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FUGA – FERNANDO SABINO

Mal o pai colocou o papel na máquina, o menino começou a
empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho
infernal.

- Pára com esse barulho, meu filho – falou, sem se voltar.

Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das
grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho,
estava só empurrando uma cadeira.

- Pois então pára de empurrar a cadeira.

- Eu vou embora – foi a resposta.

Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às
palavras,   no    ato   de   juntar   do   chão    suas   coisinhas,
enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um
caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de
biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da
dispensa? – a mãe mais tarde irá dizer), metade de uma
tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande
aventura, um botão amarrado num barbante.

A   calma   que    baixou     então   na    sala   era    vagamente
inquietante. De repente, o pai olhou ao redor e não viu o
menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:
- Viu um menino saindo desta casa? – gritou para o operário
que descansava diante da obra do outro lado da rua, sentado
no meio-fio.

- Saiu agora mesmo com uma trouxinha – informou ele.

Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe,
caminhando cabisbaixo ao longo do muro. A trouxa,
arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus
pertences: o botão, o pedaço de biscoito e – saíra de casa
prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Camou-o, mas ele
apertou o passinho, abriu a correr em direção à Avenida,
como disposto a atirar-se diante do ônibus que surgia a
distância.

- Meu filho, cuidado!

O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a
esquerda,      os   pneus   cantaram   no   asfalto.   O   menino,
assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o
arrebanhou com o braço como a um animalzinho:

- Que susto que você me passou meu filho – a apertava-o
contra o peito, comovido.

- Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.

Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar
umas palmadas:
- Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.

- Me larga. Eu quero ir embora.

Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala – tendo
antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave,
como ele fizera com a da dispensa.

- Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.

- Fico, mas vou empurrar esta cadeira.

E o barulho recomeçou.

    O MÉDICO E O MONSTRO – PAULO MENDES CAMPOS



    Avental branco, pincenê vermelho, bigodes azuis, ei-lo,
grave, aplicando sobre o peito descoberto duma criancinha
um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe
passa.

    O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a
bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua
irmã, a enfermeira; a criancinha é uma boneca de olhos
cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo nome de
Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma
caixinha de brinquedos.

    Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto
trabalham, a enfermeira presta informações:
- Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção, nem
de vitamina, mas a irmãzinha dela adora.

    O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca
de Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer aaá.
Rosinha diz aaá pelos lábios da enfermeira. O médico
apanha o pincenê, que escorreu de seu nariz, rabisca uma
receita, enquanto a enfermeira continua:

    - O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de
qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai
ficar muito magrinha que até o vento carrega.

    O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno
do pescoço da boneca, diagnosticando:

    - Mordida de leão.

    -    Mordida     de   leão?   -   pergunta,   desapontada,   a
enfermeira, para logo aceitar este faz-de-conta dentro do
outro faz-de-conta. - Eu já disse tanto, meu Deus, para essa
garota    não   ir   na   floresta    brincar   com   Chapeuzinho
Vermelho...

    Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de
acarajé, um urso muito resfriado, porque só gostava de neve,
um cachorro atropelado por lotação, outras bonecas de
vários tamanhos, um Papai Noel, uma bola de borracha e até
mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira.

    De repente, o médico diz que está com sede e corre para
a cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se
aproveita disso para dar um beijo violento no seu amor de
filho e também para preparar-lhe um copázio de vitaminas:
tomate, cenoura, maçã, banana, limão, laranja e aveia. O
famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável
droga.

    - Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você
mesmo, doutor.

    Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo
é levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada
com uma careta. Em seguida, propõe um trato:

    - Só se você depois me der um sorvete.

    A    terrível   mistura   é   sorvida   com   dificuldade   e
repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo
devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora.

    A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e
aplica no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com
a ameaça dum chute. Já estamos a essa altura, como não
podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico
em monstro.

    Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são
atirados sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo
médico resta um lindo bigode azul. De máscara preta e
espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde a doce enfermeira
continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o
consultório: microscópio, estetoscópio, remédios, seringa,
termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se
derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito de horror e
começa a chorar nervosamente. O monstro, exultante,
espeta-lhe a espada na barriga e brada:

    - Eu sou o Demônio do Deserto!

    Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura
do mal, desatento a qualquer autoridade materna ou
paterna, com o diabo no corpo, o monstro vai espalhando
terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo, é o divã
massacrado sob os seus pés, é uma corneta indo tinir no
ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se
despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce
derramado, a torneira inundando o banheiro, a revista nova
dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum
apartamento carioca.

    Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante,
senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que
conte uma história ou lhe compre um carneirinho de
verdade.

    E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar
ameaçado pelas forças do mal.



    QUEM SABE DEUS ESTÁ OUVINDO – RUBEM BRAGA
Outro dia eu estava distraído chupando um caju na
varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde
botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a
castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem
sequer me dar conta do que fazia.

    Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção:
a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saída terra,
em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e
vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar
um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez
com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas.
Notei que a empregada regava com especial carinho a planta,
e caçoei dela:

    - Você vai criar um cajueiro aí?

    Embaraçada,    ela   confessou:     tinha    de   arrancar   a
mudinha, naturalmente; mas estava com pena.

    - Mas é melhor arrancar logo, não é?

    Fiquei   em   silêncio.   Seria    exagero    dizer:   silêncio
criminoso - mas confesso que havia nele um certo remorso.

    Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um
cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse mais
alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora culpado,
com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a
empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso.
Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria
capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o
fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que
o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e
sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas
igualmente ignaros: eu, o deus da Vida, ela, o da Morte.

       Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa -
"seu Rubem, o cajueirinho..." - mas o telefone tocou, fui
atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou
da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou
para ele a mudinha.

       Veio me mostrar:

       - Eu comprei um vaso...

       - Ahn...

       Depois de um silêncio eu disse:

       - Cajueiro sente muito a mudança, morre à-toa...

       Ela olhou a plantinha e disse com convicção:

       - Esse aqui não vai morrer, não senhor.

       Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo,
daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve
para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde
plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse
pela     compra   do   vaso,   e   ficara   aliviada   com   minha
indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse,
sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:
- Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!

    Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a
varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com
certa gravidade:

    - É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está
ouvindo o que o senhor está dizendo...

    Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar
muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros
assuntos maiores.




HORÓSCOPO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

- Telefonaram do escritório, bem. Seu chefe mandou
perguntar por que você não foi trabalhar.

- E você deu o motivo?

- Não.

- Podia ter dado.

- Ora, Alfredinho, isso é motivo que se dê?

- Por que não? Se há motivo, está justificado. Sem motivo é
que não cola.
- Então eu ia dizer ao seu chefe que você não trabalha hoje
porque    o    seu   horóscopo      aconselha:   "Fique   em   casa
descansando"?

- E daí, amor? Se meu signo é Touro, e se Touro acha
conveniente que eu não faça nada, como é que eu vou
desobedecer a ele?

- É, mas com certeza seu chefe não é Touro, e não vai achar
graça nisso.

- Ele é Áries, está ouvindo? E o dia não está para relações
entre Áries e Touro. Pega aí o jornal. Faz favor de ler com
esses    belos   olhos   cor   de    pervinca:   "Áries   -    Evite
rigorosamente discussões com subordinados".

- Mas se ele evitar, não tem perigo para você.

- Ele pode evitar, sim, deve evitar. E para colaborar com ele,
eu fico em casa.

- Mas se você não comparece, ele pode vir ao telefone e pegar
numa discussão danada com você, dessas de sair fogo.

- Não atendo telefone durante o dia. Não posso atender. Não
vê que estou descansando, que o horóscopo me mandou
descansar? É favor não fazer rebuliço nesta casa. Amor e
paz, para o descanso do guerreiro.

- Pra mim você está é com preguiça, e das bravas.
- Posso estar com preguiça, e daí? Preguiça é relaxante,
restaura as energias, predispõe para o trabalho no dia
seguinte. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se
eu não faço nada hoje, não é porque estou com preguiça. É
em atenção a um mandamento superior, à mensagem que
vem dos astros, você não percebe?

- Percebo, sim, mas não concordo.

- Pode se saber por que a excelentíssima não concorda com
aquilo que percebe e que está devidamente explicado?

- Pode.

- Então explica, vamos.

- Gozado, Alfredinho, até parece que para você só existem
dois signos no zodíaco: Touro e Áries, você e o patrão.

- Espera lá, você queria que eu não prestasse atenção em
Touro? Áries eu li hoje por acaso, porque está ao lado de
Touro, em coluna paralela.

- Coincidência: você saber que seu chefe é Áries, e...

- É sim.

- E por que você guardou na cabeça que ele é Áries?

- Ora por quê! Ele fez anos no mês passado, amorzinho. Até
contei a você que oferecemos a ele uma batedeira. Soubemos
que a mulher dele precisava de batedeira, fizemos uma
vaquinha e pronto. Mas por que você diz que para mim só
existem dois signos?

- Pelo menos Sagitário você ignora.

- Como que eu ia ignorar Sagitário, se é o signo de você,
minha orquídea de novembro 25?

- É, mas esqueceu de ler que o dia é propício para reuniões
sociais de Sagitário, e saiba que esta sua orquídea de
novembro 25 vai reunir hoje as amigas aqui em casa. Trate
de se mandar, querido.

- Sem essa! Touro me manda descansar em casa, e você me
enche a casa com mulheres?

- É, Sagitário não ia fazer isso comigo! Eu já tinha
harmonizado Touro com Áries!

- Pode continuar harmonizando, se for descansar em casa do
Tostes, que é Virgem, eu sei, ele é nosso padrinho de
casamento. O horóscopo do Tostes recomenda prestar
serviço a um amigo. Assim, Touro, Virgem, Áries e Sagitário
ficam inteiramente harmonizados, cada um na sua, um por
todos, todos por um. Ande, vá se vestir rapidinho, rapidinho,
e rua, seu vagabundo!

CASO DE RECENSEAMENTO - CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE
O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio
longínqüo,       aonde         nunca         chegam        as    notícias.


-          Não                quero            comprar                nada.


- Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo
da    população    e     lhe    peço    o     favor   de    me    ajudar.


- Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém.
Tomara     eu    que    Deus     me    ajude.    Com       licença,    sim?


E                 fecha-lhe                      a                    porta.


Ele                    bate                    de                     novo.


- O senhor outra vez?! Não lhe disse que não adianta me
pedir                                                            auxílio?


- A senhora ano me entendeu bem, desculpe. Desejo que me
auxilie mas é a encher esta papel. Não vai pagar nada, não
vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.


- Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito
ocupada,                               até                             logo!
A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta
reestabelecer                     o                   diálago.


- Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa e antes que eu
chame                       meu                       marido!


- Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele. ( Só
Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia
na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso
preencher    o    questionário,   é   preciso    preencher   o
questionário).


- Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e
sem         camisa,        puxado         pela        mulher.


- É esse camelô aí que ano quer deixar a gente sossegada!


- Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo...


- Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira
qualquer,        depois    empurram        a       mercadoria!


A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!


O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele
estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo
com calma, convence-o de que não é nem camelô, nem
policial, nem cobrador de impostos, nem enviado de Tenório
Cavalcanti.


A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando
naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa
atender o rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há
despesa, nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer
ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser
objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do
governo.


-      O      senhor        tem       filhos,       seu      Ediraldo?


-          Tenho             três,              sim           senhor.


- Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de
cada                                                              um?


- Pois não. Tenho Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel
Urubatã,       de      10;        e     a       Pipoca,      de      4.


- Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a
Pipoca,       como      é         mesmo         o     nome        dela?


- Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.
- Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...


-    Isso      eu       não   sei,     não       me   lembro.


E           voltando-se       para           a        cozinha:


-    Mulher,        sabes     o      nome        de   Pipoca?


A              mulher             aparece,            confusa.


- Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.
Reviraram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.


- Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o
nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?
- Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito
obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado minha senhora,
disponham!



FLOR DE MAIO - RUBEM BRAGA


Entre tantas notícias do jornal - o crime do Sacopã, o disco
voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime
que caiu, o homem que matou outro com machado e com
foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés -
há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os
jornais                                          publicaram.


Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta dágua,
nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está
em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de
avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e
nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena
visitar o Jardim, porque a planta chamada "flor-de-maio"
está,           efetivamente,             em             flor.


Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi
deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico,
contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto
pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e
escrever, telefonema a dar, providências a tomar. Agora já
desce                                                       a
noite, e as plantas em flor devem ser vistas pela manhã ou à
tarde, quando há sol - ou mesmo quando a chuva as
despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no
chão.


Suspiro e digo comigo mesmo - que amanhã acordarei cedo e
irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que
esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi - um
impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no
meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam.
Qualquer uma destas tardes é possível que me dê vontade
real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será
tarde, não haverá mais "flor-de-maio", e então pensarei que é
preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono
posso estar em outra cidade em que não haja outono em
maio, e sem outono em maio não sei se em alguma cidade
haverá                   essa                    "flor-de-maio".


No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas
sejam lidas por alguém - uma pessoa melhor do que eu,
alguma criatura correta e simples que tire desta crônica a
sua única substância, a informação precisa e preciosa: do
dia 27 em diante as "flores-de-maio" do Jardim Botânico
estão
gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo
de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a "flor-de-
maio" - talvez com a mulher e as crianças, talvez com a
namorada,                        talvez                      só.


