                                                     primeiro princípio, o fundamento que lhe permitirá
III.A busca da verdade necessita da dúvida,                          com certeza construir a árvore do saber: a dúvida
   desde que seja capaz de sair dela, isto é, de a                   cética já não terá qualquer razão de ser.
   utilizar como um meio.
                                                               	

✤ Para os céticos, a dúvida consiste em suspender o
   juízo, isto é, em não negar nem afirmar nada: “a            Conclusão:
   dúvida é um agradável travesseiro para uma cabeça
   bem feita”, dizia Montaigne. Embora a dúvida seja           A busca da verdade define o trajeto do filósofo em busca
   necessária para nos desembaraçarmos dos                     do saber. Ora, a questão era saber da possibilidade de
   preconceitos, das opiniões, das crenças, ela não é o        dispensar a dúvida na busca da verdade. Acontece que a
   objetivo da filosofia. Tal como acontece com os             dúvida em filosofia não é uma incerteza que, de forma

                                                          27
negativa, nos distancia do verdadeiro. A dúvida é um
método, uma exigência de fazer corresponder o discurso
à realidade sem precipitações, mas com o recuo
necessário da reflexão. É neste sentido que a dúvida nos
permite pesquisar o verdadeiro e que essa busca não
pode evitar a dúvida. A dúvida é o meio seguro para
filosofar, isto é, para pôr à prova as nossas crenças, as
nossas ilusões e falsos saberes que ensombram o nosso
espírito.




                                                            28
• CAPÍTULO 4 •

                         CRENÇA E RAZÃO




A distinção platónica entre opinião (doxa) e opinião
adequada (ortodoxa) permite pensar, pelo menos,
em crenças não são contrárias à razão por serem
razoáveis, diríamos nós.
• Secção 1 •

1. Podemos, então,
   pensar que
   precisamos de
   crenças para viver e
   que as crenças são
   uma espécie de
   reação defensiva da
   natureza contra a
   razão. É o “resgate
   da inteligência” que
   temos de pagar por a
   termos aprisionado.                  Digite para introduzir texto

2. A razão é limitada:
   não pode demonstrar
   tudo
   cientificamente,
   mas pode apreender o
   momento em que a
   crença pode intervir                             Primeiro Modelo
   no exercício do
   espírito. Ela pode     A Crença é contrária à Razão?                e a razão não se reduz ao racional, uma
   fornecer uma                                                        vez que o excesso de razão pode não ser
   gramática de
                          Problemática:                                razoável (talvez convenha distinguir os
   consentimento, de
   conformidade.                                                       dois sentidos de razão: racional e
                          Enquanto, por um lado, a crença é
                                                                       razoável), por outro lado, o irracional
                          espontaneamente associada ao que não
                                                                       não se reduz ao que é contrário à razão;
                          tem fundamento na razão, ao irracional,
                                                      30
pode ser também o que está para lá da razão, o que é               mas também pela análise freudiana e marxista da
estranho à razão (“o coração tem as suas razões que a              ilusão religiosa.
razão não conhece de todo”, segundo Pascal). A
pergunta formulada convida portanto a interrogarmo-             ✤ Foi através da rutura com as explicações religiosas
nos sobre os fundamentos da crença, sobre o que é                  ou míticas, em resumo, com as abordagens baseadas
contrário ou não à razão e sobre a distinção entre                 na fé, na crença religiosa, que o pensamento
razoável e racional.                                               científico ou filosófico nasceu.


Esquema                                                         ✤ A preocupação com a verdade, exigência da razão,
                                                                   opõe-se à adesão à crença; a razão convida ao
I. Se o uso da razão exige a rejeição da crença,                   distanciamento crítico, à dúvida.
   então a crença parece contrária à razão.
                                                                Transição:
✤ As pesquisas, que pretendemos que sejam objetivas e
   rigorosas, exigem que façamos uma crítica das                A crença parece, então contrária à razão, tanto nos seus
   opiniões recebidas, dos preconceitos, das crenças            fundamentos quanto na adesão que ela implica; mas
   comuns que constituem os primeiros “obstáculos               será que podemos dizer, a partir daqui, que todas as
   epistemológicos” (Bachelard), por se                         crenças são irracionais?
   fundamentarem exclusivamente no “ouvir dizer”,
                                                                II. Certas crenças não são contrárias à razão.
   nos desejos, na experiência espontânea, na força da
   adesão comum, e portanto por não se
                                                                ✤ A distinção platónica entre opinião (doxa) e opinião
   fundamentarem na razão. É esta a perspetiva que
                                                                   adequada (ortodoxa) permite pensar, pelo menos,
   nos é transmitida pela alegoria da caverna de Platão,
                                                                   em crenças não são contrárias à razão por serem
                                                                   razoáveis, diríamos nós.
                                                           31
✤ Por outro lado, a crença religiosa pode apoiar-se             Transição:
   numa teologia racional, por exemplo, através das
   provas da existência de Deus, ainda que nelas                Assim sendo, a crença não é necessariamente contrária
   possamos ver algumas contradições lógicas.                   à razão; se há crenças que não se opõem à razão, em que
                                                                condições crença e razão podem coexistir?
✤ O pensamento racional parece também apoiar-se em
   certas crenças, postulados admitidos sem serem               III.Uma coexistência possível, embora não
   demonstrados ou provados racionalmente. “Não há                 pacífica.
   ciências sem pressuposições”, diz Nietzche. A
                                                                ✤ O que o uso da razão rejeita liminarmente e em
   ciência, apesar da sua racionalidade, não desemboca
                                                                   absoluto não é a crença propriamente dita, mas as
   em verdades absolutas, mas tão só em verdades
                                                                   suas derivas que são o fanatismo (ideológico,
   provisórias, que não são mais do que crenças
                                                                   religioso, sectário) cego, e a superstição que alimenta
   racionais.
                                                                   o medo e impede, ao mesmo tempo, o progresso do
✤ Então, a crença não é necessariamente contra a                   conhecimento (uma vez que a superstição só pode
   razão, pode ser que esteja para além da razão:                  viver da ignorância) e a vida razoável, isto é, sábia
   Pascal. A crença sublinha os limites do poder da                (por exemplo, a filosofia epicurista, que desenvolve
   razão, tanto do ponto de vista teórico como do ponto            princípios de vida sábia e feliz, começa por uma
   de vista prático (por exemplo: Kant e o seu postulado           física, que tem por objetivo desmistificar e
   da existência de Deus, um dos três postulados da                desmitificar o mundo, de separar o divino do
   moral; os outros são a liberdade e a imortalidade da            puramente físico, pois é o medo dos deuses que
   alma).                                                          perturba a alma e impede os homens de alcançar a
                                                                   felicidade, a ataraxia). Por outras palavras, o que o
                                                                   uso da razão rejeita, é a crença que nega a ciência,

                                                           32
que ignora que ela não é uma crença, ou uma mera
   opinião.

✤ A opinião é, por vezes, o único ponto de apoio, a que
   podemos recorrer para conduzir a nossa vida, na
   falta de regras objetivas sobre a felicidade, por
   exemplo. E se assim fizermos, ser-nos-á possível ter
   uma conduta consciente, enquanto a dúvida
   permanente nos impede de viver e de agir (a moral
   provisória de Descartes).

✤ Podemos, então, pensar que precisamos de crenças
   para viver e que as crenças são uma espécie de
   reação defensiva da natureza contra a razão. É o
   “resgate da inteligência” que temos de pagar por a
   termos aprisionado. A ilusão é, nesta ordem de
   ideias, uma necessidade razoável, isto é, que não se
   opõe à razão, mas que se faz a partir da
   multiplicidade de razões e do seu agrupamento
   diverso, não unificado num modelo único.




                                                          33
• Secção 2 •

                                          Segundo Modelo
A crença é contrária à razão?                                    quando se compromete com a fé?



                                                                 Veremos que, embora o exercício da razão consista,
Concordamos facilmente com a ideia de que a crença é             antes de mais, em pôr em causa a crença, é mesmo
um saber fraco, ora ingénuo (a criança acredita no Pai           assim necessário tolerar algumas crenças, e até
Natal), ora perigoso (o fanático que mata em nome de             relativizar as próprias ambições da razão em proveito
Deus). Pelo contrário, o que é racional parece-nos fiável        de uma crença que ainda não somos capazes de
porque é logicamente coerente, ou porque corresponde             qualificar.
à realidade, ou porque é eficaz, ou por todas estas
razões juntas. Numa primeira abordagem, então, crença            A crença (pistis) é o mais baixo dos saberes. Como
e razão parecem estar em oposição uma à outra: a fé              demonstra Platão com a metáfora da linha dividida em
não é o saber, ela remete para uma convicção pessoal,            quatro secções, a crença é o saber daqueles que
enquanto a razão pretende a objetividade. Mas não será           confundem as coisas com o seu reflexo. Crer é, do ponto
esta oposição demasiado simplista? Não haverá crenças            de vista epistemológico, atribuir à sensação um poder
compatíveis com as exigências da razão? Como                     excessivo de juízo. Assim, os escravos aprisionados no
poderemos explicar o fracasso relativo do positivismo            fundo da caverna acreditam na realidade exclusiva das
ou o sucesso, limitado é certo, da religião na época da          sombras e, deste modo, se enganam convictamente.
ciência? Podemos racionalizar e acreditar em certas              Todavia, a razão libertar-se totalmente da crença. Se o
crenças, ou temos de defender que a razão se demite              percurso racional consiste em pôr em dúvida as

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aparências, nem por isso essa razão pode deixar de se            um espírito positivo, também pretendia que só o
apoiar num fundamento “firme e seguro”, como diz                 demonstrável pudesse ser considerado verdadeiro. A
Descartes. Ora, se o exercício hiperbólico da dúvida tem         própria crença torna-se objeto de uma análise apertada,
de parar perante a evidência de que o sujeito que duvida         através dos estudos de Freud sobre as motivações
não pode ser posto em dúvida, esse mesmo sujeito tem             profundas da crença religiosa. Aquilo que Freud
de admitir que, quando pensa, a sua razão não é traída           concede às crenças é que elas têm as suas razões
por um “génio maligno”. Como correlato, Descartes                (consolar o homem perante a angústia da morte) e
admite um Deus verdadeiro conhecido por intuição e               portanto um futuro próprio.
não por demonstração.

Há crenças, então, que a razão reprova como as que são           Contra esta captura da fé pelo saber, podemos opor
veiculadas pela superstição, e outras que a razão aprova         duas opções filosóficas: a da continuidade entre os dois
porque simplesmente não consegue fundamentar-se                  domínios, ou as de rutura em benefício da fé. A primeira
completamente em si mesma. A escola positivista                  opção é ilustrada pelo pensamento de S. Tomás de
procurou, no entanto, demonstrar que esta concessão              Aquino que queria ver na filosofia a serva da teologia.
feita à crença deveria ser ultrapassada. Assim, Comte            Segundo ele, a razão deve estender a sua influência, as
distingue três estados (teológico, metafísico e positivo)        suas luzes, a todos os objetos de conhecimento. Poderá,
tendo em vista defender que entrámos numa época de               assim, aproximar-se da ideia de Deus. Mas não será
ordem e de progresso, onde a razão deve reinar sem               capaz de penetrar no domínio das verdades ditas
partilhas, mesmo nos domínios onde as demonstrações              reveladas. A segunda opção é ilustrada pelo
parecem mais difíceis de realizar, como é o caso das             existencialismo de Kierkgaard. A sua tese consiste em
representações coletivas que fazem apelo a estudos               aceitar a ideia de uma salto no absurdo. O verdadeiro
sociológicos. É também o caso do inconsciente que                filósofo é o que se faz “cavaleiro da fé” e que corre
penetra a psicanálise com as armas da ciência. Freud,            deliberadamente o risco de passar do estado ético ao
                                                            35
estado religioso, nas etapas que marcam o caminho da
vida.

Kant, no seu célebre prefácio à Crítica da razão pura,
escreveu que teve de “substituir a fé ao saber”. A razão é
limitada: não pode demonstrar tudo cientificamente,
mas pode apreender o momento em que a crença pode
intervir no exercício do espírito. Ela pode fornecer uma
gramática de consentimento, de conformidade.