Ir só, no fim da tarde, ver a "flor-de-maio"; aproveitar a única
notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais
bela e emocionante de um dia inteiro da cdade imensa. Se
entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a
notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e
que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões
desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a
humanidade         possivelmente     ainda    poderá      ser
salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.

Chatear e Encher – PAULO MENDES CAMPOS
Um amigo meu me ensina a diferença entre ―chatear‖ e
―encher‖.
Chatear é assim:
Você telefona para um escritório qualquer na cidade.
- Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar?
- Aqui não tem nenhum Valdemar.
Daí a alguns minutos você liga de novo:
- O Valdemar, por obséquio.
- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.
- Mas não é do número tal?
- É, mas aqui não trabalha nenhum Valdemar.
Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:
- Por favor, o Valdemar já chegou?
- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo
desse Valdemar nunca trabalhou aqui?
- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.
- Não chateia.
Daí a dez minutos, liga de novo.
- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um
recado?
O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz
coisas impublicáveis.
Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez
minutos, faça nova ligação:
- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém
telefonou para mim?

TURCO - FERNANDO SABINO

Assim que chegou a Paris, foi cortar o cabelo, coisa que não
tivera tempo de fazer ao sair do Rio. O barbeiro, como os de
toda parte, procurou logo puxar conversa:

— Eu tenho aqui uma dúvida, que o senhor podia me
esclarecer.

— Pois não.

— Eu estava pensando... A Turquia tomou parte na última
guerra?

— Parte ativa, propriamente, não. Mas de certa maneira
esteve envolvida, como os outros países. Por quê?

— Por nada, eu estava pensando. A situação política lá é
meio complicada, não?

Seu forte não era a Turquia. Em todo caso respondeu:
— Bem, a Turquia, devido a sua situação geográfica...
Posição estratégica, não é isso mesmo? O senhor sabe, o
Oriente Médio...

O barbeiro pareceu satisfeito e calou-se, ficou pensando.

Alguns dias depois ele voltou para cortar novamente o
cabelo. Ainda não se havia instalado na cadeira, o barbeiro
começou:

— Os ingleses devem ter muito interesse na Turquia, não?

Que diabo, esse sujeito vive com a Turquia na cabeça —
pensou. Mas não custava ser amável, além do mais, ia
praticando o seu francês:

— Devem ter. Mas têm interesse mesmo é no Egito. O canal
de Suez.

— E o clima lá?

— Onde? No Egito?

— Na Turquia.

Antes de voltar pela terceira vez, por via das dúvidas
procurou informar se com um conterrâneo seu, diplomata
em Paris e que já servira na Turquia.

— Desta vez eu entupo o homem com Turquia decidiu-se.

Não esperou muito para que o barbeiro abordasse seu
assunto predileto:
— Diga-me uma coisa, e me perdoe a ignorância: a capital da
Turquia é Constantinopla ou Sófia?

— Nem Constantinopla nem Sófia. É Ancara.

E despejou no barbeiro tudo que aprendera com seu amigo
sobre a Turquia. Nem assim o homem se deu por satisfeito,
pois na vez seguinte foi começando por perguntar:

— O senhor conhece muitos turcos aqui em Paris?

Era demais:

— Não, não conheço nenhum. Mas agora chegou a minha vez
de perguntar: por que diabo o senhor tem tanto interesse na
Turquia?

— Estou apenas sendo amável — tornou o barbeiro,
melindrado: — Mesmo porque conheço outros turcos além do
senhor.

— Além de mim? Quem lhe disse que sou turco? Sou
brasileiro, essa é boa.

— Brasileiro? — e o barbeiro o olhou, desconsolado:

— Quem diria! Eu seria capaz de jurar que o senhor era
turco. . .

Mas não perdeu tempo:

— O Brasil fica é na América do Sul, não é isso mesmo?
NEIDE - RUBEM BRAGA

O céu está limpo, não há nenhuma nuvem acima de nós. O
avião, entretanto, começa a dar saltos, e temos de pôr os
cintos para evitar uma cabeçada na poltrona da frente. Olho
pela janela: é que estamos sobrevoando de perto um grande
tumulto de montanhas. As montanhas são belas, cobertas de
florestas; no verde escuro há manchas de ferrugem de
palmeiras, algum ouro de ipê, alguma prata de embaúba, e
de súbito uma cidade linda e um rio estreito. Dizem me que é
Petrópolis.


É fácil explicar que o vento nas montanhas faz corrente para
baixo e para cima, como também o ar é mais frio debaixo da
leve nuvem. A um passageiro assustado o comissário diz que
"isso é natural". Mas o avião, com o tranqüilo conforto imóvel
com que nos faz vencer milhas em segundos, havia nos
tirado   o    sentimento   do   natural.   Somos     hóspedes        da
máquina.      Os   motores     foram   revistos,   estão     perfeitos,
funcionam bem, e temos nossas passagens no bolso; tudo
está em ordem. Os solavancos nos lembram de que a
natureza insiste em existir, e ainda nos precipita além dela,
para os reinos azuis da Metafísica. Pode o avião vencer a
montanha       e   desprezar    as   passagens     antigas     que    a
humanidade sempre trilhou. Mas sua vitória não pode ser
saboreada de perto: mesmo debaixo, a montanha ainda fez
sentir que existe e à menor imprudência da máquina o
gigante vencido a sorverá de um hausto, e a destruirá. Assim
a humilde lagoa, assim a pequena nuvem: a tudo isso somos
sensíveis        dentro      de      nosso   monstro     de     metal.


A menina disse que era mentira, que não se via anjo nenhum
nas nuvens. O homem, porém, explicou que sim, e pediu que
eu                 confirmasse.                   Eu            disse:


— Tem anjo sim. Mas tem muito pouco. Até agora desde que
saímos eu só vi um, e assim mesmo de longe. Hoje em dia há
muito poucos anjos no céu. Parece que eles se assustam com
os aviões. Nessas nuvens maiores nunca se encontra
nenhum. Você deve procurar nas nuvenzinhas pequenas,
que ficam separadas umas das outras; é nelas que os anjos
gostam      de    brincar.    Eles    voam   de    uma   para   outra.


A menina queria saber de que cor eram as asas dos anjos e
de que tamanho eles eram. O homem explicou que os anjos
tinham as asas da mesma cor daquele vestidinho da menina;
e eram de seu tamanho. Ela começou a duvidar novamente,
mas chamamos o comissário de bordo. Ele confirmou a
existência dos anjos com a autoridade de seu ofício; era
impossível duvidar da palavra do comissário de bordo, que
usa uniforme e voa todo dia para um lado e outro, e além
disso ele tinha um argumento impressionante: "Então você
não sabia que tem anjos no céu?" E perguntou se ela tinha
vontade                       de                    ser                     anjo.


—                                                                           Não.
—         Que           é           que        você            quer         ser?


—                                                                     Aeromoça!


E começou a nos servir biscoitos; dois passageiros que
estavam    cochilando             acordaram    assustados          porque     ela
apertou o botão que faz descer as costas das poltronas; mas
depois      riram             e       aceitaram               os      biscoitos.


—           A                 Baía                 de              Guanabara!


Começamos a descer. E quando o avião tocava o solo,
naquele instante de leve tensão nervosa, ela se libertou do
cinto               e                     gritou                   alegremente:


—           Agora                   tudo                vai            explodir.


E disse que queria sair primeiro porque estava com muita
pressa, para ver as horas na torre do edifício ali perto: pois já
sabia                       ver                    as                    horas.


Não deviam ter lhe ensinado isso. Ela já sabe tanta coisa! As
horas se juntam, fazem os dias, fazem os anos, e tudo vai
passando, e os anjos depois não existem mais, nem no céu,
nem na terra.

    A ABOBRINHA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



    Quando a senhora foi descer do lotação, o motorista
coçou a cabeça:

    - Mil cruzeiros! Como é que a senhora quer que eu
troque mil cruzeiros?

    - Desculpe, me esqueci completamente de trazer trocado.

    - Não posso não. Madame não leu o aviso - olha ele ali -
que o troco máximo é de 200 cruzeiros?

    - Eu sei, mas que é que hei de fazer agora? O senhor
nunca esqueceu nada na vida?

    - Quem sabe se procurando de novo na bolsa...

    - Já procurei.

    Procura outra vez.

    Ela vasculhava, remexia, nada. Nenhum cavalheiro
(como se dizia no tempo de meu pai) se moveu para salvar a
situação, oferecendo troco ou se prontificando a pagar a
passagem. Àquela hora não havia cavalheiros, pelo menos no
lotação.

    - Então o senhor me dá licença de saltar e ficar devendo.
- Pera aí. Vou ver se posso trocar.

    Podia. Tirou do bolso de trás um bolo respeitável, foi
botando as cédulas sobre o joelho, meticulosamente.

    - Tá aqui o seu troco. De outra vez a madame já sabe,
hein?

    Ela desceu, o carro já havia começado a chispar, como é
destino dos lotações, quando de repente o motorista freou e
botou as mãos à cabeça:

    - A abobrinha! Ela ficou com a abobrinha!

    Voltando-se para os passageiros:

    - Os senhores acreditam que em vez de guardar a nota
de mil, eu de burro devolvi com o troco?

    Botou a cabeça fora do carro, à procura da senhora, que
atravessava a rua, lá atrás:

    - Dona! Ó dona! A nota de mil cruzeiros!

    Ela não escutava. Ele fazia sinais, pedia aos transeuntes
que a chamassem, o trânsito entupigaitava-se, buzinas
soavam.

    - Toca! Toca!

    Os passageiros não pareciam interessados no prejuízo,
como antes não se condoeram do vexame da senhora.

    - Como é que eu posso tocar se perdi mil cruzeiros,
gente? Quem vai me pagar esses mil cruzeiros?

    Encostou o veículo e, num gesto solene:
- Vou buscar meu cabral. A partir deste momento confio
este carro, com todos os seus pertences, à distinção dos
senhores passageiros.

    - Deixa que eu vou - disse um deles, garoto. E
precipitou-se para fora, antes do motorista.

    - Será que esse tiquinho de gente consegue?

    Via-se o garoto correndo para alcançar a senhora,
tocando-a pelo braço, os dois confabulando. Ela abria de
novo a bolsa, tirava objetos, o pequeno ajudava. Enquanto
isso, o motorista carpia:

    - Esta linha é de morte. Primeiro querem que a gente
troque um conto de réis, como se o papai fosse o Tesouro
Nacional ou o Banco do Brasil. Depois carregam o troco e o
dinheiro trocado, que nem juro. Essa não! E esse garoto que
não acaba com a conversa mole? Sei lá até se ele volta.

    Os passageiros impacientavam-se com a demora da
expedição. O guarda veio estranhar o estacionamento e
recebeu a explicação de força-maior:

    - Quem é que me paga meus mil cruzeiros? O Serviço de
Trânsito?

    Voltou o garoto, sem a nota. A senhora tinha apenas 987
cruzeiros, ele vira e jurava por ela.

    - Toca! Toca!
- Tão vendo? Um prejuízo desses antes do almoço é de
tirar a fome e a vontade de comer.

    Disse isso em tom frio, sem revolta, como simples
remate. E tocou. Perto do colégio, o garoto desceu, repetindo,
encabulado:

    - Pode acreditar, ela não tinha mesmo o dinheiro não.

    O motorista respondeu-lhe baixinho:

    - Eu sei. Já vi que está ali debaixo da caixa de fósforos.
Mas se eu disser isso, esse povo me mata.



Confusão com São Pedro – FERNANDO SABINO


     Você vai neste avião, eu         vou     no    próximo-
decidiu
de súbito, no último instante, quando o       alto-falante   já
invocava os
passageiros: queiram apresentar suas despedidas e boa
viagem.


     Ele deu um suspiro desalentado. Já fora um custo
convencer a
mulher de viajarem de avião. Ela dizia que tinha medo, por
que não vamos
de trem? E passara a noite toda naquela conversa, olha, meu
bem, tenho um pressentimento ruim.
Quando já estavam praticamente embarcados, vinha com
novidade.


        - Que bobagem é essa?


        - Eu vou no outro- insistiu ela,    aflita: -   Tem   outro
avião
daqui a meia hora.


        - Mas por que isso assim de repente?


        Ela o olhava nos olhos como se se despedisse dele para
sempre:


        - Não podemos correr tanto risco juntos, meu bem, seja
razoável.
Temos nossos filhos, imagine se acontece alguma coisa.


        - Não vai acontecer nada, mulher.


        - Eu sei que não tem perigo, que é o transporte mais
seguro do
mundo, e as estatísticas, e essa coisa toda, você já            me
explicou. Mas
pense um pouco nos nossos filhos, pelo amor de Deus! Eu
indo num e você
noutro, sempre é uma chance de pelo menos um de nós dois
escapar.


     - Olha aí, já estão chamando de novo. Vamos embora,
mulher.


     Ela fincara pé, irredutível. Sem mais tempo para
argumentar,
ele acabou cedendo:


     - Está bem, seja como você quiser! Mas então vai nesse,
eu vou
no outro. Se eu deixar você aqui, você acaba não indo.


     Despediu-se      dela,   aborrecido,   e   foi   tratar   da
transferência de
sua passagem.


     A mulher entrou no avião como num túmulo, o coração
aos pulos.
A porta se fechou, desligando-a para sempre do mundo. A
seu lado, viajava um padre, alheio a tudo, mergulhado no
breviário.


     De súbito o avião, já em pleno vôo, começou a jogar.
Eu não
disse? eu não disse? Entraram numa nuvem escura e nunca
mais que saíam
dela.


        Em pânico, chamou o comissário: não é nada, minha
senhora, uma
pequena tempestade, estamos fazendo vôo cego.


        Vôo cego! Sentindo-se perdida, voltou-se para o padre:


        - Estou com tanto medo, seu padre.


        O padre a olhou, desconfiado:


        - Reza, que é melhor.


        E voltou ao seu breviário. Rezar? Não, ela não sabia
rezar.
Lembrou-se de São Pedro, que era quem devia manobrar
chuvas e
tempestades - juntou as mãos e pediu-lhe auxilio:


        - São Pedro, piedade de mim. Tenho meus filhos para
criar. Fui
criada sem mãe, o senhor não imagina a falta que uma mãe
faz. Todos na
minha família ficaram assim feito eu, só porque não tiveram
mãe. Que
será dos meus filhos sem mãe, São Pedro, mãe faz muito
mais falta que
pai, por favor me protege, se for preciso transfere essa
tempestade para
o avião dele, mas me salva desta que noutra eu nunca mais
hei de me
meter.


     A falta de mãe não lhe abalara o prestígio junto a São
Pedro-
tanto assim que em pouco o avião deixava para trás a
tempestade e saía
para um céu azul, e logo descia no aeroporto sem mais
novidades. Estava
salva!


     Comprou uma revista, sentou-se num canto e pôs-se a
esperar o
avião do marido. Esperou meia hora. Como ele nunca mais
chegasse, correu, já aflita, a informar-se no balcão.
Soube que não havia nada de especial: as más condições do
tempo às vezes
ocasionavam algum atraso.
- Más condições do tempo?


     Não tinha dúvida, era a tempestade que mandara para
ele. Roída
de remorsos, juntou as mãos ali mesmo, em frente ao
funcionário
assombrado:


     - São Pedro, essa não! não faça     isso   comigo.   Era
mentira, o
senhor não vai me levar a sério. O pai faz muito mais falta
que a mãe,
quem é que foi meter uma bobagem dessa na             minha
cabeça? Ele trabalha
para sustentar a familha, eu não faço nada que preste. E
logo ele, tão
bom que ele é, tão carinhoso, por favor, São Pedro, não faça
isso com
ele, joga essa tempestade para cima de outro que não tenha
filhos, para
cima dele não!


     Em pouco São Pedro voltava a atendê-la, fazendo o
marido
desembarcar no aeroporto, são e salvo:
- Que cara é essa? Você está parecendo um fantasma!
Aconteceu
alguma coisa?


     Ela se abraçou a ele, ansiosa:


     - Você está bem? Você me perdoa?


     - Eh, que novidade você vai inventar agora? Perdoar
o quê,
mulher?


     - Tudo por minha culpachoramingou ela.- Mas graças a
Deus você
está salvo. Fiz uma confusão enorme com São Pedro, você
nem imagina. Da
próxima vez, quer saber de uma coisa? vou com você,
morreremos juntos,
nossos filhos que se danem.


     Ele a olhou, francamente apreensivo."Acho que essa
minha mulher
está ficando maluca", pensou.


CORAÇÃO MATERNO – PAULO MENDES CAMPOS
Duas horas da tarde. Ali no início do Morro da Viúva
fizeram
sinal: duas senhoras,      ambas    de    cabelos    brancos,
preparavam-se para
entrar no lotação, quando o motorista gritou:"Um lugar só".
A velhinha
mais velha, já com o pé colocado no carro com imensa
dificuldade,
conseguiu retirar a perna comprometida, com dificuldade
ainda maior, sob
os protestos persuasivos da velha mais moça, que dizia:


     - Vai, mamãe, vai a senhora, eu vou em outro.


     A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade,
sorria:


Na condução - 51


     - Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha.


     - Vai, mamãe.


     - Não, minha filha.


     - Pelo amor de Deus, mãe; o homem está esperando.
- Mas.., minha filha?!


       Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência
de quem tem
ou já teve mãe. O motorista fez força (e         o   conseguiu,
parabéns) para
refrear a sua fúria de Averno.


       - Vai, mãezinha; aqui neste ponto é difícil arranjar
dois
lugares.


       - Não posso te deixar sozinha, minha filha. Nunca!


       Diante do impasse, levantou-se, resoluto um         senhor
sentado no
banco da frente, oferecendo-se para ir em pé,         as    duas
senhoras iriam
sentadas. Ah, mas isso não, aparteou o motorista, era
contra o
regulamento, dava multa. O amável passageiro descompôs o
regulamento do
tráfego e os demais regulamentos: eram desumanos. Ao pé
da calçada, o
torneio sentimental de mãe e filha continuava:
- Vai, vai, mãe.


     - Não posso ir sem você, minha filha.


     Quem viu a necessidade eventual de perder docemente
a paciência
foi a filha. Usando de energia adequada ao momento,
segurou o braço da
velhinha (mas velhinha mesmo, frágil, frágil), empurrou-a
com o mínimo
de força necessária, proferiu uma ordem imperiosa:


- Vai, mãe.


     E   a    velha   mais   moça   se   afastou   em       passadas
compridas, impedindo
a contramarcha da velha mais velha, que estava no limite
extremo de sua
timidez, e não teve outro jeito senão agarrar-se ao braço do
motorista,
entrar penosamente, sorrir pedindo perdão para todos os
passageiros. Ajeitou-se no banco,
esperou o barulho do motor e comentou para              a    vizinha
(que a olhava,
compreendendo tudo, as velhas, as mães, o cosmos):
- Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí,
só, tão
longe!


     Longe de onde? Das entranhas que criaram uma
menina. Longe. Só.


     A viagem para o centro foi recomeçada, sem novidades,
todos
voltaram para dentro de si mesmos, esquecidos do episódio.
A mãe, no
entanto,    furtiva   (certa   de   que   já   causara   bastante
transtornos naquele
dia) inspecionava todos os lotações que ultrapassavam o
nosso, aflita em
sua quietude, buscando lobrigar a filha. Mas foi só quando
o lotação
entrou na Avenida, e parou diante de um sinal, que, enfim, a
velha mais
moça, a filha, apareceu em um lotação ao nosso lado. As
duas se sorriram
como depois de uma longa e apreensiva travessia.               A
velhinha chegou a
fazer graça:
- Graças a Deus, minha filha! Você ainda chegou antes
de mim.


     - Eu não disse, mãe, que não tinha perigo?


     A filha desceu na esquina, chegou até perto da janela
do nosso
lotação, segurou a mão de sua mãe:


     - Agora vai direitinha, viu?


     - Você pode ir descansada, minha filha.


     O lotação arrancou de novo, gestos de adeus, a
harmonia voltou
ao rosto da nossa velhinha, que tranqüilizou também a
vizinha de banco:


     - Ela vai trabalhar no Ministério; eu vou para casa,
moro no Rio
Comprido.


NA ESCOLA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


     Democrata é Dona Amarílis, professora na escola
pública de uma
rua que não vou contar, e mesmo o nome de Dona Amarílis é
inventado, mas
o caso aconteceu.


     Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou
assim:


     - Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito
importante.
Pode ser?


     - Pode - a garotada respondeu em coro.


     - Muito bem.   Será   uma   espécie   de   plebiscito.   A
palavra é
complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião,
a gente soma
as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião,
não falem
todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu
saber o que é
que cada um pensa. Está bem?


     - Está - respondeu o coro, interessadíssimo.
-    Ótimo.   Então,   vamos   ao   assunto.   Surgiu   um
movimento para as
professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O
governo disse que
deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero
dicidir por mim.
O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os
alunos. Para
todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou.
Assim não tem
problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato
Carlos, você acha
que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na
escola?


     - Acho que não deve - respondeu, baixando os olhos.


- Por quê?


     - Porque é melhor não usar.


     - E por que é melhor não usar?


     - Porque minissaia é muito mais bacana.
- Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor,
anote aí
no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por
obséquio, anote os
votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.


     - Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por
que vai
deixar de usar aqui dentro?


     - Mas aqui dentro é outro lugar.


     - É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal
que eu vi
outro dia na rua, aquela é bárbara.


     - Um a favor. E você, Aparecida?


     - Posso ser sincera, professora?


     - Pode, não. Deve.


     - Eu, se fosse a senhora, não usava.


     - Por quê?
- O quadril, sabe? Fica meio saliente...


     -    Obrigada,    Aparecida.   Você   anotou,   Marilena?
Agora você,
Edmundo.


     - Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A
senhora
deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é
certinho.


     - Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça,
sim. Você é
contra ou a favor da calça?


     - A favor 100%.


     - Você, Peter?


     - Pra mim tanto faz.


     - Não tem preferência?


     - Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.
- Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de
tomar nota dos
votos iguais ao de Peter: nem contra nem a favor, antes pelo
contrário.


      Assim iam todos votando, como se       escolhessem   o
Presidente da
República, tarefa que talvez, quem sabe? no futuro sejam
chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção.          A
vez
de Rinalda:


      - Ah, cada um na sua.


      - Na sua, como?


      - Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele,
entende?


      - Explique melhor.


      - Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona,
venha.
Eu quero vir de midi, de máxi, de hort, venho. Uniforme é
papo furado.
- Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?


     - Evidente. Cada um curtindo à vontade.


     - Legal!exclamou Jorgito.- Uniforme esta superado,
professora.
A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de
qualquer jeito.


     - Não pode - refutou Gilberto.- Vira bagunça. Lá em
casa ninguém
anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de
respeitar o
uniforme.


     Respeita, não respeita, a discussão esquentou, Dona
Amarílis
pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos
se haviam
extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se
fazia ouvir, pelo
que, com quatro votos a favor de     calça   comprida,   dois
contra, e um
tanto-faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta
a abolição
do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar
encerrado o
plebiscito, e passou à lição de História do Brasil.


REUNIÃO DE MÃES - FERNANDO SABINO


     Na reunião de pais só havia mães. Eu me sentiria
constrangido em
meio a tanta mulher, por mais simpáticas me parecessem, e
acabaria nem
entrando - se não pudesse logo distinguir, espalhadas no
auditório, duas
ou três presenças masculinas que partilhariam         de   meu
ressabiado zelo
paterno.


     Sentei-me numa das últimas filas, para não causar
espécie à
seleta assembléia de progenitoras. Uma delas fazia tricô, e
várias
conversavam, já confraternizadas de      outras   reuniões.   O
Padre-Diretor
tomou assento à mesa, cercado de professoras, e deu início à
sessão.
Eu viera buscar Pedro Domingos para levá-lo                    ao
médico, mas
desta vez cabia-me também participar antes da reunião.
Afinal de contas
andava mesmo precisando de verificar pessoalmente                    a
quantas o menino
andava.


     O Padre-Diretor fazia considerações gerais sobre o
uniforme de
gala a ser adotado. A gravatinha é azul?perguntou uma das
mães. Meia
três-quartos?perguntou      outra.      E      o   emblema          no
bolsinho?perguntou uma
terceira. Outra ainda, à minha frente, quis saber se tinha
pesponto-
mas sua pergunta não chegou a ser ouvida.


     Invejei-lhes a desenvoltura. Tive vontade de perguntar
também
alguma coisa, para tornar mais efetivo meu interesse de pai
- mas temi
aquelas     mães   todas   voltando   a      cabeça,     curiosas    e
surpreendidas, ante uma
destoante    voz   de   homem,   meio       gaguejante    talvez    de
insegurança. Poderia
também não ser ouvido - e se isso me acontecesse eu sumiria
na cadeira.
Além do mais, não me ocorria nada de mais prático para
perguntar senão o
que vinha a ser pesponto.


     Acabei concluindo que tanta     perguntação    quebrava
um pouco a
solene compostura que devíamos manter, como responsáveis
pelo destino de
nossos filhos. E dispensei-me de intervir, passando a ouvir a
explanação
do Padre-Diretor:


     - Chegamos agora ao ponto que interessa: o quinto ano.
Depois de
cuidadosa seleção, foi dividido em três turmas - a turma 14,
dos mais
adiantados; a turma 13, dos regulares; e a turma 12, dos
atrasados,
relapsos, irrequietos, indisciplinados. Os da 13 já não são lá
essas coisas, mas os da
12 posso assegurar que dificilmente irão para a frente, não
querem nada
com estudo.
Fiquei atento: em qual delas estaria o menino? Pensei
que o
Diretor ia ler a lista de cada turma - o meu certamente na
14. Não leu,
talvez por consideração para com        as   mães    que      tinham
filhos na 12.
Várias, que já sabiam disso, puseram-se a falar ao mesmo
tempo: não era
culpa delas; levavam muito dever para casa,                  não   se
habituavam com o
semi-internato. Uma - a do tricô, se não me engano - chegou
mesmo a se
queixar do ensino dirigido, que a seu ver não estava dando
resultado.
Outra disse que tinha três filhos, faziam provas no mesmo
dia, como
prepará-los de uma só vez? O Padre-Diretor sacudiu                 a
cabeça, sorrindo
com simpatia - não posso nem ao menos lastimar que a
senhora tenha tanto
filho. E voltou a falar nos relapsos, um caso muito sério. Não
vai esse
Padre     dizer   que   meu   filho   está   entre   eles,    pensei.
Irrequieto,
indisciplinado. Ah, mas ele havia de ver comigo: entre os
piores!
E por que não? Quietinho, muito bem mandado,
filhinho do papai,
maria-vai-com-as-outras ele não era mesmo não. Desafiei o
auditório,
acendendo um cigarro: ninguém tinha nada com             isso.
Criança ainda, na
idade mesmo de brincar e não levar as coisas tão a sério. O
curioso é
que não me parecesse assim tão vadio - jogava futebol na
rua, assistia à
televisão, brincava de bandido, mas na hora de estudar o
rapazinho
estudava, então eu não via? Quem sabe se procurasse
ajudá-lo, dar uma
mãozinha... Mas essas coisas que ele andava estudando eu
já não sabia
de cor, tinha de aprender tudo de novo. Outro dia, por
exemplo, me
embatucou perguntando se eu sabia como se chamam os
que nascem na Nova
Guiné. Ninguém sabe isso, meu filho, respondi gravemente.
Ah, não sabe?
Pois ele sabia: guinéu! Não acreditei, fui olhar no dicionário
para ver se era mesmo. Era. Talvez estivesse na turma 13,
bem que
sabia lá uma coisa ou outra, o danadinho.