                                                             36
• CAPÍTULO 5 •

               O DEVER DA VERDADE




A busca da verdade é realmente um imperativo
absoluto, mesmo em detrimento da nossa felicidade
ou da dos outros? Esta questão não pode ser
resolvida só no plano moral.
• Secção 1 •

1. Buscar a verdade
   (tal como a
   sinceridade) é expor-
   nos a ser feridos por
   ela.

2. A referência à
   alegoria da caverna
   na “República” de
   Platão ilustra
   perfeitamente esta
   ideia: o prisioneiro
   que se liberta da
   caverna e procura (e
   encontra) a verdade
   acaba por pagar um
   alto preço pela sua
   ousadia, sendo
   linchado pelos
   antigos                                     Primeiro Modelo
   companheiros de
   cativeiro que se        Temos o dever de procurar a      Elementos de problematização.
   recusam ouvir o que     verdade?
   ele tem para dizer.
                                                            A verdade parece imediatamente
                                                            conotada positivamente, por oposição
                                                            aos seus contrários (a mentira, o erro)
                                                            que aparecem como devendo ser


                                                 38
evitados. A pergunta aborda este tema num ângulo               ignora o que ignora? (paradoxo do Ménon de Platão:
particular: não se trata de saber se se deve dizer a           como saber que verdade procurar, uma vez que, por
verdade, mas se devemos procurá-la, não se devemos             definição, se estamos em busca dela é porque não a
desvendar o que sabemos ou guardar segredo, mas se             sabemos). Assim, se a lei reconhece, em certa medida, o
devemos dedicar-nos a pesquisar o que ignoramos.               dever de dizer a verdade e castiga a mentira ou o
Trata-se, no fundo, de nos perguntarmos sobre se               perjúrio, buscar a verdade não é, de modo nenhum,
podemos ficar satisfeitos com a nossa ignorância ou se         uma obrigação jurídica. Mas o dever não é a mesma
temos o dever de sair dela. Não é, portanto, tanto a           coisa que uma obrigação: o dever não nos é imposto do
questão do dizer, do desvendar a verdade, mas                  exterior, mas uma prescrição que impomos a nós
sobretudo a da ou das ações a levar a cabo para a              próprios. Tem, por esta razão, uma dimensão moral que
encontrar. Se fizermos a pergunta ao contrário                 põe em jogo a nossa humanidade. Como já foi dito,
(podemos ficar satisfeitos com a nossa ignorância?), a         renunciar a buscar a verdade parece consistir em
verdade parece impor-se como um dever: Que género              renunciar a nos colocarmos à altura da nossa
de homens seríamos nós, se pudéssemos ficar satisfeitos        humanidade. Mas não podemos fazer outras escolhas?
com nada saber? Não será a capacidade de                       A busca da verdade é realmente um imperativo
conhecimento, de compreensão e de explicação do                absoluto, mesmo em detrimento da nossa felicidade ou
mundo que nos envolve, aquilo que distingue o homem            da dos outros? Esta questão não pode ser resolvida só
dos outros animais?                                            no plano moral. Coloca também um desafio político e
                                                               social. Ora, nestes domínios, não é evidente que se deva
Mas não nos basta ficar por aqui. Se reconhecermos a           buscar a verdade em todos os casos, pois a verdade pode
verdade como um dever, faltará ainda esclarecer a              ter efeitos devastadores para cada um de nós e para os
natureza desse dever. Um dever desta natureza não é,           outros. O segredo, a mentira podem igualmente ter
com efeito, evidente. Podemos condenar o ignorante             utilidade social, política, íntima e, pelo contrário, a
pela sua ignorância? Como, de resto, pode ele saber que
                                                          39
verdade pode ter efeitos negativos. Nestas condições,         empregar todos os meios ao seu alcance, mesmo
em nome de quê haveremos de fazer da verdade um               moralmente condenáveis, para se certificar da
dever, um imperativo? Não valerá a pena, pelo                 verdade?); é perigosa na esfera política (um jornalista
contrário, ter algumas precauções.                            deve trazer à luz do dia verdades que o Estado mantém
                                                              secretas para o bem dos cidadãos?). A verdade tem,
Ficamos, assim, retalhados entre a representação que          então, uma conotação positiva, mas há, no fim de
fazemos de nós mesmo e da nossa humanidade,                   contas, uma razão que nos pode levar a sentir, muitas
segundo a qual a busca da verdade é o que faz de nós          vezes, dificuldades em cumprir o nosso dever de
seres vivos distintos dos outros, e uma dimensão mais         verdade. Por esta razão, buscar a verdade a qualquer
prática, segundo a qual a busca da verdade pode               preço não será um dever, se atribuirmos a esse dever
revelar-se prejudicial e perigosa, portanto, não um           uma natureza absoluta: fazer da busca da verdade um
dever absoluto.                                               imperativo, é expor-nos a sofrer consequências
                                                              negativas.

                                                              ✤ Buscar a verdade (tal como a sinceridade) é expor-
I. Fazer da busca da verdade um dever
                                                                 nos a ser feridos por ela. Queremos procurar sempre
   absoluto parece perigoso e prejudicial...
                                                                 saber o que os outros pensam de nós, por exemplo?
                                                                 A verdade é difícil de dizer e de ouvir, ela prejudica o
Podemos começar por explorar, nesta parte, a pista que
                                                                 bom funcionamento das relações sociais. Esta é uma
é talvez a mais intuitiva: sabemos espontaneamente que
                                                                 ideia explorada nomeadamente por Pascal nos seus
a verdade é perigosa e pode revelar-se prejudicial.
                                                                 Pensamentos.
Temos, aliás, em geral experiência disso mesmo. A
verdade pode fazer-nos infelizes (alguém que tenha
                                                              ✤ Esta perigosidade estende-se ao domínio político: o
dúvidas sobre a fidelidade do seu cônjuge deve
                                                                 segredo é necessário em certos domínios –

                                                         40
diplomático, militar. O nosso dever de cidadão,             efeitos negativos, do ponto de vista afetivo, político,
   vivendo numa democracia, é respeitar o bom                  social...
   funcionamento das instituições, não prejudicando o
   interesse geral, tentando desvendar o que é e deve          Mas o próprio do dever, na sua dimensão moral, não
   manter-se (pelo menos, durante um certo tempo)              será precisamente o ele ser desinteressado? A nossa
   um segredo de Estado.                                       humanidade não se joga justamente na nossa
                                                               capacidade para agir em nome de valores, mesmo que
✤ Em “Reações políticas”, Constant opõe-se ao dever            saibamos que isso é arriscado para nós? Porque a busca
   de dizer a verdade em todas as circunstâncias.              da verdade pode ser prejudicial, quer isso dizer que
   Podemos retomar as suas palavras para nos opormos           devemos renunciar a ela?
   a um dever de procurar a verdade em todas as
   circunstâncias. Por outras palavras, não podemos
   falar em dever de procurar sempre a verdade,
                                                               II. ... mas isso não é razão para renunciar a
   porque, sendo ela por vezes útil, por vezes
                                                                  fazer dela um dever moral...
   prejudicial, não tem as características de um
   imperativo.
                                                               Nesta parte podemos conduzir a reflexão de um modo
                                                               mais moral, para além das consequências práticas. Se a
Conclusão 1:
                                                               verdade for considerada uma coisa boa, então devemos
Fazer da busca da verdade um dever é não ter em conta          lutar por ela a qualquer preço. O característico do dever
as suas consequências práticas, por vezes prejudiciais.        moral é justamente ir para além dos nossos interesses
Não podemos impor a nós próprios a busca da verdade            pessoais, imediatos, sensíveis. Podemos mesmo dizer
de maneira incondicionada, porque nos exporia a                que é precisamente aquilo que não é imediatamente útil
                                                               ou proveitoso que tem condições para ser considerado

                                                          41
um dever. Não temos necessidade de impor a nós                  valores que são reconhecidos e se impõem como bons.
próprios o dever de procurar a verdade quando ela é             Neste sentido, aliás, o dever não é um dado. Nós não o
útil. A busca da verdade por interesse científico não           “temos”, não, pelo menos, de modo imediato: o dever é
levanta verdadeiramente problemas de dever. A                   uma regra que impomos a nós próprios.
explicação e a compreensão do mundo que nos envolve
permitem-nos dominá-lo e portanto viver melhor nele.            ✤ Seria sem dúvida útil ter começado por trabalhar a
Podemos interrogar-nos sobre as consequências                      noção de dever para estabelecer o elo com a ideia de
técnicas que são retiradas da ciência, que, elas, podem            que este é desinteressado e incondicionado: o dever
ser catastróficas para a natureza e para o homem. Mas a            é um fim em si mesmo, não é um meio com vista a
verdade, em si mesma, definida como a adequação do                 uma finalidade que lhe seja exterior (não podemos,
discurso e do real, remete para o discurso. Por isso, as           por exemplo, dizer que a verdade deve ser
suas consequências práticas diretas são nulas. Buscar a            pesquisada somente quando é útil, pois, então, como
verdade no domínio científico não tem portanto                     já foi dito, não temos necessidade de fazer disso um
necessidade de ser erigida em dever. Os homens fazem-              dever, para que os homens o façam). Os texto de
no espontaneamente, pois procuram conhecer o seu                   filosofia moral de Kant, nomeadamente os
ambiente, por necessidade de sobreviver nele. A noção              “Fundamentos da metafísica dos costumes”,
de dever só se coloca verdadeiramente nos domínios em              permitem trabalhar a noção de dever moral neste
que há uma contradição com os nossos interesses                    sentido. O mesmo acontece com o conceito de
diretos. É pois, paradoxalmente, porque a investigação             humanidade, como afirma Kant em “Qu’est-ce que
da verdade pode ser perigosa, que devemos impô-la a                les Lumières”?
nós mesmos como um dever. Aqui se define a
                                                                ✤ A verdade constitui, assim, um bem que nos é
moralidade do homem, que consiste justamente em se
                                                                   necessário obter. A referência à alegoria da caverna
ser capaz de ultrapassar os seus interesses em nome de
                                                                   na “República” de Platão ilustra perfeitamente esta

                                                           42
ideia: o prisioneiro que se liberta da caverna e             Conclusão 2:
   procura (e encontra) a verdade acaba por pagar um
   alto preço pela sua ousadia, sendo linchado pelos            Embora a busca da verdade possa produzir, por vezes,
   antigos companheiros de cativeiro que se recusam             efeitos nefastos, isso não é razão suficiente para
   ouvir o que ele tem para dizer.                              renunciar a ela. Moralmente, só encontramos a nossa
                                                                humanidade na condição de fazer passar os nossos
✤ Este texto permite, de resto, estabelecer a ligação           valores antes dos nossos interesses; nesta ordem de
   entre o dever moral e a utilidade, pois a pesquisa da        ideias, a busca da verdade impõe-se como um dever.
   verdade não diz somente respeito à moral, nem à
   epistemologia: buscar a verdade é também um                  Como podemos, então, conciliar estes dois aspetos?
   empreendimento de libertação. Através do                     Podemos seguir cegamente o nosso dever sem nos
   conhecimento, os homens libertam-se de uma                   preocuparmos com as suas consequências? Haverá um
   natureza, a que teriam de se submeter, se não                meio de procurar a verdade, evitando o que ela pode ter
   procurassem a verdade, mas também das suas                   de perigoso?
   ilusões que os alienam. É este o sentido, por
   exemplo, do incentivo à investigação que faz Marx
   na “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, por
                                                                III. … desde que não o sigamos cegamente.
   considerar que essa é a única maneira de destruir as
   ilusões da religião, que se constituem como um
   instrumento de alienação e de dominação.
                                                                Foi dito na introdução que a formulação da pergunta
                                                                nos convida a refletir sobre a ação (buscar a verdade)
                                                                mais do que sobre a palavra (dizer a verdade). Já agora
                                                                que reconhecemos na pesquisa da verdade um dever
                                                           43
moral porque nela está em jogo a nossa humanidade,                permitam que a busca da verdade não acabe por ser
podemos ir um pouco mais longe interrogando-nos                   letra morta. A forma da verdade interessa tanto
sobre as formas que toma essa pesquisa, tendo em vista            como o seu conteúdo. Se a verdade fere, não será
limitar as suas consequências catastróficas. Para além            tanto pelo que ela diz, mas mais pela forma como é
das formas típicas dos domínios morais e científicos, a           dita.
busca da verdade pode ainda tomar outras formas que
permitam torná-la compatível com os nossos afetos e a          ✤ Assim, buscar a verdade é também e, talvez, em
nossa felicidade, e justifiquem que a imponhamos a nós            primeiro lugar procurar a linguagem adequada para
próprios, sem por isso seguir esse dever cegamente, de            encontrar uma verdade que seja audível e útil. A
uma maneira que seja contraprodutiva.                             arte, por exemplo, constitui uma das múltiplas
                                                                  formas de busca da verdade, que pode evitar que
✤ O dever, pensado independentemente das suas                     esse dever nos conduza a odiar e a fugir da verdade,
   consequências práticas, pode ser contraprodutivo               mais do que a procurá-la. É o que nos diz Proust,
   por correr o risco de não ter sequência prática.               referindo-se à função de verdade da arte no tempo
   Podemos conceber a possibilidade de pensar no                  reencontrado.
   dever sem, por isso, renunciar a refletir nas suas
   condições práticas de aplicação. Não podemos exigir         Conclusão.
   dos homens que, como o prisioneiro da alegoria de
                                                               Temos o dever de procurar a verdade, pois nela se joga a
   Platão, ponham tudo em jogo em nome da verdade.
                                                               dignidade humana. Todavia, esse dever deve ser
   Talvez valha a pena recorrer ao conceito de
                                                               adaptado à natureza da verdade que, por muito útil que
   prudência de Aristóteles.
                                                               seja, pode, mesmo assim, revelar-se destruidora se não
✤ Nestas condições, importa refletir em modalidade de          for manuseada com precaução, ou com prudência.
   busca da verdade que tornem esse dever realizável e

                                                          44
• Secção 2 •

                                         Segundo Modelo
Temos o dever de procurar a verdade?                           verdade (conforto da ilusão), e que, se existe o desejo,
                                                               ou até a necessidade, de verdade, este não é um desejo
                                                               como os outros: talvez o homem, enquanto animal
                                                               racional, tenha o dever de procurar a verdade, mesmo
                                                               que ela seja contrária aos seus desejos e aos seus
                                                               interesses imediatos. Este tema coloca, então, o
Problemática :
                                                               problema da nossa relação com a verdade, do seu valor,
A formulação do tema pode surpreender. A verdade é             da nossa liberdade perante ela e também das origens
um valor do conhecimento, que pertence ao domínio da           desse dever. Qual é a origem deste dever? A razão, a
ciência; a noção de dever é um valor da existência, que        sociedade?
pertence ao domínio da moral ou da ética. Portanto, a
                                                               I. Embora tenhamos o dever de dizer a
ideia de um dever de procurar a verdade pode parecer
                                                                  verdade, parece que somos livres de
estranha, na medida em que supõe que se pesquise a
                                                                  procurar ou não a verdade:
verdade na ciência e em outros domínios. Temos desejo
de verdade, experimentamos o dever de a dizer quando
                                                                  A moral impõe-nos que digamos a verdade, que
a conhecemos, mas porque haveremos de ter o dever de
                                                                  sejamos verdadeiros nas nossas declarações (talvez
a procurar? Para compreender esta noção de dever,
                                                                  dentro de certos limites, por muito que esses limites
temos de ter em conta que, contrariamente àquilo em
                                                                  desagradem a Kant e à sua moral rigorosa)
que muitos acreditam, o homem não procura a verdade
espontaneamente, nem procura a verdade só pela
                                                          45
A sociedade, uma vez que se baseia em contratos e          Transição:
na confiança recíproca, exige igualmente que
sejamos verdadeiros (salvo quando a verdade                Se é verdade que aspiramos quase naturalmente à
ameaça a vida em comum: dizer a verdade àquele             verdade quando parece que ela está sempre distante de
que pretende prejudicar alguém, por exemplo, dizer         nós, será que podemos contentar-nos com essa relação
a um assassino onde se encontra uma potencial              “utilitarista” com a verdade?
vítima, ou a um terrorista onde é mais eficaz a
                                                           II. Temos o dever de procurar a verdade.
colocação de uma bomba)