     Agora o Diretor falava na     comida   que   serviam   ao
almoço. Da
melhor qualidade, mas havia um problema - os meninos se
recusavam a comer
verdura, ele fazia questão que comessem, para manter dieta
adequada. No
entanto,    algumas   mães   não   colaboravam.    Mandavam
bilhetinhos pedindo que
não dessem verdura aos filhos.


     Eis algo que eu jamais soube explicar: por que menino
não gosta
de verdura? Quando menino eu também não gostava.


     - Pedem às mães que mandem bilhetinhos e não é só
isso: usam
qualquer recurso para não comer verdura. Hoje mesmo me
apareceu um com
um bilhete da mãe dizendo: não obrigar meu filho a comer
verdura. Só que
estava escrito com a letra do próprio menino.


     Chegava era a hora de levá-lo ao médico - uma
professora amiga
foi buscá-lo para mim.


      - Meu filho - perguntei, ansioso, assim que saímos: -
Em que
turma você está? Na 12 ou na 13?


      - Na 14ele respondeu, distraído. Respirei com alívio: e
nem
podia ser de outra maneira, não era isso mesmo?


      - Fico satisfeito de saber - comentei apenas.


      Ele não perdeu tempo:


      - Então eu queria te pedir um favor - aproveitou-se
logo:- Que
você mandasse ao Padre-Diretor um bilhete dizendo que eu
não posso comer
verdura.




O risadinha (1)- PAULO MENDES CAMPOS


      Seria melhor dizer que ele não teve infância. Mas não é
verdade.
Eu o conheci menino, trepando às árvores, armando
alçapão para
canários-da-terra, bodoqueando as rolinhas, rolando pneu
velho pelas
ruas, pegando traseira de bonde, chamando o Professor
Asdrúbal de
Jaburu. Foi este último um dos mais divertidos e perigosos
brinquedos da
nossa infância: o velho corria atrás da gente brandindo a
bengala, seus
bastos bigodes amarelos fremindo sob as ventas vulcânicas.


     Nestor, em suma, teve a meninice normal de um
filho de
funcionário público em nosso tempo, tempo incerto, pois os
recursos da
Fazenda na província eram magros, e os pagamentos se
atrasavam,
enervando a população.


     Seus companheiros talvez nem soubessem que se
chamasse Nestor;
era para todos o Risadinha. Falava pouco e ria muito, um
riso de fato
diminutivo, nascido de reservados solilóquios, quase sempre
extemporâneo.
Certa feita, na aula de
francês, quando entoávamos em coro o presente                do
subjuntivo do verbo
sôen aller, Risadinha pespegou uma bólide de papel bem na
ponta do nariz
do professor, que era muito branco, pedante a capricho e
tinha o nome de
Demóstenes. O rosto do      mestre   passou    do   pálido   ao
rubro das suas
tremendas cóleras. Um dos seus prazeres, sendo-lhe vetado
por lei
castigar-nos com o bastão, era desfiar em cima do culpado
uma série de
insultos preciosos, que ele ia escandindo um por um, sem
pressa e com
ódio.


        - Levante-se, seu Nestor! Sa-cri-pan-ta! Ne-gli-gen-
te!
Si-co-fan-ta! Tu-nan-te! Man-dri-ão! Ca-la-cei-ro! Pan-di-lha!
Bil-tre!
Tram-po-li-nei-ro!    Bar-gan-te!    Es-trói-na!     Val-de-vi-
nos!
Va-ga-bun-do!...
Pegando a deixa da única palavra inteligível, Risadinha
erguia
o dedo no ar e protestava, com ar ofendido:


     - Vagabundo, não, professor.


     Era um artista do cinismo, e sua momice de inocência
era de
tal arte que até mesmo seu Demóstenes não conseguia
conter o riso.
Como também somente ele já arrancara uma gargalhada do
padre-prefeito,
um alemão da altura da catedral de Colônia, num dia em
que vinha
caminhando lento e distraído, fora da forma.


     - Por que o senhorr não está na forma?perguntou-lhe
rosnando
o padre, como se estivesse de       promotor   da   Inquisição,
diante de um
herege horripilante.


     - E porque estou com meu pezinho machucado,
respondeu com doçura
o Risadinha.
- E por que senhorr não está mancando?


     Risadinha olhou com espanto para os seus próprios
pes, começando
a mancar vistosamente:
     - Desculpe, seu padre, é porque eu tinha esquecido.




Aula de inglês – RUBEM BRAGA


- Is this an elephant?
     Minha tendência imediata foi responder que não; mas a
gente não
deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar
que lancei à
professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e
tinha o ar de
quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei
com a maior
atenção o objeto que ela me apresentava.
     Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa
leviana
poderia concluir às pressas que não se tratava de um
elefante. Mas se
tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele
de ser um
elefante; e mesmo que morra em conseqüência da brutal
operação, continua
a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em
princípio, tão
elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-
me de
averiguar se aquilo tinha quatro   patas,   quatro   grossas
patas, como
costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui
descobrir o
pequeno rabo que caracteriza õ grande animal e que, às
vezes, como já
notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça
infantil.


      Terminadas as minhas observações, voltei-me para a
professora e
disse convictamente:


- No, it's not!
      Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora
de minha
resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente me
perguntou:
      - Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha
vida no meio
de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de
distinguir um
livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos,
sejam eles
garrafas, tijolos ou cerejas maduras - sejam quais forem.
Aquilo não era um livro, e mesmo
supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo
não seria um
deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta
demorou no
máximo dois segundos:
     - No, it's not!
     Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita - mas so por
alguns
segundos.     Aquela   mulher   era   um   desses   espíritos
insaciáveis que estão
sempre a se propor questões, e se debruçam com uma
curiosidade aflita
sobre a natureza das coisas.
     - Is it a handkerchief?
     Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer
a verdade,
não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse
hipoteca...
Não, hipoteca não. Por que haveria de ser                   hipoteca?
Handkerchief! Era
uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática;
talvez fosse chefe
de serviço    ou    relógio    de   pulso    ou    ainda,   e   muito
provavelmente,
enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
      - No, it's not!
      Minhas palavras soaram alto, com certa violência,
pois me
repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos
meus arredores
pudesse ser um handkerchief.
      Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez,
porém, a
pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia
uma luz de
malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de
desafio. Sua
voz   era    mais   lenta     que   das   outras   vezes;   nao   sou
completamente ignorante
em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha
a certeza
de que se tratava de uma pergunta decisiva.
      - Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro
lugar porque
eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em
segundo lugar
porque, fitando o objeto que ela me apresentava,           notei
uma
extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Sim. Era
um objeto de
louça de forma oval, com
cerca de treze centímetros de comprimento.         As   bordas
eram da altura
aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias
curvas - duas ou
trêsna parte superior. Na depressão central, uma espécie
de bacia
delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de
cigarro fumado
(uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um
palito de
fósforos já riscado. Respondi:
        - Yes!
        O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora
teve o
rosto     completamente    iluminado   por   uma    onda     de
alegria; os olhos
brilhavam - vitória! vitória!e um largo sorriso desabrochou
rapidamente
nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e
inquieta.
Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de
estender o braço
e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito
excitada:
         - Very well! Very well!
         Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no
lidar com
mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me
perturbou;
tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.
         Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira
aula; andei
na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma       loja,
alguns belos
cachimbos ingleses, tive mesmo a     tentação    de   comprar
um. Certamente
teria entabulado uma longa conversação com o embaixador
britânico, se o
encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da
boca e lhe
diria:
         - It's not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu
sabia
falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador
ver que sua
língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do
país junto
a cujo governo é acreditado.




OUSADIA – FERNANDO SABINO


     A moça ia no ônibus muito contente desta vida, mas, ao
saltar, a
contrariedade se anunciou:


     - A sua passagem já está paga - disse o motorista.


     - Paga por quem?


     - Esse cavalheiro aí.


     E apontou um mulato bem vestido que acabara de
deixar o ônibus,
e aguardava com um sorriso junto à calçada.
- É algum engano, não conheço esse homem. Faça o
favor de
receber.


     - Mas já está paga...


     - Faça o favor de receber!insistiu ela, estendendo o
dinheiro e falando bem alto para que o homem ouvisse:- Já
disse que não
conheço! Sujeito atrevido, ainda fica ali me      esperando,   o
senhor não
está vendo? Vamos, faço questão que o senhor receba minha
passagem.
     O motorista ergueu os ombros e acabou recebendo:


melhor para ele, ganhava duas vezes.


     A moça saltou do ônibus e passou fuzilando de
indignação pelo
homem.


     Foi seguindo pela rua, sem olhar para ele.


     Se olhasse, veria que ele a seguia, meio ressabiado, a
alguns
passos.
Somente quando dobrou à direita para entrar no
edifício onde
morava, arriscou uma espiada: lá vinha ele! Correu para o
apartamento,
que era no térreo, pôs-se a bater, aflita:


        - Abre! Abre aí!


        A empregada veio abrir e ela irrompeu pela             sala,
contando aos
pais atônitos, em termos confusos, a sua aventura:
        - Descarado, como é que tem coragem? Me seguiu até
aqui!


        De súbito, ao voltar-se, viu pela porta aberta que o
homem ainda
estava lá fora, no saguão.     Protegida     pela   presença    dos
pais, ousou
enfrentá-lo:


        - Olha ele ali! É ele, venham ver! Ainda está ali,
o
sem-vergonha. Mas que ousadia!
Todos se precipitaram para a porta. A empregada levou
as mãos à
cabeça:


     - Mas a senhora, como é que pode! É o Marcelo.


     -     Marcelo?   Que   Marcelo?a   moça     se   voltou,
surpreendida.


     - Marcelo, o meu noivo. A senhora conhece ele, foi quem
pintou o
apartamento.


     A moça só faltou morrer de vergonha:


     - É mesmo, é o Marcelo! Como é que eu não reconheci!
Você me
desculpe, Marcelo, por favor.


     No saguão, Marcelo torcia as mãos, encabulado:


     - A senhora é que me desculpe, foi muita ousadia...




Mendigo – PAULO MENDES CAMPOS
Eu estava diante duma banca de jornais na Avenida,
quando a mão
do mendigo se estendeu. Dei-lhe uma nota tão suja e tão
amassada quanto
ele. Guardou-a no bolso, agradeceu com um seco obrigado e
começou a ler
as manchetes dos vespertinos. Depois me disse:


Na rua - 71


     - Não acredito um pingo em jornalistas.       São   muito
mentirosos.
Mas tá certo: mentem para ganhar a vida. O importante é o
homem ganhar a
vida, o resto é besteira.


     Calou-se e continuou a ler notícias eleitorais:


     - O Brasil ainda não teve um governo que prestasse.
Nem rei, nem
presidente. Tudo uma cambada só.


     Reconheceu algumas qualidades nessa ou naquela
figura (aliás,
com invulgar pertinência para um mendigo), mas isso,        a
seu ver, não
queria dizer nada:


     - O problema é o fundo da coisa: o caso é que o
homem não
presta. Ora, se o homem não presta, todos os futuros
presidentes também
serão ruínas. A natureza humana é que é de barro ordinário.
Meu pai,
por exemplo, foi um homem bastante bom. Mas não deu
certo ser bom
durante muito tempo: então ele virou ruim.


     Suspeitando de que eu não estivesse convencido         da
sua teoria,
passou a demonstrar para mim que também ele        era     um
sujeito ordinário
como os outros:


     - O senhor não vê? Estou aqui       pedindo       esmola,
quando poderia
estar trabalhando. Eu não tenho defeito físico   nenhum      e
até que não
posso me queixar da saúde.


     Tirei do bolso uma nota de cinqüenta    e   lhe    ofereci
pela sua
franqueza.


     - Muito obrigado, moço, mas não vá pensar que eu vou
tirar o
senhor da minha teoria. Vai me desculpar, mas o senhor
também no fundo é
igualzinho aos outros. Aliás, quer saber de uma coisa? Houve
um homem de
fato bom, cem por cento bom. Chamava-se Jesus Cristo. Mas
o senhor viu o
que fizeram com ele?!




DIPLOMA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


     - Olha o diploma da mamãe! Quem tem sua mamãe
deve lhe oferecer
este diploma!


     Era atrás do edifício da Noite, na passagem lamacenta
onde se
aglomeram vendedores de canetas      automáticas    de   dez
cores, e outros
artigos. O rapaz aproximou-se da banca onde se exibiam
os diplomas.
Pediu licença para pegar num deles, enquanto o vendedor
continuava
gritando a mercadoria sentimental.


Mirou e remirou o papel com atençao.


     - Onde é que bota o retrato?


     - Que retrato?inquiriu o camelô.


     - O meu, para oferecer a ela...


     - Ah, compreendo, o cavalheiro quer oferecer um
retratinho a sua
mamãe. Muito bem, pode colocar sua bonita estampa nas
costas do diploma,
está vendo?


Timidamente, o rapaz formulou a objeção:


     - Mas, se ela enquadrar o diploma e pendurar na
parede, o
retrato fica escondido nas costas.


     - Perfeitamente, nesse caso ela pode   pendurar   o
quadro de
costas, e o amigo fica aparecendo.


       - Isso não. Eu queria botar meu retrato na frente do
diploma,
junto disso tudo que está escrito aí.


       - Não tem problema, cola aqui neste canto, fica até
mais
interessante.


       O rapaz tirou um embrulhinho do bolso, tirou     do
embrulhinho
sua fotografia em tamanho de postal, aplicou-a sobre o
diploma, no lugar
indicado pelo vendedor. Reconheceu, consternado:


       - Cabe não.


       - Cabe sim. Com licença, cavalheiro. Olhe como ficou
bacana.


       - Assim ele tapa as letras da escrita.


       - Ora, só umas letrinhas. A maioria das palavras
continua
visível. Que importância tem tapar algumas palavras? O
cavalheiro
cobre elas com o carinho da sua fotografia.


     O rapaz continuava indeciso. Dar um diploma a sua
mãe, no Dia
das Mães, era idéia nova, excitante. Não entendia   bem   o
que fosse
diploma, porém, certamente, sua mãe o merecia; e se o
diploma levasse o
retrato dele, deixava de ser um diploma qualquer, oferecido
a qualquer
mãe. Mas, como, se não tinham previsto o lugar para o
retrato do filho?


     - Vai levar?perguntou o camelô, desejoso de fechar o
negócio e
voltar à pregação oratória - pois eles gostam ainda mais de
falar à
multidão do que de vender.


     - Bem... eu levo. Corto o peito do meu retrato, assim
ele cabe
sem ofender as palavras. E como é que eu faço para
mandar para
Inajaroba?
- Onde fica isso, meu chapa?


      - Sergipe, então não sabe?


      - Até este momento não sabia, mas não tem problema.
Enrola,
bota no Correio, vai de avião.


      - Chega todo esbandalhado.


      - Então, passa ali na papelaria e pede     para   botar
enchimento,
fazer uma embalagem bem legal.


      - Mais um favorzinho, moço - e o rapaz baixou a voz e a
cabeça.


      - Vai dizendo, vai dizendo.


      - Pode ler para mim o que está escrito aí? Eu      não
gostava que
minha mãe recebesse o diploma sem eu saber o que estou
mandando dizer
nele...
- Com todo o prazer - e leu com ênfase, para o rapaz e
para o
grupo em redor, a declaração de amor de um filho a sua
mamãe, em forma
de diploma.


A OUTRA NOITE – RUBEM BRAGA


     Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma
noite de
vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para
casa de táxi,
encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele
que lá em
cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de Lua cheia;
e que as
nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima,
enluaradas,
colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.


     Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer
aproveitou um
sinal fechado para voltar-se para mim:


     - O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua
conversa.
Mas, tem mesmo luar lá em cima?


     Confirmei: sim, acima da nossa noite         preta   e
enlamaçada e
torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.


     - Mas, que coisa...


     Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o
céu fechado
de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não
sei se sonhava
em ser aviador ou pensava em outra coisa.


     - Ora, sim senhor...


     E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse
um"boa noite"
e um"muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes,
como se eu
lhe tivesse feito um presente de rei.