                                                              Na nossa qualidade de seres racionais, mesmo que,
A busca da verdade é um desejo natural do homem,
                                                              no limite, a verdade nos incomode e não nos traga
que o leva a condenar a mentira e a tentar aumentar
                                                              nada de interessante, podemos preferi-la à ilusão
os seus conhecimentos, na medida em que o
                                                              reconfortante ou à mentira vantajosa.
conhecimento lhe permite adquirir poder sobre si
mesmo e sobre o que o envolve.
                                                              Enquanto seres humanos, dotados de consciência
                                                              reflexiva, é nosso dever libertarmo-nos da
Poderíamos pensar que a procura da verdade só tem
                                                              inconsciência e da ignorância para aceder à verdade.
valor pelas suas consequências, como pensou
Epicuro que renunciou a uma pesquisa de
                                                              A verdade vale por si mesma, tal como o
conhecimento em si e por si. Se a verdade não nos
                                                              conhecimento. É uma valor, do mesmo tipo do Bem
permitir viver melhor, ela seria inútil e portanto
                                                              e do Belo. Devemos esforçar-nos por ela. A verdade
melhor seria que não a procurássemos.
                                                              vale por si e por nós.

                                                              Fazer da procura da verdade um dever e não
                                                              somente uma necessidade é obrigarmo-nos a não
                                                      46
nos satisfazermos com os conhecimentos que                  III. Um dever discutível de buscar a verdade.
   tenhamos, mesmo que sejam eficazes. É este sentido
   do valor da verdade que anima o cientista e que faz           Nietzsche vê nesta exigência de verdade,
   com que não se contente com o que descobriu,                  considerada como um valor da existência humana,
   verificou, provou, e que qualifique as suas                   uma posição herdada de Sócrates: “A enunciação da
   explicações ou teses como probabilidades, verdades            verdade a qualquer preço é socrática”, escreve
   provisórias, práticas. A verdade mantém-se no                 Nietzche no Livro do filósofo. Esta exigência de
   horizonte da sua investigação. O mesmo acontece               verdade pode ter efeitos perversos, como a rejeição
   com o filósofo, que busca incessantemente a                   da arte reduzida a uma força de ilusão; Essa ilusão,
   verdade, sem alguma vez pretender tê-la alcançado.            segundo Nietzche, é uma força salvadora que nos
                                                                 liberta da verdade.
   Portanto, conceber a verdade como objeto de um
   dever é concebê-la como uma exigência que impõe               O dever de verdade, concebido como valor absoluto,
   exigências.                                                   traz consigo também a desvalorização de outros
                                                                 valores vitais. Em nome desse dever de verdade,
Transição:                                                       rejeitamos o mundo sensível: “filosofar é aprender a
                                                                 morrer”.
Parece, então, que a busca da verdade nos é imposta
pela nossa humanidade; no entanto, podemos                       O dever de procurar a verdade mascara a sua origem
perguntar-nos se esse dever de procurar a verdade não é          social, utilitarista: “O homem exige a verdade e
discutível.                                                      realiza-a no comércio moral com os homens; é em
                                                                 cima dela que se baseia toda a vida em comum.
                                                                 Antecipamos as consequência malignas das mentiras
                                                                 recíprocas. É aí que nasce o dever de verdade.”, e de

                                                          47
a procurar. Mas, se admitirmos esta origem,
admitimos também que a mentira e a ilusão são
aceitáveis, se forem vantajosas e agradáveis, o que
põe em causa o dever de verdade.

Esta busca da verdade pode afastar-se
perigosamente da vida.




                                                      48
• CAPÍTULO 6 •

             TRABALHO E UTILIDADE




Compreende-se, então, que a diferença entre
trabalho e lazer deve, à luz destas considerações, ser
posta em causa. Se o trabalho também é criação,
então também partilha as características do lazer.
• Secção 1 •

1. O trabalho é uma
   atividade produtora
   orientada para a
   busca de
   finalidades.

2. O trabalho deve ser
   pensado para além
   da esfera da
   utilidade social

3. O trabalho possui
   um valor em si
   mesmo
   independentemente
   do seu valor
   económico.

4. No Mito de
   Prometeu, que Platão
   relata no diálogo
                                                Primeiro Modelo
   “Protágoras”, o        A Utilidade é o Único Valor do    Introdução/Problematização.
   trabalho tem origem
   na fraqueza dos        Trabalho?
   homens.                                                  E geral, é considerado útil um meio que
                                                            permite atingir um fim, que se ajusta a
                                                            uma finalidade. Ser útil é sinónimo de
                                                            ser eficaz, produzir um efeito esperado,


                                                 50
um ganho uma mais-valia: em resumo, ser útil é ser               transformo nada com o fim de obter um valor
operacional. Diz-se de um método, de um instrumento,             económico. Postas as coisas assim, poderemos dizer que
de uma função que são úteis quando cumprem o                     uma vida sem trabalho seria, no fundo, desejável?
objetivo que lhes foi previamente atribuído. O trabalho,         Questionarmo-nos sobre se a utilidade é o único critério
enquanto atividade produtora, cria também utilidade de           de valor que permite justificar o trabalho é o mesmo
duas maneiras possíveis. Por um lado, trabalhar é                que refletir sobre a questão de saber se o trabalho,
transformar uma matéria para fazer uso dela - os bens            enquanto atividade produtora, possui um fim em si
–, ou realizar um serviço. Por outro lado, o trabalhador         mesmo, independentemente de objetivos como a
participa naquilo a que se chama a “divisão social do            rentabilidade, a eficácia ou a produtividade que avaliam
trabalho” que permite a uma sociedade criar, reproduzir          o trabalho pelo seu resultado e não por si mesmo.
as condições de sobrevivência e de desenvolvimento. Ao
colocar a sua pedra no edifício, o trabalhador, para além        Primeira parte: Trabalhar é participar na
de ser útil, sente-se útil.                                      divisão social do trabalho.


Mas esta atividade fundamental deve ser somente                  O trabalho é uma atividade produtora orientada para a
analisada em termos de utilidade? Com efeito, se o               busca de finalidades. Um carpinteiro, trabalhando um
trabalho só fosse útil, isso implicaria que, se as               bocado de madeira, dá-lhe uma forma que permite, em
máquinas ou os robots pudessem fazer tudo em nosso               seguida, atribuir-lhe uma utilização. Torna-se, por
lugar, deixaríamos de ter qualquer motivo para                   exemplo, numa peça de uma mesa. Podemos atribuir-
trabalhar. Ora, não é garantido que o facto de trabalhar         lhe, assim, uma utilidade. E, fazendo o que fez,
não tenha, em si mesmo, valor e interesse para aquele            podemos também dizer que o carpinteiro foi útil,
que trabalha. Quando eu me imponho um trabalho                   porque participou num processo de trabalho coletivo.
quotidiano de prática de um instrumento musical, por             Com efeito, pertence a uma cadeia de intervenientes que
exemplo, não sou, por isso, útil à sociedade e não               começa com o lenhador e acaba com o comerciante que

                                                            51
vende a mesa ao consumidor. Quanto mais                             para o conjunto da sociedade não é considerado um
especializado numa tarefa é o trabalhador, mais ele é               trabalhador. É o caso, por exemplo, do artista.
útil económica e socialmente: cada sociedade baseia-se,
com efeito, numa divisão social do trabalho. Se o                   Segunda parte: O trabalho humaniza.
carpinteiro também tivesse de ser lenhador, a
                                                                    O trabalho não é só uma atividade com finalidade, no
construção da mesa exigiria muito mais tempo e talvez
                                                                    sentido referido até aqui. Ao trabalhar, o homem
não fosse tão perfeita, porque não é fácil que um único
                                                                    produz também um efeito sobre si mesmo, que não é, à
indivíduo domine o conjunto de técnicas necessárias.
                                                                    partida, especificamente procurado. Por exemplo, o
Por outro lado, a distinção entre trabalho e lazer reforça          trabalho leva-nos a desenvolver as nossas faculdades, a
a ideia segundo a qual trabalhar é ser-se útil, isto é, visa        adquirir competências, a disciplinar-nos. O trabalho
responder a necessidades. O tempo da lazer começa                   também nos socializa. Aprendemos a colaborar com os
justamente quando já não se coloca a questão da                     outros, portanto a viver com eles. O trabalho, uma das
utilidade ou do nosso papel social. O tempo de lazer é o            ligações da rede social, tem, então, um papel civilizador
momento em que nos afastamos da vida social comum,                  e humanizante para o homem. É frequente ouvir dizer
em que deixamos de exercer uma função. Podemos                      que o homem se humaniza pelo trabalho. Neste sentido,
gastar o nosso tempo, realizar atividades gratuitas ou              produzindo as suas condições de existência, o homem
desinteressadas, sem finalidade económica reconhecida.              produz-se a si mesmo. Dito de outro modo e utilizando
                                                                    uma imagem, ao cultivar o seu campo, o homem
Consequentemente, um trabalho não produtivo não                     cultiva-se a si mesmo: adquire traços especificamente
pode ser verdadeiramente considerado um trabalho. O                 humanos que lhe permitem distinguir-se da
mesmo se pode dizer do trabalhador não produtivo, que               animalidade. Pour le dire autrement et en utilisant une
não é um verdadeiro trabalhador. Aquele que não é útil              image parlante, en


                                                               52
Terceira parte: O trabalho também é criação.                    ou utilidade social. No entanto, trata-se de uma
                                                                atividade que se aparenta bem com o trabalho.
O trabalho é, portanto, fator de cultura. Neste sentido,
podemos mesmo dizer que, longe de ser uma atividade             Em conclusão:
unicamente governada pela busca da utilidade social e
económica, tanto do trabalhador como dos bens e dos             Este tema convida-nos a tomar consciência de que o
serviços, o trabalho é criador do próprio homem e de            trabalho deve ser pensado para além da esfera da
disposições – faculdades – de que os homens não                 utilidade social e de que ele possui um valor em si
dispõem naturalmente.                                           mesmo independentemente do seu valor económico.
                                                                Mas, para que esta ideia seja de facto consequente, é
Compreende-se, então, que a diferença entre trabalho e          indispensável, paradoxalmente, que os homens tenham
lazer deve, à luz destas considerações, ser posta em            acesso a verdadeiros tempos de lazer.
causa. Se o trabalho também é criação, então também
partilha as características do lazer. Nesta ordem de
ideias, deveremos admitir que mesmo um desenhador
aprendiz, que faz exercícios de aperfeiçoamento no seu
tempo de lazer, está a trabalhar. Na verdade, não
procura uma utilidade a curto ou médio prazo, pois nem
sequer sabe aonde o seu trabalho o conduzirá. Pelo
contrário, o nosso aprendiz de desenhador pode
experimentar prazer na sua atividade de lazer, ao
verificar, apesar da dificuldade, os progressos dos seus
gestos e a forma como a sua mão domina cada vez
melhor o traço. Esta atividade não tem nenhuma função