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  • 1. FUGA – FERNANDO SABINO Mal o pai colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho infernal. - Pára com esse barulho, meu filho – falou, sem se voltar. Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho, estava só empurrando uma cadeira. - Pois então pára de empurrar a cadeira. - Eu vou embora – foi a resposta. Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da dispensa? – a mãe mais tarde irá dizer), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande aventura, um botão amarrado num barbante. A calma que baixou então na sala era vagamente inquietante. De repente, o pai olhou ao redor e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:
  • 2. - Viu um menino saindo desta casa? – gritou para o operário que descansava diante da obra do outro lado da rua, sentado no meio-fio. - Saiu agora mesmo com uma trouxinha – informou ele. Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do muro. A trouxa, arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o botão, o pedaço de biscoito e – saíra de casa prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Camou-o, mas ele apertou o passinho, abriu a correr em direção à Avenida, como disposto a atirar-se diante do ônibus que surgia a distância. - Meu filho, cuidado! O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a esquerda, os pneus cantaram no asfalto. O menino, assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o arrebanhou com o braço como a um animalzinho: - Que susto que você me passou meu filho – a apertava-o contra o peito, comovido. - Deixa eu descer, papai. Você está me machucando. Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar umas palmadas:
  • 3. - Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai. - Me larga. Eu quero ir embora. Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala – tendo antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave, como ele fizera com a da dispensa. - Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando. - Fico, mas vou empurrar esta cadeira. E o barulho recomeçou. O MÉDICO E O MONSTRO – PAULO MENDES CAMPOS Avental branco, pincenê vermelho, bigodes azuis, ei-lo, grave, aplicando sobre o peito descoberto duma criancinha um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe passa. O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua irmã, a enfermeira; a criancinha é uma boneca de olhos cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo nome de Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma caixinha de brinquedos. Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto trabalham, a enfermeira presta informações:
  • 4. - Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção, nem de vitamina, mas a irmãzinha dela adora. O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca de Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer aaá. Rosinha diz aaá pelos lábios da enfermeira. O médico apanha o pincenê, que escorreu de seu nariz, rabisca uma receita, enquanto a enfermeira continua: - O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai ficar muito magrinha que até o vento carrega. O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno do pescoço da boneca, diagnosticando: - Mordida de leão. - Mordida de leão? - pergunta, desapontada, a enfermeira, para logo aceitar este faz-de-conta dentro do outro faz-de-conta. - Eu já disse tanto, meu Deus, para essa garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho Vermelho... Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de acarajé, um urso muito resfriado, porque só gostava de neve, um cachorro atropelado por lotação, outras bonecas de vários tamanhos, um Papai Noel, uma bola de borracha e até mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira. De repente, o médico diz que está com sede e corre para a cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se
  • 5. aproveita disso para dar um beijo violento no seu amor de filho e também para preparar-lhe um copázio de vitaminas: tomate, cenoura, maçã, banana, limão, laranja e aveia. O famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável droga. - Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você mesmo, doutor. Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo é levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada com uma careta. Em seguida, propõe um trato: - Só se você depois me der um sorvete. A terrível mistura é sorvida com dificuldade e repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora. A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e aplica no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com a ameaça dum chute. Já estamos a essa altura, como não podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico em monstro. Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são atirados sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo médico resta um lindo bigode azul. De máscara preta e espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde a doce enfermeira continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o consultório: microscópio, estetoscópio, remédios, seringa,
  • 6. termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito de horror e começa a chorar nervosamente. O monstro, exultante, espeta-lhe a espada na barriga e brada: - Eu sou o Demônio do Deserto! Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura do mal, desatento a qualquer autoridade materna ou paterna, com o diabo no corpo, o monstro vai espalhando terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo, é o divã massacrado sob os seus pés, é uma corneta indo tinir no ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce derramado, a torneira inundando o banheiro, a revista nova dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum apartamento carioca. Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante, senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que conte uma história ou lhe compre um carneirinho de verdade. E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar ameaçado pelas forças do mal. QUEM SABE DEUS ESTÁ OUVINDO – RUBEM BRAGA
  • 7. Outro dia eu estava distraído chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia. Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saída terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela: - Você vai criar um cajueiro aí? Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena. - Mas é melhor arrancar logo, não é? Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso - mas confesso que havia nele um certo remorso. Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse mais alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria
  • 8. capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas igualmente ignaros: eu, o deus da Vida, ela, o da Morte. Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa - "seu Rubem, o cajueirinho..." - mas o telefone tocou, fui atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou para ele a mudinha. Veio me mostrar: - Eu comprei um vaso... - Ahn... Depois de um silêncio eu disse: - Cajueiro sente muito a mudança, morre à-toa... Ela olhou a plantinha e disse com convicção: - Esse aqui não vai morrer, não senhor. Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse pela compra do vaso, e ficara aliviada com minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:
  • 9. - Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro! Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com certa gravidade: - É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo... Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores. HORÓSCOPO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - Telefonaram do escritório, bem. Seu chefe mandou perguntar por que você não foi trabalhar. - E você deu o motivo? - Não. - Podia ter dado. - Ora, Alfredinho, isso é motivo que se dê? - Por que não? Se há motivo, está justificado. Sem motivo é que não cola.
  • 10. - Então eu ia dizer ao seu chefe que você não trabalha hoje porque o seu horóscopo aconselha: "Fique em casa descansando"? - E daí, amor? Se meu signo é Touro, e se Touro acha conveniente que eu não faça nada, como é que eu vou desobedecer a ele? - É, mas com certeza seu chefe não é Touro, e não vai achar graça nisso. - Ele é Áries, está ouvindo? E o dia não está para relações entre Áries e Touro. Pega aí o jornal. Faz favor de ler com esses belos olhos cor de pervinca: "Áries - Evite rigorosamente discussões com subordinados". - Mas se ele evitar, não tem perigo para você. - Ele pode evitar, sim, deve evitar. E para colaborar com ele, eu fico em casa. - Mas se você não comparece, ele pode vir ao telefone e pegar numa discussão danada com você, dessas de sair fogo. - Não atendo telefone durante o dia. Não posso atender. Não vê que estou descansando, que o horóscopo me mandou descansar? É favor não fazer rebuliço nesta casa. Amor e paz, para o descanso do guerreiro. - Pra mim você está é com preguiça, e das bravas.
  • 11. - Posso estar com preguiça, e daí? Preguiça é relaxante, restaura as energias, predispõe para o trabalho no dia seguinte. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se eu não faço nada hoje, não é porque estou com preguiça. É em atenção a um mandamento superior, à mensagem que vem dos astros, você não percebe? - Percebo, sim, mas não concordo. - Pode se saber por que a excelentíssima não concorda com aquilo que percebe e que está devidamente explicado? - Pode. - Então explica, vamos. - Gozado, Alfredinho, até parece que para você só existem dois signos no zodíaco: Touro e Áries, você e o patrão. - Espera lá, você queria que eu não prestasse atenção em Touro? Áries eu li hoje por acaso, porque está ao lado de Touro, em coluna paralela. - Coincidência: você saber que seu chefe é Áries, e... - É sim. - E por que você guardou na cabeça que ele é Áries? - Ora por quê! Ele fez anos no mês passado, amorzinho. Até contei a você que oferecemos a ele uma batedeira. Soubemos que a mulher dele precisava de batedeira, fizemos uma
  • 12. vaquinha e pronto. Mas por que você diz que para mim só existem dois signos? - Pelo menos Sagitário você ignora. - Como que eu ia ignorar Sagitário, se é o signo de você, minha orquídea de novembro 25? - É, mas esqueceu de ler que o dia é propício para reuniões sociais de Sagitário, e saiba que esta sua orquídea de novembro 25 vai reunir hoje as amigas aqui em casa. Trate de se mandar, querido. - Sem essa! Touro me manda descansar em casa, e você me enche a casa com mulheres? - É, Sagitário não ia fazer isso comigo! Eu já tinha harmonizado Touro com Áries! - Pode continuar harmonizando, se for descansar em casa do Tostes, que é Virgem, eu sei, ele é nosso padrinho de casamento. O horóscopo do Tostes recomenda prestar serviço a um amigo. Assim, Touro, Virgem, Áries e Sagitário ficam inteiramente harmonizados, cada um na sua, um por todos, todos por um. Ande, vá se vestir rapidinho, rapidinho, e rua, seu vagabundo! CASO DE RECENSEAMENTO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
  • 13. O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínqüo, aonde nunca chegam as notícias. - Não quero comprar nada. - Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar. - Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim? E fecha-lhe a porta. Ele bate de novo. - O senhor outra vez?! Não lhe disse que não adianta me pedir auxílio? - A senhora ano me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher esta papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas. - Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!
  • 14. A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta reestabelecer o diálago. - Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa e antes que eu chame meu marido! - Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele. ( Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário). - Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher. - É esse camelô aí que ano quer deixar a gente sossegada! - Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo... - Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria! A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo! O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo
  • 15. com calma, convence-o de que não é nem camelô, nem policial, nem cobrador de impostos, nem enviado de Tenório Cavalcanti. A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender o rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa, nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do governo. - O senhor tem filhos, seu Ediraldo? - Tenho três, sim senhor. - Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um? - Pois não. Tenho Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4. - Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a Pipoca, como é mesmo o nome dela? - Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.
  • 16. - Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada... - Isso eu não sei, não me lembro. E voltando-se para a cozinha: - Mulher, sabes o nome de Pipoca? A mulher aparece, confusa. - Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta. Reviraram a gaveta, não acham a certidão de registro civil. - Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom? - Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado minha senhora, disponham! FLOR DE MAIO - RUBEM BRAGA Entre tantas notícias do jornal - o crime do Sacopã, o disco voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime que caiu, o homem que matou outro com machado e com
  • 17. foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés - há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os jornais publicaram. Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta dágua, nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena visitar o Jardim, porque a planta chamada "flor-de-maio" está, efetivamente, em flor. Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico, contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e escrever, telefonema a dar, providências a tomar. Agora já desce a noite, e as plantas em flor devem ser vistas pela manhã ou à tarde, quando há sol - ou mesmo quando a chuva as despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no chão. Suspiro e digo comigo mesmo - que amanhã acordarei cedo e irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi - um
  • 18. impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam. Qualquer uma destas tardes é possível que me dê vontade real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será tarde, não haverá mais "flor-de-maio", e então pensarei que é preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono posso estar em outra cidade em que não haja outono em maio, e sem outono em maio não sei se em alguma cidade haverá essa "flor-de-maio". No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas sejam lidas por alguém - uma pessoa melhor do que eu, alguma criatura correta e simples que tire desta crônica a sua única substância, a informação precisa e preciosa: do dia 27 em diante as "flores-de-maio" do Jardim Botânico estão gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a "flor-de- maio" - talvez com a mulher e as crianças, talvez com a namorada, talvez só. Ir só, no fim da tarde, ver a "flor-de-maio"; aproveitar a única notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais bela e emocionante de um dia inteiro da cdade imensa. Se entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e
  • 19. que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a humanidade possivelmente ainda poderá ser salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica. Chatear e Encher – PAULO MENDES CAMPOS Um amigo meu me ensina a diferença entre ―chatear‖ e ―encher‖. Chatear é assim: Você telefona para um escritório qualquer na cidade. - Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar? - Aqui não tem nenhum Valdemar. Daí a alguns minutos você liga de novo: - O Valdemar, por obséquio. - Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar. - Mas não é do número tal? - É, mas aqui não trabalha nenhum Valdemar. Mais cinco minutos, você liga o mesmo número: - Por favor, o Valdemar já chegou? - Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo desse Valdemar nunca trabalhou aqui? - Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí. - Não chateia. Daí a dez minutos, liga de novo. - Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um recado?
  • 20. O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis. Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação: - Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém telefonou para mim? TURCO - FERNANDO SABINO Assim que chegou a Paris, foi cortar o cabelo, coisa que não tivera tempo de fazer ao sair do Rio. O barbeiro, como os de toda parte, procurou logo puxar conversa: — Eu tenho aqui uma dúvida, que o senhor podia me esclarecer. — Pois não. — Eu estava pensando... A Turquia tomou parte na última guerra? — Parte ativa, propriamente, não. Mas de certa maneira esteve envolvida, como os outros países. Por quê? — Por nada, eu estava pensando. A situação política lá é meio complicada, não? Seu forte não era a Turquia. Em todo caso respondeu:
  • 21. — Bem, a Turquia, devido a sua situação geográfica... Posição estratégica, não é isso mesmo? O senhor sabe, o Oriente Médio... O barbeiro pareceu satisfeito e calou-se, ficou pensando. Alguns dias depois ele voltou para cortar novamente o cabelo. Ainda não se havia instalado na cadeira, o barbeiro começou: — Os ingleses devem ter muito interesse na Turquia, não? Que diabo, esse sujeito vive com a Turquia na cabeça — pensou. Mas não custava ser amável, além do mais, ia praticando o seu francês: — Devem ter. Mas têm interesse mesmo é no Egito. O canal de Suez. — E o clima lá? — Onde? No Egito? — Na Turquia. Antes de voltar pela terceira vez, por via das dúvidas procurou informar se com um conterrâneo seu, diplomata em Paris e que já servira na Turquia. — Desta vez eu entupo o homem com Turquia decidiu-se. Não esperou muito para que o barbeiro abordasse seu assunto predileto:
  • 22. — Diga-me uma coisa, e me perdoe a ignorância: a capital da Turquia é Constantinopla ou Sófia? — Nem Constantinopla nem Sófia. É Ancara. E despejou no barbeiro tudo que aprendera com seu amigo sobre a Turquia. Nem assim o homem se deu por satisfeito, pois na vez seguinte foi começando por perguntar: — O senhor conhece muitos turcos aqui em Paris? Era demais: — Não, não conheço nenhum. Mas agora chegou a minha vez de perguntar: por que diabo o senhor tem tanto interesse na Turquia? — Estou apenas sendo amável — tornou o barbeiro, melindrado: — Mesmo porque conheço outros turcos além do senhor. — Além de mim? Quem lhe disse que sou turco? Sou brasileiro, essa é boa. — Brasileiro? — e o barbeiro o olhou, desconsolado: — Quem diria! Eu seria capaz de jurar que o senhor era turco. . . Mas não perdeu tempo: — O Brasil fica é na América do Sul, não é isso mesmo?
  • 23. NEIDE - RUBEM BRAGA O céu está limpo, não há nenhuma nuvem acima de nós. O avião, entretanto, começa a dar saltos, e temos de pôr os cintos para evitar uma cabeçada na poltrona da frente. Olho pela janela: é que estamos sobrevoando de perto um grande tumulto de montanhas. As montanhas são belas, cobertas de florestas; no verde escuro há manchas de ferrugem de palmeiras, algum ouro de ipê, alguma prata de embaúba, e de súbito uma cidade linda e um rio estreito. Dizem me que é Petrópolis. É fácil explicar que o vento nas montanhas faz corrente para baixo e para cima, como também o ar é mais frio debaixo da leve nuvem. A um passageiro assustado o comissário diz que "isso é natural". Mas o avião, com o tranqüilo conforto imóvel com que nos faz vencer milhas em segundos, havia nos tirado o sentimento do natural. Somos hóspedes da máquina. Os motores foram revistos, estão perfeitos, funcionam bem, e temos nossas passagens no bolso; tudo está em ordem. Os solavancos nos lembram de que a natureza insiste em existir, e ainda nos precipita além dela, para os reinos azuis da Metafísica. Pode o avião vencer a montanha e desprezar as passagens antigas que a humanidade sempre trilhou. Mas sua vitória não pode ser saboreada de perto: mesmo debaixo, a montanha ainda fez
  • 24. sentir que existe e à menor imprudência da máquina o gigante vencido a sorverá de um hausto, e a destruirá. Assim a humilde lagoa, assim a pequena nuvem: a tudo isso somos sensíveis dentro de nosso monstro de metal. A menina disse que era mentira, que não se via anjo nenhum nas nuvens. O homem, porém, explicou que sim, e pediu que eu confirmasse. Eu disse: — Tem anjo sim. Mas tem muito pouco. Até agora desde que saímos eu só vi um, e assim mesmo de longe. Hoje em dia há muito poucos anjos no céu. Parece que eles se assustam com os aviões. Nessas nuvens maiores nunca se encontra nenhum. Você deve procurar nas nuvenzinhas pequenas, que ficam separadas umas das outras; é nelas que os anjos gostam de brincar. Eles voam de uma para outra. A menina queria saber de que cor eram as asas dos anjos e de que tamanho eles eram. O homem explicou que os anjos tinham as asas da mesma cor daquele vestidinho da menina; e eram de seu tamanho. Ela começou a duvidar novamente, mas chamamos o comissário de bordo. Ele confirmou a existência dos anjos com a autoridade de seu ofício; era impossível duvidar da palavra do comissário de bordo, que usa uniforme e voa todo dia para um lado e outro, e além disso ele tinha um argumento impressionante: "Então você
  • 25. não sabia que tem anjos no céu?" E perguntou se ela tinha vontade de ser anjo. — Não. — Que é que você quer ser? — Aeromoça! E começou a nos servir biscoitos; dois passageiros que estavam cochilando acordaram assustados porque ela apertou o botão que faz descer as costas das poltronas; mas depois riram e aceitaram os biscoitos. — A Baía de Guanabara! Começamos a descer. E quando o avião tocava o solo, naquele instante de leve tensão nervosa, ela se libertou do cinto e gritou alegremente: — Agora tudo vai explodir. E disse que queria sair primeiro porque estava com muita pressa, para ver as horas na torre do edifício ali perto: pois já sabia ver as horas. Não deviam ter lhe ensinado isso. Ela já sabe tanta coisa! As
  • 26. horas se juntam, fazem os dias, fazem os anos, e tudo vai passando, e os anjos depois não existem mais, nem no céu, nem na terra. A ABOBRINHA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Quando a senhora foi descer do lotação, o motorista coçou a cabeça: - Mil cruzeiros! Como é que a senhora quer que eu troque mil cruzeiros? - Desculpe, me esqueci completamente de trazer trocado. - Não posso não. Madame não leu o aviso - olha ele ali - que o troco máximo é de 200 cruzeiros? - Eu sei, mas que é que hei de fazer agora? O senhor nunca esqueceu nada na vida? - Quem sabe se procurando de novo na bolsa... - Já procurei. Procura outra vez. Ela vasculhava, remexia, nada. Nenhum cavalheiro (como se dizia no tempo de meu pai) se moveu para salvar a situação, oferecendo troco ou se prontificando a pagar a passagem. Àquela hora não havia cavalheiros, pelo menos no lotação. - Então o senhor me dá licença de saltar e ficar devendo.
  • 27. - Pera aí. Vou ver se posso trocar. Podia. Tirou do bolso de trás um bolo respeitável, foi botando as cédulas sobre o joelho, meticulosamente. - Tá aqui o seu troco. De outra vez a madame já sabe, hein? Ela desceu, o carro já havia começado a chispar, como é destino dos lotações, quando de repente o motorista freou e botou as mãos à cabeça: - A abobrinha! Ela ficou com a abobrinha! Voltando-se para os passageiros: - Os senhores acreditam que em vez de guardar a nota de mil, eu de burro devolvi com o troco? Botou a cabeça fora do carro, à procura da senhora, que atravessava a rua, lá atrás: - Dona! Ó dona! A nota de mil cruzeiros! Ela não escutava. Ele fazia sinais, pedia aos transeuntes que a chamassem, o trânsito entupigaitava-se, buzinas soavam. - Toca! Toca! Os passageiros não pareciam interessados no prejuízo, como antes não se condoeram do vexame da senhora. - Como é que eu posso tocar se perdi mil cruzeiros, gente? Quem vai me pagar esses mil cruzeiros? Encostou o veículo e, num gesto solene:
  • 28. - Vou buscar meu cabral. A partir deste momento confio este carro, com todos os seus pertences, à distinção dos senhores passageiros. - Deixa que eu vou - disse um deles, garoto. E precipitou-se para fora, antes do motorista. - Será que esse tiquinho de gente consegue? Via-se o garoto correndo para alcançar a senhora, tocando-a pelo braço, os dois confabulando. Ela abria de novo a bolsa, tirava objetos, o pequeno ajudava. Enquanto isso, o motorista carpia: - Esta linha é de morte. Primeiro querem que a gente troque um conto de réis, como se o papai fosse o Tesouro Nacional ou o Banco do Brasil. Depois carregam o troco e o dinheiro trocado, que nem juro. Essa não! E esse garoto que não acaba com a conversa mole? Sei lá até se ele volta. Os passageiros impacientavam-se com a demora da expedição. O guarda veio estranhar o estacionamento e recebeu a explicação de força-maior: - Quem é que me paga meus mil cruzeiros? O Serviço de Trânsito? Voltou o garoto, sem a nota. A senhora tinha apenas 987 cruzeiros, ele vira e jurava por ela. - Toca! Toca!
  • 29. - Tão vendo? Um prejuízo desses antes do almoço é de tirar a fome e a vontade de comer. Disse isso em tom frio, sem revolta, como simples remate. E tocou. Perto do colégio, o garoto desceu, repetindo, encabulado: - Pode acreditar, ela não tinha mesmo o dinheiro não. O motorista respondeu-lhe baixinho: - Eu sei. Já vi que está ali debaixo da caixa de fósforos. Mas se eu disser isso, esse povo me mata. Confusão com São Pedro – FERNANDO SABINO Você vai neste avião, eu vou no próximo- decidiu de súbito, no último instante, quando o alto-falante já invocava os passageiros: queiram apresentar suas despedidas e boa viagem. Ele deu um suspiro desalentado. Já fora um custo convencer a mulher de viajarem de avião. Ela dizia que tinha medo, por que não vamos de trem? E passara a noite toda naquela conversa, olha, meu bem, tenho um pressentimento ruim.
  • 30. Quando já estavam praticamente embarcados, vinha com novidade. - Que bobagem é essa? - Eu vou no outro- insistiu ela, aflita: - Tem outro avião daqui a meia hora. - Mas por que isso assim de repente? Ela o olhava nos olhos como se se despedisse dele para sempre: - Não podemos correr tanto risco juntos, meu bem, seja razoável. Temos nossos filhos, imagine se acontece alguma coisa. - Não vai acontecer nada, mulher. - Eu sei que não tem perigo, que é o transporte mais seguro do mundo, e as estatísticas, e essa coisa toda, você já me explicou. Mas pense um pouco nos nossos filhos, pelo amor de Deus! Eu indo num e você
  • 31. noutro, sempre é uma chance de pelo menos um de nós dois escapar. - Olha aí, já estão chamando de novo. Vamos embora, mulher. Ela fincara pé, irredutível. Sem mais tempo para argumentar, ele acabou cedendo: - Está bem, seja como você quiser! Mas então vai nesse, eu vou no outro. Se eu deixar você aqui, você acaba não indo. Despediu-se dela, aborrecido, e foi tratar da transferência de sua passagem. A mulher entrou no avião como num túmulo, o coração aos pulos. A porta se fechou, desligando-a para sempre do mundo. A seu lado, viajava um padre, alheio a tudo, mergulhado no breviário. De súbito o avião, já em pleno vôo, começou a jogar. Eu não
  • 32. disse? eu não disse? Entraram numa nuvem escura e nunca mais que saíam dela. Em pânico, chamou o comissário: não é nada, minha senhora, uma pequena tempestade, estamos fazendo vôo cego. Vôo cego! Sentindo-se perdida, voltou-se para o padre: - Estou com tanto medo, seu padre. O padre a olhou, desconfiado: - Reza, que é melhor. E voltou ao seu breviário. Rezar? Não, ela não sabia rezar. Lembrou-se de São Pedro, que era quem devia manobrar chuvas e tempestades - juntou as mãos e pediu-lhe auxilio: - São Pedro, piedade de mim. Tenho meus filhos para criar. Fui criada sem mãe, o senhor não imagina a falta que uma mãe faz. Todos na
  • 33. minha família ficaram assim feito eu, só porque não tiveram mãe. Que será dos meus filhos sem mãe, São Pedro, mãe faz muito mais falta que pai, por favor me protege, se for preciso transfere essa tempestade para o avião dele, mas me salva desta que noutra eu nunca mais hei de me meter. A falta de mãe não lhe abalara o prestígio junto a São Pedro- tanto assim que em pouco o avião deixava para trás a tempestade e saía para um céu azul, e logo descia no aeroporto sem mais novidades. Estava salva! Comprou uma revista, sentou-se num canto e pôs-se a esperar o avião do marido. Esperou meia hora. Como ele nunca mais chegasse, correu, já aflita, a informar-se no balcão. Soube que não havia nada de especial: as más condições do tempo às vezes ocasionavam algum atraso.
  • 34. - Más condições do tempo? Não tinha dúvida, era a tempestade que mandara para ele. Roída de remorsos, juntou as mãos ali mesmo, em frente ao funcionário assombrado: - São Pedro, essa não! não faça isso comigo. Era mentira, o senhor não vai me levar a sério. O pai faz muito mais falta que a mãe, quem é que foi meter uma bobagem dessa na minha cabeça? Ele trabalha para sustentar a familha, eu não faço nada que preste. E logo ele, tão bom que ele é, tão carinhoso, por favor, São Pedro, não faça isso com ele, joga essa tempestade para cima de outro que não tenha filhos, para cima dele não! Em pouco São Pedro voltava a atendê-la, fazendo o marido desembarcar no aeroporto, são e salvo:
  • 35. - Que cara é essa? Você está parecendo um fantasma! Aconteceu alguma coisa? Ela se abraçou a ele, ansiosa: - Você está bem? Você me perdoa? - Eh, que novidade você vai inventar agora? Perdoar o quê, mulher? - Tudo por minha culpachoramingou ela.- Mas graças a Deus você está salvo. Fiz uma confusão enorme com São Pedro, você nem imagina. Da próxima vez, quer saber de uma coisa? vou com você, morreremos juntos, nossos filhos que se danem. Ele a olhou, francamente apreensivo."Acho que essa minha mulher está ficando maluca", pensou. CORAÇÃO MATERNO – PAULO MENDES CAMPOS
  • 36. Duas horas da tarde. Ali no início do Morro da Viúva fizeram sinal: duas senhoras, ambas de cabelos brancos, preparavam-se para entrar no lotação, quando o motorista gritou:"Um lugar só". A velhinha mais velha, já com o pé colocado no carro com imensa dificuldade, conseguiu retirar a perna comprometida, com dificuldade ainda maior, sob os protestos persuasivos da velha mais moça, que dizia: - Vai, mamãe, vai a senhora, eu vou em outro. A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade, sorria: Na condução - 51 - Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha. - Vai, mamãe. - Não, minha filha. - Pelo amor de Deus, mãe; o homem está esperando.
  • 37. - Mas.., minha filha?! Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência de quem tem ou já teve mãe. O motorista fez força (e o conseguiu, parabéns) para refrear a sua fúria de Averno. - Vai, mãezinha; aqui neste ponto é difícil arranjar dois lugares. - Não posso te deixar sozinha, minha filha. Nunca! Diante do impasse, levantou-se, resoluto um senhor sentado no banco da frente, oferecendo-se para ir em pé, as duas senhoras iriam sentadas. Ah, mas isso não, aparteou o motorista, era contra o regulamento, dava multa. O amável passageiro descompôs o regulamento do tráfego e os demais regulamentos: eram desumanos. Ao pé da calçada, o torneio sentimental de mãe e filha continuava:
  • 38. - Vai, vai, mãe. - Não posso ir sem você, minha filha. Quem viu a necessidade eventual de perder docemente a paciência foi a filha. Usando de energia adequada ao momento, segurou o braço da velhinha (mas velhinha mesmo, frágil, frágil), empurrou-a com o mínimo de força necessária, proferiu uma ordem imperiosa: - Vai, mãe. E a velha mais moça se afastou em passadas compridas, impedindo a contramarcha da velha mais velha, que estava no limite extremo de sua timidez, e não teve outro jeito senão agarrar-se ao braço do motorista, entrar penosamente, sorrir pedindo perdão para todos os passageiros. Ajeitou-se no banco, esperou o barulho do motor e comentou para a vizinha (que a olhava, compreendendo tudo, as velhas, as mães, o cosmos):
  • 39. - Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí, só, tão longe! Longe de onde? Das entranhas que criaram uma menina. Longe. Só. A viagem para o centro foi recomeçada, sem novidades, todos voltaram para dentro de si mesmos, esquecidos do episódio. A mãe, no entanto, furtiva (certa de que já causara bastante transtornos naquele dia) inspecionava todos os lotações que ultrapassavam o nosso, aflita em sua quietude, buscando lobrigar a filha. Mas foi só quando o lotação entrou na Avenida, e parou diante de um sinal, que, enfim, a velha mais moça, a filha, apareceu em um lotação ao nosso lado. As duas se sorriram como depois de uma longa e apreensiva travessia. A velhinha chegou a fazer graça:
  • 40. - Graças a Deus, minha filha! Você ainda chegou antes de mim. - Eu não disse, mãe, que não tinha perigo? A filha desceu na esquina, chegou até perto da janela do nosso lotação, segurou a mão de sua mãe: - Agora vai direitinha, viu? - Você pode ir descansada, minha filha. O lotação arrancou de novo, gestos de adeus, a harmonia voltou ao rosto da nossa velhinha, que tranqüilizou também a vizinha de banco: - Ela vai trabalhar no Ministério; eu vou para casa, moro no Rio Comprido. NA ESCOLA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Democrata é Dona Amarílis, professora na escola pública de uma
  • 41. rua que não vou contar, e mesmo o nome de Dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu. Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim: - Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode ser? - Pode - a garotada respondeu em coro. - Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião, não falem todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada um pensa. Está bem? - Está - respondeu o coro, interessadíssimo.
  • 42. - Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero dicidir por mim. O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Para todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na escola? - Acho que não deve - respondeu, baixando os olhos. - Por quê? - Porque é melhor não usar. - E por que é melhor não usar? - Porque minissaia é muito mais bacana.
  • 43. - Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita. - Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro? - Mas aqui dentro é outro lugar. - É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é bárbara. - Um a favor. E você, Aparecida? - Posso ser sincera, professora? - Pode, não. Deve. - Eu, se fosse a senhora, não usava. - Por quê?
  • 44. - O quadril, sabe? Fica meio saliente... - Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você, Edmundo. - Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é certinho. - Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça, sim. Você é contra ou a favor da calça? - A favor 100%. - Você, Peter? - Pra mim tanto faz. - Não tem preferência? - Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.
  • 45. - Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter: nem contra nem a favor, antes pelo contrário. Assim iam todos votando, como se escolhessem o Presidente da República, tarefa que talvez, quem sabe? no futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção. A vez de Rinalda: - Ah, cada um na sua. - Na sua, como? - Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele, entende? - Explique melhor. - Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu quero vir de midi, de máxi, de hort, venho. Uniforme é papo furado.
  • 46. - Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor? - Evidente. Cada um curtindo à vontade. - Legal!exclamou Jorgito.- Uniforme esta superado, professora. A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito. - Não pode - refutou Gilberto.- Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme. Respeita, não respeita, a discussão esquentou, Dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois contra, e um tanto-faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta a abolição
  • 47. do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição de História do Brasil. REUNIÃO DE MÃES - FERNANDO SABINO Na reunião de pais só havia mães. Eu me sentiria constrangido em meio a tanta mulher, por mais simpáticas me parecessem, e acabaria nem entrando - se não pudesse logo distinguir, espalhadas no auditório, duas ou três presenças masculinas que partilhariam de meu ressabiado zelo paterno. Sentei-me numa das últimas filas, para não causar espécie à seleta assembléia de progenitoras. Uma delas fazia tricô, e várias conversavam, já confraternizadas de outras reuniões. O Padre-Diretor tomou assento à mesa, cercado de professoras, e deu início à sessão.