                                                           53
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Textos e Comentários

  • 1. Filosofia TEXTOS E COMENTÁRIOS JORGE NUNES BARBOSA
  • 3. Este conjunto de textos destina-se prioritariamente, se ❖ Crença e razão; não exclusivamente, aos meus alunos de Filosofia do Ensino Secundário. ❖ Dever e verdade; Não me move qualquer motivação doutrinária, mas tão ❖ Trabalho e utilidade; só a intenção de fornecer aos estudantes alguns modelos ❖ Estado e liberdade (Espinosa); de resposta a perguntas, ou modelos de comentários de textos de autor. ❖ Estado e liberdade; Para cada pergunta ou texto a comentar, foram ❖ Uma Boa Lei (Hobbes). elaborados dois modelos de resposta. Na maior parte das vezes, a distinção entre eles é de natureza estritamente técnica. No entanto, em alguns casos, para além das diferenças estruturais, existem também Tenham bom proveito. algumas diferenças de substância. Nem sempre as interpretações, presentes nos dois modelos, são Julho de 2012 coincidentes. Jorge Nunes Barbosa Os temas abordados dizem respeito: ❖ Juízos de gosto; ❖ Conceito de educação (Rousseau); ❖ Verdade e dúvida; ii
  • 4. • CAPÍTULO 1 • APRECIAR OBRAS DE ARTE Admitindo que nem todos os artistas contemporâneos são charlatães, e que as suas obras são, apesar de tudo, reconhecidas por um público esclarecido, podemos, então, perguntar-nos se, para apreciar uma obra de arte, precisamos de ser cultos.
  • 5. • Secção 1 • 1. Ser-se culto não é uma condição necessária para se ser sensível à beleza ou à arte em geral. Mas a cultura é necessária se quisermos cultivar o nosso gosto. 2. A cultura afina o gosto, tal como o gosto gera a vontade de cultura, ou de nos cultivarmos. 3. Todos os homens, porque são homens, possuem uma cultura. É por isso Primeiro Modelo que todos os homens reúnem as condições É preciso ser-se culto para apreciar arte contemporâneas, somos tentados a para apreciar a arte? uma obra de arte? seguir uma de duas formas de reagir: Perante a nossa desorientação quando ✤ Considerar que o artista nos propõe nos é pedido que avaliemos as obras de qualquer coisa, sem critério visível; 4
  • 6. ✤ Considerar, com muita modéstia, que somos I. A instrução e o conhecimento são necessários incompetentes e que não temos cultura bastante para apreciar uma obra de arte. para apreciar essas obras. 1. A cultura é indispensável para saborear, no seu Admitindo, no entanto, que nem todos os artistas justo valor, uma obra de arte, porque é a cultura contemporâneos são charlatães, e que as suas obras são, que nos permite situarmo-nos a nós próprios e apesar de tudo, reconhecidas por um público situar o artista numa época e num espaço esclarecido, podemos, então, perguntar-nos se, para particulares. apreciar uma obra de arte, precisamos de ser cultos. O problema está em saber o que é que se entende por “ser 2. A cultura fornece-nos as chaves para a culto”, sabendo-se, como se sabe, que a cultura não se compreensão de uma obra de arte: permite reduz à erudição e que o apreço não é talvez um simples julgar, no sentido de avaliar uma obra, juízo de gosto subordinado a normas, mas também uma respeitando os critérios de gosto de uma época forma de obtenção de prazer, de gozo, que nos deve ser determinada. Se nos ficarmos, no entanto, por dado por uma obra artística. Qual é, então, o papel da estas reflexões, teríamos de assumir que avaliar cultura, isto é, de todos esses hábitos e aptidões uma obra de arte corresponderia ao uso de aprendidas que pertencem à nossa educação e critérios, de normas. A obra de arte inscrever- participam nos nossos juízos? Deveremos questionar- se-ia numa história particular nos sobre se nos basta ter bom gosto, ou se nos é 3. O que aprendemos, pelo esforço de nos necessário ser cultos para apreciar uma obra de arte. cultivarmos, são regras, mas não é garantido Finalmente, interrogar-nos-emos sobre a própria que a obra de arte se reduza a uma linguagem e existência da obra de arte, independentemente dos que as regras (ou a gramática dessa linguagem) juízos de apreço que possamos formular a seu respeito. que percebemos sejam aquelas que o artista 5
  • 7. desejaria transmitir. Neste aspeto, a arte escapa dos juízos de conhecimento. Os primeiros são às categorias que se transmitem pelo ensino, e determinantes, isto é, partem do universal para depende da liberdade de pensar e de se ser se aplicar ao caso particular, os segundo são artista. determinados. Com efeito, o gosto é a relação de um sujeito com uma obra de arte particular, que II. A obra de arte não é hermética, tem a ver permite tomar a decisão de dizer, com toda a com o prazer. sua subjetividade, “isto é belo”. 4. É a relação que o espectador mantém com a 6. A obra de arte, por seu turno, tem a ver com o obra de arte que é decisiva na sua apreciação, e livre jogo da imaginação e do entendimento. Na não um aparelho técnico, um léxico por ausência de um conceito que possa limitar a exemplo, ou dados históricos. Essa relação entre liberdade desse jogo, diz-nos Kant, tudo se observador e obra de arte é necessariamente passa como se não pudéssemos impedir-nos a subjetiva: trata-se da relação entre uma nós mesmos de julgar e dizer “isto é belo”. Só sensibilidade e uma matéria. Vale pouco a pena que este processo não se explica pela cultura; na saber tudo sobre um artista, ou sobre o verdade só se desencadeia quando, perante uma movimento no qual se inscreve a sua criação; obra de arte, experimentamos prazer que isso não basta para a apreciar. tendemos, implicitamente, a partilhar com os outros: existe um juízo de gosto universal que é, 5. Se a cultura nos ajuda a compreender a arte, de alguma forma, esta pretensão em partilhar o tratando-se de a apreciar, a situação é diferente, nosso próprio gosto com os outros. pois a apreciação tem a ver com o gosto, com o prazer e não com a reflexão. Temos de distinguir, à maneira de Kant, os juízos de gosto 6
  • 8. III. Uma obra de arte basta-se a si mesma. 9. Qualquer que seja a obra de arte, ela pertence a uma cultura sem hierarquia, sem critério de 7. Esquecemo-nos muitas vezes, sobretudo reconhecimento. O que se aprende e pertence a perante a arte abstrata, que a obra de arte é uma uma cultura determinada, é uma maneira de matéria que não se refere a outra coisa senão a ver, de ouvir, de sentir, em resumo, de si mesma. Neste sentido, o artista não participar na obra de arte. Mas isto acontece comunica, não envia uma mensagem por espontaneamente, pois todas as crianças são intermédio da sua obra. A criação é muito mais candidatas à cultura do seu país e do seu tempo, do que isso e, como afirmava Kant, nenhum tal como todas as obras de arte são candidatas a Homero, nenhum poeta seria capaz de relatar apreciação. aquilo que a obra de arte veicula. A obra de arte não remete nem para regras, nem para conceitos. Conclusão: Uma obra de arte pode ser apreciada, sem 8. A cultura pode ajudar a compreender, a situar ser explicada, compreendida e encerrada em regras ou uma obra de arte no seu contexto, mas não normas culturais. Neste sentido, pode dizer-se que a permite apreciá-la no seu justo valor. Com obra de arte é independente do facto de se ser culto ou efeito, a obar de arte não é um signo que se não. Entendamos por “ser culto” pertencer a uma referiria a um significado, a um sentido. Ela está cultura particular, ter recebido uma educação para além da própria cultura, na medida em que determinada, qualquer que seja a sua forma. O que os se constitui numa manifestação da liberdade etnólogos nos ensinaram foi que cultura não significa humana e da sua infinita capacidade tanto para necessariamente uma caminhada no sentido do criar como para apreciar as obras de arte. progresso, e muito menos é a soma de conhecimentos de uma elite reservada a alguns povos. Todos os 7
  • 9. homens, porque são homens, possuem uma cultura. É por isso que todos os homens reúnem as condições para apreciar a arte? Sem dúvida, na condição de todos compreenderem que a obra de arte não obedece a nenhuma norma, mas é o fruto do seu criador e da apreciação do observador. 8
  • 10. • Seção 2 • Segundo Modelo Problematização/Introdução. No entanto, a arte é uma manifestação cultural do homem. As formas artísticas, os temas, as técnicas utilizadas dependem de contextos históricos e culturais particulares. O artista pertence sempre a uma época, e A obra de arte é uma criação livre do espírito humano, parece, pelo menos, difícil considerar uma obra de arte que ao contrário da produção artesanal, não depende de separando-a das significações culturais que possuem um fim ou finalidade particular. Pode obedecer a certas necessariamente, mesmo se o artista quis desligar-se da regras de realização ou de composição, mas pode sua época e propor uma nova forma artística. Sendo também desligar-se delas, deixando o artista livre de assim, podemos realmente separar conhecimento de inventar as suas próprias regras ou até de não ter arte e gosto artístico? nenhumas. Esta ideia implica que aquele que recebe a obra de arte seja também livre de apreciar o seu valor de acordo com o seu gosto pessoal. Por outro lado, deve notar-se que podemos gostar de uma obra de arte sem, Primeira parte: O juízo estético não requer antes, conhecer o tema ou o assunto que a inspirou. conhecimentos particulares. Pelo contrário, um especialista de história de arte pode conhecer muito bem em detalhe a obra de um artista, À partida, para apreciar uma obra de arte não é sem a achar bela. requerido nenhum conhecimento particular. Porquê? Porque se gosto de uma obra de arte e a acho bela, não é devido a qualidades objetivas que ela possua. Por 9
  • 11. exemplo, posso achar belo o retrato de uma mulher porque não o conhecemos? Para apreciar uma obra de disforme, objetivamente pouco graciosa, ou então uma arte não será preciso saber o que ela significa e, natureza morta representando o cadáver de um animal, portanto, possuir uma forma de cultura artística? A que, em condições reais seria para mim pouco obra de arte, com efeito, possui um conjunto de agradável. significados como as intenções do autor, os temas escolhidos ou os meios de composição, que não se Do mesmo modo, posso apreciar um trecho de música manifestam, talvez, de forma imediata ao olhar ou à sem compreender o significado das palavras. Parece, audição, mas que a constituem de facto. nesta ordem de ideias, que a apreciação estética é desligada do conhecimento de eventuais significados Poderíamos objetar que certas obras de arte não culturais de uma obra (o seu tema, o seu lugar na respeitam nenhuma regra definida ou que há artistas história da arte, o seu autor, etc.). que inventam o seu próprio género, que criam um estilo a partir de nada. Neste sentido, isso reforçaria a tese Segunda parte: A arte é uma atividade significante precedente, segundo a qual a arte é independente de um (com significado). saber cultural e, nesta ordem de ideias, se o artista se consegue libertar da tradição cultural, o observador Todavia, temos muitas vezes a experiência de que o pode fazer o mesmo. No entanto, parece haver aqui nosso gosto estético não nasce sem um mínimo de alguma precipitação, na medida em que, mesmo que o conhecimentos. Por exemplo, podemos realmente artista se desligue da tradição para inventar novas adquirir o gosto pela ópera ou pelo teatro, sem dominar formas artísticas, não deixa de pertencer a uma época e os códigos e as regras destes géneros artísticos? Por a uma cultura particulares. Como podemos apreciar, no vezes, dizemos não gostar de um género artístico, seu justo valor, o movimento surrealista, sem conhecer quando, na realidade, o que queremos dizer é que ele o contexto cultural, histórico e até político em que não nos interessa. Mas, se for esse o caso, não será surgiu? Quando um movimento artístico se apresenta 10
  • 12. como revolucionário, isso não significa que essa revolução se produz exclusivamente no seio da história da arte. A revolução artística tem também causas sociais que não podem ser isoladas do contexto em que surgem as obras de arte. Terceira parte: Ser-se culto reforça a apreciação estética Assim, mesmo que nada nos impeça de experimentar prazer numa obra de arte de que não se conhece o contexto de criação, ou a biografia do autor, poder-se-á dizer que ser-se culto reforça o gosto artístico. Com efeito, esse gosto, sendo uma tarefa individual antes de ser uma questão de conhecimento, pode e deve ser cultivado. Neste sentido, a cultura afina o gosto, tal como o gosto gera a vontade de cultura, ou de nos cultivarmos. Conclusão: Ser-se culto não é uma condição necessária para se ser sensível à beleza ou à arte em geral. Mas a cultura é necessária se quisermos cultivar o nosso gosto. 11
  • 13. • CAPÍTULO 2 • TEORIA DA EDUCAÇÃO - ROUSSEAU “Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições se contrariam, é mal educado, e nunca estará em conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive consequentemente.”
  • 14. • Secção 1 • 1.Esta teoria da educação (muito ao contrário do que defendem, sobretudo, alguns políticos muito apressados em tirar as conclusões que lhes convêm) está em perfeita conformidade com o ideal do século das Luzes, mesmo concedendo Rousseau um lugar privilegiado ao sentimento (linhas 1 a 6) e às lições da experiência. 2. O desafio colocado por Rousseau é crucial, pois a questão da educação Primeiro Modelo é a questão da Explicação de Texto - Rousseau, educação. Mesmo que o homem nascesse realização do homem, do processo Émile grande e forte, o seu tamanho e a sua necessário (e força ser-lhe-iam inúteis antes de desejável) de transformação da aprender a servir-se deles; ser-lhe-iam criança num prejudiciais por impedir os outros de lhe indivíduo O texto: “Cuidamos das plantas através prestar assistência; e, abandonado a si autónomo. da cultura, e os homens através da 13
  • 15. mesmo, morreria de miséria, mesmo antes de ter consequentemente. Só deste se pode dizer que é bem conhecido as suas necessidades. Lamentamo-nos da educado”. infância; não vemos que a raça humana teria perigado, se o homem não começasse por ser criança. Nascemos fracos, temos necessidade de força; nascemos Tese: Neste texto, Rousseau estabelece um paralelo desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; entre a cultura das plantas e a educação dos homens. O nascemos estúpidos, temos necessidade de juízo. Tudo o seu objetivo, para além de sublinhar a necessidade da que não temos na altura do nascimento, e de que educação e a feliz condição do homem apesar da sua precisamos quando somos adultos, é-nos dado pela fraqueza natural, é o de definir o que é uma boa educação. Esta educação vem-nos da natureza, dos educação. Este texto não é, como veremos, incompatível homens e das coisas. O desenvolvimento interno das com a crítica que faz Rousseau da cultura como nossa faculdades e dos nossos órgãos corresponde à desnaturação no Second Discours e no Discours sur les educação da natureza; o uso que aprendemos a fazer sciences et les arts. A tese dos três mestres (coisas, deste desenvolvimento vem da educação dos homens; e natureza e homem) permite repensar a educação e o que adquirimos através da nossa experiência com os descobrir o fundamento das teorias mais modernas da objetos que nos afetam correponde à educação pelas educação. Trata-se de um texto com atualidade, na coisas. Cada um de nós é, assim, formado por três tipos medida em que lembra que a educação não deve de mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições reduzir-se ao treino. se contrariam, é mal educado, e nunca estará em conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem Elementos de explicação: todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, encontra sozinho o seu caminho e vive ★ Linhas 1 a 6: Após um paralelo entre as plantas e os homens (associando a cultura a um 14
  • 16. acompanhamento do movimento da natureza, ao como do espírito (“nascemos estúpidos”). Na facto de cuidar dela), Rousseau sublinha que a verdade, tudo é compensado pela educação. fraqueza natural do homem (ser inacabado, teoria da Poderíamos pensar que Rousseau sugere que nós só neotenia, ser de Prometeu) é na realidade um dom somos cultura e que tudo nos é dado pelos outros (o feliz da natureza. É o que quer dizer quando imagina que colocaria questões inultrapassáveis à sua crítica um recém-nascido grande e forte, mas incapaz de contra a cultura desnaturante; com efeito, se nada usar as suas forças. Se o recém-nascido, a criança, existe de natural, como poderíamos falar de não tivesse essa aparência fraca, não cuidaríamos desnaturação?) dela, nem se pensaria na hipótese de lhe prestar assistência. Talvez Rousseau queira sugerir que é a ★ Mas nas linhas 11 a 15, vai sublinhar que a vulnerabilidade da criança que nos leva a cuidar educação não se reduz àquela que é recebida dos dela. A fraqueza, a fragilidade da criança sublinha o homens; há também a educação através da natureza seu inacabamento, a sua imaturidade e faz apelo à e através das coisas. Mesmo sendo verdade que maturação pela cultura, pela educação. Conclui, nascemos inacabados, a natureza encarrega-se de, assim, que não nos devemos queixar dessa através do “desenvolvimento interno das nossas fragilidade da infância (aliás, uma demasiada faculdades e órgãos”, de nos assegurar o robustez seria o sinal de um acabamento, que cumprimento de objetivos naturais; é portanto esconderia a plasticidade que é o ponto chave da possível um movimento natural e um movimento possibilidade de aperfeiçoamento que caracteriza o contra natura. E, tal como a cultura para a planta, a homem por oposição à rigidez do instinto no educação é já pré-orientada por este movimento animal). natural, inato. O adquirido não se opõe, então, ao inato, não vem preencher um vazio, vem prolongá- ★ Linhas 7 a 10: Rousseau limita-se a sublinhar que lo, ajudar a fazer uso do que em nós é inato. À essa fraqueza exige cuidados tanto ao nível do corpo educação recebida dos outros acrescenta-se a 15
  • 17. experiência pessoal das coisas. O mundo físico, o mundo dos outros e a nossa própria natureza (são estes os nossos mestres) são as três fontes de educação que impede qualquer tentativa de reduzir a educação a um treino, deixando espaço para a autoformação e colocando limites à estruturação de si pelos outros. Estes últimos esclarecimento permitem a Rousseau distinguir a boa da má educação: a boa educação seria aquela que concilia os três mestres, que permite salientar no ser educado aquilo para que tenderia naturalmente. A educação não é, portanto, um treino, uma formatação, ela só é aquilo que permite ao indivíduo tornar-se por si mesmo aquilo que ele é. Esta teoria da educação (muito ao contrário do que defendem, sobretudo, alguns políticos muito apressados em tirar as conclusões que lhes convêm) está em perfeita conformidade com o ideal do século das Luzes, mesmo concedendo Rousseau um lugar privilegiado ao sentimento (linhas 1 a 6) e às lições da experiência. 16
  • 18. • Secção 2 • Segundo Modelo Explicação de Texto. Rousseau natureza; o uso que aprendemos a fazer deste desenvolvimento vem da educação dos homens; e o que O texto: “Cuidamos das plantas através da adquirimos através da nossa experiência com os objetos cultura, e os homens através da educação. Mesmo que o que nos afetam correponde à educação pelas coisas. homem nascesse grande e forte, o seu tamanho e a sua Cada um de nós é, assim, formado por três tipos de força ser-lhe-iam inúteis antes de aprender a servir-se mestres. O discípulo, em que as suas diversas lições se deles; ser-lhe-iam prejudiciais por impedir os outros de contrariam, é mal educado, e nunca estará em lhe prestar assistência; e, abandonado a si mesmo, conformidade consigo mesmo; aquele no qual elas caem morreria de miséria, mesmo antes de ter conhecido as todas nos mesmos pontos e tendem para os mesmos suas necessidades. Lamentamo-nos da infância; não fins, encontra sozinho o seu caminho e vive vemos que a raça humana teria perigado, se o homem consequentemente. Só deste se pode dizer que é bem não começasse por ser criança. Nascemos fracos, temos educado”. necessidade de força; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos estúpidos, temos necessidade de juízo. Tudo o que não temos na altura do nascimento, e de que precisamos quando Elementos de problematização e de Introdução. somos adultos, é-nos dado pela educação. Esta “O Emílio” constitui um tratado consagrado por educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou das Rousseau à questão da educação. Para Rousseau, neste coisas. O desenvolvimento interno das nossa faculdades excerto, trata-se de nos interrogarmos sobre a e dos nossos órgãos corresponde à educação da 17
  • 19. articulação entre a natureza e a cultura e a passagem de sentido. Num segundo tempo (que corresponde às uma para a outra. A educação é, com efeito, o processo últimas linhas), Rousseau deduz dessa primeira que permite ao homem sair do seu estado natural para abordagem a natureza da educação, que não é um que se realize e atinja o seu estado final. Ora, este simples processo artificial, mas que tem origem em três processo tem os seus perigos. Se a educação nos faz sair “mestres”. da natureza para acedermos à cultura, como garantir que não se trata de um processo de desnaturação? ❖ Num primeiro tempo, então, Rousseau explica por Rousseau aborda, então, a noção de educação para que razão a educação é necessária. O paralelo com a estudar as suas modalidades, o seu sentido, a sua cultura, a transformação de uma semente função. Mas porque é que o homem precisa de insignificante numa planta vistosa, indica que a educação? Esta pergunta parece ter uma resposta óbvia. educação tem uma função que poderíamos comparar Trata-se, no entanto, de uma questão essencial que com o amanho das terras. A noção de “amanho” ou desempenha um papel fundamental na atribuição de de cultivo remete para a noção de produção. É a sentido à educação, concebida não como uma educação que produz o homem. desnaturação, mas como uma forma de prolongar e ❖ Esta primeira abordagem é justificada pelo facto de perfazer ou aperfeiçoar a natureza do homem. o homem nascer fraco e desprovido (como já dizia Estes elementos são apresentados em dois momentos, Platão no Protágoras) o que, no final de contas, é em dois tempos, digamos assim. Primeiro, Rousseau uma coisa boa: é esta fraqueza que faz com que os esclarece a necessidade da educação. Poder-se-ia outros homens se interessem pela criança e cuidem lamentar que a natureza não tenha criado o homem dela. Não fosse assim, o homem morreria antes de completo desde o nascimento, mas a fraqueza da tomar consciência das suas necessidades, nas suas infância preenche uma função que Rousseau esclarece palavras “antes de ter conhecido as suas na primeira parte do texto, dando à educação todo o seu necessidades”, expressão esta um pouco enigmática, 18
  • 20. que significa simplesmente que sem a ajuda dos seus educação da natureza educa-nos muito semelhantes, o homem não acederia ao simplesmente fazendo-nos crescer e transformando- conhecimento de si mesmo, muito menos a ser capaz nos espontaneamente em homens de assegurar a sua sobrevivência. No seu Second (“desenvolvimento interno”). Mas isto não basta, discours, Rousseau completa esta ideia descrevendo pois ainda nos falta saber e poder conhecer o ser em este sentimento que leva os homens a preocupar-se que nos tornamos para saber como fazer uso dele. A com os seus semelhantes sempre que estes parecem educação dos homens, inculcando-nos saberes e mais fracos (na velhice, na infância, na doença...). princípios, ensina-nos a fazer bom uso das liberdades e das faculdades com que a natureza nos ❖ A fraqueza do homem recém-nascido é portanto vai progressivamente completando. Por fim, a “lição uma feliz providência da natureza (não temos de nos das coisas” corresponde à aprendizagem pela lamentar por o homem nascer inacabado), e é ela experiência, pela prática. que explica a necessidade da educação, definindo, por essa via, o seu sentido. A educação é o processo ❖ A parte final do texto atribui a estes três mestre as que deve permitir dotar o homem de tudo aquilo de suas respetivas funções. Nenhuma é mais que originalmente ele é desprovido. Ela organiza a importante do que as outras e esta ideia de igual passagem da infância para a idade adulta, dotando o importância dos três mestres parece ser a ideia indivíduo de tudo o que lhe falta, para fazer dele, central que Rousseau quer transmitir no “Emílio”. A retomando a fórmula do Contrato Social, “um ser educação só tem sucesso e a criança só é bem inteligente, e um homem”. educada se a educação respeitar a natureza da criança e a natureza em geral. Por isso, é ❖ Esta educação é proteiforme (polimorfa) e não se absolutamente indispensável garantir a harmonia reduz à educação académica. Rousseau identifica entre os três mestres, que devem prosseguir os três mestres: a natureza, os homens e as coisas. A mesmos objetivos tendo em vista assegurar a 19
  • 21. coerência do indivíduo consigo mesmo. A noção de harmonia é fundamental, pois trata-se, antes de mais, de não desnaturar o homem, mas de preservar aquilo que ele é naturalmente. Temos, então, de prestar atenção àquilo que a natureza e as coisas – e não só os homens – têm para nos ensinar. Conclusão: Este excerto do início do livro “O Emílio” permite compreender o interesse que Rousseau concede à educação. O desafio colocado por Rousseau é crucial, pois a questão da educação é a questão da realização do homem, do processo necessário (e desejável) de transformação da criança num indivíduo autónomo. 20
  • 22. • CAPÍTULO 3 • BUSCA DA VERDADE E DÚVIDA A busca da verdade exige que tenhamos algumas certezas, por exemplo, a respeito dos passos que nos permitem alcançar o conhecimento.
  • 23. • Secção 1 • 1. A busca da verdade exige que tenhamos algumas certezas, por exemplo, a respeito dos passos que nos permitem alcançar o conhecimento. 2. Acontece que a dúvida em filosofia não é uma incerteza que, de forma negativa, nos distancia do verdadeiro. 3. A dúvida é o meio seguro para filosofar, isto é, para Primeiro Modelo pôr à prova as nossas crenças, as nossas A busca da verdade pode dispensar conseguimos elaborar um juízo ilusões e falsos a dúvida? definitivo, isto é, dizer “isto é verdadeiro” saberes que ensombram o nosso ou “isto é falso”. Estar em dúvida espírito. Problematização/Introdução. significa, ou suspender totalmente o juízo, ou afirmar algo, tendo consciência Sentimos dúvidas quando não estamos de que nos podemos estar a enganar. seguros de nada, quando não 22
  • 24. Neste caso, o juízo é provisório. Estar na verdade, pelo corro o risco de não tomar consciência da minha contrário, exclui a dúvida. Mas, como indica a pergunta, ignorância. A dúvida permite tomar consciência da buscar a verdade não é ainda estar na posse dela. Muito ignorância. Duvidando, sei, pelo menos, que não sei. Ou frequentemente, para obter a verdade, é preciso que aquilo em que acredito não é seguro ou não está começar por pôr em dúvida aquilo em que se acredita, provado; portanto, pode ser falso. Nesta ordem de pois os nossos preconceitos, as nossas opiniões, as ideias, a dúvida oferece-me uma primeira verdade, é nossas ideias recebidas encerram no seu interior juízos certo que pobre em conhecimento, mas mesmo assim sem fundamento ou juízos falsos. Por outras palavras, a fundamental para me pôr a caminho em busca da dúvida seria o motor da busca da verdade: é por duvidar verdade. Revela-me que aquilo em que acredito é um que estamos em busca da verdade. preconceito, isto é, uma opinião que se impôs a mim, sem que eu próprio a tenha fundamentado, ou sequer No entanto, a busca da verdade exige que tenhamos analisado. algumas certezas, por exemplo, a respeito dos passos que nos permitem alcançar o conhecimento. Com efeito, Segunda parte: A busca da verdade exige a para progredir na pesquisa da verdade temos posse de certezas. necessidade de nos apoiar em certezas. Não podemos, portanto, duvidar sempre, ou duvidar de tudo, se Podemos admitir que a dúvida é inseparável da busca quisermos progredir na via da ciência e do saber. da verdade, mas a busca da verdade deve também ser capaz de dispensar a dúvida. Com efeito, se estou a Primeira parte: Duvidar é a primeira etapa do fazer, por exemplo, uma demonstração matemática, não conhecimento. posso deixar de fundamentar a minha argumentação em princípios que aceito sem os demonstrar e sem duvidar Aquele que não duvida corre o risco de não progredir no da sua verdade. Neste sentido, a busca da verdade pode conhecimento e na verdade. Com efeito, se não duvidar, dispensar a dúvida, pelo menos, em certos etapas da 23
  • 25. demonstração. Se, no momento em que utilizo o teoria é verdadeira até ao momento em que se teorema de Pitágoras para determinar a superfície de demonstre que ela é falsa. Isto implica que um triângulo, fosse necessário voltar atrás para me mantenhamos a ideia de que ela possa ser falsa, mesmo assegurar da verdade desse teorema, não seria capaz de que nenhum facto, nenhuma prova tenha, até ao avançar na resolução do meu problema, até porque momento, estabelecido a possibilidade da sua falsidade. antes de encontrar os fundamentos do teorema teria Considerar que a verdade é, de alguma forma, ainda de demonstrar os fundamentos desses provisória ainda é o melhor meio para fazer avançar a fundamentos e assim por diante. A busca da verdade busca dela. A dúvida desempenha, portanto, a função de corresponderia a uma regressão sem fim, e recuaria em motor da descoberta. vez de avançar. É, então claro: saber duvidar é também saber quando não ou já não duvidar, para progredir no Conclusão. caminho da verdade A busca da verdade não pode, de facto, dispensar a Terceira parte: A certeza nunca é absoluta; dúvida. Ela é o motor desta busca num duplo sentido: é temos sempre de encarar a hipótese de nos a dúvida que desencadeia essa busca, e é também ela estarmos a enganar. que alimenta o movimento de pesquisa. E isto é assim, mesmo que, por vezes, a busca da verdade deva Até agora, o que foi já exposto não permite afirmar que dispensar a dúvida para que possa progredir. existem verdades absolutas que escapem a todos os tipos de dúvida. Com efeito, uma teoria da Física só é verdadeira, por exemplo enquanto não existir uma prova (um acontecimento natural ou uma experiência de laboratório) que contradiga as predições que podem ser estabelecidas a partir dela. Por outras palavras, uma 24
  • 26. • Secção 2 • Segundo Modelo A busca da verdade pode dispensar a dúvida? com forma de objetos ou realidades sensíveis. Estes homens são prisioneiros das aparências, pois não põem em dúvida aquilo que veem. A dúvida relativamente ao conhecimento é, então, definida como o contrário do Ávido de certezas, o senso comum não confia na dúvida. conformismo, da adesão, sem provas, a uma ideia, a Com efeito, é vulgar haver quem critique o juiz por não dúvida é o recuo necessário da reflexão contra a crença. ter a certeza dos atos de um criminoso, ou o médico que Será que, mesmo assim, ela desempenha um papel na afirma não ter a certeza do diagnóstico e do tratamento busca da verdade? Mais do que isso, será ela é tão de uma doença. No entanto, a dúvida não significa uma necessária que podemos afirmar que a busca do renúncia à verdade, se for utilizada como um meio de a verdadeiro não pode dispensá-la? A busca da verdade, procurar. Duvidar é não receber no nosso espírito o que os antigos chamavam-lhe filosofia, implica que nos vem do exterior sem o ter submetido a um exame compreendamos paradoxalmente que esta exigência da crítico. As nossas sensações, as nossas perceções dúvida é sempre um meio, uma maneira particular de parecem estar ao abrigo da dúvida, por exemplo, pesquisar a verdade, sem estar seguro de a encontrar. quando admitimos saber alguma coisa por ouvir dizer, Se não pode dispensar a dúvida, então a filosofia nunca ou quando vemos aquilo que consideramos uma está acabada. evidência. Assim, os prisioneiros da caverna no célebre texto da República de Platão não duvidam das imagens que percecionam no fundo da caverna, mesmo que saibamos que elas não passam de sombras, de imagens 25
  • 27. I. A busca da verdade é a busca do saber, não de lógico Tarski que diz que a proposição “a neve é certezas. branca” é verdadeira, se e somente se a neve for branca! Neste caso, a dúvida pode ser o meio de ✤ Platão afirmava que a origem da filosofia é o interrogar a realidade e fazê-la corresponder a um espanto, isto é, a atitude que consiste em interrogar- discurso verdadeiro se, em não se satisfazer com respostas indiscutíveis e com opiniões. A filosofia não possui a verdade, II. A dúvida como método de pesquisa da procura por ela. verdade. ✤ O reconhecimento da sua própria ignorância é a ✤ Foi Descartes quem utilizou a dúvida no Discurso do condição para a pesquisa da verdade. Como pensava método explicitamente para alcançar a verdade. Sócrates que pretendia não saber nada, mas Descartes começa por pôr em dúvida os dados dos procurar o saber, a busca da verdade é uma pesquisa nossos sentidos, sob o pretexto de que eles são e não uma posse. É preciso, portanto, num primeiro enganadores e nos conduzem a ilusões. Claro, não tempo, pôr em dúvida as nossas certezas e basta duvidar para fazer cessar as nossas ilusões, preconceitos. mas a dúvida permite detetar certezas que podem enganar-nos, como é o caso das ilusões óticas. ✤ A dúvida é um momento essencial da busca da verdade, pois permite interrogar a realidade sem a ✤ O segundo momento da dúvida no Discurso do confundir com o que vemos nela. A verdade não é a método é o questionamento dos erros de raciocínio. realidade; a verdade é definida como a adequação de Desta vez, o argumento para pôr em dúvida os uma representação com o que ela representa. O nossos erros é a possibilidade de todos nós, e até os verdadeiro, neste sentido, é um enunciado que melhores matemáticos, fazermos erros de cálculo, corresponde à realidade. Tomemos o exemplo do por desatenção ou precipitação. Neste caso, a dúvida 26
  • 28. é aplicada também às ciências, apesar de parecerem céticos que duvidam por duvidar de maneira ao abrigo de incertezas e serem um meio seguro de confortável, a dúvida cartesiana seria insustentável, pesquisar o verdadeiro. a partir do momento em que já não sabemos distinguir o real do imaginário. ✤ Finalmente, Descartes utiliza a dúvida para pôr à prova da verdade a própria realidade. Utiliza o ✤ Para os céticos, a dúvida torna-se uma espécie de argumento do sonho para mostrar que não filosofia de vida que consiste na suspensão do juízo e possuímos nenhum critério fiável para distinguir a a só colocar uma questão sem esperar resposta: “O realidade do imaginário. Para aceder ao real, somos que é que eu sei?”. No termos da dúvida, isto é, obrigados a fiar-nos nos nossos sentidos, sem tendo-a levado ao extremo de duvidar da nossa sabermos se estamos a dormir ou se estamos própria realidade e do que nos envolve, Descartes acordados. alcança a verdade: “penso, logo existo”. Este é o primeiro princípio, o fundamento que lhe permitirá III.A busca da verdade necessita da dúvida, com certeza construir a árvore do saber: a dúvida desde que seja capaz de sair dela, isto é, de a cética já não terá qualquer razão de ser. utilizar como um meio. ✤ Para os céticos, a dúvida consiste em suspender o juízo, isto é, em não negar nem afirmar nada: “a Conclusão: dúvida é um agradável travesseiro para uma cabeça bem feita”, dizia Montaigne. Embora a dúvida seja A busca da verdade define o trajeto do filósofo em busca necessária para nos desembaraçarmos dos do saber. Ora, a questão era saber da possibilidade de preconceitos, das opiniões, das crenças, ela não é o dispensar a dúvida na busca da verdade. Acontece que a objetivo da filosofia. Tal como acontece com os dúvida em filosofia não é uma incerteza que, de forma 27
  • 29. negativa, nos distancia do verdadeiro. A dúvida é um método, uma exigência de fazer corresponder o discurso à realidade sem precipitações, mas com o recuo necessário da reflexão. É neste sentido que a dúvida nos permite pesquisar o verdadeiro e que essa busca não pode evitar a dúvida. A dúvida é o meio seguro para filosofar, isto é, para pôr à prova as nossas crenças, as nossas ilusões e falsos saberes que ensombram o nosso espírito. 28
  • 30. • CAPÍTULO 4 • CRENÇA E RAZÃO A distinção platónica entre opinião (doxa) e opinião adequada (ortodoxa) permite pensar, pelo menos, em crenças não são contrárias à razão por serem razoáveis, diríamos nós.
  • 31. • Secção 1 • 1. Podemos, então, pensar que precisamos de crenças para viver e que as crenças são uma espécie de reação defensiva da natureza contra a razão. É o “resgate da inteligência” que temos de pagar por a termos aprisionado. Digite para introduzir texto 2. A razão é limitada: não pode demonstrar tudo cientificamente, mas pode apreender o momento em que a crença pode intervir Primeiro Modelo no exercício do espírito. Ela pode A Crença é contrária à Razão? e a razão não se reduz ao racional, uma fornecer uma vez que o excesso de razão pode não ser gramática de Problemática: razoável (talvez convenha distinguir os consentimento, de conformidade. dois sentidos de razão: racional e Enquanto, por um lado, a crença é razoável), por outro lado, o irracional espontaneamente associada ao que não não se reduz ao que é contrário à razão; tem fundamento na razão, ao irracional, 30
  • 32. pode ser também o que está para lá da razão, o que é mas também pela análise freudiana e marxista da estranho à razão (“o coração tem as suas razões que a ilusão religiosa. razão não conhece de todo”, segundo Pascal). A pergunta formulada convida portanto a interrogarmo- ✤ Foi através da rutura com as explicações religiosas nos sobre os fundamentos da crença, sobre o que é ou míticas, em resumo, com as abordagens baseadas contrário ou não à razão e sobre a distinção entre na fé, na crença religiosa, que o pensamento razoável e racional. científico ou filosófico nasceu. Esquema ✤ A preocupação com a verdade, exigência da razão, opõe-se à adesão à crença; a razão convida ao I. Se o uso da razão exige a rejeição da crença, distanciamento crítico, à dúvida. então a crença parece contrária à razão. Transição: ✤ As pesquisas, que pretendemos que sejam objetivas e rigorosas, exigem que façamos uma crítica das A crença parece, então contrária à razão, tanto nos seus opiniões recebidas, dos preconceitos, das crenças fundamentos quanto na adesão que ela implica; mas comuns que constituem os primeiros “obstáculos será que podemos dizer, a partir daqui, que todas as epistemológicos” (Bachelard), por se crenças são irracionais? fundamentarem exclusivamente no “ouvir dizer”, II. Certas crenças não são contrárias à razão. nos desejos, na experiência espontânea, na força da adesão comum, e portanto por não se ✤ A distinção platónica entre opinião (doxa) e opinião fundamentarem na razão. É esta a perspetiva que adequada (ortodoxa) permite pensar, pelo menos, nos é transmitida pela alegoria da caverna de Platão, em crenças não são contrárias à razão por serem razoáveis, diríamos nós. 31
  • 33. ✤ Por outro lado, a crença religiosa pode apoiar-se Transição: numa teologia racional, por exemplo, através das provas da existência de Deus, ainda que nelas Assim sendo, a crença não é necessariamente contrária possamos ver algumas contradições lógicas. à razão; se há crenças que não se opõem à razão, em que condições crença e razão podem coexistir? ✤ O pensamento racional parece também apoiar-se em certas crenças, postulados admitidos sem serem III.Uma coexistência possível, embora não demonstrados ou provados racionalmente. “Não há pacífica. ciências sem pressuposições”, diz Nietzche. A ✤ O que o uso da razão rejeita liminarmente e em ciência, apesar da sua racionalidade, não desemboca absoluto não é a crença propriamente dita, mas as em verdades absolutas, mas tão só em verdades suas derivas que são o fanatismo (ideológico, provisórias, que não são mais do que crenças religioso, sectário) cego, e a superstição que alimenta racionais. o medo e impede, ao mesmo tempo, o progresso do ✤ Então, a crença não é necessariamente contra a conhecimento (uma vez que a superstição só pode razão, pode ser que esteja para além da razão: viver da ignorância) e a vida razoável, isto é, sábia Pascal. A crença sublinha os limites do poder da (por exemplo, a filosofia epicurista, que desenvolve razão, tanto do ponto de vista teórico como do ponto princípios de vida sábia e feliz, começa por uma de vista prático (por exemplo: Kant e o seu postulado física, que tem por objetivo desmistificar e da existência de Deus, um dos três postulados da desmitificar o mundo, de separar o divino do moral; os outros são a liberdade e a imortalidade da puramente físico, pois é o medo dos deuses que alma). perturba a alma e impede os homens de alcançar a felicidade, a ataraxia). Por outras palavras, o que o uso da razão rejeita, é a crença que nega a ciência, 32
  • 34. que ignora que ela não é uma crença, ou uma mera opinião. ✤ A opinião é, por vezes, o único ponto de apoio, a que podemos recorrer para conduzir a nossa vida, na falta de regras objetivas sobre a felicidade, por exemplo. E se assim fizermos, ser-nos-á possível ter uma conduta consciente, enquanto a dúvida permanente nos impede de viver e de agir (a moral provisória de Descartes). ✤ Podemos, então, pensar que precisamos de crenças para viver e que as crenças são uma espécie de reação defensiva da natureza contra a razão. É o “resgate da inteligência” que temos de pagar por a termos aprisionado. A ilusão é, nesta ordem de ideias, uma necessidade razoável, isto é, que não se opõe à razão, mas que se faz a partir da multiplicidade de razões e do seu agrupamento diverso, não unificado num modelo único. 33
  • 35. • Secção 2 • Segundo Modelo A crença é contrária à razão? quando se compromete com a fé? Veremos que, embora o exercício da razão consista, Concordamos facilmente com a ideia de que a crença é antes de mais, em pôr em causa a crença, é mesmo um saber fraco, ora ingénuo (a criança acredita no Pai assim necessário tolerar algumas crenças, e até Natal), ora perigoso (o fanático que mata em nome de relativizar as próprias ambições da razão em proveito Deus). Pelo contrário, o que é racional parece-nos fiável de uma crença que ainda não somos capazes de porque é logicamente coerente, ou porque corresponde qualificar. à realidade, ou porque é eficaz, ou por todas estas razões juntas. Numa primeira abordagem, então, crença A crença (pistis) é o mais baixo dos saberes. Como e razão parecem estar em oposição uma à outra: a fé demonstra Platão com a metáfora da linha dividida em não é o saber, ela remete para uma convicção pessoal, quatro secções, a crença é o saber daqueles que enquanto a razão pretende a objetividade. Mas não será confundem as coisas com o seu reflexo. Crer é, do ponto esta oposição demasiado simplista? Não haverá crenças de vista epistemológico, atribuir à sensação um poder compatíveis com as exigências da razão? Como excessivo de juízo. Assim, os escravos aprisionados no poderemos explicar o fracasso relativo do positivismo fundo da caverna acreditam na realidade exclusiva das ou o sucesso, limitado é certo, da religião na época da sombras e, deste modo, se enganam convictamente. ciência? Podemos racionalizar e acreditar em certas Todavia, a razão libertar-se totalmente da crença. Se o crenças, ou temos de defender que a razão se demite percurso racional consiste em pôr em dúvida as 34
  • 36. aparências, nem por isso essa razão pode deixar de se um espírito positivo, também pretendia que só o apoiar num fundamento “firme e seguro”, como diz demonstrável pudesse ser considerado verdadeiro. A Descartes. Ora, se o exercício hiperbólico da dúvida tem própria crença torna-se objeto de uma análise apertada, de parar perante a evidência de que o sujeito que duvida através dos estudos de Freud sobre as motivações não pode ser posto em dúvida, esse mesmo sujeito tem profundas da crença religiosa. Aquilo que Freud de admitir que, quando pensa, a sua razão não é traída concede às crenças é que elas têm as suas razões por um “génio maligno”. Como correlato, Descartes (consolar o homem perante a angústia da morte) e admite um Deus verdadeiro conhecido por intuição e portanto um futuro próprio. não por demonstração. Há crenças, então, que a razão reprova como as que são Contra esta captura da fé pelo saber, podemos opor veiculadas pela superstição, e outras que a razão aprova duas opções filosóficas: a da continuidade entre os dois porque simplesmente não consegue fundamentar-se domínios, ou as de rutura em benefício da fé. A primeira completamente em si mesma. A escola positivista opção é ilustrada pelo pensamento de S. Tomás de procurou, no entanto, demonstrar que esta concessão Aquino que queria ver na filosofia a serva da teologia. feita à crença deveria ser ultrapassada. Assim, Comte Segundo ele, a razão deve estender a sua influência, as distingue três estados (teológico, metafísico e positivo) suas luzes, a todos os objetos de conhecimento. Poderá, tendo em vista defender que entrámos numa época de assim, aproximar-se da ideia de Deus. Mas não será ordem e de progresso, onde a razão deve reinar sem capaz de penetrar no domínio das verdades ditas partilhas, mesmo nos domínios onde as demonstrações reveladas. A segunda opção é ilustrada pelo parecem mais difíceis de realizar, como é o caso das existencialismo de Kierkgaard. A sua tese consiste em representações coletivas que fazem apelo a estudos aceitar a ideia de uma salto no absurdo. O verdadeiro sociológicos. É também o caso do inconsciente que filósofo é o que se faz “cavaleiro da fé” e que corre penetra a psicanálise com as armas da ciência. Freud, deliberadamente o risco de passar do estado ético ao 35
  • 37. estado religioso, nas etapas que marcam o caminho da vida. Kant, no seu célebre prefácio à Crítica da razão pura, escreveu que teve de “substituir a fé ao saber”. A razão é limitada: não pode demonstrar tudo cientificamente, mas pode apreender o momento em que a crença pode intervir no exercício do espírito. Ela pode fornecer uma gramática de consentimento, de conformidade. 36
  • 38. • CAPÍTULO 5 • O DEVER DA VERDADE A busca da verdade é realmente um imperativo absoluto, mesmo em detrimento da nossa felicidade ou da dos outros? Esta questão não pode ser resolvida só no plano moral.
  • 39. • Secção 1 • 1. Buscar a verdade (tal como a sinceridade) é expor- nos a ser feridos por ela. 2. A referência à alegoria da caverna na “República” de Platão ilustra perfeitamente esta ideia: o prisioneiro que se liberta da caverna e procura (e encontra) a verdade acaba por pagar um alto preço pela sua ousadia, sendo linchado pelos antigos Primeiro Modelo companheiros de cativeiro que se Temos o dever de procurar a Elementos de problematização. recusam ouvir o que verdade? ele tem para dizer. A verdade parece imediatamente conotada positivamente, por oposição aos seus contrários (a mentira, o erro) que aparecem como devendo ser 38
  • 40. evitados. A pergunta aborda este tema num ângulo ignora o que ignora? (paradoxo do Ménon de Platão: particular: não se trata de saber se se deve dizer a como saber que verdade procurar, uma vez que, por verdade, mas se devemos procurá-la, não se devemos definição, se estamos em busca dela é porque não a desvendar o que sabemos ou guardar segredo, mas se sabemos). Assim, se a lei reconhece, em certa medida, o devemos dedicar-nos a pesquisar o que ignoramos. dever de dizer a verdade e castiga a mentira ou o Trata-se, no fundo, de nos perguntarmos sobre se perjúrio, buscar a verdade não é, de modo nenhum, podemos ficar satisfeitos com a nossa ignorância ou se uma obrigação jurídica. Mas o dever não é a mesma temos o dever de sair dela. Não é, portanto, tanto a coisa que uma obrigação: o dever não nos é imposto do questão do dizer, do desvendar a verdade, mas exterior, mas uma prescrição que impomos a nós sobretudo a da ou das ações a levar a cabo para a próprios. Tem, por esta razão, uma dimensão moral que encontrar. Se fizermos a pergunta ao contrário põe em jogo a nossa humanidade. Como já foi dito, (podemos ficar satisfeitos com a nossa ignorância?), a renunciar a buscar a verdade parece consistir em verdade parece impor-se como um dever: Que género renunciar a nos colocarmos à altura da nossa de homens seríamos nós, se pudéssemos ficar satisfeitos humanidade. Mas não podemos fazer outras escolhas? com nada saber? Não será a capacidade de A busca da verdade é realmente um imperativo conhecimento, de compreensão e de explicação do absoluto, mesmo em detrimento da nossa felicidade ou mundo que nos envolve, aquilo que distingue o homem da dos outros? Esta questão não pode ser resolvida só dos outros animais? no plano moral. Coloca também um desafio político e social. Ora, nestes domínios, não é evidente que se deva Mas não nos basta ficar por aqui. Se reconhecermos a buscar a verdade em todos os casos, pois a verdade pode verdade como um dever, faltará ainda esclarecer a ter efeitos devastadores para cada um de nós e para os natureza desse dever. Um dever desta natureza não é, outros. O segredo, a mentira podem igualmente ter com efeito, evidente. Podemos condenar o ignorante utilidade social, política, íntima e, pelo contrário, a pela sua ignorância? Como, de resto, pode ele saber que 39
  • 41. verdade pode ter efeitos negativos. Nestas condições, empregar todos os meios ao seu alcance, mesmo em nome de quê haveremos de fazer da verdade um moralmente condenáveis, para se certificar da dever, um imperativo? Não valerá a pena, pelo verdade?); é perigosa na esfera política (um jornalista contrário, ter algumas precauções. deve trazer à luz do dia verdades que o Estado mantém secretas para o bem dos cidadãos?). A verdade tem, Ficamos, assim, retalhados entre a representação que então, uma conotação positiva, mas há, no fim de fazemos de nós mesmo e da nossa humanidade, contas, uma razão que nos pode levar a sentir, muitas segundo a qual a busca da verdade é o que faz de nós vezes, dificuldades em cumprir o nosso dever de seres vivos distintos dos outros, e uma dimensão mais verdade. Por esta razão, buscar a verdade a qualquer prática, segundo a qual a busca da verdade pode preço não será um dever, se atribuirmos a esse dever revelar-se prejudicial e perigosa, portanto, não um uma natureza absoluta: fazer da busca da verdade um dever absoluto. imperativo, é expor-nos a sofrer consequências negativas. ✤ Buscar a verdade (tal como a sinceridade) é expor- I. Fazer da busca da verdade um dever nos a ser feridos por ela. Queremos procurar sempre absoluto parece perigoso e prejudicial... saber o que os outros pensam de nós, por exemplo? A verdade é difícil de dizer e de ouvir, ela prejudica o Podemos começar por explorar, nesta parte, a pista que bom funcionamento das relações sociais. Esta é uma é talvez a mais intuitiva: sabemos espontaneamente que ideia explorada nomeadamente por Pascal nos seus a verdade é perigosa e pode revelar-se prejudicial. Pensamentos. Temos, aliás, em geral experiência disso mesmo. A verdade pode fazer-nos infelizes (alguém que tenha ✤ Esta perigosidade estende-se ao domínio político: o dúvidas sobre a fidelidade do seu cônjuge deve segredo é necessário em certos domínios – 40
  • 42. diplomático, militar. O nosso dever de cidadão, efeitos negativos, do ponto de vista afetivo, político, vivendo numa democracia, é respeitar o bom social... funcionamento das instituições, não prejudicando o interesse geral, tentando desvendar o que é e deve Mas o próprio do dever, na sua dimensão moral, não manter-se (pelo menos, durante um certo tempo) será precisamente o ele ser desinteressado? A nossa um segredo de Estado. humanidade não se joga justamente na nossa capacidade para agir em nome de valores, mesmo que ✤ Em “Reações políticas”, Constant opõe-se ao dever saibamos que isso é arriscado para nós? Porque a busca de dizer a verdade em todas as circunstâncias. da verdade pode ser prejudicial, quer isso dizer que Podemos retomar as suas palavras para nos opormos devemos renunciar a ela? a um dever de procurar a verdade em todas as circunstâncias. Por outras palavras, não podemos falar em dever de procurar sempre a verdade, II. ... mas isso não é razão para renunciar a porque, sendo ela por vezes útil, por vezes fazer dela um dever moral... prejudicial, não tem as características de um imperativo. Nesta parte podemos conduzir a reflexão de um modo mais moral, para além das consequências práticas. Se a Conclusão 1: verdade for considerada uma coisa boa, então devemos Fazer da busca da verdade um dever é não ter em conta lutar por ela a qualquer preço. O característico do dever as suas consequências práticas, por vezes prejudiciais. moral é justamente ir para além dos nossos interesses Não podemos impor a nós próprios a busca da verdade pessoais, imediatos, sensíveis. Podemos mesmo dizer de maneira incondicionada, porque nos exporia a que é precisamente aquilo que não é imediatamente útil ou proveitoso que tem condições para ser considerado 41
  • 43. um dever. Não temos necessidade de impor a nós valores que são reconhecidos e se impõem como bons. próprios o dever de procurar a verdade quando ela é Neste sentido, aliás, o dever não é um dado. Nós não o útil. A busca da verdade por interesse científico não “temos”, não, pelo menos, de modo imediato: o dever é levanta verdadeiramente problemas de dever. A uma regra que impomos a nós próprios. explicação e a compreensão do mundo que nos envolve permitem-nos dominá-lo e portanto viver melhor nele. ✤ Seria sem dúvida útil ter começado por trabalhar a Podemos interrogar-nos sobre as consequências noção de dever para estabelecer o elo com a ideia de técnicas que são retiradas da ciência, que, elas, podem que este é desinteressado e incondicionado: o dever ser catastróficas para a natureza e para o homem. Mas a é um fim em si mesmo, não é um meio com vista a verdade, em si mesma, definida como a adequação do uma finalidade que lhe seja exterior (não podemos, discurso e do real, remete para o discurso. Por isso, as por exemplo, dizer que a verdade deve ser suas consequências práticas diretas são nulas. Buscar a pesquisada somente quando é útil, pois, então, como verdade no domínio científico não tem portanto já foi dito, não temos necessidade de fazer disso um necessidade de ser erigida em dever. Os homens fazem- dever, para que os homens o façam). Os texto de no espontaneamente, pois procuram conhecer o seu filosofia moral de Kant, nomeadamente os ambiente, por necessidade de sobreviver nele. A noção “Fundamentos da metafísica dos costumes”, de dever só se coloca verdadeiramente nos domínios em permitem trabalhar a noção de dever moral neste que há uma contradição com os nossos interesses sentido. O mesmo acontece com o conceito de diretos. É pois, paradoxalmente, porque a investigação humanidade, como afirma Kant em “Qu’est-ce que da verdade pode ser perigosa, que devemos impô-la a les Lumières”? nós mesmos como um dever. Aqui se define a ✤ A verdade constitui, assim, um bem que nos é moralidade do homem, que consiste justamente em se necessário obter. A referência à alegoria da caverna ser capaz de ultrapassar os seus interesses em nome de na “República” de Platão ilustra perfeitamente esta 42
  • 44. ideia: o prisioneiro que se liberta da caverna e Conclusão 2: procura (e encontra) a verdade acaba por pagar um alto preço pela sua ousadia, sendo linchado pelos Embora a busca da verdade possa produzir, por vezes, antigos companheiros de cativeiro que se recusam efeitos nefastos, isso não é razão suficiente para ouvir o que ele tem para dizer. renunciar a ela. Moralmente, só encontramos a nossa humanidade na condição de fazer passar os nossos ✤ Este texto permite, de resto, estabelecer a ligação valores antes dos nossos interesses; nesta ordem de entre o dever moral e a utilidade, pois a pesquisa da ideias, a busca da verdade impõe-se como um dever. verdade não diz somente respeito à moral, nem à epistemologia: buscar a verdade é também um Como podemos, então, conciliar estes dois aspetos? empreendimento de libertação. Através do Podemos seguir cegamente o nosso dever sem nos conhecimento, os homens libertam-se de uma preocuparmos com as suas consequências? Haverá um natureza, a que teriam de se submeter, se não meio de procurar a verdade, evitando o que ela pode ter procurassem a verdade, mas também das suas de perigoso? ilusões que os alienam. É este o sentido, por exemplo, do incentivo à investigação que faz Marx na “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, por III. … desde que não o sigamos cegamente. considerar que essa é a única maneira de destruir as ilusões da religião, que se constituem como um instrumento de alienação e de dominação. Foi dito na introdução que a formulação da pergunta nos convida a refletir sobre a ação (buscar a verdade) mais do que sobre a palavra (dizer a verdade). Já agora que reconhecemos na pesquisa da verdade um dever 43
  • 45. moral porque nela está em jogo a nossa humanidade, permitam que a busca da verdade não acabe por ser podemos ir um pouco mais longe interrogando-nos letra morta. A forma da verdade interessa tanto sobre as formas que toma essa pesquisa, tendo em vista como o seu conteúdo. Se a verdade fere, não será limitar as suas consequências catastróficas. Para além tanto pelo que ela diz, mas mais pela forma como é das formas típicas dos domínios morais e científicos, a dita. busca da verdade pode ainda tomar outras formas que permitam torná-la compatível com os nossos afetos e a ✤ Assim, buscar a verdade é também e, talvez, em nossa felicidade, e justifiquem que a imponhamos a nós primeiro lugar procurar a linguagem adequada para próprios, sem por isso seguir esse dever cegamente, de encontrar uma verdade que seja audível e útil. A uma maneira que seja contraprodutiva. arte, por exemplo, constitui uma das múltiplas formas de busca da verdade, que pode evitar que ✤ O dever, pensado independentemente das suas esse dever nos conduza a odiar e a fugir da verdade, consequências práticas, pode ser contraprodutivo mais do que a procurá-la. É o que nos diz Proust, por correr o risco de não ter sequência prática. referindo-se à função de verdade da arte no tempo Podemos conceber a possibilidade de pensar no reencontrado. dever sem, por isso, renunciar a refletir nas suas condições práticas de aplicação. Não podemos exigir Conclusão. dos homens que, como o prisioneiro da alegoria de Temos o dever de procurar a verdade, pois nela se joga a Platão, ponham tudo em jogo em nome da verdade. dignidade humana. Todavia, esse dever deve ser Talvez valha a pena recorrer ao conceito de adaptado à natureza da verdade que, por muito útil que prudência de Aristóteles. seja, pode, mesmo assim, revelar-se destruidora se não ✤ Nestas condições, importa refletir em modalidade de for manuseada com precaução, ou com prudência. busca da verdade que tornem esse dever realizável e 44
  • 46. • Secção 2 • Segundo Modelo Temos o dever de procurar a verdade? verdade (conforto da ilusão), e que, se existe o desejo, ou até a necessidade, de verdade, este não é um desejo como os outros: talvez o homem, enquanto animal racional, tenha o dever de procurar a verdade, mesmo que ela seja contrária aos seus desejos e aos seus interesses imediatos. Este tema coloca, então, o Problemática : problema da nossa relação com a verdade, do seu valor, A formulação do tema pode surpreender. A verdade é da nossa liberdade perante ela e também das origens um valor do conhecimento, que pertence ao domínio da desse dever. Qual é a origem deste dever? A razão, a ciência; a noção de dever é um valor da existência, que sociedade? pertence ao domínio da moral ou da ética. Portanto, a I. Embora tenhamos o dever de dizer a ideia de um dever de procurar a verdade pode parecer verdade, parece que somos livres de estranha, na medida em que supõe que se pesquise a procurar ou não a verdade: verdade na ciência e em outros domínios. Temos desejo de verdade, experimentamos o dever de a dizer quando A moral impõe-nos que digamos a verdade, que a conhecemos, mas porque haveremos de ter o dever de sejamos verdadeiros nas nossas declarações (talvez a procurar? Para compreender esta noção de dever, dentro de certos limites, por muito que esses limites temos de ter em conta que, contrariamente àquilo em desagradem a Kant e à sua moral rigorosa) que muitos acreditam, o homem não procura a verdade espontaneamente, nem procura a verdade só pela 45
  • 47. A sociedade, uma vez que se baseia em contratos e Transição: na confiança recíproca, exige igualmente que sejamos verdadeiros (salvo quando a verdade Se é verdade que aspiramos quase naturalmente à ameaça a vida em comum: dizer a verdade àquele verdade quando parece que ela está sempre distante de que pretende prejudicar alguém, por exemplo, dizer nós, será que podemos contentar-nos com essa relação a um assassino onde se encontra uma potencial “utilitarista” com a verdade? vítima, ou a um terrorista onde é mais eficaz a II. Temos o dever de procurar a verdade. colocação de uma bomba) Na nossa qualidade de seres racionais, mesmo que, A busca da verdade é um desejo natural do homem, no limite, a verdade nos incomode e não nos traga que o leva a condenar a mentira e a tentar aumentar nada de interessante, podemos preferi-la à ilusão os seus conhecimentos, na medida em que o reconfortante ou à mentira vantajosa. conhecimento lhe permite adquirir poder sobre si mesmo e sobre o que o envolve. Enquanto seres humanos, dotados de consciência reflexiva, é nosso dever libertarmo-nos da Poderíamos pensar que a procura da verdade só tem inconsciência e da ignorância para aceder à verdade. valor pelas suas consequências, como pensou Epicuro que renunciou a uma pesquisa de A verdade vale por si mesma, tal como o conhecimento em si e por si. Se a verdade não nos conhecimento. É uma valor, do mesmo tipo do Bem permitir viver melhor, ela seria inútil e portanto e do Belo. Devemos esforçar-nos por ela. A verdade melhor seria que não a procurássemos. vale por si e por nós. Fazer da procura da verdade um dever e não somente uma necessidade é obrigarmo-nos a não 46
  • 48. nos satisfazermos com os conhecimentos que III. Um dever discutível de buscar a verdade. tenhamos, mesmo que sejam eficazes. É este sentido do valor da verdade que anima o cientista e que faz Nietzsche vê nesta exigência de verdade, com que não se contente com o que descobriu, considerada como um valor da existência humana, verificou, provou, e que qualifique as suas uma posição herdada de Sócrates: “A enunciação da explicações ou teses como probabilidades, verdades verdade a qualquer preço é socrática”, escreve provisórias, práticas. A verdade mantém-se no Nietzche no Livro do filósofo. Esta exigência de horizonte da sua investigação. O mesmo acontece verdade pode ter efeitos perversos, como a rejeição com o filósofo, que busca incessantemente a da arte reduzida a uma força de ilusão; Essa ilusão, verdade, sem alguma vez pretender tê-la alcançado. segundo Nietzche, é uma força salvadora que nos liberta da verdade. Portanto, conceber a verdade como objeto de um dever é concebê-la como uma exigência que impõe O dever de verdade, concebido como valor absoluto, exigências. traz consigo também a desvalorização de outros valores vitais. Em nome desse dever de verdade, Transição: rejeitamos o mundo sensível: “filosofar é aprender a morrer”. Parece, então, que a busca da verdade nos é imposta pela nossa humanidade; no entanto, podemos O dever de procurar a verdade mascara a sua origem perguntar-nos se esse dever de procurar a verdade não é social, utilitarista: “O homem exige a verdade e discutível. realiza-a no comércio moral com os homens; é em cima dela que se baseia toda a vida em comum. Antecipamos as consequência malignas das mentiras recíprocas. É aí que nasce o dever de verdade.”, e de 47
  • 49. a procurar. Mas, se admitirmos esta origem, admitimos também que a mentira e a ilusão são aceitáveis, se forem vantajosas e agradáveis, o que põe em causa o dever de verdade. Esta busca da verdade pode afastar-se perigosamente da vida. 48
  • 50. • CAPÍTULO 6 • TRABALHO E UTILIDADE Compreende-se, então, que a diferença entre trabalho e lazer deve, à luz destas considerações, ser posta em causa. Se o trabalho também é criação, então também partilha as características do lazer.
  • 51. • Secção 1 • 1. O trabalho é uma atividade produtora orientada para a busca de finalidades. 2. O trabalho deve ser pensado para além da esfera da utilidade social 3. O trabalho possui um valor em si mesmo independentemente do seu valor económico. 4. No Mito de Prometeu, que Platão relata no diálogo Primeiro Modelo “Protágoras”, o A Utilidade é o Único Valor do Introdução/Problematização. trabalho tem origem na fraqueza dos Trabalho? homens. E geral, é considerado útil um meio que permite atingir um fim, que se ajusta a uma finalidade. Ser útil é sinónimo de ser eficaz, produzir um efeito esperado, 50
  • 52. um ganho uma mais-valia: em resumo, ser útil é ser transformo nada com o fim de obter um valor operacional. Diz-se de um método, de um instrumento, económico. Postas as coisas assim, poderemos dizer que de uma função que são úteis quando cumprem o uma vida sem trabalho seria, no fundo, desejável? objetivo que lhes foi previamente atribuído. O trabalho, Questionarmo-nos sobre se a utilidade é o único critério enquanto atividade produtora, cria também utilidade de de valor que permite justificar o trabalho é o mesmo duas maneiras possíveis. Por um lado, trabalhar é que refletir sobre a questão de saber se o trabalho, transformar uma matéria para fazer uso dela - os bens enquanto atividade produtora, possui um fim em si –, ou realizar um serviço. Por outro lado, o trabalhador mesmo, independentemente de objetivos como a participa naquilo a que se chama a “divisão social do rentabilidade, a eficácia ou a produtividade que avaliam trabalho” que permite a uma sociedade criar, reproduzir o trabalho pelo seu resultado e não por si mesmo. as condições de sobrevivência e de desenvolvimento. Ao colocar a sua pedra no edifício, o trabalhador, para além Primeira parte: Trabalhar é participar na de ser útil, sente-se útil. divisão social do trabalho. Mas esta atividade fundamental deve ser somente O trabalho é uma atividade produtora orientada para a analisada em termos de utilidade? Com efeito, se o busca de finalidades. Um carpinteiro, trabalhando um trabalho só fosse útil, isso implicaria que, se as bocado de madeira, dá-lhe uma forma que permite, em máquinas ou os robots pudessem fazer tudo em nosso seguida, atribuir-lhe uma utilização. Torna-se, por lugar, deixaríamos de ter qualquer motivo para exemplo, numa peça de uma mesa. Podemos atribuir- trabalhar. Ora, não é garantido que o facto de trabalhar lhe, assim, uma utilidade. E, fazendo o que fez, não tenha, em si mesmo, valor e interesse para aquele podemos também dizer que o carpinteiro foi útil, que trabalha. Quando eu me imponho um trabalho porque participou num processo de trabalho coletivo. quotidiano de prática de um instrumento musical, por Com efeito, pertence a uma cadeia de intervenientes que exemplo, não sou, por isso, útil à sociedade e não começa com o lenhador e acaba com o comerciante que 51
  • 53. vende a mesa ao consumidor. Quanto mais para o conjunto da sociedade não é considerado um especializado numa tarefa é o trabalhador, mais ele é trabalhador. É o caso, por exemplo, do artista. útil económica e socialmente: cada sociedade baseia-se, com efeito, numa divisão social do trabalho. Se o Segunda parte: O trabalho humaniza. carpinteiro também tivesse de ser lenhador, a O trabalho não é só uma atividade com finalidade, no construção da mesa exigiria muito mais tempo e talvez sentido referido até aqui. Ao trabalhar, o homem não fosse tão perfeita, porque não é fácil que um único produz também um efeito sobre si mesmo, que não é, à indivíduo domine o conjunto de técnicas necessárias. partida, especificamente procurado. Por exemplo, o Por outro lado, a distinção entre trabalho e lazer reforça trabalho leva-nos a desenvolver as nossas faculdades, a a ideia segundo a qual trabalhar é ser-se útil, isto é, visa adquirir competências, a disciplinar-nos. O trabalho responder a necessidades. O tempo da lazer começa também nos socializa. Aprendemos a colaborar com os justamente quando já não se coloca a questão da outros, portanto a viver com eles. O trabalho, uma das utilidade ou do nosso papel social. O tempo de lazer é o ligações da rede social, tem, então, um papel civilizador momento em que nos afastamos da vida social comum, e humanizante para o homem. É frequente ouvir dizer em que deixamos de exercer uma função. Podemos que o homem se humaniza pelo trabalho. Neste sentido, gastar o nosso tempo, realizar atividades gratuitas ou produzindo as suas condições de existência, o homem desinteressadas, sem finalidade económica reconhecida. produz-se a si mesmo. Dito de outro modo e utilizando uma imagem, ao cultivar o seu campo, o homem Consequentemente, um trabalho não produtivo não cultiva-se a si mesmo: adquire traços especificamente pode ser verdadeiramente considerado um trabalho. O humanos que lhe permitem distinguir-se da mesmo se pode dizer do trabalhador não produtivo, que animalidade. Pour le dire autrement et en utilisant une não é um verdadeiro trabalhador. Aquele que não é útil image parlante, en 52
  • 54. Terceira parte: O trabalho também é criação. ou utilidade social. No entanto, trata-se de uma atividade que se aparenta bem com o trabalho. O trabalho é, portanto, fator de cultura. Neste sentido, podemos mesmo dizer que, longe de ser uma atividade Em conclusão: unicamente governada pela busca da utilidade social e económica, tanto do trabalhador como dos bens e dos Este tema convida-nos a tomar consciência de que o serviços, o trabalho é criador do próprio homem e de trabalho deve ser pensado para além da esfera da disposições – faculdades – de que os homens não utilidade social e de que ele possui um valor em si dispõem naturalmente. mesmo independentemente do seu valor económico. Mas, para que esta ideia seja de facto consequente, é Compreende-se, então, que a diferença entre trabalho e indispensável, paradoxalmente, que os homens tenham lazer deve, à luz destas considerações, ser posta em acesso a verdadeiros tempos de lazer. causa. Se o trabalho também é criação, então também partilha as características do lazer. Nesta ordem de ideias, deveremos admitir que mesmo um desenhador aprendiz, que faz exercícios de aperfeiçoamento no seu tempo de lazer, está a trabalhar. Na verdade, não procura uma utilidade a curto ou médio prazo, pois nem sequer sabe aonde o seu trabalho o conduzirá. Pelo contrário, o nosso aprendiz de desenhador pode experimentar prazer na sua atividade de lazer, ao verificar, apesar da dificuldade, os progressos dos seus gestos e a forma como a sua mão domina cada vez melhor o traço. Esta atividade não tem nenhuma função 53