  • 48. Eu viera buscar Pedro Domingos para levá-lo ao médico, mas desta vez cabia-me também participar antes da reunião. Afinal de contas andava mesmo precisando de verificar pessoalmente a quantas o menino andava. O Padre-Diretor fazia considerações gerais sobre o uniforme de gala a ser adotado. A gravatinha é azul?perguntou uma das mães. Meia três-quartos?perguntou outra. E o emblema no bolsinho?perguntou uma terceira. Outra ainda, à minha frente, quis saber se tinha pesponto- mas sua pergunta não chegou a ser ouvida. Invejei-lhes a desenvoltura. Tive vontade de perguntar também alguma coisa, para tornar mais efetivo meu interesse de pai - mas temi aquelas mães todas voltando a cabeça, curiosas e surpreendidas, ante uma destoante voz de homem, meio gaguejante talvez de insegurança. Poderia
  • 49. também não ser ouvido - e se isso me acontecesse eu sumiria na cadeira. Além do mais, não me ocorria nada de mais prático para perguntar senão o que vinha a ser pesponto. Acabei concluindo que tanta perguntação quebrava um pouco a solene compostura que devíamos manter, como responsáveis pelo destino de nossos filhos. E dispensei-me de intervir, passando a ouvir a explanação do Padre-Diretor: - Chegamos agora ao ponto que interessa: o quinto ano. Depois de cuidadosa seleção, foi dividido em três turmas - a turma 14, dos mais adiantados; a turma 13, dos regulares; e a turma 12, dos atrasados, relapsos, irrequietos, indisciplinados. Os da 13 já não são lá essas coisas, mas os da 12 posso assegurar que dificilmente irão para a frente, não querem nada com estudo.
  • 50. Fiquei atento: em qual delas estaria o menino? Pensei que o Diretor ia ler a lista de cada turma - o meu certamente na 14. Não leu, talvez por consideração para com as mães que tinham filhos na 12. Várias, que já sabiam disso, puseram-se a falar ao mesmo tempo: não era culpa delas; levavam muito dever para casa, não se habituavam com o semi-internato. Uma - a do tricô, se não me engano - chegou mesmo a se queixar do ensino dirigido, que a seu ver não estava dando resultado. Outra disse que tinha três filhos, faziam provas no mesmo dia, como prepará-los de uma só vez? O Padre-Diretor sacudiu a cabeça, sorrindo com simpatia - não posso nem ao menos lastimar que a senhora tenha tanto filho. E voltou a falar nos relapsos, um caso muito sério. Não vai esse Padre dizer que meu filho está entre eles, pensei. Irrequieto, indisciplinado. Ah, mas ele havia de ver comigo: entre os piores!
  • 51. E por que não? Quietinho, muito bem mandado, filhinho do papai, maria-vai-com-as-outras ele não era mesmo não. Desafiei o auditório, acendendo um cigarro: ninguém tinha nada com isso. Criança ainda, na idade mesmo de brincar e não levar as coisas tão a sério. O curioso é que não me parecesse assim tão vadio - jogava futebol na rua, assistia à televisão, brincava de bandido, mas na hora de estudar o rapazinho estudava, então eu não via? Quem sabe se procurasse ajudá-lo, dar uma mãozinha... Mas essas coisas que ele andava estudando eu já não sabia de cor, tinha de aprender tudo de novo. Outro dia, por exemplo, me embatucou perguntando se eu sabia como se chamam os que nascem na Nova Guiné. Ninguém sabe isso, meu filho, respondi gravemente. Ah, não sabe? Pois ele sabia: guinéu! Não acreditei, fui olhar no dicionário para ver se era mesmo. Era. Talvez estivesse na turma 13, bem que
  • 52. sabia lá uma coisa ou outra, o danadinho. Agora o Diretor falava na comida que serviam ao almoço. Da melhor qualidade, mas havia um problema - os meninos se recusavam a comer verdura, ele fazia questão que comessem, para manter dieta adequada. No entanto, algumas mães não colaboravam. Mandavam bilhetinhos pedindo que não dessem verdura aos filhos. Eis algo que eu jamais soube explicar: por que menino não gosta de verdura? Quando menino eu também não gostava. - Pedem às mães que mandem bilhetinhos e não é só isso: usam qualquer recurso para não comer verdura. Hoje mesmo me apareceu um com um bilhete da mãe dizendo: não obrigar meu filho a comer verdura. Só que estava escrito com a letra do próprio menino. Chegava era a hora de levá-lo ao médico - uma professora amiga
  • 53. foi buscá-lo para mim. - Meu filho - perguntei, ansioso, assim que saímos: - Em que turma você está? Na 12 ou na 13? - Na 14ele respondeu, distraído. Respirei com alívio: e nem podia ser de outra maneira, não era isso mesmo? - Fico satisfeito de saber - comentei apenas. Ele não perdeu tempo: - Então eu queria te pedir um favor - aproveitou-se logo:- Que você mandasse ao Padre-Diretor um bilhete dizendo que eu não posso comer verdura. O risadinha (1)- PAULO MENDES CAMPOS Seria melhor dizer que ele não teve infância. Mas não é verdade.
  • 54. Eu o conheci menino, trepando às árvores, armando alçapão para canários-da-terra, bodoqueando as rolinhas, rolando pneu velho pelas ruas, pegando traseira de bonde, chamando o Professor Asdrúbal de Jaburu. Foi este último um dos mais divertidos e perigosos brinquedos da nossa infância: o velho corria atrás da gente brandindo a bengala, seus bastos bigodes amarelos fremindo sob as ventas vulcânicas. Nestor, em suma, teve a meninice normal de um filho de funcionário público em nosso tempo, tempo incerto, pois os recursos da Fazenda na província eram magros, e os pagamentos se atrasavam, enervando a população. Seus companheiros talvez nem soubessem que se chamasse Nestor; era para todos o Risadinha. Falava pouco e ria muito, um riso de fato diminutivo, nascido de reservados solilóquios, quase sempre extemporâneo.
  • 55. Certa feita, na aula de francês, quando entoávamos em coro o presente do subjuntivo do verbo sôen aller, Risadinha pespegou uma bólide de papel bem na ponta do nariz do professor, que era muito branco, pedante a capricho e tinha o nome de Demóstenes. O rosto do mestre passou do pálido ao rubro das suas tremendas cóleras. Um dos seus prazeres, sendo-lhe vetado por lei castigar-nos com o bastão, era desfiar em cima do culpado uma série de insultos preciosos, que ele ia escandindo um por um, sem pressa e com ódio. - Levante-se, seu Nestor! Sa-cri-pan-ta! Ne-gli-gen- te! Si-co-fan-ta! Tu-nan-te! Man-dri-ão! Ca-la-cei-ro! Pan-di-lha! Bil-tre! Tram-po-li-nei-ro! Bar-gan-te! Es-trói-na! Val-de-vi- nos! Va-ga-bun-do!...
  • 56. Pegando a deixa da única palavra inteligível, Risadinha erguia o dedo no ar e protestava, com ar ofendido: - Vagabundo, não, professor. Era um artista do cinismo, e sua momice de inocência era de tal arte que até mesmo seu Demóstenes não conseguia conter o riso. Como também somente ele já arrancara uma gargalhada do padre-prefeito, um alemão da altura da catedral de Colônia, num dia em que vinha caminhando lento e distraído, fora da forma. - Por que o senhorr não está na forma?perguntou-lhe rosnando o padre, como se estivesse de promotor da Inquisição, diante de um herege horripilante. - E porque estou com meu pezinho machucado, respondeu com doçura o Risadinha.
  • 57. - E por que senhorr não está mancando? Risadinha olhou com espanto para os seus próprios pes, começando a mancar vistosamente: - Desculpe, seu padre, é porque eu tinha esquecido. Aula de inglês – RUBEM BRAGA - Is this an elephant? Minha tendência imediata foi responder que não; mas a gente não deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar que lancei à professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e tinha o ar de quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei com a maior atenção o objeto que ela me apresentava. Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratava de um elefante. Mas se tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele de ser um
  • 58. elefante; e mesmo que morra em conseqüência da brutal operação, continua a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em princípio, tão elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei- me de averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas patas, como costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui descobrir o pequeno rabo que caracteriza õ grande animal e que, às vezes, como já notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça infantil. Terminadas as minhas observações, voltei-me para a professora e disse convictamente: - No, it's not! Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora de minha resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente me perguntou: - Is it a book?
  • 59. Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras - sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo não seria um deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta demorou no máximo dois segundos: - No, it's not! Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita - mas so por alguns segundos. Aquela mulher era um desses espíritos insaciáveis que estão sempre a se propor questões, e se debruçam com uma curiosidade aflita sobre a natureza das coisas. - Is it a handkerchief? Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer a verdade, não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse hipoteca...
  • 60. Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca? Handkerchief! Era uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática; talvez fosse chefe de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito provavelmente, enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido: - No, it's not! Minhas palavras soaram alto, com certa violência, pois me repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos meus arredores pudesse ser um handkerchief. Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez, porém, a pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia uma luz de malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de desafio. Sua voz era mais lenta que das outras vezes; nao sou completamente ignorante em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha a certeza de que se tratava de uma pergunta decisiva. - Is it an ash-tray?
  • 61. Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro lugar porque eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em segundo lugar porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei uma extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Sim. Era um objeto de louça de forma oval, com cerca de treze centímetros de comprimento. As bordas eram da altura aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias curvas - duas ou trêsna parte superior. Na depressão central, uma espécie de bacia delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de cigarro fumado (uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um palito de fósforos já riscado. Respondi: - Yes! O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora teve o rosto completamente iluminado por uma onda de alegria; os olhos
  • 62. brilhavam - vitória! vitória!e um largo sorriso desabrochou rapidamente nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta. Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de estender o braço e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito excitada: - Very well! Very well! Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no lidar com mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me perturbou; tive um susto, senti vergonha e muito orgulho. Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria: - It's not an ash-tray!
  • 63. E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu sabia falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador ver que sua língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do país junto a cujo governo é acreditado. OUSADIA – FERNANDO SABINO A moça ia no ônibus muito contente desta vida, mas, ao saltar, a contrariedade se anunciou: - A sua passagem já está paga - disse o motorista. - Paga por quem? - Esse cavalheiro aí. E apontou um mulato bem vestido que acabara de deixar o ônibus, e aguardava com um sorriso junto à calçada.
  • 64. - É algum engano, não conheço esse homem. Faça o favor de receber. - Mas já está paga... - Faça o favor de receber!insistiu ela, estendendo o dinheiro e falando bem alto para que o homem ouvisse:- Já disse que não conheço! Sujeito atrevido, ainda fica ali me esperando, o senhor não está vendo? Vamos, faço questão que o senhor receba minha passagem. O motorista ergueu os ombros e acabou recebendo: melhor para ele, ganhava duas vezes. A moça saltou do ônibus e passou fuzilando de indignação pelo homem. Foi seguindo pela rua, sem olhar para ele. Se olhasse, veria que ele a seguia, meio ressabiado, a alguns passos.
  • 65. Somente quando dobrou à direita para entrar no edifício onde morava, arriscou uma espiada: lá vinha ele! Correu para o apartamento, que era no térreo, pôs-se a bater, aflita: - Abre! Abre aí! A empregada veio abrir e ela irrompeu pela sala, contando aos pais atônitos, em termos confusos, a sua aventura: - Descarado, como é que tem coragem? Me seguiu até aqui! De súbito, ao voltar-se, viu pela porta aberta que o homem ainda estava lá fora, no saguão. Protegida pela presença dos pais, ousou enfrentá-lo: - Olha ele ali! É ele, venham ver! Ainda está ali, o sem-vergonha. Mas que ousadia!
  • 66. Todos se precipitaram para a porta. A empregada levou as mãos à cabeça: - Mas a senhora, como é que pode! É o Marcelo. - Marcelo? Que Marcelo?a moça se voltou, surpreendida. - Marcelo, o meu noivo. A senhora conhece ele, foi quem pintou o apartamento. A moça só faltou morrer de vergonha: - É mesmo, é o Marcelo! Como é que eu não reconheci! Você me desculpe, Marcelo, por favor. No saguão, Marcelo torcia as mãos, encabulado: - A senhora é que me desculpe, foi muita ousadia... Mendigo – PAULO MENDES CAMPOS
  • 67. Eu estava diante duma banca de jornais na Avenida, quando a mão do mendigo se estendeu. Dei-lhe uma nota tão suja e tão amassada quanto ele. Guardou-a no bolso, agradeceu com um seco obrigado e começou a ler as manchetes dos vespertinos. Depois me disse: Na rua - 71 - Não acredito um pingo em jornalistas. São muito mentirosos. Mas tá certo: mentem para ganhar a vida. O importante é o homem ganhar a vida, o resto é besteira. Calou-se e continuou a ler notícias eleitorais: - O Brasil ainda não teve um governo que prestasse. Nem rei, nem presidente. Tudo uma cambada só. Reconheceu algumas qualidades nessa ou naquela figura (aliás, com invulgar pertinência para um mendigo), mas isso, a seu ver, não
  • 68. queria dizer nada: - O problema é o fundo da coisa: o caso é que o homem não presta. Ora, se o homem não presta, todos os futuros presidentes também serão ruínas. A natureza humana é que é de barro ordinário. Meu pai, por exemplo, foi um homem bastante bom. Mas não deu certo ser bom durante muito tempo: então ele virou ruim. Suspeitando de que eu não estivesse convencido da sua teoria, passou a demonstrar para mim que também ele era um sujeito ordinário como os outros: - O senhor não vê? Estou aqui pedindo esmola, quando poderia estar trabalhando. Eu não tenho defeito físico nenhum e até que não posso me queixar da saúde. Tirei do bolso uma nota de cinqüenta e lhe ofereci pela sua
  • 69. franqueza. - Muito obrigado, moço, mas não vá pensar que eu vou tirar o senhor da minha teoria. Vai me desculpar, mas o senhor também no fundo é igualzinho aos outros. Aliás, quer saber de uma coisa? Houve um homem de fato bom, cem por cento bom. Chamava-se Jesus Cristo. Mas o senhor viu o que fizeram com ele?! DIPLOMA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - Olha o diploma da mamãe! Quem tem sua mamãe deve lhe oferecer este diploma! Era atrás do edifício da Noite, na passagem lamacenta onde se aglomeram vendedores de canetas automáticas de dez cores, e outros artigos. O rapaz aproximou-se da banca onde se exibiam os diplomas.
  • 70. Pediu licença para pegar num deles, enquanto o vendedor continuava gritando a mercadoria sentimental. Mirou e remirou o papel com atençao. - Onde é que bota o retrato? - Que retrato?inquiriu o camelô. - O meu, para oferecer a ela... - Ah, compreendo, o cavalheiro quer oferecer um retratinho a sua mamãe. Muito bem, pode colocar sua bonita estampa nas costas do diploma, está vendo? Timidamente, o rapaz formulou a objeção: - Mas, se ela enquadrar o diploma e pendurar na parede, o retrato fica escondido nas costas. - Perfeitamente, nesse caso ela pode pendurar o quadro de
  • 71. costas, e o amigo fica aparecendo. - Isso não. Eu queria botar meu retrato na frente do diploma, junto disso tudo que está escrito aí. - Não tem problema, cola aqui neste canto, fica até mais interessante. O rapaz tirou um embrulhinho do bolso, tirou do embrulhinho sua fotografia em tamanho de postal, aplicou-a sobre o diploma, no lugar indicado pelo vendedor. Reconheceu, consternado: - Cabe não. - Cabe sim. Com licença, cavalheiro. Olhe como ficou bacana. - Assim ele tapa as letras da escrita. - Ora, só umas letrinhas. A maioria das palavras continua
  • 72. visível. Que importância tem tapar algumas palavras? O cavalheiro cobre elas com o carinho da sua fotografia. O rapaz continuava indeciso. Dar um diploma a sua mãe, no Dia das Mães, era idéia nova, excitante. Não entendia bem o que fosse diploma, porém, certamente, sua mãe o merecia; e se o diploma levasse o retrato dele, deixava de ser um diploma qualquer, oferecido a qualquer mãe. Mas, como, se não tinham previsto o lugar para o retrato do filho? - Vai levar?perguntou o camelô, desejoso de fechar o negócio e voltar à pregação oratória - pois eles gostam ainda mais de falar à multidão do que de vender. - Bem... eu levo. Corto o peito do meu retrato, assim ele cabe sem ofender as palavras. E como é que eu faço para mandar para Inajaroba?
  • 73. - Onde fica isso, meu chapa? - Sergipe, então não sabe? - Até este momento não sabia, mas não tem problema. Enrola, bota no Correio, vai de avião. - Chega todo esbandalhado. - Então, passa ali na papelaria e pede para botar enchimento, fazer uma embalagem bem legal. - Mais um favorzinho, moço - e o rapaz baixou a voz e a cabeça. - Vai dizendo, vai dizendo. - Pode ler para mim o que está escrito aí? Eu não gostava que minha mãe recebesse o diploma sem eu saber o que estou mandando dizer nele...
  • 74. - Com todo o prazer - e leu com ênfase, para o rapaz e para o grupo em redor, a declaração de amor de um filho a sua mamãe, em forma de diploma. A OUTRA NOITE – RUBEM BRAGA Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de Lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal. Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou um sinal fechado para voltar-se para mim: - O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa.
  • 75. Mas, tem mesmo luar lá em cima? Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda. - Mas, que coisa... Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa. - Ora, sim senhor... E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um"boa noite" e um"muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei.