SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 235
Descargar para leer sin conexión
Juan Del Diablo 01
Caridad Bravo Adams
CCOORRAAZZOONN
SSAALLVVAAJJEE
(Livro da autora mexicana que foi adaptado para telenovela)
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
2
Disponibilização, Pesquisa e Tradução:
Jo Slavic
Revisão: Vânia Gusmão
Formatação: Karina Rodrigues
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
3
IInnffoorrmmaaççããoo ddaa sséérriiee
JJuuaann ddeell DDiiaabblloo 0011-- CCOORRAAZZOONN SSAALLVVAAJJEE
JJuuaann ddeell DDiiaabblloo 0022 –– MMOONNIICCAA
JJuuaann ddeell DDiiaabblloo 0033 –– JJUUAANN DDEELL DDIIAABBLLOO
TTooddaa aa sséérriiee sseerráá ddiissttrriibbuuííddaa ppeelloo ggrruuppoo PPééggaassuuss
LLaannççaammeennttooss.. AAgguuaarrddeemm..
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
4
CCapitulo 1
A tormenta de outubro ruge sobre o inquieto Mar das Antilhas... É de noite, e as
rajadas de um furacão fazem estelar-se contra os escarpados de rochas as ondas
gigantescas, que caem logo, em ebulição o manto de espuma, sob o açoite da chuva...
Negro está o céu; e a terra, como sobressaltada. São a costa Brava que se abre,
primeiro em pequenas enseadas, em apartamentos estreitos, e logo, uns poucos
metros mais à frente, converte-se em selva espessa... Terra antilhana sobre a que
ondeia a bandeira da França...
Um navio entra no porto do Saint-Pierre, a despeito dos elementos
desencadeados... E unindo-se ao concerto do vento e das ondas, a salva de honra de
vinte e uma armas lhe saúda do forte de São Honorato...
Ao mesmo tempo em que a fragata, que já se acolha à enseada do Saint-Pierre,
um pequeno bote desvencilhado ganhou milagrosamente a areia de uma diminuta
praia próxima a circundam, e seu único tripulante salta, metendo-se na água até a
cintura, para arrastar a frágil canoa, liberando-o da fúria renovada dos elementos...
A luz muito viva de um raio iluminou dos pés a cabeça ao audaz marinheiro,
que em noite tal acima à enseada. É forte e ágil; com flexível soltura de felino dá uns
passados afastando-se do mar, para erguer-se depois, como calculando o perigo do
lugar em que deixou seu bote. Tem a pele torrada pela intempérie; largo e forte o
pescoço; os ombros, quadrados;
Os quadris, estreitos; as mãos, calosas, e os pés descalços, que parecem aferrar-
se como garras à terra que pisam. .Pode ter apenas uns doze anos...
O detestável estampido de um trovão agitava sombras não alterna... O moço,
dominando seu primeiro movimenta de temor instintivo, olha de frente ao firmamento
escuro, onde marcam os raios as chicotadas de sua vivida luz, e exclama:
— Santa Bárbaral
Por um momento parece vacilar, mas não é por temor. A horrível noite não lhe
produz espanto... Só calcula, com olhada certeira, que caminho deve seguir para
chegar mais rápido à cidade próxima, cujas luzes se apinham ao redor da baía.
Apalpa o pequeno sobre que como um tesouro leva entre suas roupas molhadas,
olha de novo ao bote que deixou sobre a areia e põe-se a andar com passo silencioso e
rápido...
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
5
— Se não se der você pressa, chegaremos tarde à festa do Governador, amigo
D'Autremont.
— Pressa? Nunca me dava pressa por nada nem por ninguém, amiga Noel; sem
contar com que chove muito. Poucos serão os convidados que não se atrasem esta
noite, e, além disso, o Marechal Pont-merce chega nessa fragata que viu você entrar
faz vinte minutos escassos. Ele é o convidado de honra...
— Não mais que você, meu amigo. A festa é em honra de ambos, e o carro está
aguardando há muito tempo.
— Está bem, amigo Noel... Vamos, pois... Francisco. D'Autremont se pôs em pé
com gesto de elegante chateio... Deu uns passos através da luxuosa estadia, e se
detém no meio do vestíbulo, com gesto de estranheza ao ouvir os fortes barulhos que
repentinamente quebram o lugar com seus ecos... Aborrecido, interpela altivo o seu
criado:
— Quem chama desse modo, Batista?
— ia vê-lo neste momento, senhor — responde o criado. — Não sei quem possa
ser o atrevido...
— Pois ponha em seu lugar — ordena cortante, D'Autremont. Uma rajada de
vento e chuva faz irrupção, assobiando, no elegante vestíbulo; e irado, D'Autremont
grita:
— Fecha essa porta, estúpido!
Antes que o criado consiga fechá-la, o inoportuno visitante penetrou de um
salto; os revoltos cabelos molhados sobre a frente, o corpo semidesnudo jorrando água
sobre os tapetes... Tão surpreendentemente atrevido e audaz, que Francisco
D'Autremont e Pedro Noel retrocedem ao lhe ver, apagada a indignação pela
surpresa...
— Caramba! — exclama Noel.
— Mas o que é isto? — indaga D'Autremont.
— Procuro o senhor Francisco D'Autremont... — explica o moço com decisão.
— Deve ser um louco, senhor... — intervém o criado — Vou A...!
— Agora, deixa-o em paz! — atalha imperativo D'Autremont.
— É você dom Francisco D'Autremont? — pergunta o moço — É você, senhor?
— Sim, sou eu... Mas você, quem é? E que diabos te passa para te atrever a
chegar a minha casa desta maneira?
— Meu nome é Juan. Venho do Cabo do Diabo para lhe trazer esta carta. O
senhor Bertolozi está morrendo e disse que tinha você que chegar antes que ele
acabasse. Se for você seriamente o senhor D'Autremont, venha comigo... Trouxe meu
bote para levá-lo... Vamos...?
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
6
O moço deu um passo para a porta, mas se deteve observando o rosto do
Francisco D'Autremónt, que o olha estupefato, na mão o molhado envelope da carta
que acaba de lhe entregar. .É um homem alto e distinto, que viu com extraordinária
elegância... ―O seu lado‖ Pedro Noel, seu amigo e notário; rechoncho e bondoso move a
cabeça como se não pudesse dar crédito ao que está vendo e escutando, e com.
surpresa e desgosto de uma vez, pergunta: '
— Levar ao senhor D'Autremont em seu bote?
— Quando digo eu que é um louco...! — O melhor será chamar alguém para que
o levem — insiste o criado.
— Quieto! — ordena D'Autremont. Logo, como recordando, murmura —
Bertolozi... Bertolozi...
— Disse que fosse você em seguida, que ele, por desgraça, não podia esperar
muito. Se sairmos agora mesmo, ao amanhecer estaremos lá.
— Bertolozi está morrendo... — sussurra D'Autremont.
— Isso assegurou o curandeiro... Que não chegará a manhã... — E lhe deixou
um remédio, mas ele não o quis tomar e me mandou com esta carta... Disse que você
tinha que ir lá...
— Pois está completamente equivocado. Não conheço nenhum Bertolozi... —
exclama D'Autremont, carrancudo.
— Não é possível, senhor! Se for você dom Francisco D'Autremont...
— Não conheço nenhum Bertolozi! — repete ele. Voltando-se para seu amigo lhe
convida — Vamos, Noel?
— Mas, senhor... — se lamenta o moço, saiu seguido do notário, sem voltar-se
para olhar ao moço, e salta o chofer da boléia para lhe abrir a porta da carruagem. Por
um instante contempla a molhada carta, afunda-a logo em seu bolso, e entrando no
carro ordena com voz forte:
— Ao palácio do Governador. Logo!
O moço se aproxima, gritando implorante:
— Senhor... Senhor... Senhor...!
Tudo é inútil. O carro se afastou; o moço vacila um instante, e logo se põe a
andar sob a chuva que açoita a rua...
Pedro Noel, o notário da família D'Autremont, com as grosas mãos apoiadas
sobre o punho de prata de sua bengala, olhar de esguelha ao homem que vai a seu
lado. Apesar da brusca resposta dada ao moço, apesar de seu gesto glacial, Francisco
D'Autremont parece profundamente comovido, profundamente preocupado. Tem os
lábios apertados e as bochechas pálidas... As inquietas mãos trocam a cada
insistentemente e muda de posição e com freqüência apalpam o úmido envelope
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
7
guardado em seu bolso... Ao fim, o notário, depois de olhar e olhar arrisca uma
palavra:
— Não vai você ler essa carta? Pode tratar-se de. Algo realmente Importante.
Quando se obriga a um menino a vir do Cabo do Diabo até a cidade, para trazê-la em
uma noite como esta... Será porque esse Bertolozi, a quem você não conhece, tem
absoluta necessidade de lhe dizer algo... — Baixa a voz e, em tom insinuante, explica
— Bertolozi... A mim esse nome soa...
— Como...?
— De momento não pude recordá-lo, mas agora vou fazendo memória... Andrés
Bertolozi chegou a Martinica fará uns quinze anos. Pertencia a uma das mais distintas
famílias de Nápoles... Trouxe dinheiro para comprar uma fazenda, e adquiriu uma
bem extensa ao Sudeste da ilha, com grandes plantações de café, tabaco e cacau. Logo
se converteu em um homem opulento, alegre e liberal, franco e expressivo, como a
maior parte dos italianos, e trouxe consigo a sua esposa: uma muito bela moça de
laqueie estava loucamente apaixonada...
— Basta! — atalha-lhe, irado, D'Autremont.
— Perdão... Não acreditei lhe importunar. Surpreende-me que não recorde ao
Bertolozi. ―Você estava no Saint-Pierre quando os dias de sua desgraça...‖
— A que chama você sua desgraça?
— O princípio de sua desgraça foi à fuga de sua esposa...
— O que trata de insinuar?
— Não insinuo amigo D'Autremont... Lembro-me. Bertolozi jurou publicamente
matar ao homem que a tinha levado, mas o nome daquele ficou no mistério. Ela
desapareceu para sempre e Bertolozi se deu a todos os vícios: bebia, jogava, procurava
a companhia das piores prostitutas do porto... Ao fim perdeu o imóvel e, totalmente
arruinado, desapareceu ele também. Mas recordando, recordando, vem-me à memória
algo que me disse um amigo...
O carro se deteve frente à porta da casa do Governador, mas Francisco
D'Autremont não se moveu... Tenso, crispado, voltado para o notário, parece esperar
seus ultima palavras, que Pedro Noel pronuncia como a inapetência, com uma sutil
insinuação escorregando de cada frase:
— Parece que o último pedaço de terra que ficava era essa nua rocha do Cabo do
Diabo. Sobre ela, por suas próprias mãos, fabricou uma cabana, e ali é onde
certamente agoniza e de onde lhe mandou chamar. Não lhe parece?
— Tem você uma boa memória mais abominável que conheci jamais.
— Por Deus, amigo D'Autremont, é meu ofício...! São tantas as histórias que se
escutam quando se dirigem papéis de família, que com freqüência são o reflexo de
dramas de quarto. Pelo resto, Bertolozi foi um homem interessante... Seus assuntos se
deram muito que falar, e sua desgraça...
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
8
— Não me interessa sua desgraça. Nunca fui seu amigo!
— Às vezes, sendo inimigo basta para interessar-se.
— O que quer me dizer. Noel?
— Autoriza-me para que fale francamente?
— Acaso não estou lhe pedindo que o faça?
— Pois bem... Acredito que deveria você ler essa carta, e ir ver seu inimigo
Bertolozi, ao Cabo do Diabo...
Francisco D'Autremont, nervoso ouviu as palavras do notário, e com gesto de
raiva espreme em seu bolso aquela carta que o moço lhe entregou momentos antes.
Logo sorri, tratando de vestir de ironia a inquietação que logo que pode já dissimular:
— Não tinha tanto empenho em que chegássemos cedo à festa do Governador?
— Até ha meia hora era o mais importante que tinha você que fazer.
— E agora, o que? Parece-lhe mais importante que o Governador e sua festa,
recolherem o último fôlego desse vicioso, desse bêbado, desse desventurado cansado
em todos os vícios, só porque uma mulher lhe enganou?
— Era sua esposa e ele a amava — responde Noel com suavidade. — O cobriu de
vergonha e ele não obteve jamais encontrar-se com o agressor.
— Não o encontrou porque não quis buscá-lo! — salta D'Autremont, com ira
concentrada.
— Talvez o outro soubesse ocultar-se bem...
— Pensa você que era um covarde?
— Não, claro que não posso pensá-lo. Sem dúvida, era capaz de confrontá-lo
todo tudo, menos o escândalo. Pelo resto, tinha obrigações graves, e Gina Bertolozi
não o ignorava. Era casado... Sua esposa estava a ponto de lhe dar um filho... Eu não
culpo a esse homem, amigo D'Autremont... São pecados de homem... Mais grave me
parece não ir à chamada de um. Moribundo...
— Basta, Noel! Irei lá.
— Por fim me Perdoe por ter insistido tanto. O conheço um pouco, amigo
D'Autremont, e sei que há coisas que não as perdoaria você jamais.
— Então, quer você apresentar minhas desculpas ao governador?
— Com verdadeiro gosto, meu amigo.
— Pois vá. — de repente D'Autremont exclama — Um momento!
— Não é preciso que me recomende à discrição mais absoluta — esclarece Noel,
pormenorizado. — É... Meu ofício, amigo D'Autremont.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
9
CCapítulo 2
A tormenta amainou. O mar está quase tranqüilo, e um vento fresco, quase.
Frio, chega com a proximidade da alvorada, varrendo as nuvens.
O frágil bote, que resistiu a tempestade, encalha na areia de uma profunda
greta, esculpida na rocha viva pelos golpes do mar, e outra vez salta o rapaz metendo-
se na água para tirar terra à casquinha, deixando-a a salvo. Logo, seus pés descalços,
endurecidos pela intempérie, sobem pelos penhascos afiados, primeiro com agilidade
de felino, depois mais lentamente, como se não queriam chegar até o lugar aonde
vão... Já no alto do penhasco de rochas, parece como se fossem de chumbo... Detêm-
se cada instante, tremem como se fossem a tomar outro rumo, e ao fim chegam até o
oco sem porta, entrada da mísera cabana que é a única habitação, humana no Cabo
do Diabo.
Uma voz de doente, carregada de rancor, pergunta:
— Quem é?
— Sou eu: Juan...
— Juan do Diabo!
Da cama onde jaz com febril esforço se há incorporado um homem que mais
parece, um despojo humano: a pele sobre os ossos; as bochechas afundadas; sujas,
crescidos e revoltosos o cabelo e a barba... A boca, um oco crispado de dor... Por
vestidos, uns sujos farrapos. Inspiraria compaixão profunda se não fosse por seu
olhar: ardente, audaz, desafiadora, carregada de ódio, lhe relampejem de rancor, como
carregadas de ódio e amargura soam cada uma de suas palavras.
— E o cão que te mandei procurar? Vem contigo? Onde está? Onde está o
maldito Francisco D'Áutremont? Corre... Chama-o! Três, lhe diga que demorou... Um
pouco mais e não posso lhe aguardar!
— Não veio comigo — se desculpa o moço.
— Não...? Por quê? Não fez o que te disse, maldito? Não chegou a sua casa? Não
me obedeceu, né? Agora verá. .
Tratou que levantar-se, mas caiu de novo sem forças, para ficar imóvel,
extenuado, os olhos frágeis... O moço o olha impassível, se aproxima passo a passo,
com uma excreção estranha em seus profundos olhos altiva, e afirma:
— Sim; cheguei a sua casa...
— E lhe deu a carta?
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
10
— Sim, senhor, na mão.
— E não veio depois de lê-la?
— Não a leu. Disse que não conhecia ninguém que se chamasse Bertolozi...
— Disse isso o cão?
— E se foi de carro a uma festa onde o estavam esperando.
— Maldito! E você o que fez então? O que fez?
— O que ia fazer? Nada.
— Nada... Nada! Sabe que me estou morrendo. Sabe que necessito que venha,
e não faz nada! Tinha que ser quem é.
— Mas, pai...! — suplica o moço.
— Não sou seu pai! Quantas vezes tenho que dizer Não sou seu pai. Quando
essa maldita voltou a me buscar, quando precisou buscar meu amparo, já te trazia
nos braços. . Não é meu filho! Se ela, além de me enganar, tivesse-me roubado meu
filho, eu a teria matado. Mas não, voltou com o filho de outro, com o filho desse
canalha... Contigo!
— Filho de quem?
— De quem... De quem? Quer sabê-lo? Para dizer-lhe mandei-o chamar. Filho
dele, disso, do que se ia de carro a uma festa enquanto eu vejo aproximar-se da morte.
Do que me tirou isso tudo, do que me roubou isso tudo, para me dar, em troca, a ti.
— Não entendo... Não entendo!
— Pois o entende! Esse senhor que te voltou às costas, esse senhor que te disse
que não me conhecia... É seu pai!
— Meu pai... Meu pai...? — balbucia o moço no paroxismo da surpresa.
— Mas não se preocupe... Tampouco te conhecerá Que asco!
— Senhor Bertolozi... Repita-me isso. Meu pai...? Disse você que meu pai...?
— Seu pai é Francisco D'Autremont. Diga-lhe a todo mundo, grita-o em todas as
partes! Seu pai é Francisco D'Autremónt... Deve-lhe toda sua desgraça. Deve-lhe a
miséria, deve-lhe a vergonha, deve-lhe sua nudez e sua fome... Deve-lhe o insulto que
têm que te jogar à cara quando for homem, porque ele manchou a sua mãe! Todo isso
lhe deve... E agora, quando o chamo porque estou morrendo, porque vais ficar
sozinho, vai a uma festa onde o estão esperando.
— Um soluço se quebra em sua garganta, deixando passo a ternura. — Juan...
Juan, filho meu...
— Senhor...!
— Aborreço-te porque é filho dele, mas há algo com o que pode te limpar te
lavar essa mancha... Quando for homem, procura o Francisco D'Autremont e faz o que
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
11
eu não fiz o que não tive o valor de fazer: mata-o. Mata-o! — E como se nestas
palavras tivesse posto o último hálito de sua vida, cai desabado ao chão.
— Senhor... Senhor, senhor me Responda! Sacudiu-o em vão. Andrés Bertolozi
não responderá mais!
Ninguém na costa; ninguém na funda greta, entrada da estreita praia; ninguém
nos imponentes farallones de rochas nos que rudemente se estrela o mar; ninguém no
alto. Do promontório do Cabo do Diabo; ninguém em tudo que sua vista inquisitiva
alcança... Nem alma vivente nem habitação humana... Só uma cabana miserável ao
amparo do negro promontório que entra no mar: o Cabo do Diabo.
Bem posto tem o nome à abrupta paisagem, agora mais desolado sob as
espessas nuvens cinzentas que envolvem as montanhas... Tão baixos, tão perto da
terra, como se quisessem também tragar-lhe Com passo firme. Francisco D'Autremont
vai para aquela cabana e chama com voz estrondosa:
— Bertolozi!
O nome soa oco na nua estadia sem portas, sem janelas, sem móveis quase... No
camastro se acha a forma rígida de um corpo que se destaca sob um lençol,
incrivelmente limpa naquele lugar... Impressionado, D'Autremont murmura:
— Bertolozi...
De um puxão Baixou um pouco o lençol para ver aquele rosto no que a morte
pôs já sua máscara, e pouco pode reconhecer nele ao homem Jovem, são e arrogante,
que foi seu rival... Há manchas de cãs entre os revoltos cabelos escuros, entre a
espessa barba que cobre as bochechas emagrecidas, e há também uma sombra de
suprema paz sobre as pálpebras fechadas... Estremecendo-se, Francisco D'Autremont
cobre aquele rosto, e retrocede um passo... .
Chegou tarde, muito tarde... Aqueles lábios lívidos já não lhe entregarão o
segredo que guarda... Calam para sempre... Mas a mão do Francisco D'Autremont
apalpa nervosamente em seus bolsos e extrai o enrugado sobre daquela carta que
incluso não tem lido... Guardou como pode guardar um veneno, uma arma, uma
dormida serpente venenosa. Mas agora, frente a aquele cadáver, rasga o sobre e dá
um passo para a janela sem folhas, pela que penetra a luz leitosa do dia que nasce...
"Com minhas últimas forças te escrevo, Francisco D'Autremont, e te peço que
venha a meu lado. Vêem sem medo... Não te chamo para tentar uma vingança. É tarde
para que eu me cobre em sangue todo o mal que me tem feito e que fez a ela. É rico e
feliz, amado e respeitado, enquanto eu, fundo na abnegação e na miséria, Olho chegar
à morte como a única liberação possível. Não tenho que te repetir quanto te odeio.
Você sabe. Se te matasse com o pensamento, te teria aniquilado; mas só eu mesmo me
consumei pouco a pouco na fogueira deste rancor que me cobre à alma...
Por um instante. Francisco D'Autremont interrompeu a leitura para contemplar
a forma rígida que destaca sob o tecido branco, sentindo que a angústia lhe invade,
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
12
que lhe é difícil respirar sob o teto daquele cabano onde todo preze rechaçá-lo, e outra
vez voltam seus olhos à leitura...
"Mata-me o ódio mais que o álcool, mais que o abandono... E por ódio calei
durante muitos anos. Hoje quero te dizer algo que acaso possa te interessar. Esta
carta a porá em suas mãos um moço. Tem doze anos e ninguém se ocupou jamais de
batizá-lo. Eu lhe chamo Juan, e os pescadores da costa lhe dizem algo mais: Juan do
Diabo... Pouco tem de ser humano. É uma fera, um selvagem... Criei-o no ódio... tem
seu coração malvado, e eu dei, além disso, rédea solta a todos seus instintos. Sabe por
quê?" lhe vou dizer isso se por acaso não te decide a vir a me escutar: É seu filho...
A carta tremeu em suas mãos... Com olhos aumentados de angústia olha a
todas as partes, mas os artigos desiguais lhe atraem como letreiros de fogo, e bebe de
um sorvo ele subtraio de veneno daquelas palavras...
"Se o tiver diante, olha-o à cara... Às vezes é seu vivo retrato... Outras se parece
com ela... A ela... a maldita... É teu... Toma-o... Tem o coração envenenado e a alma
danificada de rancor. Não sabe mais que aborrecer... Se o levar contigo, será o pior
castigo que possa ter... Se o abandona, será um assassino, um pirata, um salteador
de caminhos, que acabará na forca... E é seu filho... Tem seu mesmo sangue... Essa é
minha vingança!"
— Pálido de primeiro espanto, vermelho de indignação um instante depois,
Francisco D'Autremont espremeu aquela carta, última mensagem de seu rival vencido,
de seu inimigo imóvel para sempre já; triunfador na morte, tanto como na vida foi
derrotado... Com súbito impulso de irrefreável cólera, foi até o camastro, descobrindo
o rosto do Cadáver, e o espeta tremente de horror e de raiva:
— Acorda! Isto não é verdade! .por que não me esperar com vida para te obrigar
a confessar! Embusteiro! Covarde! Como sempre foi, tinha que te levar, até o final!
Covarde, sim... Covarde! Jamais me buscou cara a cara... Jamais, como homem,
pediu-me contas... E agora... Por que não está vivo? Por que não me aguardou? —
retrocedeu cambaleando-se, cegado por um bafo vermelho que forma em torno dele.
Como uma atmosfera de irrealidade. — É o mais vil dos embusteiros, mas não vais
alcançar-me com seu torpe veneno! Não! Não!
— Senhor D'Autremont! — chama suave, a voz do Pedro Noel
— Isso não é verdade! Isso não é verdade!
— D'Autremontl — insiste Noel, aproximando-se — D'Autremont!
— Covarde... Canalha...! — Amigo meu... Mas está você louco?
— ha? O que? — reage, por fim, D'Autremont. Está você doente, transtornado...
Volte para a realidade... — Noel... Amigo Noel...
— Acalme-se, por favor... Acalme-se...
Francisco D’Autremont se conteve com tremendo esforço, afastando do camastro
onde jaz o cadáver, enquanto Pedro Noel se aproxima respeitoso.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
13
— É um embusteiro... Um embusteiro e um canalha...! — sentença D'Autremont
com voz surda.
— Já não é nada, meu amigo, mas sim um triste despojo. Deixe-o, e vamos...
— Como está você aqui? — interroga D'Autremont, saindo do marasmo de seu
estupor.
— Pareceu-me conveniente vir a buscá-lo... Batista me disse o caminho que
havia você seguido. Acredito que cheguei a tempo... E você, em troca, muito tarde.
Mas venha, vamos...
— Aguarde... Aguarde... Onde está o moço?
— Que moço?
— que levou a carta... Onde está?
— Não sei... Não vi a ninguém. Suponho que o desditado Bertolozi vivia na mais
absoluta solidão.
— O menino vivia com ele... Onde está?
— Repito que não vi a ninguém, mas se você se empenha... OH, olha...!
D'Autremont se tornou com viveza'... Muito perto do camastro, sentado no chão,
depois dos desvencilhados móveis da casa — uma mesa e um par de cadeiras rotas, —
está o moço que foi até o Saint-Pierre levando aquela carta, e ardem com um estranho
fogo seus olhos escuros sob o cabelo emaranhado que lhe cobre a frente...
— O que faz aí escondido, moço? — indaga Noel. — levante-se... Levante-Te, que
o senhor te está procurando...
Juan se levantou lentamente, sem deixar de olhar ao Francisco D'Autremont,
que sente avermelhar suas bochechas baixo aquele olhar... É um olhar que acusa que
condena... Acaso que pergunta...
— Estava aí? Estava aí desde que eu entrei? — quer saber D'Autremont. —
Responde!
— Sim, senhor — responde o moço. — Aí estava...
— por que te escondia? — pergunta Noel.
— Não estava escondido... Estava aí...
— Sem dizer uma só palavra... — queixa-se D'Autremont.
— E o que tinha eu que dizer?
O moço se pôs de pé. É ânus para sua idade, magro e jogo a rede, inquieto e ágil
como um animalzinho montês, e D'Autremont se volta para ele, sujeitando-o
bruscamente pelos braços...
— Estiveste-me espiando, ouvindo minhas palavras... Sim, verdade? Conhecia
você o conteúdo da carta que levou?
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
14
— Como? '
— Que se tinha lido essa carta...! Responde! — a minha pergunta D'Autremoht,
irado.
— OH, me solte! Eu não o estava espiando... Solte-me! Não tem por que me
sujeitar... Tampouco li a carta. Não sei ler...
— Naturalmente, amigo D'Autremont — intervém, conciliador, Pedro Noel. —
que ocorre! Como vai saber ler este pobre moço!
— Havia-te dito ele o que me escreveu nesta carta? Responde a verdade! —
D'Autremont se dirige ao moço, em tom ameaçador.
— Já hei dito que não — responde o moço.
— Por favor, amigo D'Autremont — aconselha Noel — Calma. Calma...
Francisco D'Autremont se afastou uns passos, apertados os punhos e trêmulos
os lábios, enquanto o notário olha bondosamente ao moço imóvel, duro e áspero, e lhe
pergunta:
— A que hora morreu. O senhor Bertolozi?
— Não sei... Faz tempo já...
— Não avisaste a ninguém?
— Cheguei até as cabanas de lá abaixo... Ali me deram esse lençol... Depois me
disseram que viriam os da justiça... Mas eu não estava espiando a ninguém... —
insiste com teima. — Esse senhor diz...
— EI senhor D'Autremont está nervoso por tudo que passou. Sua atitude lhe
pareceu estranha, mas nada mais. Vêem para cá... Aproxime-te um pouco...
Compreendo que você também se sente mal. O que foi você do senhor Bertolozi?
Amigo? Parente? Criado?
O moço se ergueu. Seu olhar, como uma flecha, cravou-se no Francisco
D'Autremont, que volta já sobre seus passos, olhando-o de frente. Um instante se
cruzam no irei àquelas duas olhadas estranhamente iguais... E o notário, depois de
lhes contemplar, indaga com suavidade:
— Não sabe o que foi do senhor Bertolozi? Provavelmente, vizinho nada mais... É
da aldeia de pescadores que está lá abaixo?
— Não... Eu vivo aqui... O senhor Bertolozi era... Era meu: pai...
— Efetivamente — suspira D'Autremont. — Acredito que este menino é filho do
Andrés Bertolozi e de sua desafortunada esposa. A enfermidade e o álcool deveram
enlouquecer ao Bertolozi em seus últimos tempos... Deve dizer tantas coisas
estranhas, que o pobre moço está transtornado...
Sua mão tremente quis posar-se na cabeça do Juan, que com um brusco
movimento o esquiva. Logo, com gesto de desalento, D'Autremont sai lentamente da
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
15
cabana, e Noel vai atrás dele. Uns passos mais adiante se detém e o notário interroga
a seu amigo:
— Permite-me lhe perguntar o que vai você a fazer?
— Farei que sepultem ao Bertoíozi com decência. Quereria ocupar se disso? —
responde D'Autremont com tristeza, sereno, já dono de suas emoções.
— Naturalmente, se você o dispuser...
— Penso sair para minhas terras amanhã, de madrugada...
— E o moço?
— Levarei-o comigo.
— Ah... Mas quererá ir-se?' Não acredito que vocês tenham simpatizado.
— Confio em sua boa máfia para conquistá-lo. Noel.
— me perdoe uma última pergunta. Leu, por fim, a associação de famosa carta?
— Li-a e a rompi no ato. Só dizia loucuras e disparates. Por isso sei que Andrés
Bertoíozi estava completamente louco. Absolutamente transtornado!
Pedro Noel se levou a moço, afastando-o um tanto da cabana, rumo ao caminho
que por outra via comunica com a cidade aquela paragem desolada. Passaram as
horas, e os escuros e rotineiros trâmites para dar sepultura ao corpo do Bertolozi
tocam já a seu fim. Só fica aquele último ponto delicado que Francisco D'Autremont
encarregasse a seu diplomático amigo e notário.
— O senhor D'Autremont vai levar-te com ele. Sabe o que isso significa? Levará-
te a sua casa, onde vão tratar-te bem, onde há toda classe de comodidades. Sua vida
vai mudar...
— Não... Não quero! — protesto o moço, anti-social.
— Que não quer? Não posso acreditá-lo. Certamente não obtive que entenda
minhas palavras... O senhor Bertoíozi morreu. Não fica nada o que fazer por para cá.
— Não quero ir!
— Não seja teimoso... Vai a uma formosa casa onde gozará de todas as
comodidades, onde viverá como um ser humano. O senhor D'Aütremont quer te
amparar, é muito bom...
— Não! Não! Não é verdade! Não quero ir com ele!
— Pois terá que fazê-lo, por bem ou por mau Não vão fazer-te nenhum dano...
Ao contrário... Mas será pior para ti que lhe levem a força, metido em um saco como
um macaco selvagem.
— Si me levam a força, escaparei-me!
— E lhe voltarão a apanhar... — diz o notário, afetuoso. — Mas, por que é tão
teimoso moço? Olha... Quer que façamos um trato? Eu vou com vocês; passarei dois
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
16
ou três dias em Campo Real, que é a fazenda do senhor D'Autremont. Se não quiser
ficar ali, quando eu retorne para o Saint-Pierre, trago-te.
— Por que não me deixa com você a partir de agora? Eu sei trabalhar em muitas
coisas: cortar lenha, cuidar cavalos... Eu...
— Perfeitamente. Ocupar-te-á de todo isso quando voltarmos a casa. Mas, no
momento, tem que agradar ao senhor D'Aütremont. Equivoca-te ao pensar que não é
bom; é bom e generoso, possui uma linda casa de campo, sua esposa é uma bela
dama, distinguida e amável, e tem um fio que pouco mais ou menos terá seus mesmos
anos. Certamente te quererá para que esteja com ele, para que lhe acompanhe em
seus jogos e seja algo assim como seu pequeno lacaio. O vais passar bem, Juan.
— Eu prefiro ficar com você... Ou que me deixem sozinho.
— Só não vamos deixar-te. Eu te levo e...
— E me traz... Traz-me depois... Dá-me sua palavra... Eu não quero ficar lá!
— Bem, homem, bem. Levo-te e te trago. É um ingrato com o senhor
D'Autremont. Ao menos, tem que tratar de mostrar sua gratidão por sua boa vontade.
Anda, vê para o carro, que ali vem ele e tenho que lhe falar.
— O que acontece, amigo Noel? — pergunta D'Autremont.
— Resistiu o bastante, mas consegui amansá-lo com a promessa de ir eu com
vocês e lhe trazer de volta se não se achar a gosto. O prefere ficar comigo, e não você
tome a desprezo. É um moço estranho, mas me temo que extraordinariamente
inteligente apesar de seu aspecto rude e selvagem.
— Temer? Por quê?
— É uma maneira de falar. Ao fim e ao cabo, sempre é preferível tratar com
inteligentes que com brutos. Este nos provou ser um valente. A viagem que fez ontem
à noite nesse bote, e com essa borrasca, precisa uma têmpera que muitos homens não
tivessem tido. Parece, além disso, altivo, reservado, com certa dignidade natural. Nada
disso é comum em quem vive como um mendigo. Lhe vê certa casta...
— Deixe em paz sua casta! Recolho-o porquê suponho que era o que queria me
pedir Bertolozi, mas nada mais. A minha esposa não temos por que lhe dar detalhes
de nada disso. A imaginação das mulheres todo o enreda. Esperou que não se você
surpreenda muito se me ouça contar alguma história distinta referente ao moço.
— Temo-me que é você quem vai enredar a, porque apenas penteie isso e se lave
a cara, esse moço não poderá passar por nenhum mestiço. Fixou-se em que é um bom
moço? Seus grandes olhos italianos recordam extraordinariamente aos da
desafortunada Gina Bertolozi. Não se fixou?
Noel lhe observou, lhe vendo empalidecer, apertar os lábios... Logo, Francisco
D'Autremont encolha os ombros, forçando o gesto despreocupado, ao comentar:
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
17
— Não tive tempo de lhe olhar bem à cara. De um modo ou de outro, já se
arrumarão as coisas. E. No pior dos casos, (ainda sou eu o que manda em minha
casa).
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
18
CCapitulo 3
— Mama. Mamãezinha. Por aí vem já papai. Por aí vem. .
Brilhantes os olhos de alegria, um momento acesas pela emoção as bochechas,
habitualmente pálidas que emolduram os murchos cabelos loiros, um moço como de
doze anos entrou no quarto da senhora D'Autremont, que abre os olhos,
incorporando-se lentamente na ampla rede em que descansa.
— Já? É possível? Mas se não o esperava eu até no sábado!
Sofía D'Autremont tem uma beleza delicada e frágil... Grandes olhos de cor
turquesa, cabelos loiros, suaves e murchos como os do moço, e, como este, pálidas
bochechas de cor âmbar.
Um momento desapareceu seu gesto enfermo ante a notícia que acaba de lhe
trazer seu filho. E já de pé, dá uns passos apoiando-se nos magros ombros de este.
— Está seguro que é seu papai quem chega?
— Pois claro, mamãe, Sebastián veio correndo a avisar. Disse que desde i o alto
da colina viu papai em seu cavalo branco, e detrás os três carros da caravana. Talvez
venham cheios de presentes...
— Para ti?
— Para ti, mãezinha. Se tiver chegado navio da França, papai te trará de tudo:
tecidos de seda, perfume, bombons e todas essas coisas que sempre te traz. Eu lhe
pedi um relógio de bolso. Trará-me isso?
— Certamente, filho. Mas chama a minhas donzelas, A... Isabel, a Ana... A
primeira que encontre. Tenho que pentear-me, que me vestir...
— Senhora, senhora...! Dizem que o senhor está chegando por aqui — exclama
Ana, a donzela, irrompendo no quarto.
— Você vê? Você vê mãezinha? Já. Está aqui
— Jesus! Ajude-me a me pentear. Ana. De me mudar de roupa não há tempo,
mas
— A senhora está, como sempre, linda e arrumada. Não minta a donzela
mestiça. Como sempre, a; senhora D'Autreimont está impecável. Um fino traje branco
adornado com amplos encaixes, meias de seda, sapatos de salto Luis XV e um fino
enfeite com o que muito bem poderia apresentar-se em qualquer centro elegante de
sua terra natal. Entretanto, só está na grande casa, centro das plantações de Campo
Real, mansão enorme e sólida, de amplíssimas estadias suntuosas, grandes abajures e
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
19
pisos brilhantes como espelhos; tão luxuosa, tão senhorial, com suas luas de Veneza e
seus consoles dourados, que resulta anacrônica no coração daquela ilha americana,
tórrida e selvagem; mas é digna morada, de a frágil dama que balança passo a passo
sobre o gentil parque, uma mão apoiada no braço de sua donzela favorita, outra sobre
a dourada cabeça daquele filho único tão extraordinariamente emparelhado a ela.
— Aí está papal — grita o moço, afastando-se alegre. Correu ao encontro do
cavaleiro que já se detém frente à entrada principal e desmonta de um salto do brioso
cavalo, arrojando as rédeas à meia dúzia de serventes que foram para lhe atender e
lhe saudar. E da semipenumbra da larga galeria, Sofía D'Autremont contempla, com
olhos de ciumenta apaixonada, a figura varonil, altiva galharda, ante a que todos se
inclinam, porque ele é o amo de Campo Real é soberano indiscutível da terra que pisa.
— Trouxe-me o relógio, papai?
— Não; filho. Não tive tempo de buscá-lo.
— E a caixa de cores? E as cordas para meu bandolim?
— Sinto muito, mas nesta viagem não houve tempo para buscar nada.
— Francisco... — murmura Sofía, aproximando-se de seu marido.
— Sofía... Como está? — indaga D'Autremont, afetuoso e tenro.
— Como sempre... Mas deixemos meus achaques. Como é que retornaste tão
logo? Ainda não lhe esperávamos...
— Suponho que não te desgosta o que tenha adiantado minha volta — responde
D'Autremont em tom jovial.
— Me desgostar? Que coisa diz! É uma surpresa gratíssima; mas uma surpresa,
ao fim e ao cabo. O que aconteceu? Não chegou a fragata que esperavam?
Suspenderam as festas preparadas em honra do Marechal Pontmerce? Ou acaso lhe
traz você?
— OH, não, não!Nem sequer vi ao Marechal Pontmerce.
— O que passou? Alguma desgraça? O tempo esteve terrível estes últimos dias...
— Não, nenhuma desgraça. A fragata entrou sem novidade e as festas devem
estar-se celebrando.
— Mas...
— Não me interessou ficar a elas, Sofía. Isso é tudo.
— Pensei que te agradaria conversar com um compatriota ilustre. Certamente
trará coisas interessantes o que contar. Poderíamos ter notícias...
— Intrigas de salão ou intrigas políticas? Para que pode nos servir aqui,
querida? Estamos a sete mil milhas da França e até o sol ilumina a distintas horas.
— Não por isso podemos esquecer a nossa pátria — o reprova Sofía.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
20
— Minha pátria é esta, querida. Porque aqui está minha casa, está. Meu filho e
está você. Nesta ilha, que só para sua saúde foi inóspita. Mas não sente curiosidade
em ver o que, trago-te? .
— tornou-se fada o maciço de flores que envolve a calinata, entrada principal
daquela mansão, onde acabam de detê-los três carruagens que formam a caravana
que lhe seguia. Um totalmente vazio, do outro descendem já seus serviçais
particulares, e do terceiro, que é o mais próximo, baixa Pedro Noel quase arrastando
ao áspero moço que foi seu companheiro de viagem. As finas sobrancelhas da senhora
D'Autremont se juntam em um gesto de estranheza que é quase, quase de disposto, ao
comentar:
— Pedro Noel... Mas a quem traz?
— A alguém que pode entreter seus momentos de ócio e os de nosso filho Renato
— explica D'Autremont.
— Um moço! — salta, alegremente, Renato. — Me trouxe um amigo, papai!
— Justamente. Há dito a palavra exata. Trouxe-te um amigo. Agrada-me muito
que o tenha entendido no primeiro momento. Um amigo, um companheiro...
— Mas o que está dizendo. Francisco? — interrompe Sofía, com desgosto
reprimido.
— Você traga ao Juan, Noel — indica a este, D'Autremont.
— Senhora D'Autremont — saúda Pedro Noel, aproximando-se — é uma grande
honra para mim o poder lhe apresentar meus respeitos. — Logo, dirigindo-se ao
Renato, exclama — Olá, bom moço!
— Bom dia, senhor Noel — corresponde Renato.
— Este é Juan... — explica D'Autremont, apresentando-o.
— Juan? Juan o que? — quer saber Sofía.
— No momento, Juan a secas. É um órfão desamparado, para o que espero não
falte um canto nesta casa tão grande.
— Juan... A secas, né? — recalca Sofía, com desconfiança.
— Também me chamam Juan do Diabo — esclarece o áspero moço,
imperturbável.
— Jesus, Maria e José — se escandaliza a donzela benzendo-se.
— Há um momento de estupor geral, e também alguma risada afogada, quando
Noel, mundano, intervém:
— Desculpe-o, senhora. O diamante ainda está sem esculpir.
— Já o vejo... E sem separar o da folha seca — diz Sofía, em tom mordaz. — Os
cavalheiros são uma verdadeira calamidade. A nenhum dos dois lhes ocorreu banhar
a este moço antes de colocá-lo no carro.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
21
— É um esquecimento que pode remediar-se — explica D'Autremont, contendo
seu manifesto desgosto. — te Faça carrego dele, Ana. Leva-o a banho, arruma-o,
penteia-o e lhe ponha roupa poda do Renato.
— Do Renato? — se estranha Sofía.
— Não acredito que já possa usar a minha.
— Nem cabe na de meu filho.
— Tudo pode reunir-se — intervém Noel, conciliador. — Certamente não faltará
roupa de alguém, que possa servir-lhe.
— A negra Paula é a encarregada da roupa dos empregados — esclarece
depreciativa a. senhora D'Autremont. — lhe Peça uma camisa-e umas calças para este
moço. Ana.
— Eu tenho um traje que fica grande, mamãe — oferece Renato. — Ainda não o
estreei, precisamente por isso: É o de pano azul...
— Mandaram-no de presente seus tios da França — se opõe Sofía com crescente
desgosto.
— O ofereceu que boa vontade — comenta D'Autremont em tom suave, mas com
determinação. — Não lhe corte o impulso generoso, Sofía; Nosso Renato tem; roupa
para vestir a dez moços. Vá com o Juan e com a Ana, filho, e pensa que, para ele este
é um mundo novo pelo que você. Vai guiá-lo. — Voltando-se para sua esposa, suplica-
lhe com amabilidade — Você vem comigo, querida. Eu também vou pôr-me um pouco
mais apresentável. — E elevando a voz, chama o criado — Batista... Leva ao senhor
Noel à habitação que está acostumado a ocupar e encarregui-se de que nada lhe falte.
— Por mim não se incomodem — se desculpa Noel. — Me considero da casa.
— E o é. Dentro de meia hora, Sofía nos fará servir um aperitivo que tomaremos
juntos antes de nos sentar à mesa, verdade? Hoje te vejo muito bem, tem muito boa
cara, Sofía. , Certamente poderá nos acompanhar e será. Um grande prazer para nós.
A mesa é outra quando você nos acompanha...
Saiu Pedro Noel, seguido pelo criado, e ficou só o casal D'Autremont. Sofía não
pode ocultar os ciúmes que lhe corroem a alma, ao perguntar:
— Quem é esse moço?
— Sofía querida, te acalme...
— E você me responda... Quem é esse moço? De onde o tirou e para que lhe
trouxesse aqui? Por que não me responde?
— Vou responder-te, mas por partes. Chama-se Juan e é um órfão...
— Isso já o disse — lhe interrompe Sofía, nervosa — e é quão único sei. Chama-
se Juan do Diabo... Uma resposta bastante insolente de sua parte, quando ninguém
lhe perguntava nada.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
22
— Não há insolência em sua resposta, Sofía. Trata-se do apelido que certamente
lhe davam os pescadores, pelo lugar em que estava se localizada a cabana de seus
pais.
— Que lugar era esse?
— Bom... Perto do que chamam o Cabo do Diabo. — D'Autremont tenta lhe
subtrair importância. — Há ali uma aldeia de pessoas muito humildes, muito pobres,
que remendam redes e compõem navios. Entre essa pobre gente...
— Entre essa pobre gente há muitos órfãos, há muitos moços mendigos e
miseráveis nos subúrbios do Saint-Pierre. Jamais te ocorreu trazer para nenhum, e
muito menos dar-lhe a seu filho como amigo... Como irmão, diria eu.
— Sofia!
— É a forma em que trouxeste esse mendigo! — exclama Sofía, arrebatada já
pela ira. — E acredito que tenho direito a te perguntar: por que o traz assim? O que
tem você o que ver com ele? Por que não pode vestir-se com roupa dos empregados, e
pretende que estréie os trajes do Renato? Por que tem que ser nosso filho quem tem
que lhe dar a bem-vinda, e é nesta casa onde temos que lhe encontrar um rincão,
havendo cem barracões de jornaleiros onde sempre cabe um mais?
— Sempre te tive por mulher de nobres e generosos sentimentos cristãos, Sofía.
— Não me falta à caridade para tosse desgraçados, e mais de uma vez te
pareceu excessiva.
— Quando se tratava de desmoralizar A. os que são meus servidores, aos que
por força tenho que fazer que me conheçam como senhor e amo. Não pode dirigir uma
fazenda, que é como uma província, sem o respeito absoluto a uma autoridade, sem
disciplina e sem castigos que obriguem a respeitá-la. Por isso discutimos em mais de
uma ocasião. Neste caso...
— Neste caso, tudo é diferente. Sei, vejo-o e o apalpo. Não é uma obra de
caridade o que está fazendo. É uma obra de reparação. Esse moço te importa por ti
mesmo. Você leva muito...
— Pois bem, Sofía... Sim... Vou dizer-te à verdade. Esse moço é o filho de um
homem com o que eu me levei mal. Um homem que se arruinou por minha culpa.
Morreu deixando-o na mais espantosa miséria. Acredito um dever de consciência.
Ampará-lo. — Dúvida um momento. — O que passa? Por que me olhas desse modo? É
que não me crie?
— Parece-me muito estranho. Arruinaste a muitos, e não trouxe suas filhas a
casa... Melhor caberia pensar a história de outro modo. Esse moço é o filho de uma
mulher a que você amou
Com essa acusação reta e precisa, como uma bala disparada contra a fria
couraça de indiferença com que em vão pretende revestir-se Francisco D'Autremont,
foram às palavras da Sofía dando justamente no branco. Por um momento há parado
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
23
a ponto de estalar em um de seus arranques de violenta cólera. Logo, lentamente,
dominou-se, porque aquela mulherzinha loira e frágil, enfermo como uma flor de
estufa é a única pessoa que parece ter a faculdade de amansar nele os ímpetos
bravios, de resolver suas tormentas em um sorriso ou em um gesto ambíguo que
coalha depois em forçada atitude galante.
— Por que te empenha em pensar sempre o que mais possa te mortificar? —
Penso mal para acertar... E acerto, por desgraça.
— Neste caso, não.
— Neste caso mais que em nenhum. De que amor é o fruto essa criatura? Por
que não tem nome? Esse homem a quem arruinou a quem quer satisfazer lhe
recolhendo o filho, que sobrenome tinha? Como se chamava?
— Bom, o caso é que o moço é filho natural deste homem de que falo que não
chegou a lhe dar o sobrenome... Descuidou-se, são coisas que passam. Ao lhe
prometer me fazer carrego dele, tranqüilizava, além disso, sua consciência. E não
quererá que falte à promessa que fiz a um homem que morreu me benzendo, só
porque nessa linda cabecinha lhe entrou uma idéia tão descabelada como a que acaba
de manifestar.
— Não vais abrandar-me com histórias sentimentais...
— Então terei que concretizar as coisas: prometi, jurei ajudar ao moço. Não
acredito que possa te incomodar no mais mínimo. Eu mesmo me encarregarei de
educá-lo...
— Como a outro filho...? — insinua amargamente Sofía.
— Como um amigo e leal servidor do Renato — curta, cortante, D'Autremont. —
Lhe ensinarei a querê-lo, a defendê-lo, a prestar-lhe sua ajuda e seu amparo quando
chegar o caso.
— Seu amparo?
— Por que não? Nosso filho não é forte nem audaz.
— Joga-me isso em cara como se eu fosse à culpada.
— Não, Sofía não quer levar esta discussão adiante, mas se tivermos que
considerar a verdade, nosso filho, por um excesso de cuidados e mimos de sua parte,
não é o que devesse ser para as lutas e responsabilidades que cairão sobre ele o dia do
amanha. Já lhe disse isso antes: falta-lhe valor, força, audácia. Tempo é que comece
às adquirir quanto antes'.
— Meu filho irá educar-se na Europa. Não quero que se faça homem neste meio
selvagem.
— Tenho para ele projetos contrários: quero que se faça homem aqui, que
conheça a fundo o terreno em que tem que desenvolver-se, que saiba governar, o dia
de amanhã, o pequeno reino que vou legar-lhe. Se tivéssemos tido uma menina, seria
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
24
você a que disse sobre ela a última palavra. F.S um moço e necessito que se faça um
homem. Por isso falo e mando,
— E esse menino que trouxe...?
— Esse menino é quase um homem já, e servirá às mil maravilhas para meu
empenho. Encarregarei-me de lhe ensinar que todo o deve ao Renato e que é seu dever
dar a vida por ele se for preciso. Essa será minha vingança!
— Vingança do que?
— Do destino, da sorte, ou como quer lhe chamar. Rogo-lhe que não falemos
mais do assunto, Sofía. Deixe a eu arrumar as coisas.
— Me jure que o que me há dito é verdade!
— Lhe posso jurar isso Não te hei dito nada que seja mentira. Além disso, não
estou fazendo nada com caráter definitivo. Só trato de dar ao moço uma oportunidade
de provar que vale a pena ajudá-lo. Pelo que ele me demonstre ser, dependerá seu
futuro. Se tiver nas veias o sangue que diz que tem, saberá demonstrá-lo.
— Que sangue?
— Dá vocês sua permissão? — É Pedro Noel, que chega ao preciso instante em
que a situação se faz já insustentável entre o casal.
— Adiante, Noel — convida D'Autremont, aspirando profundamente e
agradecendo em seu foro interno a chegada de seu amigo. — Chega você no momento
oportuno de que tomemos esse aperitivo de que falei antes. Não te incomode, Sofía. Eu
mesmo ordenarei que o traga. — E ao dizer isto se afasta, deixando só a Sofía e ao
Noel.
Sofía fez um vago gesto de lhe deter, tensa a alma na resposta não obtida as
suas últimas palavras, mas fica imóvel, turvada por aquele olhar com que Pedro Noel
parece envolvê-la, adivinhando até seus mais recônditos pensamentos.
— Às vezes vale mais não afundar muito nas coisas, verdade? Admitir, sem
aprofundar muito, que até os melhores homens têm, caprichos, debilidades e cometem
enganos lamentáveis, que com um pouco de indulgência podem dissimular-se, -
evitando maus maiores.
— O que trata de me dizer, senhor Noel?
— Em concreto nada, senhora. Falava por falar, como falo muitas vezes; mas
enquanto cruzava esta preciosa casa, para me aproximar aqui, pensava que são vocês
uns matrimônios realmente ditosos e que conservar essa felicidade merece qualquer
pequeno sacrifício de amor próprio.
— Para que me está preparando. Noel?
— Para nada, senhora... Que ocorrência! É você muito sensata para necessitar
de meu conselho, mas se por acaso me perguntasse qual é em minha opinião a melhor
forma de levar-se com o senhor D'Autremont, eu lhe responderia que esperasse. Meu
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
25
pai, que foi notário dos D'Autremont, na França, dizia-me sempre: "A cólera de um
D'Autremont é como um furacão: violenta, mas passageira". Opor-se a ela no momento
do arrebatamento, é uma verdadeira loucura. Mas logo passa, e então é o momento de
reparar o que destroçaram...
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
26
CCapitulo 4
— Vê que bem está? Parece outro. Olha -te no espelho — diz Renato ao Juan.
— O espelho... — O espelho, claro... Aqui. Olha-te. Não tinha visto alguma vez
um espelho?
— Tão grande, não. É como um pedaço de água quieta.
— Não lhe passe a mão, que o empana — proíbe Batista, o criado. — haverá
visto o selvagem.
— lhe deixe em paz. Papai disse que não o incomodasse ninguém.
— E quem o está incomodando? Que mais quer ele? Juan retrocedeu um passo
para olhar-se de pés a cabeça no espelho que tem diante. É, efetivamente, como uma
grande parte de água quieta que lhe devolve inteira sua imagem... Uma imagem em
que parece outro, embora seja a primeira vez, nos doze anos de sua vida, que pode
contemplar-se como agora o está fazendo. Há um grande assombro de se mesmo no
escuro olhar. Embora tenha a mesma idade que Renato D'Autremont, é bastante mais
alto; seu corpo, magro e musculoso, tem agilidade de felino; suas mãos são largas e
fortes, quase como as de um homem; sua frente é ampla e altiva, e seus frisados
cabelos negros, agora penteados para trás, deixam-na livre, dando um vago parecido
com o senhor de Campo Real; o nariz é reto; a boca, firme e apertada em gesto
amargo, que faria muito duro aquele rosto infantil sem os grandes olhos negros,
aveludados... Aqueles admiráveis olhos italianos, igual os da Gina Bertolozi.
— Agora, vêem para que lhe vejam papai e mamãe.
— Com o senhor...? Com a senhora...?
— Pois claro! O senhor e a senhora são papai e mamãe.
— Para ti, mas não para este — intervém Batista, depreciativo. — Eu acredito
que não deve levá-lo a salão.
— Por que não? Papai me disse que tinha que lhe mostrar toda a casa, meus
livros, meus cadernos, meus utensílios de pintar, meu bandolim e meu piano.
— Insígnia o tudo o que goste, mas se não querer desgostar à senhora, 'não o
leve a salão, nem a seu quarto, nem aonde ela possa lhe olhar. Entendeu? E você,
entende-o também: se quiser ficar nesta casa, não ponha por diante à senhora.
Sozinho, naquela isolada habitação que é de uma vez biblioteca e despacho,
Francisco D'Autremont tornou a ler a carta que afundasse enrugada, em seus bolsos.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
27
Tem-na lido lentamente, esmiuçando-a, detendo-se em cada palavra, tratando de
penetrar até o fundo cada uma de suas frases. Depois vai para a parede central e,
apartando uns livros, procura no fundo de uma prateleira a porta dissimulada de uma
pequena caixa de ferro, e arroja ali o papel, como se lhe queimasse as mãos.
— Né! Quem anda ahi? — indaga ao ouvir fechar-se, cautelosamente, uma
porta.
— Eu, papai.
— Renato, o que faz te escondendo em meu escritório?
— Não estava me escondendo, papai. Entrava para te dar a boa noite...
— Em todo o dia não havia tornado a verte. Onde estava?
— Com o Juan...
— Podia te haver aproximado com o Juan. Como ficou, por fim, seu traje?
— Como feito para ele. Ficava grande, muito grande. O que não lhe serviram
foram meus sapatos. O mandei dizer a mamãe com Batista, mas ela disse que não
importava que estivesse descalço. Mas isso é feio, verdade?
— Sim, muito feio. Onde está agora Juan?
— Mandaram-no deitar-se.
— Onde... — No quarto último do pátio dos criados — explica o moço, em tom
compungido. — Batista disse que assim o mandava mamãe.
— Já! E por que não te aproximou de mim em todo o dia?
— Porque andava com o Juan, e Batista disse que mamãe não queria que Juan
lhe pusesse pela frente. E como você há estado todo o dia com mamãe... Claro que
você me havia mandado levá-lo por toda a casa, mas como disse isso Batista... Fiz
mal?
— Não. Tem que obedecer a sua mãe, como é natural.
— E a ti não?
— A mim mais que a ninguém — responde D'Autremont, cortante — Amanhã
nos poremos de acordo sua mãe e eu. Agora, vá deitar-se. Boa noite.
— boa noite, papai.
— Aguarda... O que te parece Juan?
— eu adoro.
— Divertiste-te com ele? Jogaste? Ensinaste-lhe suas coisas?
— Sim, mas não gostou. Estava muito sério e muito triste. Depois saímos ao
jardim... Fomos mais à frente, e então começou o bom: Juan sabe montar nos cavalos
sem ensiná-los, e atirar pedras, tão forte e tão alto, que alcança aos pássaros que vão
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
28
voando... E caça lagartixas e sapos. Agarrou viva uma serpente com uma bifurcação
que fez de um pau, e lhe deu volta e a meteu em uma caixa. E não o mordeu, porque
ele sabe como agarrá-la. Disse-me que se tivéssemos um bote ia eu a ver como se
pesca... Porque ele sabe atirar as redes e pescar peixes.
— Me imagino. Suponho que esse foi. Seu ofício.
— Seriamente, papai? Não é mentira que ele pode andar sozinho em um bote
pelo mar?
— Não é mentira... Mas segue me contando. Que mais fez com o Juan?
— Burlaram-se dele no barranco porque andava descalço e com meu traje de
pano azul... Deu-lhe uma trombada ao que estava mais perto, o qual era maior que
ele, e o atirou de costas. Outros se foram. Mas não vai castigá-lo, verdade, papai?
— Não. Fez o que eu gostaria que você fizesse se rirem de ti alguma vez.
— Mas de mim não ri ninguém... Tiram-se o chapéu quando passo, e se o
sotaque beija-me a mão.
D'Autremont se pôs que pé com gesto estranho. Acariciou a loira e murcha
cabeleira de seu filho; empurra-o suavemente até a porta do despacho e o despede:
— Vate a dormir Renato. Até manhã.
Francisco D'Autremont cruzou sua enorme casa, levando na mão um pequeno
abajur de petróleo, atravessou o pátio dos criados até chegar à entreaberta porta
daquele último quarto, onde sobre um jergón de palha, rendido pelas duras emoções
do dia, dorme o pequeno Juan.
Um instante eleva a luz, iluminando-o. Olha o peito, a cabeça bem formada, o
rosto de nobres e regulares rasgos... Assim, com, os olhos fechados, parece apagar-se
nele o parecido maternal, e os duros rasgos da raça paterna deste cão no rosto
infantil...
— Filho! Meu filho...? Possivelmente... Possivelmente... Uma dúvida sutil e
penetrante, uma dúvida que ao brotar parece romper em seu coração algo duro e frio,
subindo do peito à garganta, como pode subir a língua lhe queimem de uma chama,
alagou a alma do Francisco D'Autremont. Sozinho, contemplando a aquele menino
que dorme, sentou por fim o impulso procurado em vão desde antes... Pode que
Bertolozi não mentisse, pode que fossem verdade suas últimas palavras... E, pela
primeira vez, não é um sentimento indefinível, mescla de curiosidade e rancor, o que
lhe enche a alma. É como um fundo orgulho, como uma profunda satisfação, um
violento desejo de que, na verdade, seja de seu próprio tronco aquele ramo robusto,
arruda e audaz, síntese ardente de seu espírito de aventura e de combate. Qualquer
homem poderia estar orgulhoso de pensar seu filho a aquele moço extraordinário,
endurecido como um homem frente à desgraça, e a pergunta se fazem afirmação em
seus lábios:
— Meu filho! Sim! Meu filho...!
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
29
Com emoção que lhe faz tremer, descobre os rasgos iguais: a frente reta e altiva,
as sobrancelhas largas e povoadas, o enérgico queixo quadrado e duro, os largos
braços musculosos, o peito alto e largo... E, por contraste doloroso, pensa no Renato,
loiro e frágil, mesmo que brilha em seus olhos claros o olhar de uma inteligência
superior; no Renato, tão igual a sua mãe, herdeiro legal de sua fortuna e seu
sobrenome, seu único filho ante o mundo...
— Francisco! — interpela-lhe Sofía com voz alterada, penetrando no humilde
recinto. — O que passa? O que faz aqui? O que significa isto?
— Sou eu o que posso te perguntar — diz D'Autremont, refazendo-se da
surpresa. O que significa isto, Sofía? Por que não está já descansando?
— Posso acaso descansar, quando você...?
— Quando eu, o que? Acaba!
— Nada... Mas queria saber desde quando vai você, com um abajur,
comprovando e velando o sonho dos criados.
— Não é um criado!
— O que é? Diga-o de uma vez! Diga
— Né? O que? — é Juan que acorda por causa das alteradas vozes. — O senhor
D'Autremont... A senhora...
— Não te mova... Fique onde está... Dorme... Descansa... E amanhã vá me
buscar assim que te levante — lhe aconselha D'Autremont.
— Para que me faça o favor de levar-lhe o desta casa!
— Cala! Não vamos falar diante do moço! Bruscamente a tirou pelo braço,
obrigando-a a sair ao pátio, abertos os olhos com aquele arrebatamento de cólera
violenta que lhe é tão peculiar, e com ira com muita dificuldade contida, acusa-a:
— É que perdeu o julgamento, Sofía?
— Crie que me falta razão para perdê-lo? — exalta-se Sofia. — Crie que não
tenho motivos para estar desesperada? Estavas aí, vendo dormir, lhe contemplando
como nunca olhou a nosso Renato!
— Basta, Sofía, basta...!
— Esse menino é seu filho! Não pode negá-lo. É seu filho. Seu filho... E de
alguma dessas perdidas com as que sempre me enganaste. De que charco o tirou para
trazê-lo para meu lar, para dá-lo por companheiro a meu filho?
— Vais calar-te?
— Não! Não me calarei! Que me ouçam os surdos! Porque não vou tolerar! É teu
filho e não o quero aqui! Tira-o desta casa! Tira-o, ou serei eu a saia com meu filho!
— Quer dar um escândalo?
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
30
— Não me importa! Sairei para o Saint-Pierre! O Governador...
— O Governador não faz, mas que a minha vontade! — assegura D'Autremont
baixando o tom de voz, que o volta mais ameaçador. — vais fazer o ridículo!
— O Marechal Pontmerce foi amigo de meu pai, conhece meus irmãos... O terá
que me amparar! Porque eu...!
— Cala! Cala!
— Papai. O que faz a mamãe...? — grita Renato, acercando-se angustiado.
D'Autremont soltou o pescoço branco que já loucamente apertavam suas mãos;
retrocedeu cambaleante, enquanto seu filho lhe faz frente com impulso feroz:
— Não a toques! Não lhe faça mal, porque eu... Eu...!
— Renato! — repreende D'Autremont.
— Eu lhe Mato se você pegar a mamãe!
D'Autremont retrocedeu até mais, apagada de repente sua raiva, totalmente
desconcertado... Um momento olha suas mãos que chegaram até o pescoço da Sofía,
logo; bruscamente, volta às costas e se perde entre as sombras...
— Renato!... Filho!... — exclama Sofía, rompendo a chorar.
— Ninguém te fará mal, mamãe. Ninguém vai fazer-te nunca dano. Ao que te
faça mal, eu o Mato!
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
31
CCapítulo 5
— Que é isso? O senhor D'Autremont...? É Noel, o notário, quem faz a pergunta
a Batista, o criado.
— Sim... É o cavalo branco do amo... O diabo anda solto nesta casa desde que
chegou esse maldito moço.
— Rua! Rua! Algo teve que acontecer...! Pedro Noel saiu apressadamente do
luxuoso quarto onde lhe instalaram. Não lhe basta olhar pela janela. Sai ao largo
portal que rodeia a casa, baixa as escadas de pedra, segue com olhos surpreendidos a
branca silhueta daquele cavalo que à luz da lua se perde já sobre os campos, E
exclama:
— Senhor... Senhor...! Mas que barbaridade!
Outros olhos viram afastá-la arrogante figura que é Francisco D'Autremont
sobre seu cavalo favorito. Outros olhos infantis, abertos de surpresa, acaso de
espanto. É Juan. Tudo o ouviu desde aquele último quarto do pátio dos criados, e
agora, fora já da casa, corre como transtornado até que uma mão cai sobre seu braço,
lhe retendo rudemente...
— E você, aonde vai? — inquire Batista.
— Aonde vai, estou-te perguntando...
— Eu ia... Eu...
— Não tem que ir a nenhuma parte alem à cama, onde lhe mandou faz já duas
horas...
— É que o senhor D'Autremont...
— Não te importa o que faça. O senhor D'Autremont.
— Mas a senhora Sofía...
— Essa menos te importa o que faça.
— É que eu vi, eu ouvi... Eu não quero que por minha culpa...
— No que acontecer tua culpa, tampouco te tem que colocar. Você não te
governa nem te manda. Trouxeram-lhe para que obedeça e para que te cale. Anda a
seu quarto. Anda a sua cama, se não querer que lhe diga isso de outra maneira. Anda!
— Deu-lhe um rude empurrão, colocando-o no quarto, e fechando-o com chave.
— Me abra! Abra-me! — grita o moço, golpeando com torça a porta.
— Te cale, condenado! Já te abrirei quando vier o amo. Cale-se
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
32
— Ana precisa falar imediatamente com a senhora.
— A senhora não quer ver ninguém, senhor Noel. Tem enxaqueca... E quando a
senhora tem a enxaqueca, não quer ver ninguém.
A voz lenta, sem modulações, enjoativa e recarregada da donzela favorita da
senhora D'Autremont, se estende como branda barreira detendo o ímpeto do notário,
que ia cruzar já sob os cortinados que dão entrada às habitações privadas da Sofía.
— O que tenho que lhe dizer é importante — insistência Pedro Noel.
— A senhora não ouve ninguém quando lhe dói a cabeça. Diz que quando lhe
falam, dói-lhe mais. Além disso, é muito cedo.
— Me anuncie lhe diga que é urgente, e já verá como me fará passar.
A donzela mestiça sorriu mostrando sua dentadura branca, enquanto move a
frisada cabeça adornada com uma diminuta touca de encaixe na moda francesa.
Suave e teimosa, teimosa e mansa, parecem ter o dom de esgotar a paciência do
notário.
— Não ouviste que avise a sua senhora? Por que fica aí parada?
— Para lhe avisar à senhora tenho que lhe falar, e a senhora não quer que lhe
falem quando lhe dói a cabeça...
— O que acontece... — interrompe Sofía, saindo de seu quarto.
— Me perdoe senhora, mas é necessário que falemos uns minutos... É
importante.
— Muito deve sê-lo quando vem você às seis da manhã.
— É que o senhor D'Autremont não retornou desde ontem à noite em que saiu a
cavalo.
— Não retornou?
— Não, senhora, e ninguém sabem aonde foi nem por que saiu desse modo. Eu
lhe vi passar como alma que leva o diabo e perguntei aos serventes, mas nenhum pôde
me dar razão.
Sofía fez um leve gesto de cansaço, apoiando-se em sua donzela. Nem as
lágrimas longamente choradas, nem. A noite de insônia troca em nada seu aspecto
sempre igual: pálida, frágil como uma flor de estufa semi asfixiada entre estufas, dá a
impressão de escutar sempre pela primeira vez até as coisas que melhor sabe. Neste
caso, seus lábios se apertam levemente e um breve e vermelho relâmpago de rancor
cruza por seu olhar.
— O que é o que pretende você que eu saiba. Noel? .— Dizem que saiu depois de
falar com você. Eu sei que estes dias sofreu emoções muito desagradáveis, que se
encontrava em um desastroso estado de inquietação, de naufraga, de violência
contida...
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
33
— Pois sabe você mais que eu. Pelo visto, é o triste destino das mulheres: que
não nos inteire de nada. Veio você ao pior lugar a informar-se...
O notário procurou ao menino, com o olhar inquieto, para Renato aproveitou a
oportunidade para sair do quarto de sua mãe. Já do outro lado das cortinas, detém-se
um instante para ouvir com interesse as palavras do notário.
— Atreveria-me a lhe pedir um pouco de paciência para o senhor D'Autremont
nestes dias, senhora. Você é a única pessoa que pode aliviar sua carga ou fazê-la mais
pesada; porque, até que talvez você haja chegado a duvidá-lo, seu marido a adora,
Sofía.
— Pois tem uma estranha maneira de me adorar — se lamenta Sofía, com
amargura. — Mas isso, certamente, é um assunto pessoal e privado. Concretizando:
não sei aonde foi Francisco nem por que aconteceu a noite fora de casa. E agora,
desculpe-me, estou muito ocupada: preparo minha viagem ao Saint-Pierre, com o
Renato. Pode dizer-lhe a meu marido se for ele quem lhe enviou a informar-se de meu
estado de ânimo. Saio para o Saint-Pierre. E já enviei uma carta ao Marechal
Pontmerce para que me faça o favor de me receber logo que eu chegue à capital.
Livre da companhia de sua mãe e da vigilância da Ana, Renato se afastou a bom
passo. Sua cabeça arde... As idéias e os sentimentos parecem girar dentro dele em
revolta amalgama. Aquelas duras palavras que jamais escutasse entre seus pais,
aquela violência do Francisco D'Autremont, a que fez frente por amor de filho e por
instinto de cavalheiros, todo o amontoado de sucessos estranhos que parecem girar
em torno dele, amontoam-se sobre o céu azul de sua feliz infância, lhe fazendo sentir-
se, pela primeira vez em sua vida, terrivelmente desventurado. Não quer falar com os:
serventes, não quer aumentar com comentários a pena de sua mãe... Mas precisa
confiar a alguém a angústia, que enche seu coração de menino. Pensa em seu amigo...
Por isso busca ao Juan. Mas o quarto no que lhe acreditava encerrado, está vazio. Da
janela aberta sobre o campo, falta um barrote o que deixa ao descoberto o oco por
onde Juan escapasse... Busca-o.com um anseia nunca sentida, com a amarga
sensação de desamparo de quem vê vacilar, pela primeira vez, aos que fossem para ele
evangelho e oráculo: seus pais...
Pela mesma brecha que abrisse Juan, Renato se desliza também, saltando ao
pendente ao mesmo tempo em que chama gritos ao fugitivo:
— Juan... Juan...!
Acaba de vê-lo, já bastante longe da casa, junto a aquele arroio de leito
pedregoso que baixa a saltos da montanha, impetuoso e violento como o é tudo
naquela ilha surta dos mares ao sopro de um vulcão, e chega até ele, sufocado pela
carreira.
— Juan, por que não respondia?
Devagar, Juan se pôs que pé, olhando-o quase com desagrado. Sente por ele
uma espécie de rancor. É tão distinto a todos os moços que ele visse até então... Com
aquele loiro e murcho cabelo muito comprido, o apertado calção de pena, a camisa de
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
34
seda branca... É como um boneco de porcelana que se escapou de um dos adornos do
salão. Mas Renato lhe sorri de um modo varonil e franco, e os claros olhos lhe olham
afetuosos, sinceros, em uma corrente de irresistível simpatia, a que "Juan do Diabo"
resiste encolhendo os ombros...
— Para que anda gritando? Quer que me apanhem?
— Acaso te escapou?
— Claro! Não me vê?
— Humm... Batista disse a Ana que te tinha encerrado para que não
incomodasse; e eu, assim que pude, escapei-me do quarto de mamãe para ir abrir-te a
porta.
— Para não incomodar, me comprido.
— Te largar? Quer dizer que vai?
— Pois claro. Mas não sei por onde... Não quero estar aqui mais!
— Mas papai quer que esteja, e eu também. É meu amigo e não vou deixar-te.
Não vá, Juan. Eu, agora, também estou triste... O senhor Noel disse à mamãe que
você tinha sido muito desgraçado, que tinha sofrido já muito para seus anos, e eu,
então, não o entendi bem, porque não sabia o que era sofrer de verdade.
— E agora sabe?
— Sim... Porque agora estou triste. Papai, de repente, se voltou mal.
— De repente? Alguma vez tinham brigado antes?
— Não... Alguma vez. Mas como sabe que brigaram? Estava acordado ontem à
noite?
— Eles despertaram...
— Quais? Papai e mamãe? Pois a mim, não. Eu estava acordado. Papai me tinha
mandado dormir, mas eu, às vezes, não faço conta. De repente o vi passar e pensei
que ia arreganhar-te pelo que eu lhe tinha contado que fez na tarde. Depois passou
mamãe, então esperei um momento, até que ouvi que gritavam, e quando cheguei...
Bom, se estava acordado o ouviu tudo. Papai... — a voz se quebra em sua garganta. —
Papai se comportou mal com mamãe.
Agora é ele quem foge a 'olhar do Juan, como se lhe envergonhasse pensar que
este tinha escutado a cena passada. Mas Juan aperta os lábios sem responder,
sentindo-se homem frente a Renato, com a instintiva consciência de que deve calar
seguir discretamente aquele segredo lhe torturem que não sabe se for mentira ou
verdade...
— Eu não sei como começou a briga. Ouvi que mamãe queria ir ao Saint-Pierre e
que papai não queria deixá-la. E ficou furioso quando ela disse que iria de todos os
modos a ver o Governador e ao esse Marechal... Que não sei nem como se chama, mas
que era amigo de meu avô... E então... Se o ouviu, já sabe. Tive que me colocar para
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
35
defender a mamãe e papai e eu estamos brigados. O se foi a cavalo e ainda não voltou
para a casa. Por isso estou triste...
Renato aguardou uma resposta, um comentário, mas nada responde Juan,
carrancudo e silencioso, por isso interroga com suavidade:
— Você crie que papai não voltará mais? Eu sei que há homens que se zangam
muito e se vão para sempre de sua casa.
— Seguro que volta.
— Crie que volte? De verdade? — exclama Renato, com alegria. Mas ato seguido
invade-lhe a preocupação. — Mas seguirá brigando com mamãe se voltar? E a mim,
Juan? A mim, crie que papai não vai querer-me mais?
— Querer...
— Não sabe o que é querer? Alguma vez lhe quiseram? Alguma vez quis a
ninguém? Nem a sua mamãe?
— Eu não tive...
— Todos têm. Será que não te lembra. As mamas são muito boas e quando a
gente é pequena o cuidam muito e dormem nos braços. Todos têm. Até os, mas
pobres, os que vivem nos barracos... Alguns não se lembram, mas todos tiveram
mãe... — de repente se volteia e exclama: — OH! Olha essa gente que vem por lá.
— Aí Sim... Parece como que trazem um morto...
— Um morto?
— Não sabe o que é um morto? Alguma vez viu um morto?
— Não, nunca o vi. Mas... Isso não é um morto... É uma maca de ramos.
Trazem para um homem deitado.
— Ferido ou morto...
— É papai! — quase grita Renato, com o espanto refletido em seu branco rosto.
— É papai!
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
36
CCapítulo 6
— Que acontece — alarma-se Sofía.
— Até vive, senhora — responde Pedro Noel, triste, mas serena de uma vez. — E
enquanto há vida, há esperança.
Aniquilada, derrubada pela brutal impressão da noticia, Sofía se desabou sobre
os almofadões de um sofá, cobrindo o rosto com as mãos, enquanto murmura:
— Francisco... Francisco...!
— Desde que lhe vi sair dessa maneira, temi um acidente. Por isso fiz que lhe
buscassem por toda parte.
— Mas, o que ocorreu? Como foi? — quer saber, em seu angustia, a senhora
D'Autremont.
— Suponho que, em sua cólera, fez galopar ao cavalo até desbocar-se por
atalhos muito escarpados. Naturalmente, foram dar ao fundo de uma ravina. Saiu
louco, cego de ira... Nem sequer permitiu que lhe selassem o cavalo!
— Onde está? Quero vê-lo!
— Agora lhe trazem. Adiantei-me para acautelá-la, e já enviei um homem com o
cavalo mais rápido, a trazer um médico da capital. Caiu de uma grande altura... Aí
estão já!
— Francisco... Meu Francisco pode ver-me? Pode ouvir-me?
Inclinada sobre o leito amplíssimo, contendo com esforço as lágrimas que se
amontoam em suas pálpebras, Sofía D'Autremont espera com ânsia a palavra que
possam pronunciar os lábios trementes do Francisco; mas são inúteis, só as pálpebras
se elevam com esforço e o olhar vago se fixou nela: olhos de uma alma que se
desprende já das ligaduras terrestres.
— Ouve-me? Entende-me? Francisco... Meu Francisco!
— Acredito que é inútil... — expressa Noel tristemente.
— Não... Não diga isso! — desespera-se Sofía. — Esse médico, esse médico que
mandou você procurar, quando estará aqui?
— Temo-me que tarde bastante. Por desgraça, há-se perdido muito tempo. O
acidente deve ter acontecido há várias horas já... E logo, trazê-lo até aqui...
— Ré... Nato — sussurra, com esforço, D'Autremont.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
37
— Sim... — É Sofía que sente bater as asas em seu coração um hálito de
esperança.
— Renato... — volta a murmurar D'Autremont.
— Há dito Renato — comenta Sofía.
— Sim; chama a seu filho — explica Noel. — O chama, quer lhe ver, quer falar
com ele. Onde está? — Renato... Filho! Vêem para cá!
Sofía elevou a voz e foi para a porta, onde os dois moços, mudos, tensos,
agarrados da mão, contemplam a dolorosa cena, e de um brusco puxão os separa
arrastando a seu filho até o leito do moribundo, cujas pálpebras tornaram a elevar-se
e em cujas pupilas tremem a luz de um anseia, de um desejo imperioso...
— Aqui o tem, e aqui estou eu também. Meu Francisco.
— Renato... Vais ficar em meu lugar...
— Não diga isso — interrompe Sofía. — O médico virá em seguida e te porá.
Bem.
— Logo será você o amo desta casa... — Fez um enorme esforço, levantando a
cabeça para olhar o grupo que formam, junto a ele, o filho e a mãe. E sua mão se eleva
até tocar a frente infantil rodeada de cabelos loiros. — Sei que cuidará de sua mãe...
Que saberá defendê-la quando eu já não esteja. Disso estou bem seguro... Mas há algo
mais... Que quero te pedir: cuida do Juan Cuida do Juan, Renato... Quê-lo e ajuda-o...
Como se fora seu próprio irmão!
— Francisco... Francisco! — angustia-se Sofía.
— Me perdoe Sofía... E não impessa que Renato cumpra minha última vontade.
OH...
— Senhora... Senhora! O médico está chegando... O médico da capital está
chegando — anuncia Batista, que se aproxima pressuroso e sufocado. — Já o viram
sair do desfiladeiro, já vem para cá...
— Tarde... Tarde... Muito tarde! — grita Sofía, atendo-se nas garras do
desespero.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
38
CCapítulo 7
Os funerais do Francisco D'Autremont duram já três dias. A viúva não quis que
fosse transladado ao Saint-Pierre, e é na pequena igreja de Campo Real, aquele imóvel
com honras de povo, onde seu corpo foi posto em capela ardente entre círios e flores, e
aonde chegam a lhe render a última comemoração, dos mais humildes homens que
trabalham suas terras, até as mais importantes personalidades da capital: o
Governador, os altos funcionários do Estado, o Marechal Pontmerce e a alta
oficialidade da fragata, que só por isso atrasou sua hora de zarpar. Na amplíssima
casa, nos jardins, nos caminhos, é o ir e vir silencioso e constante: uma agitação sem
sorrisos nem alegria, que, trançada de dor a alma, com um fundo e conteúdo tortura
que não transborda em soluços nem em lágrimas, preside a frágil mulher que lhe
sobreviveu, contra o que todo mundo poderia esperar.
Esquecido de todos os luxuosos trajes de pano azul quebrado e manchado, os
cabelos revoltos e os pés refugos, rondam Juan a pequena igreja branca com uma
ânsia irresistível de aproximar-se ao que jaz para sempre, ao que lhe mandaram
aborrecer os lábios do Bertolozi, e ao que estranhamente, entretanto, ama com um
sentimento contuso, surdo, profundamente doloroso, que lhe faz sentir uma sensação
de desamparo como não a sentiu nunca em seu abandono, e murmura para si:
— Pai! Era meu pai... Era meu pai... Já está junto ao féretro, na capela lotada de
flores, onde milagrosamente não há ninguém neste instante... Só a frágil forma
enlutada de uma mulher a quem o moço não viu uma mulher que se aproxima
tremendo de cólera, apenas lhe vê apoiar as mãos no bordo da caixa mortuária. É
Sofia que. Com ira logo que contida, grita-lhe:
— O que faz aqui? Por que entraste aqui? Não tem nada que procurar! Vate!
Largue-te! Vate onde eu não te veja mais! Vate para sempre, maldito!
Cega de uma cólera que em vão trata de afogar em sua garganta, Sofía assinalou
ao Juan a porta da capela, mas depois do moço retrocede trêmulo, sentindo que o
gesto e as palavras daquela mulher lhe ferem e lhe ofendem como ninguém lhe
ofendeu jamais. Aí, muito perto, para sempre imóvel e gelado em sua luxuosa caixa,
está o homem que lhe deu a vida, o pai que com tardio arrependimento tratou de lhe
amparar. E é a primeira vez em seus doze anos, que em seu coração áspero e
selvagem está a ponto de florescer um sentimento de ternura... Mas de um golpe, a voz
e as palavras daquela mulher o hão destroçado. Retrocede a olha de frente e sai como
um sonâmbulo, enquanto Renato D'Autremont se aproxima pela porta contraria,
indagando:
— Mamãe, o que aconteceu? Por que joga ao Juan?
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
39
— Deixa tranqüilo ao Juan! Fique aqui, ao lado, junto ao féretro de seu pai...
Onde deve estar.
— Mas papai mandou...
— Cala!
Apertou-lhe o braço, lhe obrigando a calar, enquanto na porta do frente, de par
em par aberta sobre o campo, aparecem já às figuras imponentes do Governador e do
Marechal Pontmerce
Começa à hora mais solene dos suntuosos funerais. Os dedos da Sofía se
afrouxam soltando o braço do Renato, as lágrimas vão a seus olhos, e um soluço
amarguíssimo estala ao fim em sua garganta, enquanto Renato escapa dali...
— Juan... Juan!
— Me deixe Renato. Vou agora mesmo...
— Não pode ir!Papai não quer que vá!
— A senhora me jogou.
— Já o ouvi... Mas não importa. Papai me mandou que te cuidasse.
— Você? Cuidar-me você?
— O que te crie? Depois de papai e mamãe, sou eu o que manda.
— Agora seu papai está morto e quão único manda é a senhora. Ela não quer
ver-me mais... Disse-me que me fora...
— Que fosse da igreja, mas não de Campo Real. Saint-Pierre está muito longe.
Tem que ir de carro ou a cavalo. Ademais, não vão deixar te sair.
— Quem não vai deixar-me?
— Os criados, os trabalhadores... E os soldados. Não viu quantos soldados há?
— Sim... Mas não têm nada que ver comigo.
— Sim têm que ver. Papai não queria que fosse. Todo mundo sabe. Se lhe virem,
seguraram-lhe, prenderam-lhe...
— E escaparei!
— Não sabe o caminho...
— Sei que caminhando pela borda do mar, sempre chega um ao Saint-Pierre.
— Bom... Se encontrar um bote, chegarei antes.
— E pescará no bote?
— Claro, posto que tenho que comer.
— Come-te o pescado que pescas, assim, igual ao tira?
— É melhor que morrer de fome.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
40
— Me leve contigo, Juan!
— A ti? Está louco?
— Me leve contigo! Eu quero aprender a pescar e a manejar um bote. Quando
for grande, serei marinheiro e mandarei uma fragata, como o Marechal.
— Quando for grande, irá de viagem. Agora não.
— Vou e logo volto como fazia meu papai. O sempre disse que quando ele
chegasse a faltar, eu mandaria na casa e séria tanto como ele. Agora, quero ir contigo
e tenho dinheiro para comprar um bote...
— Tem dinheiro? Teu dinheiro? Teu? — Juan se mostra interessado.
— Pois claro. Tenho muito dinheiro em uma caixa...
— Menino Renato! — chama a voz de Batista, o criado.
— Já lhe estão procurando — sorri Juan, depreciativo. — Figura o que fariam se
fosse.
— Vamos com todo meu dinheiro se me esperar de noite. Sabe onde? Lá abaixo,
ao lado do arroio...
— Menino Renato! — volta a soar a voz do criado, já mais perto.
— Agora tenho que ir. Escapei-me nada mais para te dizer que não fosse. Mas se
me leva contigo, não importa... Vamos e cuidarei de ti como quer que faça meu papai.
— Mas está surdo, menino? — diz Batista, aproximando-se onde se encontram
os moços. — Sua mamãe me mandou a procurar-te. Já tem idade para entender que
deve estar a seu lado...
— Já vou, Batista. Não tem que gritar...
— Não grito, mas a senhora se desespera — responde o criado baixando a voz.
Mais em seguida, em tom áspero, exclama — Ah! Também me disse que buscasse a ti
e que não te deixasse partir. Entendeu? Espera por aí a que a senhora disponha de
sua sorte, porque agora é ela, e só ela, a que manda nesta casa.
As horas aconteceram lentamente. O corpo do Francisco D'Autremont se acha já
clandestinamente; os importantes funcionários que foram da capital retornaram a ela
detrás render seus respeitos à viúva, e um silêncio espesso, tanto de pena como de
esgotamento e de cansaço, cai sobre a suntuosa morada, sobre os férteis campos,
sobre os cem barracos dos trabalhadores, como se um braçadeira de luto de luto
flutuasse sobre o céu que já envolvem as sombras na opulenta fazenda do campo
Real.
Entretanto, há luz nas habitações da Sofía, a cujas portas chegam Batista, o
mais fiel e antigo de seus servidores, trêmulo e mudado.
— Senhora... O menino não aparece por nenhuma parte.
— O que?
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
41
— Quarto por quarto procuramos Isabel, Ana e eu, por toda a casa. Mandei a
percorrer os campos e a perguntar pelos barracos. Mas tampouco está.
— Era o único que faltava!
— Senhora D'Autremont... Disse-me Ana... — É Pedro Noel, que irrompe na
quarto da Sofía.
— Renato desapareceu — explica, angustiada, Sofía. — Não o encontram, não
dão com ele. Procuraram-no por toda parte.
— Por favor, acalme-se... Não pode ter ido muito longe. Estava junto a você faz
uma hora escassa. Escondeu-se em algum rincão, como fazem os meninos quando
têm pena...
— Se meu filho tiver pena, deve estar a meu lado.
— Efetivamente; mas são reações estranhas das criaturas. Que razão dele dá
Juan?
— Essa é outra — intervém Batista. — O primeiro que fiz foi buscá-lo para lhe
perguntar se sabia do menino, mas o tal Juan tampouco aparece por nenhuma parte.
— Pois devem estar juntos — supõe Noel.
— É o que temo. Que o tal Juan arraste ao menino, quem sabe a que
extravagâncias. É pior que uma fera o tal menino. É um verdadeiro selvagem...
— Quando eu digo... — queixa-se Sofía.
— Basta, Batista. Não alarme à senhora mais do que está — ordena o notário.
— Você sabe que tomamos por louco no Saint-Pierre — recorda Batista —
quando entrou em lhe levar a senhor aquela carta...
— O que? Que carta? — interrompe Sofía, corajosa e alarmada.
— Rogo-lhe que se acalme — suplica Noel brandamente. — Quando acontece
uma desgraça, tudo são prognósticos trágicos. Mas não há verdadeira razão para
alarmar-se. Estou seguro de que não os procuraram bem. Em uma hora não pode
percorrer-se, como pretendem, o imóvel e a casa. Permita-me que eu seja quem me
encarregue do assunto, senhora...
— Eu tenho já em movimento a toda a servidão, mas tomara que o tal Juan não
tenha levado muito longe ao menino. Não me esquecimento de que pretendia levar em
seu bote ao senhor, aquela noite em que caíam cassetetes de ponta e choviam raios...
— Aonde queria levá-lo? — pergunta Sofía, intrigada.
— Sofía, por favor, acalme-se. O moço chegou com uma carta de seu pai, que se
estava morrendo, para lhe pedir ao senhor D'Autremont que o amparasse. O assunto
não tem nada de particular. E agora, vamos procurar ao Renato!
— Juan... — chama fracamente Renato.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
42
— Aqui estou. Traz a prata?
— Pois claro. Olha-a. Com tudo e caixa...
— A caixa não serve; joga as moedas em seu lenço, e joga a caixa.
— Meu lenço?
— Eu não tenho. Joga-me isso no teu e me faz o favor completo. Anda!
Rudemente, como se aquele velho rancor contra o mundo inteiro, que Andrés
Bertolozi derramasse em sua alma, despertou-se naquelas últimas horas, ardente e
total, Juan quase arrebatou que mãos do Renato o lenço repleto de moedas, as
aproximando, para melhor as olhar, à clara luz da lua e, surpreso, confirma:
— São moedas de prata...
— Pois claro. E há dois de ouro. As olha... Cada uma destas vale por cem de
prata. Papai sempre dava de presente uma moeda de ouro o dia de meu aniversário...
Muitas as gastei. Compram muitas coisas com uma moeda de ouro... Teremos um
bote grande, grande, desses com velas, e navegaremos nele por todos os mares...
— Ouve? — alerta Juan, aguçando o ouvido.
— Sim — afirma Renato com a maior tranqüilidade. — Nos estão procurando,
mas não por este lado. Pensam que lhe temos medo ao arroio crescido...
— Eu não lhe tenho medo a nada. Vou agora mesmo. Atou fortemente as
moedas no lenço, atando-o logo a sua cintura. Rapidamente se despoja da jaqueta,
subindo-as pernas da calça e as mangas da camisa, enquanto Renato lhe contempla
fascinado.
— Renato... Menino Renato...! — De longe chega à voz de Batista.
— É a ti a quem procuram — explica Juan, em um murmúrio.
— Juan... Juan...! Onde está? — ouça-se também, te chama à voz do Pedro
Noel.
— Também lhe buscam Por aonde vamos? — indaga Renato.
— Eu, pelo arroio — diz Juan, ao tempo que chapinha na água.
— Juan... Juan...! Espere-me! Ajude-me... Juan não responde, não volta à
cabeça. Saltando sobre as pedras, entre o arroio que se despenha em pequenas
cascatas, vai curso acima, roda às vezes, quando lhe falta o pé, até o fundo de uma
poça, mas volta a levantar-se, eleva-se se agarrando aos ramos, subindo pelas cordas
naturais que caem sobre a água, e assim se perde no íngreme monte...
— Renato! Renato!
A voz de sua mãe paralisou ao pequeno Renato, disposto já a seguir ao Juan.
Abraçado à jaqueta do traje azul que este deixasse em suas mãos, os pés afundados
no barro da borda do arroio, sustenta sua primeira luta terrível entre a voz da
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
43
aventura que lhe chama e o tenro amor que sente por sua mãe, e por fim, a contra
gosto, responde:
— Aqui estou...
— Filho! Meu Renato! — grita Sofía, muito nervoso, abraçando a seu filho. — O
que fazia aqui? Por que saiu a estas horas de casa?
— Arrumado a cabeça a que o surrupiou o tal Juan — assegura Batista.
— Mas onde está ele? — alarma-se o notário. — Onde se colocou? Terá que
seguir procurando...
— Estava com o menino, posso jurá-lo. Olha... Olha... Deixou-lhe a jaqueta nas
mãos! Aqui há uma caixa... Uma caixa de prata...
— É minha! — informa Renato.
— Aqui é onde você guarda suas moedas, Renato. O que significa isto? —
interroga Sofía.
— Nada, mamãe...
— Como nada? Onde está Juan? Responde a verdade! A verdade!
— Pois sim, mamãe... Íamos escapamos... Eu queria que me ensinasse a
navegar e a agarrar pescados, mas ele se foi sozinho... Não quis me esperar...
— Foi, mas levando-se seu dinheiro. É um trombadinha! — afirma Batista. —
Mas se a senhora me permitir que eu saia para buscá-lo...
— Não, Batista. Deixe-o. Que se vá... Que se vá para sempre! É o único que
ganhamos! Vamos a casa, filho...
Sofía D'Autremont se ergueu, e um instante sua cabeça altiva se volta para
aquele arroio por onde Juan escapasse saltando entre a água e as pedras, enquanto
sua mão branca, de dedos nervosos, aprisiona a de seu filho Renato. Ferozmente o
atrai para ela, em um gesto que é ternura e domínio, e o arrasta, afastando-se daquele
lugar.
— Não lhe tivesse vindo mal ao tal Juan receber uma boa lição antes de largar-
se — comenta como para si, Batista, resmungando com irritação.
— por que lhe tem tão má vontade ao moço, Batista? — pergunta Noel com sua
voz suave.
— Como para não ter-lhe senhor notário. Desde que aparereceu no horizonte,
não trouxe mais que calamidades e dê obrigado. Porque o que lhe passou ao senhor
D'Autremont...
— Mais vale que não insista muito sobre quem possa ter uma boa parte de
culpa pelo que lhe ocorreu ao senhor D'Autremont.
— Vai dizer que foi a senhora, senhor notário? — se escandaliza Batista.
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
44
— Vou dizer que um menino não é culpado das circunstancias em que lhe traz
para o mundo; que lhe maltratar a conta dos pecados de seus pais é uma covardia e
um crime.
— Todo isso é com a senhora, senhor notário?
— Todo isso é com você, Batista. E vou acrescentar algo mais: a senhora deu
ordem de que se deixe em paz a menino. Não você tente ir atrás dele, porque tropeçará
comigo... Além disso, a última vontade do senhor D'Autremont foi que se amparasse a
esse menino.
— Eu o ampararia com uma estaca! É um ladrão, um trombadinha! Começou
por lhe roubar seu porquinho ao menino Renato e tivesse acabado por roubar-lhe tudo
se o deixam crescer nesta casa.
— Essa é sua opinião...
— E muito bem encaminhada. Conheço o mundo e não é o primeiro caso... A
senhora sabe... Quão mesmo você e que eu. Não vale nos fazer os parvos quando estão
ao cabo da rua.
— Nunca me faço o parvo, mas jamais afirmo mais que o que posso provar; e
neste caso...
— Não há provas, nem falta que fazem. Não serviriam, mas sim para que você
enredasse as coisas.
— Sabe que sua insolência passa da raia, Batista?
— Pois se lhe agrada, dele você- queixa-as à senhora. Ela sabe que não tem um
criado mais fiel nem um servidor mais leal que eu. Pela senhora e pelo menino Renato
dou meu sangue. E quanto a esse bastardo...
— Silêncio! Terá que ver quão alto ladram os cães assim que se apaga a voz do
amo!
— Senhor notário... Senhor notário... — chama Ana, aproximando-se onde
discutem os dois homens.
— O que acontece?
— A senhora está esperando-o em seu quarto, e me mandou que o buscasse e
lhe dissesse que fora para lá logo, logo, porque tem que lhe falar. Que se fora em
seguida...
Foi-se, procurando conter seu desgosto, enquanto a donzela nativa contempla
aos dois homens com sua expressão panaca e jovial, dando, voltas entre os dedos ao
avental de encaixe, como se a cólera de ambos lhe divertisse, e comenta com ironia:
— Quantas coisas vão passar! A mim gosta que passem coisas. Aborreço-me
quando não passa nada.
— Anda a suas obrigações, Ana!
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
45
— Caramba. Batista! Saiu-te a voz igual à do amo. Claro, como vai para
maioral... — ri zombadora.
— Do que te ri, tola? — resmunga Batista, lhe aflorando a ira ao rosto.
— Das coisas que vão passar...
— Aqui me tem senhora, atento a seu chamado e disposto a lhe servir em tudo,
como sempre — se oferece Noel a Sofía. E em seguida, aconselha-lhe: — Mas se minha
modesta opinião vale de algo, acredito que quão único deve você fazer é descansar,
tomar umas boas horas de repouso...
— Sobrará tempo para descansar depois... Tenho entendido que todos os papéis
da casa D'Autremont estão no cartório de você, não?
— Exato. Partida de nascimento, ata de matrimônio, o testamento de nosso
nunca bem chorado amigo D'Autremont... Que por outra parte quase é inútil. Tudo
que há é, naturalmente, de você e de seu filho Renato.
— Sei que tudo está em ordem... Mas quero guardar esses papéis em minha
casa. Todos. 'Absolutamente todos! Há algum inconveniente para que os ponha em
ordem e me entregue isso, para que eu os guarde?
— Absolutamente — assente Noel com surpresa e desgosto. — estarão
preparados em uma hora se você o mandar. Sairei imediatamente para o Saint-Pierre,
e amanhã, se assim o desejar, farei-lhe a entrega oficial de tudo em meu escritório.
— Batista irá por eles... É o mais antigo e o melhor de meus servidores. Nomeei-
o Administrador general da fazenda, e ele fará que as coisas partam.
— Mas é absurdo, totalmente absurdo! E eu quisesse aconselhar-lhe...
— Não vou a ouvir nenhum conselho dele. Noel. Não perca o tempo em me dar
isso
— Lamento profundamente sua estranha atitude, senhora D'-Autremont.
— Não é estranha, posto que defendo a meu filho...
— Seu filho... — surpreende-se o notário.
— Senhora... Senhora... — É Ana que irrompe na habitação, agitada e
gaguejando.
— O que acontece. Ana? — pergunta Sofía.
— O menino Renato... Como que está mau... Isabel me mandou lhe avisar...
— Mau? Quer dizer, doente?
— Sim, senhora. Como que tem febre e diz coisas estranhas...,
— Renato, filho... Renato... I
Sofía tem cansado de joelhos frente ao pequeno leito branco, onde Renato,
abertos, sem ver, os grandes olhos, úmido de suor gelado o loiro cabelo, agita-se no
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
46
delírio de uma alta febre. Depois dela, pálido, mudado, chegou também Pedro Noel que
se detém sob o arco da porta, entre as duas donzelas assustadas.
— E o médico? Onde está o médico? — inquire Sofía.
— Foi, senhora... Como todos.
— Que corram ao Saint-Pierre para lhe buscar! Renato, filho...!
— Juan... Juan...! — murmura Renato em seu delírio — Juan... Não me deixe...
Me leve contigo... Me leve a navegar... Eu cuidarei de ti... Papai o mandou! Papai
disse... Como a um irmão... Como a um irmão... Juan...
— Deus meu! — exclama Sofía, em um lamento. Há retrocedido cambaleando-
se, sentindo como se a terra que a sustenta vacilasse. Ira e dor se cravam ao mesmo
tempo em sua alma, e voltando-se para o Noel, espeta-lhe: — E até se estranha você
por que defendo a meu filho? Tenho que defendê-lo com os dentes, com as garras!
— Senhora D'Autremont... Ninguém lhe atacou. Está você cega, e em seu
egoísmo maternal...
— Basta! — interrompe-lhe Sofía. — Nenhuma palavra mais! Você saia desta
casa de campo Saia! Saia! E não volte jamais!
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
47
CCapítulo 8
A enfermidade do Renato foi larga. Durante muitos dias teve febre alta, e cem
vezes pronunciou em seu delírio, como os unindo para sempre, os nomes do Juan e de
seu pai. Ao fim, uma manhã amanheceu espaçoso, reconheceu a sua mãe e chorou
em seus braços... Aquela tarde...
— Vai você mesmo ao Saint-Pierre, Batista.
— Sim, senhora. Como você mande. O menino já não está em perigo e diz o
médico que muito em breve poderá levantar-se.
— Apenas se reponha, mandarei-o a França. Por isso quero que recolha os
papéis de casa do Noel e entregue esta carta em própria mão ao Governador. O me
ajudará.
— Não tenho palavras com o que lhe agradecer o grande favor que vai você a me
fazer, senhora Molnar. A moléstia de levar consigo ao Renato...
— Por Deus, amiga minha. Se essa não for moléstia; ao contrário. Que mais
posso querer eu, para este viaje no que vou sozinha com minhas duas garotinhas, que
a companhia de um moço como Renato, que é quase um homenzinho?
— Confio em que saiba ser um cavalheiro.
— Repito-lhe que estou encantada. E terá que ver o bem que se leva com
minhas pequenas, e mais ainda que com a maior, que é tão suave, com essa revoltosa
da pequenina...
É no despacho do capitão do porto do Saint-Pierre, junto aos moles em que
aguarda um navio preparado a partir rumo à França. Ali é onde conversam Sofía
D'Autremont e a parenta do Governador, Catalina Molnar, uma mulher Madura,
tímida e bondosa, de gestos suaves, que olha com ternura ao grupo que formam a
curta distância, ao outro lado da larga porta aberta, Renato D'Autremont e as duas
pequenas Molnar, de nove e sete anos. A maior é magra e fina, inquieta e nervosa, de
grandes olhos claros. A menor, de rosto rosado e olhos ardentes, tem em seus poucos
anos a exuberância dos frutos do trópico.
— Meu Renato precisa esquecer muitas coisas desagradáveis. Esta viagem é o
melhor remédio para ele...
— É você muito valorosa separando-se assim de seu único filho.
Repito que a adoto. Além disso, suponho que tratará de cumprir com isto a
última vontade de seu marido...
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
48
— Efetivamente... — Forçada a mentir, Sofía D'Autremont se mordeu os lábios;
logo sorri com esforço, trocando o espinhoso tema da conversação: — Suas meninas
são preciosas. Falou-me muito delas o primo de você, o Governador. Qual é Aimée?
— A menor...
— A maior é Mônica, verdade? Já sei que, por empenho de seu pai, vão educar-
se a França.
— Mas eu não sou tão heróica como você, e não as sotaque ir sozinhas mesmo
que tenha que me separar de meu marido. Mas acredito que buscam a você...
— Ah, se! É Noel... Com sua permissão...
— Tudo está em ordem, e o navio a ponto de zarpar. Acabo de entregar ao
comissário de bordo os últimos papéis de. Renato e, portanto, minha missão está
terminada — explica o notário.
— Muito obrigado. Noel. OH, aguarde! Não quer acompanha-me até deixar no
navio o Renato?
— Será uma grande honra — acata Noel, mas o tom com que o diz é
francamente seco, quase hostil.
— Compreendo que está aborrecido comigo. Tratei-lhe bruscamente a última vez
que falamos — tenta desculpar-se Sofía.
— Esqueça esse assunto, senhora. Não tem a menor importância.
— Então, permite-me lhe fazer uma pergunta indiscreta?
— Certamente, embora não lhe prometo lhe responder.
— Agradecerei-lhe muito que me responda. Procurou você a esse moço que meu
marido queria recolha r? Tem alguma notícia do Juan... Do Diabo?
— A notícia que tenho é boa para você, ainda quando a mim, sinceramente, me
causar pena. — Espero que não lhe terá ocorrido alguma desgraça...
— Ainda não, mas será muito estranho que voltemos ouvir dele.
— Por quê?
— Depois de muito averiguar, tive notícias de que embarcou como grumete em
um veleiro de carga que zarpava rumo à Jamaica. Não souberam me dar o nome do
veleiro nem de seu capitão, por isso considero totalmente perdida a pista do moço.
Sinto muito... Sinto muito... Tinha-me pedido que o deixasse em minha casa como
servente e, depois de tudo, tivesse sido o melhor. Mas quem podia adivinhar... Enfim,
você olha por onde os dois pequenos vão estar ao mesmo tempo cruzando o mar... — A
sereia do casco de navio, que está logo a zarpar, interrompe-lhe com a estridência de
seu Esse som é o navio que leva a seu filho. Vamos?
O navio que se leva ao Renato deixou atrás o promontório de rochas no que se
eleva o farol, e, com a proa apontando para alto mar, apressa a marcha. De pé junto à
PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS
49
branda de coberta, acreditando sentir até sobre o. Rosto os beijos e as lágrimas de sua
mãe, Renato olha aquela terra que se afasta, tendo a cada lado a uma das pequenas
Molnar: Aimée sorri, enquanto Mônica se seca uma lágrima. E como uma promessa a
aquela tumba que deixasse no cemitério de Campo Real, como um grito de seu
coração de doze anos. Renato oferece:
— Voltarei logo, papai. Voltarei... Para procurar o Juan.
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)
1 parte   coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)

Más contenido relacionado

La actualidad más candente

Tudo pelos ares cap3e4
Tudo pelos ares   cap3e4Tudo pelos ares   cap3e4
Tudo pelos ares cap3e4Portal NE10
 
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12lousrondon
 
carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética
carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética
carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética Ac Libere
 
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
2   érico veríssimo - o retrato vol. 22   érico veríssimo - o retrato vol. 2
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2Jerônimo Ferreira
 
Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)Angelo Magliani
 
Livro 02 - A Ordem do Silêncio
Livro 02 - A Ordem do SilêncioLivro 02 - A Ordem do Silêncio
Livro 02 - A Ordem do Silêncioboinadalvi
 
Sentimento do mundo
Sentimento do mundoSentimento do mundo
Sentimento do mundorafabebum
 
Carlos heitor cony pessach, a travessia
Carlos heitor cony   pessach, a travessiaCarlos heitor cony   pessach, a travessia
Carlos heitor cony pessach, a travessiaAriovaldo Cunha
 
Análise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutosAnálise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutosmariliagaspar09
 
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)Niele Maria
 
Análise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutosAnálise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutosmariliagaspar09
 
Revista encontro literário edital 01.2011
Revista encontro literário   edital 01.2011Revista encontro literário   edital 01.2011
Revista encontro literário edital 01.2011Ailton
 

La actualidad más candente (17)

Tudo pelos ares cap3e4
Tudo pelos ares   cap3e4Tudo pelos ares   cap3e4
Tudo pelos ares cap3e4
 
Romance
RomanceRomance
Romance
 
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
 
carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética
carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética
carlos a.c. liberal na Cogito – antologia poética
 
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
2   érico veríssimo - o retrato vol. 22   érico veríssimo - o retrato vol. 2
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
 
Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)Relatodesusanna(com musica)
Relatodesusanna(com musica)
 
Livro 02 - A Ordem do Silêncio
Livro 02 - A Ordem do SilêncioLivro 02 - A Ordem do Silêncio
Livro 02 - A Ordem do Silêncio
 
Sentimento do mundo
Sentimento do mundoSentimento do mundo
Sentimento do mundo
 
Coletivo zine2 online
Coletivo zine2 onlineColetivo zine2 online
Coletivo zine2 online
 
Carlos heitor cony pessach, a travessia
Carlos heitor cony   pessach, a travessiaCarlos heitor cony   pessach, a travessia
Carlos heitor cony pessach, a travessia
 
Riqueta a grande amiga versao final
Riqueta a grande amiga versao finalRiqueta a grande amiga versao final
Riqueta a grande amiga versao final
 
Uma lua de urano
Uma lua de uranoUma lua de urano
Uma lua de urano
 
Análise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutosAnálise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutos
 
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
 
Análise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutosAnálise da obra cinco minutos
Análise da obra cinco minutos
 
Revista encontro literário edital 01.2011
Revista encontro literário   edital 01.2011Revista encontro literário   edital 01.2011
Revista encontro literário edital 01.2011
 
À espera de perecer
À espera de perecerÀ espera de perecer
À espera de perecer
 

Similar a 1 parte coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)

O guinéu da coxa
O guinéu da coxaO guinéu da coxa
O guinéu da coxaMorganauca
 
Jb news informativo nr. 1179
Jb news   informativo nr. 1179Jb news   informativo nr. 1179
Jb news informativo nr. 1179JBNews
 
O viajante das estrelas poul anderson
O viajante das estrelas   poul andersonO viajante das estrelas   poul anderson
O viajante das estrelas poul andersonpauloweimann
 
Fragmentos pre modernistas
Fragmentos pre modernistasFragmentos pre modernistas
Fragmentos pre modernistasKarin Cristine
 
Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serras
  Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serras  Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serras
Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serrasjulykathy
 
21.edgar allan poe ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...
21.edgar allan poe   ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...21.edgar allan poe   ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...
21.edgar allan poe ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...Talles Lisboa
 
Ficha de avaliação_ texto narrativo
Ficha de avaliação_ texto narrativoFicha de avaliação_ texto narrativo
Ficha de avaliação_ texto narrativoRaquel Antunes
 

Similar a 1 parte coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl) (20)

O guinéu da coxa
O guinéu da coxaO guinéu da coxa
O guinéu da coxa
 
UM POETA LÍRICO EÇA DE QUEIRÓS
UM POETA LÍRICO EÇA DE QUEIRÓSUM POETA LÍRICO EÇA DE QUEIRÓS
UM POETA LÍRICO EÇA DE QUEIRÓS
 
A TRILOGIA
A TRILOGIAA TRILOGIA
A TRILOGIA
 
Jb news informativo nr. 1179
Jb news   informativo nr. 1179Jb news   informativo nr. 1179
Jb news informativo nr. 1179
 
O viajante das estrelas poul anderson
O viajante das estrelas   poul andersonO viajante das estrelas   poul anderson
O viajante das estrelas poul anderson
 
Nos mares do fim do mundo, de Bernardo Santareno
Nos mares do fim do mundo, de Bernardo SantarenoNos mares do fim do mundo, de Bernardo Santareno
Nos mares do fim do mundo, de Bernardo Santareno
 
Fragmentos pre modernistas
Fragmentos pre modernistasFragmentos pre modernistas
Fragmentos pre modernistas
 
Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serras
  Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serras  Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serras
Obras-literárias_-A_cidade_e_as_serras
 
O barril de amontillado
O barril de amontilladoO barril de amontillado
O barril de amontillado
 
Lidia jorge assalto
Lidia jorge   assaltoLidia jorge   assalto
Lidia jorge assalto
 
Parte 1
Parte 1Parte 1
Parte 1
 
21.edgar allan poe ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...
21.edgar allan poe   ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...21.edgar allan poe   ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...
21.edgar allan poe ficção completa - contos de terror, mistério e morte - o...
 
Modernismo de 30
Modernismo de 30Modernismo de 30
Modernismo de 30
 
Modernismo de 30
Modernismo de 30Modernismo de 30
Modernismo de 30
 
Modernismo de 30
Modernismo de 30Modernismo de 30
Modernismo de 30
 
Crianças más
Crianças másCrianças más
Crianças más
 
Teste 4_contos_12ºA_online.pdf
Teste 4_contos_12ºA_online.pdfTeste 4_contos_12ºA_online.pdf
Teste 4_contos_12ºA_online.pdf
 
Ficha de avaliação_ texto narrativo
Ficha de avaliação_ texto narrativoFicha de avaliação_ texto narrativo
Ficha de avaliação_ texto narrativo
 
Casos do romualdo
Casos do romualdoCasos do romualdo
Casos do romualdo
 
O tempo e o vento o retrato - erico verissimo
O tempo e o vento    o retrato  - erico verissimoO tempo e o vento    o retrato  - erico verissimo
O tempo e o vento o retrato - erico verissimo
 

Más de kennyaeduardo

Angélica, a marquesa dos anjos 26 - o triunfo de angélica
Angélica, a marquesa dos anjos   26 - o triunfo de angélicaAngélica, a marquesa dos anjos   26 - o triunfo de angélica
Angélica, a marquesa dos anjos 26 - o triunfo de angélicakennyaeduardo
 
Angélica, a marquesa dos anjos 25 - angélica e a estrela mágica
Angélica, a marquesa dos anjos   25 - angélica e a estrela mágicaAngélica, a marquesa dos anjos   25 - angélica e a estrela mágica
Angélica, a marquesa dos anjos 25 - angélica e a estrela mágicakennyaeduardo
 
Angelica a marquesa dos anjos 2 - o suplicio de angelica
Angelica a marquesa dos anjos   2 - o suplicio de angelicaAngelica a marquesa dos anjos   2 - o suplicio de angelica
Angelica a marquesa dos anjos 2 - o suplicio de angelicakennyaeduardo
 
Angélica a marquesa dos anjos 1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
Angélica a marquesa dos anjos   1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...Angélica a marquesa dos anjos   1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
Angélica a marquesa dos anjos 1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...kennyaeduardo
 
Trilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimo
Trilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimoTrilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimo
Trilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimokennyaeduardo
 
Alguns o es e suas indicações
Alguns o es e suas indicaçõesAlguns o es e suas indicações
Alguns o es e suas indicaçõeskennyaeduardo
 
14646177 aromaterapia1
14646177 aromaterapia114646177 aromaterapia1
14646177 aromaterapia1kennyaeduardo
 
Aplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciais
Aplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciaisAplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciais
Aplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciaiskennyaeduardo
 
Medicinavibracional
Medicinavibracional Medicinavibracional
Medicinavibracional kennyaeduardo
 
Aromaterapia curso-completo
Aromaterapia curso-completoAromaterapia curso-completo
Aromaterapia curso-completokennyaeduardo
 
Superioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresas
Superioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresasSuperioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresas
Superioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresaskennyaeduardo
 
Fluxo de caixa livre
Fluxo de caixa livreFluxo de caixa livre
Fluxo de caixa livrekennyaeduardo
 
4 negociações comerciais
4 negociações comerciais4 negociações comerciais
4 negociações comerciaiskennyaeduardo
 
A sucessão legítima no novo código civil
A sucessão legítima no novo código civilA sucessão legítima no novo código civil
A sucessão legítima no novo código civilkennyaeduardo
 
Cap. 1 aspectos básicos do orçamento
Cap. 1 aspectos básicos do orçamentoCap. 1 aspectos básicos do orçamento
Cap. 1 aspectos básicos do orçamentokennyaeduardo
 
81379448 adm financeira facil
81379448 adm financeira facil81379448 adm financeira facil
81379448 adm financeira facilkennyaeduardo
 
Capial circulante líquido e a insolvência
Capial circulante líquido e a insolvênciaCapial circulante líquido e a insolvência
Capial circulante líquido e a insolvênciakennyaeduardo
 
2984913 contabilidade-analise
2984913 contabilidade-analise2984913 contabilidade-analise
2984913 contabilidade-analisekennyaeduardo
 

Más de kennyaeduardo (20)

Angélica, a marquesa dos anjos 26 - o triunfo de angélica
Angélica, a marquesa dos anjos   26 - o triunfo de angélicaAngélica, a marquesa dos anjos   26 - o triunfo de angélica
Angélica, a marquesa dos anjos 26 - o triunfo de angélica
 
Angélica, a marquesa dos anjos 25 - angélica e a estrela mágica
Angélica, a marquesa dos anjos   25 - angélica e a estrela mágicaAngélica, a marquesa dos anjos   25 - angélica e a estrela mágica
Angélica, a marquesa dos anjos 25 - angélica e a estrela mágica
 
Angelica a marquesa dos anjos 2 - o suplicio de angelica
Angelica a marquesa dos anjos   2 - o suplicio de angelicaAngelica a marquesa dos anjos   2 - o suplicio de angelica
Angelica a marquesa dos anjos 2 - o suplicio de angelica
 
Angélica a marquesa dos anjos 1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
Angélica a marquesa dos anjos   1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...Angélica a marquesa dos anjos   1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
Angélica a marquesa dos anjos 1 - os amores de angélica (ed.nova cultural) ...
 
Trilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimo
Trilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimoTrilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimo
Trilogia o tempo e o vento de e ri co veríssimo
 
Alguns o es e suas indicações
Alguns o es e suas indicaçõesAlguns o es e suas indicações
Alguns o es e suas indicações
 
14646177 aromaterapia1
14646177 aromaterapia114646177 aromaterapia1
14646177 aromaterapia1
 
Aplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciais
Aplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciaisAplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciais
Aplicação e perfis psicologicoas dos óleos essenciais
 
Medicinavibracional
Medicinavibracional Medicinavibracional
Medicinavibracional
 
Aromaterapia curso-completo
Aromaterapia curso-completoAromaterapia curso-completo
Aromaterapia curso-completo
 
Fluxo caixa do igor
Fluxo caixa do igorFluxo caixa do igor
Fluxo caixa do igor
 
Superioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresas
Superioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresasSuperioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresas
Superioridade método fluxo_caixa_descontado_processo_avaliação_empresas
 
Fluxo cxdescontado
Fluxo cxdescontadoFluxo cxdescontado
Fluxo cxdescontado
 
Fluxo de caixa livre
Fluxo de caixa livreFluxo de caixa livre
Fluxo de caixa livre
 
4 negociações comerciais
4 negociações comerciais4 negociações comerciais
4 negociações comerciais
 
A sucessão legítima no novo código civil
A sucessão legítima no novo código civilA sucessão legítima no novo código civil
A sucessão legítima no novo código civil
 
Cap. 1 aspectos básicos do orçamento
Cap. 1 aspectos básicos do orçamentoCap. 1 aspectos básicos do orçamento
Cap. 1 aspectos básicos do orçamento
 
81379448 adm financeira facil
81379448 adm financeira facil81379448 adm financeira facil
81379448 adm financeira facil
 
Capial circulante líquido e a insolvência
Capial circulante líquido e a insolvênciaCapial circulante líquido e a insolvência
Capial circulante líquido e a insolvência
 
2984913 contabilidade-analise
2984913 contabilidade-analise2984913 contabilidade-analise
2984913 contabilidade-analise
 

1 parte coraçao selvagem j.del d. 1 (rev. pl)

  • 1. Juan Del Diablo 01 Caridad Bravo Adams CCOORRAAZZOONN SSAALLVVAAJJEE (Livro da autora mexicana que foi adaptado para telenovela)
  • 2. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 2 Disponibilização, Pesquisa e Tradução: Jo Slavic Revisão: Vânia Gusmão Formatação: Karina Rodrigues
  • 3. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 3 IInnffoorrmmaaççããoo ddaa sséérriiee JJuuaann ddeell DDiiaabblloo 0011-- CCOORRAAZZOONN SSAALLVVAAJJEE JJuuaann ddeell DDiiaabblloo 0022 –– MMOONNIICCAA JJuuaann ddeell DDiiaabblloo 0033 –– JJUUAANN DDEELL DDIIAABBLLOO TTooddaa aa sséérriiee sseerráá ddiissttrriibbuuííddaa ppeelloo ggrruuppoo PPééggaassuuss LLaannççaammeennttooss.. AAgguuaarrddeemm..
  • 4. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 4 CCapitulo 1 A tormenta de outubro ruge sobre o inquieto Mar das Antilhas... É de noite, e as rajadas de um furacão fazem estelar-se contra os escarpados de rochas as ondas gigantescas, que caem logo, em ebulição o manto de espuma, sob o açoite da chuva... Negro está o céu; e a terra, como sobressaltada. São a costa Brava que se abre, primeiro em pequenas enseadas, em apartamentos estreitos, e logo, uns poucos metros mais à frente, converte-se em selva espessa... Terra antilhana sobre a que ondeia a bandeira da França... Um navio entra no porto do Saint-Pierre, a despeito dos elementos desencadeados... E unindo-se ao concerto do vento e das ondas, a salva de honra de vinte e uma armas lhe saúda do forte de São Honorato... Ao mesmo tempo em que a fragata, que já se acolha à enseada do Saint-Pierre, um pequeno bote desvencilhado ganhou milagrosamente a areia de uma diminuta praia próxima a circundam, e seu único tripulante salta, metendo-se na água até a cintura, para arrastar a frágil canoa, liberando-o da fúria renovada dos elementos... A luz muito viva de um raio iluminou dos pés a cabeça ao audaz marinheiro, que em noite tal acima à enseada. É forte e ágil; com flexível soltura de felino dá uns passados afastando-se do mar, para erguer-se depois, como calculando o perigo do lugar em que deixou seu bote. Tem a pele torrada pela intempérie; largo e forte o pescoço; os ombros, quadrados; Os quadris, estreitos; as mãos, calosas, e os pés descalços, que parecem aferrar- se como garras à terra que pisam. .Pode ter apenas uns doze anos... O detestável estampido de um trovão agitava sombras não alterna... O moço, dominando seu primeiro movimenta de temor instintivo, olha de frente ao firmamento escuro, onde marcam os raios as chicotadas de sua vivida luz, e exclama: — Santa Bárbaral Por um momento parece vacilar, mas não é por temor. A horrível noite não lhe produz espanto... Só calcula, com olhada certeira, que caminho deve seguir para chegar mais rápido à cidade próxima, cujas luzes se apinham ao redor da baía. Apalpa o pequeno sobre que como um tesouro leva entre suas roupas molhadas, olha de novo ao bote que deixou sobre a areia e põe-se a andar com passo silencioso e rápido...
  • 5. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 5 — Se não se der você pressa, chegaremos tarde à festa do Governador, amigo D'Autremont. — Pressa? Nunca me dava pressa por nada nem por ninguém, amiga Noel; sem contar com que chove muito. Poucos serão os convidados que não se atrasem esta noite, e, além disso, o Marechal Pont-merce chega nessa fragata que viu você entrar faz vinte minutos escassos. Ele é o convidado de honra... — Não mais que você, meu amigo. A festa é em honra de ambos, e o carro está aguardando há muito tempo. — Está bem, amigo Noel... Vamos, pois... Francisco. D'Autremont se pôs em pé com gesto de elegante chateio... Deu uns passos através da luxuosa estadia, e se detém no meio do vestíbulo, com gesto de estranheza ao ouvir os fortes barulhos que repentinamente quebram o lugar com seus ecos... Aborrecido, interpela altivo o seu criado: — Quem chama desse modo, Batista? — ia vê-lo neste momento, senhor — responde o criado. — Não sei quem possa ser o atrevido... — Pois ponha em seu lugar — ordena cortante, D'Autremont. Uma rajada de vento e chuva faz irrupção, assobiando, no elegante vestíbulo; e irado, D'Autremont grita: — Fecha essa porta, estúpido! Antes que o criado consiga fechá-la, o inoportuno visitante penetrou de um salto; os revoltos cabelos molhados sobre a frente, o corpo semidesnudo jorrando água sobre os tapetes... Tão surpreendentemente atrevido e audaz, que Francisco D'Autremont e Pedro Noel retrocedem ao lhe ver, apagada a indignação pela surpresa... — Caramba! — exclama Noel. — Mas o que é isto? — indaga D'Autremont. — Procuro o senhor Francisco D'Autremont... — explica o moço com decisão. — Deve ser um louco, senhor... — intervém o criado — Vou A...! — Agora, deixa-o em paz! — atalha imperativo D'Autremont. — É você dom Francisco D'Autremont? — pergunta o moço — É você, senhor? — Sim, sou eu... Mas você, quem é? E que diabos te passa para te atrever a chegar a minha casa desta maneira? — Meu nome é Juan. Venho do Cabo do Diabo para lhe trazer esta carta. O senhor Bertolozi está morrendo e disse que tinha você que chegar antes que ele acabasse. Se for você seriamente o senhor D'Autremont, venha comigo... Trouxe meu bote para levá-lo... Vamos...?
  • 6. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 6 O moço deu um passo para a porta, mas se deteve observando o rosto do Francisco D'Autremónt, que o olha estupefato, na mão o molhado envelope da carta que acaba de lhe entregar. .É um homem alto e distinto, que viu com extraordinária elegância... ―O seu lado‖ Pedro Noel, seu amigo e notário; rechoncho e bondoso move a cabeça como se não pudesse dar crédito ao que está vendo e escutando, e com. surpresa e desgosto de uma vez, pergunta: ' — Levar ao senhor D'Autremont em seu bote? — Quando digo eu que é um louco...! — O melhor será chamar alguém para que o levem — insiste o criado. — Quieto! — ordena D'Autremont. Logo, como recordando, murmura — Bertolozi... Bertolozi... — Disse que fosse você em seguida, que ele, por desgraça, não podia esperar muito. Se sairmos agora mesmo, ao amanhecer estaremos lá. — Bertolozi está morrendo... — sussurra D'Autremont. — Isso assegurou o curandeiro... Que não chegará a manhã... — E lhe deixou um remédio, mas ele não o quis tomar e me mandou com esta carta... Disse que você tinha que ir lá... — Pois está completamente equivocado. Não conheço nenhum Bertolozi... — exclama D'Autremont, carrancudo. — Não é possível, senhor! Se for você dom Francisco D'Autremont... — Não conheço nenhum Bertolozi! — repete ele. Voltando-se para seu amigo lhe convida — Vamos, Noel? — Mas, senhor... — se lamenta o moço, saiu seguido do notário, sem voltar-se para olhar ao moço, e salta o chofer da boléia para lhe abrir a porta da carruagem. Por um instante contempla a molhada carta, afunda-a logo em seu bolso, e entrando no carro ordena com voz forte: — Ao palácio do Governador. Logo! O moço se aproxima, gritando implorante: — Senhor... Senhor... Senhor...! Tudo é inútil. O carro se afastou; o moço vacila um instante, e logo se põe a andar sob a chuva que açoita a rua... Pedro Noel, o notário da família D'Autremont, com as grosas mãos apoiadas sobre o punho de prata de sua bengala, olhar de esguelha ao homem que vai a seu lado. Apesar da brusca resposta dada ao moço, apesar de seu gesto glacial, Francisco D'Autremont parece profundamente comovido, profundamente preocupado. Tem os lábios apertados e as bochechas pálidas... As inquietas mãos trocam a cada insistentemente e muda de posição e com freqüência apalpam o úmido envelope
  • 7. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 7 guardado em seu bolso... Ao fim, o notário, depois de olhar e olhar arrisca uma palavra: — Não vai você ler essa carta? Pode tratar-se de. Algo realmente Importante. Quando se obriga a um menino a vir do Cabo do Diabo até a cidade, para trazê-la em uma noite como esta... Será porque esse Bertolozi, a quem você não conhece, tem absoluta necessidade de lhe dizer algo... — Baixa a voz e, em tom insinuante, explica — Bertolozi... A mim esse nome soa... — Como...? — De momento não pude recordá-lo, mas agora vou fazendo memória... Andrés Bertolozi chegou a Martinica fará uns quinze anos. Pertencia a uma das mais distintas famílias de Nápoles... Trouxe dinheiro para comprar uma fazenda, e adquiriu uma bem extensa ao Sudeste da ilha, com grandes plantações de café, tabaco e cacau. Logo se converteu em um homem opulento, alegre e liberal, franco e expressivo, como a maior parte dos italianos, e trouxe consigo a sua esposa: uma muito bela moça de laqueie estava loucamente apaixonada... — Basta! — atalha-lhe, irado, D'Autremont. — Perdão... Não acreditei lhe importunar. Surpreende-me que não recorde ao Bertolozi. ―Você estava no Saint-Pierre quando os dias de sua desgraça...‖ — A que chama você sua desgraça? — O princípio de sua desgraça foi à fuga de sua esposa... — O que trata de insinuar? — Não insinuo amigo D'Autremont... Lembro-me. Bertolozi jurou publicamente matar ao homem que a tinha levado, mas o nome daquele ficou no mistério. Ela desapareceu para sempre e Bertolozi se deu a todos os vícios: bebia, jogava, procurava a companhia das piores prostitutas do porto... Ao fim perdeu o imóvel e, totalmente arruinado, desapareceu ele também. Mas recordando, recordando, vem-me à memória algo que me disse um amigo... O carro se deteve frente à porta da casa do Governador, mas Francisco D'Autremont não se moveu... Tenso, crispado, voltado para o notário, parece esperar seus ultima palavras, que Pedro Noel pronuncia como a inapetência, com uma sutil insinuação escorregando de cada frase: — Parece que o último pedaço de terra que ficava era essa nua rocha do Cabo do Diabo. Sobre ela, por suas próprias mãos, fabricou uma cabana, e ali é onde certamente agoniza e de onde lhe mandou chamar. Não lhe parece? — Tem você uma boa memória mais abominável que conheci jamais. — Por Deus, amigo D'Autremont, é meu ofício...! São tantas as histórias que se escutam quando se dirigem papéis de família, que com freqüência são o reflexo de dramas de quarto. Pelo resto, Bertolozi foi um homem interessante... Seus assuntos se deram muito que falar, e sua desgraça...
  • 8. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 8 — Não me interessa sua desgraça. Nunca fui seu amigo! — Às vezes, sendo inimigo basta para interessar-se. — O que quer me dizer. Noel? — Autoriza-me para que fale francamente? — Acaso não estou lhe pedindo que o faça? — Pois bem... Acredito que deveria você ler essa carta, e ir ver seu inimigo Bertolozi, ao Cabo do Diabo... Francisco D'Autremont, nervoso ouviu as palavras do notário, e com gesto de raiva espreme em seu bolso aquela carta que o moço lhe entregou momentos antes. Logo sorri, tratando de vestir de ironia a inquietação que logo que pode já dissimular: — Não tinha tanto empenho em que chegássemos cedo à festa do Governador? — Até ha meia hora era o mais importante que tinha você que fazer. — E agora, o que? Parece-lhe mais importante que o Governador e sua festa, recolherem o último fôlego desse vicioso, desse bêbado, desse desventurado cansado em todos os vícios, só porque uma mulher lhe enganou? — Era sua esposa e ele a amava — responde Noel com suavidade. — O cobriu de vergonha e ele não obteve jamais encontrar-se com o agressor. — Não o encontrou porque não quis buscá-lo! — salta D'Autremont, com ira concentrada. — Talvez o outro soubesse ocultar-se bem... — Pensa você que era um covarde? — Não, claro que não posso pensá-lo. Sem dúvida, era capaz de confrontá-lo todo tudo, menos o escândalo. Pelo resto, tinha obrigações graves, e Gina Bertolozi não o ignorava. Era casado... Sua esposa estava a ponto de lhe dar um filho... Eu não culpo a esse homem, amigo D'Autremont... São pecados de homem... Mais grave me parece não ir à chamada de um. Moribundo... — Basta, Noel! Irei lá. — Por fim me Perdoe por ter insistido tanto. O conheço um pouco, amigo D'Autremont, e sei que há coisas que não as perdoaria você jamais. — Então, quer você apresentar minhas desculpas ao governador? — Com verdadeiro gosto, meu amigo. — Pois vá. — de repente D'Autremont exclama — Um momento! — Não é preciso que me recomende à discrição mais absoluta — esclarece Noel, pormenorizado. — É... Meu ofício, amigo D'Autremont.
  • 9. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 9 CCapítulo 2 A tormenta amainou. O mar está quase tranqüilo, e um vento fresco, quase. Frio, chega com a proximidade da alvorada, varrendo as nuvens. O frágil bote, que resistiu a tempestade, encalha na areia de uma profunda greta, esculpida na rocha viva pelos golpes do mar, e outra vez salta o rapaz metendo- se na água para tirar terra à casquinha, deixando-a a salvo. Logo, seus pés descalços, endurecidos pela intempérie, sobem pelos penhascos afiados, primeiro com agilidade de felino, depois mais lentamente, como se não queriam chegar até o lugar aonde vão... Já no alto do penhasco de rochas, parece como se fossem de chumbo... Detêm- se cada instante, tremem como se fossem a tomar outro rumo, e ao fim chegam até o oco sem porta, entrada da mísera cabana que é a única habitação, humana no Cabo do Diabo. Uma voz de doente, carregada de rancor, pergunta: — Quem é? — Sou eu: Juan... — Juan do Diabo! Da cama onde jaz com febril esforço se há incorporado um homem que mais parece, um despojo humano: a pele sobre os ossos; as bochechas afundadas; sujas, crescidos e revoltosos o cabelo e a barba... A boca, um oco crispado de dor... Por vestidos, uns sujos farrapos. Inspiraria compaixão profunda se não fosse por seu olhar: ardente, audaz, desafiadora, carregada de ódio, lhe relampejem de rancor, como carregadas de ódio e amargura soam cada uma de suas palavras. — E o cão que te mandei procurar? Vem contigo? Onde está? Onde está o maldito Francisco D'Áutremont? Corre... Chama-o! Três, lhe diga que demorou... Um pouco mais e não posso lhe aguardar! — Não veio comigo — se desculpa o moço. — Não...? Por quê? Não fez o que te disse, maldito? Não chegou a sua casa? Não me obedeceu, né? Agora verá. . Tratou que levantar-se, mas caiu de novo sem forças, para ficar imóvel, extenuado, os olhos frágeis... O moço o olha impassível, se aproxima passo a passo, com uma excreção estranha em seus profundos olhos altiva, e afirma: — Sim; cheguei a sua casa... — E lhe deu a carta?
  • 10. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 10 — Sim, senhor, na mão. — E não veio depois de lê-la? — Não a leu. Disse que não conhecia ninguém que se chamasse Bertolozi... — Disse isso o cão? — E se foi de carro a uma festa onde o estavam esperando. — Maldito! E você o que fez então? O que fez? — O que ia fazer? Nada. — Nada... Nada! Sabe que me estou morrendo. Sabe que necessito que venha, e não faz nada! Tinha que ser quem é. — Mas, pai...! — suplica o moço. — Não sou seu pai! Quantas vezes tenho que dizer Não sou seu pai. Quando essa maldita voltou a me buscar, quando precisou buscar meu amparo, já te trazia nos braços. . Não é meu filho! Se ela, além de me enganar, tivesse-me roubado meu filho, eu a teria matado. Mas não, voltou com o filho de outro, com o filho desse canalha... Contigo! — Filho de quem? — De quem... De quem? Quer sabê-lo? Para dizer-lhe mandei-o chamar. Filho dele, disso, do que se ia de carro a uma festa enquanto eu vejo aproximar-se da morte. Do que me tirou isso tudo, do que me roubou isso tudo, para me dar, em troca, a ti. — Não entendo... Não entendo! — Pois o entende! Esse senhor que te voltou às costas, esse senhor que te disse que não me conhecia... É seu pai! — Meu pai... Meu pai...? — balbucia o moço no paroxismo da surpresa. — Mas não se preocupe... Tampouco te conhecerá Que asco! — Senhor Bertolozi... Repita-me isso. Meu pai...? Disse você que meu pai...? — Seu pai é Francisco D'Autremont. Diga-lhe a todo mundo, grita-o em todas as partes! Seu pai é Francisco D'Autremónt... Deve-lhe toda sua desgraça. Deve-lhe a miséria, deve-lhe a vergonha, deve-lhe sua nudez e sua fome... Deve-lhe o insulto que têm que te jogar à cara quando for homem, porque ele manchou a sua mãe! Todo isso lhe deve... E agora, quando o chamo porque estou morrendo, porque vais ficar sozinho, vai a uma festa onde o estão esperando. — Um soluço se quebra em sua garganta, deixando passo a ternura. — Juan... Juan, filho meu... — Senhor...! — Aborreço-te porque é filho dele, mas há algo com o que pode te limpar te lavar essa mancha... Quando for homem, procura o Francisco D'Autremont e faz o que
  • 11. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 11 eu não fiz o que não tive o valor de fazer: mata-o. Mata-o! — E como se nestas palavras tivesse posto o último hálito de sua vida, cai desabado ao chão. — Senhor... Senhor, senhor me Responda! Sacudiu-o em vão. Andrés Bertolozi não responderá mais! Ninguém na costa; ninguém na funda greta, entrada da estreita praia; ninguém nos imponentes farallones de rochas nos que rudemente se estrela o mar; ninguém no alto. Do promontório do Cabo do Diabo; ninguém em tudo que sua vista inquisitiva alcança... Nem alma vivente nem habitação humana... Só uma cabana miserável ao amparo do negro promontório que entra no mar: o Cabo do Diabo. Bem posto tem o nome à abrupta paisagem, agora mais desolado sob as espessas nuvens cinzentas que envolvem as montanhas... Tão baixos, tão perto da terra, como se quisessem também tragar-lhe Com passo firme. Francisco D'Autremont vai para aquela cabana e chama com voz estrondosa: — Bertolozi! O nome soa oco na nua estadia sem portas, sem janelas, sem móveis quase... No camastro se acha a forma rígida de um corpo que se destaca sob um lençol, incrivelmente limpa naquele lugar... Impressionado, D'Autremont murmura: — Bertolozi... De um puxão Baixou um pouco o lençol para ver aquele rosto no que a morte pôs já sua máscara, e pouco pode reconhecer nele ao homem Jovem, são e arrogante, que foi seu rival... Há manchas de cãs entre os revoltos cabelos escuros, entre a espessa barba que cobre as bochechas emagrecidas, e há também uma sombra de suprema paz sobre as pálpebras fechadas... Estremecendo-se, Francisco D'Autremont cobre aquele rosto, e retrocede um passo... . Chegou tarde, muito tarde... Aqueles lábios lívidos já não lhe entregarão o segredo que guarda... Calam para sempre... Mas a mão do Francisco D'Autremont apalpa nervosamente em seus bolsos e extrai o enrugado sobre daquela carta que incluso não tem lido... Guardou como pode guardar um veneno, uma arma, uma dormida serpente venenosa. Mas agora, frente a aquele cadáver, rasga o sobre e dá um passo para a janela sem folhas, pela que penetra a luz leitosa do dia que nasce... "Com minhas últimas forças te escrevo, Francisco D'Autremont, e te peço que venha a meu lado. Vêem sem medo... Não te chamo para tentar uma vingança. É tarde para que eu me cobre em sangue todo o mal que me tem feito e que fez a ela. É rico e feliz, amado e respeitado, enquanto eu, fundo na abnegação e na miséria, Olho chegar à morte como a única liberação possível. Não tenho que te repetir quanto te odeio. Você sabe. Se te matasse com o pensamento, te teria aniquilado; mas só eu mesmo me consumei pouco a pouco na fogueira deste rancor que me cobre à alma... Por um instante. Francisco D'Autremont interrompeu a leitura para contemplar a forma rígida que destaca sob o tecido branco, sentindo que a angústia lhe invade,
  • 12. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 12 que lhe é difícil respirar sob o teto daquele cabano onde todo preze rechaçá-lo, e outra vez voltam seus olhos à leitura... "Mata-me o ódio mais que o álcool, mais que o abandono... E por ódio calei durante muitos anos. Hoje quero te dizer algo que acaso possa te interessar. Esta carta a porá em suas mãos um moço. Tem doze anos e ninguém se ocupou jamais de batizá-lo. Eu lhe chamo Juan, e os pescadores da costa lhe dizem algo mais: Juan do Diabo... Pouco tem de ser humano. É uma fera, um selvagem... Criei-o no ódio... tem seu coração malvado, e eu dei, além disso, rédea solta a todos seus instintos. Sabe por quê?" lhe vou dizer isso se por acaso não te decide a vir a me escutar: É seu filho... A carta tremeu em suas mãos... Com olhos aumentados de angústia olha a todas as partes, mas os artigos desiguais lhe atraem como letreiros de fogo, e bebe de um sorvo ele subtraio de veneno daquelas palavras... "Se o tiver diante, olha-o à cara... Às vezes é seu vivo retrato... Outras se parece com ela... A ela... a maldita... É teu... Toma-o... Tem o coração envenenado e a alma danificada de rancor. Não sabe mais que aborrecer... Se o levar contigo, será o pior castigo que possa ter... Se o abandona, será um assassino, um pirata, um salteador de caminhos, que acabará na forca... E é seu filho... Tem seu mesmo sangue... Essa é minha vingança!" — Pálido de primeiro espanto, vermelho de indignação um instante depois, Francisco D'Autremont espremeu aquela carta, última mensagem de seu rival vencido, de seu inimigo imóvel para sempre já; triunfador na morte, tanto como na vida foi derrotado... Com súbito impulso de irrefreável cólera, foi até o camastro, descobrindo o rosto do Cadáver, e o espeta tremente de horror e de raiva: — Acorda! Isto não é verdade! .por que não me esperar com vida para te obrigar a confessar! Embusteiro! Covarde! Como sempre foi, tinha que te levar, até o final! Covarde, sim... Covarde! Jamais me buscou cara a cara... Jamais, como homem, pediu-me contas... E agora... Por que não está vivo? Por que não me aguardou? — retrocedeu cambaleando-se, cegado por um bafo vermelho que forma em torno dele. Como uma atmosfera de irrealidade. — É o mais vil dos embusteiros, mas não vais alcançar-me com seu torpe veneno! Não! Não! — Senhor D'Autremont! — chama suave, a voz do Pedro Noel — Isso não é verdade! Isso não é verdade! — D'Autremontl — insiste Noel, aproximando-se — D'Autremont! — Covarde... Canalha...! — Amigo meu... Mas está você louco? — ha? O que? — reage, por fim, D'Autremont. Está você doente, transtornado... Volte para a realidade... — Noel... Amigo Noel... — Acalme-se, por favor... Acalme-se... Francisco D’Autremont se conteve com tremendo esforço, afastando do camastro onde jaz o cadáver, enquanto Pedro Noel se aproxima respeitoso.
  • 13. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 13 — É um embusteiro... Um embusteiro e um canalha...! — sentença D'Autremont com voz surda. — Já não é nada, meu amigo, mas sim um triste despojo. Deixe-o, e vamos... — Como está você aqui? — interroga D'Autremont, saindo do marasmo de seu estupor. — Pareceu-me conveniente vir a buscá-lo... Batista me disse o caminho que havia você seguido. Acredito que cheguei a tempo... E você, em troca, muito tarde. Mas venha, vamos... — Aguarde... Aguarde... Onde está o moço? — Que moço? — que levou a carta... Onde está? — Não sei... Não vi a ninguém. Suponho que o desditado Bertolozi vivia na mais absoluta solidão. — O menino vivia com ele... Onde está? — Repito que não vi a ninguém, mas se você se empenha... OH, olha...! D'Autremont se tornou com viveza'... Muito perto do camastro, sentado no chão, depois dos desvencilhados móveis da casa — uma mesa e um par de cadeiras rotas, — está o moço que foi até o Saint-Pierre levando aquela carta, e ardem com um estranho fogo seus olhos escuros sob o cabelo emaranhado que lhe cobre a frente... — O que faz aí escondido, moço? — indaga Noel. — levante-se... Levante-Te, que o senhor te está procurando... Juan se levantou lentamente, sem deixar de olhar ao Francisco D'Autremont, que sente avermelhar suas bochechas baixo aquele olhar... É um olhar que acusa que condena... Acaso que pergunta... — Estava aí? Estava aí desde que eu entrei? — quer saber D'Autremont. — Responde! — Sim, senhor — responde o moço. — Aí estava... — por que te escondia? — pergunta Noel. — Não estava escondido... Estava aí... — Sem dizer uma só palavra... — queixa-se D'Autremont. — E o que tinha eu que dizer? O moço se pôs de pé. É ânus para sua idade, magro e jogo a rede, inquieto e ágil como um animalzinho montês, e D'Autremont se volta para ele, sujeitando-o bruscamente pelos braços... — Estiveste-me espiando, ouvindo minhas palavras... Sim, verdade? Conhecia você o conteúdo da carta que levou?
  • 14. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 14 — Como? ' — Que se tinha lido essa carta...! Responde! — a minha pergunta D'Autremoht, irado. — OH, me solte! Eu não o estava espiando... Solte-me! Não tem por que me sujeitar... Tampouco li a carta. Não sei ler... — Naturalmente, amigo D'Autremont — intervém, conciliador, Pedro Noel. — que ocorre! Como vai saber ler este pobre moço! — Havia-te dito ele o que me escreveu nesta carta? Responde a verdade! — D'Autremont se dirige ao moço, em tom ameaçador. — Já hei dito que não — responde o moço. — Por favor, amigo D'Autremont — aconselha Noel — Calma. Calma... Francisco D'Autremont se afastou uns passos, apertados os punhos e trêmulos os lábios, enquanto o notário olha bondosamente ao moço imóvel, duro e áspero, e lhe pergunta: — A que hora morreu. O senhor Bertolozi? — Não sei... Faz tempo já... — Não avisaste a ninguém? — Cheguei até as cabanas de lá abaixo... Ali me deram esse lençol... Depois me disseram que viriam os da justiça... Mas eu não estava espiando a ninguém... — insiste com teima. — Esse senhor diz... — EI senhor D'Autremont está nervoso por tudo que passou. Sua atitude lhe pareceu estranha, mas nada mais. Vêem para cá... Aproxime-te um pouco... Compreendo que você também se sente mal. O que foi você do senhor Bertolozi? Amigo? Parente? Criado? O moço se ergueu. Seu olhar, como uma flecha, cravou-se no Francisco D'Autremont, que volta já sobre seus passos, olhando-o de frente. Um instante se cruzam no irei àquelas duas olhadas estranhamente iguais... E o notário, depois de lhes contemplar, indaga com suavidade: — Não sabe o que foi do senhor Bertolozi? Provavelmente, vizinho nada mais... É da aldeia de pescadores que está lá abaixo? — Não... Eu vivo aqui... O senhor Bertolozi era... Era meu: pai... — Efetivamente — suspira D'Autremont. — Acredito que este menino é filho do Andrés Bertolozi e de sua desafortunada esposa. A enfermidade e o álcool deveram enlouquecer ao Bertolozi em seus últimos tempos... Deve dizer tantas coisas estranhas, que o pobre moço está transtornado... Sua mão tremente quis posar-se na cabeça do Juan, que com um brusco movimento o esquiva. Logo, com gesto de desalento, D'Autremont sai lentamente da
  • 15. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 15 cabana, e Noel vai atrás dele. Uns passos mais adiante se detém e o notário interroga a seu amigo: — Permite-me lhe perguntar o que vai você a fazer? — Farei que sepultem ao Bertoíozi com decência. Quereria ocupar se disso? — responde D'Autremont com tristeza, sereno, já dono de suas emoções. — Naturalmente, se você o dispuser... — Penso sair para minhas terras amanhã, de madrugada... — E o moço? — Levarei-o comigo. — Ah... Mas quererá ir-se?' Não acredito que vocês tenham simpatizado. — Confio em sua boa máfia para conquistá-lo. Noel. — me perdoe uma última pergunta. Leu, por fim, a associação de famosa carta? — Li-a e a rompi no ato. Só dizia loucuras e disparates. Por isso sei que Andrés Bertoíozi estava completamente louco. Absolutamente transtornado! Pedro Noel se levou a moço, afastando-o um tanto da cabana, rumo ao caminho que por outra via comunica com a cidade aquela paragem desolada. Passaram as horas, e os escuros e rotineiros trâmites para dar sepultura ao corpo do Bertolozi tocam já a seu fim. Só fica aquele último ponto delicado que Francisco D'Autremont encarregasse a seu diplomático amigo e notário. — O senhor D'Autremont vai levar-te com ele. Sabe o que isso significa? Levará- te a sua casa, onde vão tratar-te bem, onde há toda classe de comodidades. Sua vida vai mudar... — Não... Não quero! — protesto o moço, anti-social. — Que não quer? Não posso acreditá-lo. Certamente não obtive que entenda minhas palavras... O senhor Bertoíozi morreu. Não fica nada o que fazer por para cá. — Não quero ir! — Não seja teimoso... Vai a uma formosa casa onde gozará de todas as comodidades, onde viverá como um ser humano. O senhor D'Aütremont quer te amparar, é muito bom... — Não! Não! Não é verdade! Não quero ir com ele! — Pois terá que fazê-lo, por bem ou por mau Não vão fazer-te nenhum dano... Ao contrário... Mas será pior para ti que lhe levem a força, metido em um saco como um macaco selvagem. — Si me levam a força, escaparei-me! — E lhe voltarão a apanhar... — diz o notário, afetuoso. — Mas, por que é tão teimoso moço? Olha... Quer que façamos um trato? Eu vou com vocês; passarei dois
  • 16. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 16 ou três dias em Campo Real, que é a fazenda do senhor D'Autremont. Se não quiser ficar ali, quando eu retorne para o Saint-Pierre, trago-te. — Por que não me deixa com você a partir de agora? Eu sei trabalhar em muitas coisas: cortar lenha, cuidar cavalos... Eu... — Perfeitamente. Ocupar-te-á de todo isso quando voltarmos a casa. Mas, no momento, tem que agradar ao senhor D'Aütremont. Equivoca-te ao pensar que não é bom; é bom e generoso, possui uma linda casa de campo, sua esposa é uma bela dama, distinguida e amável, e tem um fio que pouco mais ou menos terá seus mesmos anos. Certamente te quererá para que esteja com ele, para que lhe acompanhe em seus jogos e seja algo assim como seu pequeno lacaio. O vais passar bem, Juan. — Eu prefiro ficar com você... Ou que me deixem sozinho. — Só não vamos deixar-te. Eu te levo e... — E me traz... Traz-me depois... Dá-me sua palavra... Eu não quero ficar lá! — Bem, homem, bem. Levo-te e te trago. É um ingrato com o senhor D'Autremont. Ao menos, tem que tratar de mostrar sua gratidão por sua boa vontade. Anda, vê para o carro, que ali vem ele e tenho que lhe falar. — O que acontece, amigo Noel? — pergunta D'Autremont. — Resistiu o bastante, mas consegui amansá-lo com a promessa de ir eu com vocês e lhe trazer de volta se não se achar a gosto. O prefere ficar comigo, e não você tome a desprezo. É um moço estranho, mas me temo que extraordinariamente inteligente apesar de seu aspecto rude e selvagem. — Temer? Por quê? — É uma maneira de falar. Ao fim e ao cabo, sempre é preferível tratar com inteligentes que com brutos. Este nos provou ser um valente. A viagem que fez ontem à noite nesse bote, e com essa borrasca, precisa uma têmpera que muitos homens não tivessem tido. Parece, além disso, altivo, reservado, com certa dignidade natural. Nada disso é comum em quem vive como um mendigo. Lhe vê certa casta... — Deixe em paz sua casta! Recolho-o porquê suponho que era o que queria me pedir Bertolozi, mas nada mais. A minha esposa não temos por que lhe dar detalhes de nada disso. A imaginação das mulheres todo o enreda. Esperou que não se você surpreenda muito se me ouça contar alguma história distinta referente ao moço. — Temo-me que é você quem vai enredar a, porque apenas penteie isso e se lave a cara, esse moço não poderá passar por nenhum mestiço. Fixou-se em que é um bom moço? Seus grandes olhos italianos recordam extraordinariamente aos da desafortunada Gina Bertolozi. Não se fixou? Noel lhe observou, lhe vendo empalidecer, apertar os lábios... Logo, Francisco D'Autremont encolha os ombros, forçando o gesto despreocupado, ao comentar:
  • 17. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 17 — Não tive tempo de lhe olhar bem à cara. De um modo ou de outro, já se arrumarão as coisas. E. No pior dos casos, (ainda sou eu o que manda em minha casa).
  • 18. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 18 CCapitulo 3 — Mama. Mamãezinha. Por aí vem já papai. Por aí vem. . Brilhantes os olhos de alegria, um momento acesas pela emoção as bochechas, habitualmente pálidas que emolduram os murchos cabelos loiros, um moço como de doze anos entrou no quarto da senhora D'Autremont, que abre os olhos, incorporando-se lentamente na ampla rede em que descansa. — Já? É possível? Mas se não o esperava eu até no sábado! Sofía D'Autremont tem uma beleza delicada e frágil... Grandes olhos de cor turquesa, cabelos loiros, suaves e murchos como os do moço, e, como este, pálidas bochechas de cor âmbar. Um momento desapareceu seu gesto enfermo ante a notícia que acaba de lhe trazer seu filho. E já de pé, dá uns passos apoiando-se nos magros ombros de este. — Está seguro que é seu papai quem chega? — Pois claro, mamãe, Sebastián veio correndo a avisar. Disse que desde i o alto da colina viu papai em seu cavalo branco, e detrás os três carros da caravana. Talvez venham cheios de presentes... — Para ti? — Para ti, mãezinha. Se tiver chegado navio da França, papai te trará de tudo: tecidos de seda, perfume, bombons e todas essas coisas que sempre te traz. Eu lhe pedi um relógio de bolso. Trará-me isso? — Certamente, filho. Mas chama a minhas donzelas, A... Isabel, a Ana... A primeira que encontre. Tenho que pentear-me, que me vestir... — Senhora, senhora...! Dizem que o senhor está chegando por aqui — exclama Ana, a donzela, irrompendo no quarto. — Você vê? Você vê mãezinha? Já. Está aqui — Jesus! Ajude-me a me pentear. Ana. De me mudar de roupa não há tempo, mas — A senhora está, como sempre, linda e arrumada. Não minta a donzela mestiça. Como sempre, a; senhora D'Autreimont está impecável. Um fino traje branco adornado com amplos encaixes, meias de seda, sapatos de salto Luis XV e um fino enfeite com o que muito bem poderia apresentar-se em qualquer centro elegante de sua terra natal. Entretanto, só está na grande casa, centro das plantações de Campo Real, mansão enorme e sólida, de amplíssimas estadias suntuosas, grandes abajures e
  • 19. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 19 pisos brilhantes como espelhos; tão luxuosa, tão senhorial, com suas luas de Veneza e seus consoles dourados, que resulta anacrônica no coração daquela ilha americana, tórrida e selvagem; mas é digna morada, de a frágil dama que balança passo a passo sobre o gentil parque, uma mão apoiada no braço de sua donzela favorita, outra sobre a dourada cabeça daquele filho único tão extraordinariamente emparelhado a ela. — Aí está papal — grita o moço, afastando-se alegre. Correu ao encontro do cavaleiro que já se detém frente à entrada principal e desmonta de um salto do brioso cavalo, arrojando as rédeas à meia dúzia de serventes que foram para lhe atender e lhe saudar. E da semipenumbra da larga galeria, Sofía D'Autremont contempla, com olhos de ciumenta apaixonada, a figura varonil, altiva galharda, ante a que todos se inclinam, porque ele é o amo de Campo Real é soberano indiscutível da terra que pisa. — Trouxe-me o relógio, papai? — Não; filho. Não tive tempo de buscá-lo. — E a caixa de cores? E as cordas para meu bandolim? — Sinto muito, mas nesta viagem não houve tempo para buscar nada. — Francisco... — murmura Sofía, aproximando-se de seu marido. — Sofía... Como está? — indaga D'Autremont, afetuoso e tenro. — Como sempre... Mas deixemos meus achaques. Como é que retornaste tão logo? Ainda não lhe esperávamos... — Suponho que não te desgosta o que tenha adiantado minha volta — responde D'Autremont em tom jovial. — Me desgostar? Que coisa diz! É uma surpresa gratíssima; mas uma surpresa, ao fim e ao cabo. O que aconteceu? Não chegou a fragata que esperavam? Suspenderam as festas preparadas em honra do Marechal Pontmerce? Ou acaso lhe traz você? — OH, não, não!Nem sequer vi ao Marechal Pontmerce. — O que passou? Alguma desgraça? O tempo esteve terrível estes últimos dias... — Não, nenhuma desgraça. A fragata entrou sem novidade e as festas devem estar-se celebrando. — Mas... — Não me interessou ficar a elas, Sofía. Isso é tudo. — Pensei que te agradaria conversar com um compatriota ilustre. Certamente trará coisas interessantes o que contar. Poderíamos ter notícias... — Intrigas de salão ou intrigas políticas? Para que pode nos servir aqui, querida? Estamos a sete mil milhas da França e até o sol ilumina a distintas horas. — Não por isso podemos esquecer a nossa pátria — o reprova Sofía.
  • 20. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 20 — Minha pátria é esta, querida. Porque aqui está minha casa, está. Meu filho e está você. Nesta ilha, que só para sua saúde foi inóspita. Mas não sente curiosidade em ver o que, trago-te? . — tornou-se fada o maciço de flores que envolve a calinata, entrada principal daquela mansão, onde acabam de detê-los três carruagens que formam a caravana que lhe seguia. Um totalmente vazio, do outro descendem já seus serviçais particulares, e do terceiro, que é o mais próximo, baixa Pedro Noel quase arrastando ao áspero moço que foi seu companheiro de viagem. As finas sobrancelhas da senhora D'Autremont se juntam em um gesto de estranheza que é quase, quase de disposto, ao comentar: — Pedro Noel... Mas a quem traz? — A alguém que pode entreter seus momentos de ócio e os de nosso filho Renato — explica D'Autremont. — Um moço! — salta, alegremente, Renato. — Me trouxe um amigo, papai! — Justamente. Há dito a palavra exata. Trouxe-te um amigo. Agrada-me muito que o tenha entendido no primeiro momento. Um amigo, um companheiro... — Mas o que está dizendo. Francisco? — interrompe Sofía, com desgosto reprimido. — Você traga ao Juan, Noel — indica a este, D'Autremont. — Senhora D'Autremont — saúda Pedro Noel, aproximando-se — é uma grande honra para mim o poder lhe apresentar meus respeitos. — Logo, dirigindo-se ao Renato, exclama — Olá, bom moço! — Bom dia, senhor Noel — corresponde Renato. — Este é Juan... — explica D'Autremont, apresentando-o. — Juan? Juan o que? — quer saber Sofía. — No momento, Juan a secas. É um órfão desamparado, para o que espero não falte um canto nesta casa tão grande. — Juan... A secas, né? — recalca Sofía, com desconfiança. — Também me chamam Juan do Diabo — esclarece o áspero moço, imperturbável. — Jesus, Maria e José — se escandaliza a donzela benzendo-se. — Há um momento de estupor geral, e também alguma risada afogada, quando Noel, mundano, intervém: — Desculpe-o, senhora. O diamante ainda está sem esculpir. — Já o vejo... E sem separar o da folha seca — diz Sofía, em tom mordaz. — Os cavalheiros são uma verdadeira calamidade. A nenhum dos dois lhes ocorreu banhar a este moço antes de colocá-lo no carro.
  • 21. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 21 — É um esquecimento que pode remediar-se — explica D'Autremont, contendo seu manifesto desgosto. — te Faça carrego dele, Ana. Leva-o a banho, arruma-o, penteia-o e lhe ponha roupa poda do Renato. — Do Renato? — se estranha Sofía. — Não acredito que já possa usar a minha. — Nem cabe na de meu filho. — Tudo pode reunir-se — intervém Noel, conciliador. — Certamente não faltará roupa de alguém, que possa servir-lhe. — A negra Paula é a encarregada da roupa dos empregados — esclarece depreciativa a. senhora D'Autremont. — lhe Peça uma camisa-e umas calças para este moço. Ana. — Eu tenho um traje que fica grande, mamãe — oferece Renato. — Ainda não o estreei, precisamente por isso: É o de pano azul... — Mandaram-no de presente seus tios da França — se opõe Sofía com crescente desgosto. — O ofereceu que boa vontade — comenta D'Autremont em tom suave, mas com determinação. — Não lhe corte o impulso generoso, Sofía; Nosso Renato tem; roupa para vestir a dez moços. Vá com o Juan e com a Ana, filho, e pensa que, para ele este é um mundo novo pelo que você. Vai guiá-lo. — Voltando-se para sua esposa, suplica- lhe com amabilidade — Você vem comigo, querida. Eu também vou pôr-me um pouco mais apresentável. — E elevando a voz, chama o criado — Batista... Leva ao senhor Noel à habitação que está acostumado a ocupar e encarregui-se de que nada lhe falte. — Por mim não se incomodem — se desculpa Noel. — Me considero da casa. — E o é. Dentro de meia hora, Sofía nos fará servir um aperitivo que tomaremos juntos antes de nos sentar à mesa, verdade? Hoje te vejo muito bem, tem muito boa cara, Sofía. , Certamente poderá nos acompanhar e será. Um grande prazer para nós. A mesa é outra quando você nos acompanha... Saiu Pedro Noel, seguido pelo criado, e ficou só o casal D'Autremont. Sofía não pode ocultar os ciúmes que lhe corroem a alma, ao perguntar: — Quem é esse moço? — Sofía querida, te acalme... — E você me responda... Quem é esse moço? De onde o tirou e para que lhe trouxesse aqui? Por que não me responde? — Vou responder-te, mas por partes. Chama-se Juan e é um órfão... — Isso já o disse — lhe interrompe Sofía, nervosa — e é quão único sei. Chama- se Juan do Diabo... Uma resposta bastante insolente de sua parte, quando ninguém lhe perguntava nada.
  • 22. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 22 — Não há insolência em sua resposta, Sofía. Trata-se do apelido que certamente lhe davam os pescadores, pelo lugar em que estava se localizada a cabana de seus pais. — Que lugar era esse? — Bom... Perto do que chamam o Cabo do Diabo. — D'Autremont tenta lhe subtrair importância. — Há ali uma aldeia de pessoas muito humildes, muito pobres, que remendam redes e compõem navios. Entre essa pobre gente... — Entre essa pobre gente há muitos órfãos, há muitos moços mendigos e miseráveis nos subúrbios do Saint-Pierre. Jamais te ocorreu trazer para nenhum, e muito menos dar-lhe a seu filho como amigo... Como irmão, diria eu. — Sofia! — É a forma em que trouxeste esse mendigo! — exclama Sofía, arrebatada já pela ira. — E acredito que tenho direito a te perguntar: por que o traz assim? O que tem você o que ver com ele? Por que não pode vestir-se com roupa dos empregados, e pretende que estréie os trajes do Renato? Por que tem que ser nosso filho quem tem que lhe dar a bem-vinda, e é nesta casa onde temos que lhe encontrar um rincão, havendo cem barracões de jornaleiros onde sempre cabe um mais? — Sempre te tive por mulher de nobres e generosos sentimentos cristãos, Sofía. — Não me falta à caridade para tosse desgraçados, e mais de uma vez te pareceu excessiva. — Quando se tratava de desmoralizar A. os que são meus servidores, aos que por força tenho que fazer que me conheçam como senhor e amo. Não pode dirigir uma fazenda, que é como uma província, sem o respeito absoluto a uma autoridade, sem disciplina e sem castigos que obriguem a respeitá-la. Por isso discutimos em mais de uma ocasião. Neste caso... — Neste caso, tudo é diferente. Sei, vejo-o e o apalpo. Não é uma obra de caridade o que está fazendo. É uma obra de reparação. Esse moço te importa por ti mesmo. Você leva muito... — Pois bem, Sofía... Sim... Vou dizer-te à verdade. Esse moço é o filho de um homem com o que eu me levei mal. Um homem que se arruinou por minha culpa. Morreu deixando-o na mais espantosa miséria. Acredito um dever de consciência. Ampará-lo. — Dúvida um momento. — O que passa? Por que me olhas desse modo? É que não me crie? — Parece-me muito estranho. Arruinaste a muitos, e não trouxe suas filhas a casa... Melhor caberia pensar a história de outro modo. Esse moço é o filho de uma mulher a que você amou Com essa acusação reta e precisa, como uma bala disparada contra a fria couraça de indiferença com que em vão pretende revestir-se Francisco D'Autremont, foram às palavras da Sofía dando justamente no branco. Por um momento há parado
  • 23. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 23 a ponto de estalar em um de seus arranques de violenta cólera. Logo, lentamente, dominou-se, porque aquela mulherzinha loira e frágil, enfermo como uma flor de estufa é a única pessoa que parece ter a faculdade de amansar nele os ímpetos bravios, de resolver suas tormentas em um sorriso ou em um gesto ambíguo que coalha depois em forçada atitude galante. — Por que te empenha em pensar sempre o que mais possa te mortificar? — Penso mal para acertar... E acerto, por desgraça. — Neste caso, não. — Neste caso mais que em nenhum. De que amor é o fruto essa criatura? Por que não tem nome? Esse homem a quem arruinou a quem quer satisfazer lhe recolhendo o filho, que sobrenome tinha? Como se chamava? — Bom, o caso é que o moço é filho natural deste homem de que falo que não chegou a lhe dar o sobrenome... Descuidou-se, são coisas que passam. Ao lhe prometer me fazer carrego dele, tranqüilizava, além disso, sua consciência. E não quererá que falte à promessa que fiz a um homem que morreu me benzendo, só porque nessa linda cabecinha lhe entrou uma idéia tão descabelada como a que acaba de manifestar. — Não vais abrandar-me com histórias sentimentais... — Então terei que concretizar as coisas: prometi, jurei ajudar ao moço. Não acredito que possa te incomodar no mais mínimo. Eu mesmo me encarregarei de educá-lo... — Como a outro filho...? — insinua amargamente Sofía. — Como um amigo e leal servidor do Renato — curta, cortante, D'Autremont. — Lhe ensinarei a querê-lo, a defendê-lo, a prestar-lhe sua ajuda e seu amparo quando chegar o caso. — Seu amparo? — Por que não? Nosso filho não é forte nem audaz. — Joga-me isso em cara como se eu fosse à culpada. — Não, Sofía não quer levar esta discussão adiante, mas se tivermos que considerar a verdade, nosso filho, por um excesso de cuidados e mimos de sua parte, não é o que devesse ser para as lutas e responsabilidades que cairão sobre ele o dia do amanha. Já lhe disse isso antes: falta-lhe valor, força, audácia. Tempo é que comece às adquirir quanto antes'. — Meu filho irá educar-se na Europa. Não quero que se faça homem neste meio selvagem. — Tenho para ele projetos contrários: quero que se faça homem aqui, que conheça a fundo o terreno em que tem que desenvolver-se, que saiba governar, o dia de amanhã, o pequeno reino que vou legar-lhe. Se tivéssemos tido uma menina, seria
  • 24. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 24 você a que disse sobre ela a última palavra. F.S um moço e necessito que se faça um homem. Por isso falo e mando, — E esse menino que trouxe...? — Esse menino é quase um homem já, e servirá às mil maravilhas para meu empenho. Encarregarei-me de lhe ensinar que todo o deve ao Renato e que é seu dever dar a vida por ele se for preciso. Essa será minha vingança! — Vingança do que? — Do destino, da sorte, ou como quer lhe chamar. Rogo-lhe que não falemos mais do assunto, Sofía. Deixe a eu arrumar as coisas. — Me jure que o que me há dito é verdade! — Lhe posso jurar isso Não te hei dito nada que seja mentira. Além disso, não estou fazendo nada com caráter definitivo. Só trato de dar ao moço uma oportunidade de provar que vale a pena ajudá-lo. Pelo que ele me demonstre ser, dependerá seu futuro. Se tiver nas veias o sangue que diz que tem, saberá demonstrá-lo. — Que sangue? — Dá vocês sua permissão? — É Pedro Noel, que chega ao preciso instante em que a situação se faz já insustentável entre o casal. — Adiante, Noel — convida D'Autremont, aspirando profundamente e agradecendo em seu foro interno a chegada de seu amigo. — Chega você no momento oportuno de que tomemos esse aperitivo de que falei antes. Não te incomode, Sofía. Eu mesmo ordenarei que o traga. — E ao dizer isto se afasta, deixando só a Sofía e ao Noel. Sofía fez um vago gesto de lhe deter, tensa a alma na resposta não obtida as suas últimas palavras, mas fica imóvel, turvada por aquele olhar com que Pedro Noel parece envolvê-la, adivinhando até seus mais recônditos pensamentos. — Às vezes vale mais não afundar muito nas coisas, verdade? Admitir, sem aprofundar muito, que até os melhores homens têm, caprichos, debilidades e cometem enganos lamentáveis, que com um pouco de indulgência podem dissimular-se, - evitando maus maiores. — O que trata de me dizer, senhor Noel? — Em concreto nada, senhora. Falava por falar, como falo muitas vezes; mas enquanto cruzava esta preciosa casa, para me aproximar aqui, pensava que são vocês uns matrimônios realmente ditosos e que conservar essa felicidade merece qualquer pequeno sacrifício de amor próprio. — Para que me está preparando. Noel? — Para nada, senhora... Que ocorrência! É você muito sensata para necessitar de meu conselho, mas se por acaso me perguntasse qual é em minha opinião a melhor forma de levar-se com o senhor D'Autremont, eu lhe responderia que esperasse. Meu
  • 25. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 25 pai, que foi notário dos D'Autremont, na França, dizia-me sempre: "A cólera de um D'Autremont é como um furacão: violenta, mas passageira". Opor-se a ela no momento do arrebatamento, é uma verdadeira loucura. Mas logo passa, e então é o momento de reparar o que destroçaram...
  • 26. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 26 CCapitulo 4 — Vê que bem está? Parece outro. Olha -te no espelho — diz Renato ao Juan. — O espelho... — O espelho, claro... Aqui. Olha-te. Não tinha visto alguma vez um espelho? — Tão grande, não. É como um pedaço de água quieta. — Não lhe passe a mão, que o empana — proíbe Batista, o criado. — haverá visto o selvagem. — lhe deixe em paz. Papai disse que não o incomodasse ninguém. — E quem o está incomodando? Que mais quer ele? Juan retrocedeu um passo para olhar-se de pés a cabeça no espelho que tem diante. É, efetivamente, como uma grande parte de água quieta que lhe devolve inteira sua imagem... Uma imagem em que parece outro, embora seja a primeira vez, nos doze anos de sua vida, que pode contemplar-se como agora o está fazendo. Há um grande assombro de se mesmo no escuro olhar. Embora tenha a mesma idade que Renato D'Autremont, é bastante mais alto; seu corpo, magro e musculoso, tem agilidade de felino; suas mãos são largas e fortes, quase como as de um homem; sua frente é ampla e altiva, e seus frisados cabelos negros, agora penteados para trás, deixam-na livre, dando um vago parecido com o senhor de Campo Real; o nariz é reto; a boca, firme e apertada em gesto amargo, que faria muito duro aquele rosto infantil sem os grandes olhos negros, aveludados... Aqueles admiráveis olhos italianos, igual os da Gina Bertolozi. — Agora, vêem para que lhe vejam papai e mamãe. — Com o senhor...? Com a senhora...? — Pois claro! O senhor e a senhora são papai e mamãe. — Para ti, mas não para este — intervém Batista, depreciativo. — Eu acredito que não deve levá-lo a salão. — Por que não? Papai me disse que tinha que lhe mostrar toda a casa, meus livros, meus cadernos, meus utensílios de pintar, meu bandolim e meu piano. — Insígnia o tudo o que goste, mas se não querer desgostar à senhora, 'não o leve a salão, nem a seu quarto, nem aonde ela possa lhe olhar. Entendeu? E você, entende-o também: se quiser ficar nesta casa, não ponha por diante à senhora. Sozinho, naquela isolada habitação que é de uma vez biblioteca e despacho, Francisco D'Autremont tornou a ler a carta que afundasse enrugada, em seus bolsos.
  • 27. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 27 Tem-na lido lentamente, esmiuçando-a, detendo-se em cada palavra, tratando de penetrar até o fundo cada uma de suas frases. Depois vai para a parede central e, apartando uns livros, procura no fundo de uma prateleira a porta dissimulada de uma pequena caixa de ferro, e arroja ali o papel, como se lhe queimasse as mãos. — Né! Quem anda ahi? — indaga ao ouvir fechar-se, cautelosamente, uma porta. — Eu, papai. — Renato, o que faz te escondendo em meu escritório? — Não estava me escondendo, papai. Entrava para te dar a boa noite... — Em todo o dia não havia tornado a verte. Onde estava? — Com o Juan... — Podia te haver aproximado com o Juan. Como ficou, por fim, seu traje? — Como feito para ele. Ficava grande, muito grande. O que não lhe serviram foram meus sapatos. O mandei dizer a mamãe com Batista, mas ela disse que não importava que estivesse descalço. Mas isso é feio, verdade? — Sim, muito feio. Onde está agora Juan? — Mandaram-no deitar-se. — Onde... — No quarto último do pátio dos criados — explica o moço, em tom compungido. — Batista disse que assim o mandava mamãe. — Já! E por que não te aproximou de mim em todo o dia? — Porque andava com o Juan, e Batista disse que mamãe não queria que Juan lhe pusesse pela frente. E como você há estado todo o dia com mamãe... Claro que você me havia mandado levá-lo por toda a casa, mas como disse isso Batista... Fiz mal? — Não. Tem que obedecer a sua mãe, como é natural. — E a ti não? — A mim mais que a ninguém — responde D'Autremont, cortante — Amanhã nos poremos de acordo sua mãe e eu. Agora, vá deitar-se. Boa noite. — boa noite, papai. — Aguarda... O que te parece Juan? — eu adoro. — Divertiste-te com ele? Jogaste? Ensinaste-lhe suas coisas? — Sim, mas não gostou. Estava muito sério e muito triste. Depois saímos ao jardim... Fomos mais à frente, e então começou o bom: Juan sabe montar nos cavalos sem ensiná-los, e atirar pedras, tão forte e tão alto, que alcança aos pássaros que vão
  • 28. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 28 voando... E caça lagartixas e sapos. Agarrou viva uma serpente com uma bifurcação que fez de um pau, e lhe deu volta e a meteu em uma caixa. E não o mordeu, porque ele sabe como agarrá-la. Disse-me que se tivéssemos um bote ia eu a ver como se pesca... Porque ele sabe atirar as redes e pescar peixes. — Me imagino. Suponho que esse foi. Seu ofício. — Seriamente, papai? Não é mentira que ele pode andar sozinho em um bote pelo mar? — Não é mentira... Mas segue me contando. Que mais fez com o Juan? — Burlaram-se dele no barranco porque andava descalço e com meu traje de pano azul... Deu-lhe uma trombada ao que estava mais perto, o qual era maior que ele, e o atirou de costas. Outros se foram. Mas não vai castigá-lo, verdade, papai? — Não. Fez o que eu gostaria que você fizesse se rirem de ti alguma vez. — Mas de mim não ri ninguém... Tiram-se o chapéu quando passo, e se o sotaque beija-me a mão. D'Autremont se pôs que pé com gesto estranho. Acariciou a loira e murcha cabeleira de seu filho; empurra-o suavemente até a porta do despacho e o despede: — Vate a dormir Renato. Até manhã. Francisco D'Autremont cruzou sua enorme casa, levando na mão um pequeno abajur de petróleo, atravessou o pátio dos criados até chegar à entreaberta porta daquele último quarto, onde sobre um jergón de palha, rendido pelas duras emoções do dia, dorme o pequeno Juan. Um instante eleva a luz, iluminando-o. Olha o peito, a cabeça bem formada, o rosto de nobres e regulares rasgos... Assim, com, os olhos fechados, parece apagar-se nele o parecido maternal, e os duros rasgos da raça paterna deste cão no rosto infantil... — Filho! Meu filho...? Possivelmente... Possivelmente... Uma dúvida sutil e penetrante, uma dúvida que ao brotar parece romper em seu coração algo duro e frio, subindo do peito à garganta, como pode subir a língua lhe queimem de uma chama, alagou a alma do Francisco D'Autremont. Sozinho, contemplando a aquele menino que dorme, sentou por fim o impulso procurado em vão desde antes... Pode que Bertolozi não mentisse, pode que fossem verdade suas últimas palavras... E, pela primeira vez, não é um sentimento indefinível, mescla de curiosidade e rancor, o que lhe enche a alma. É como um fundo orgulho, como uma profunda satisfação, um violento desejo de que, na verdade, seja de seu próprio tronco aquele ramo robusto, arruda e audaz, síntese ardente de seu espírito de aventura e de combate. Qualquer homem poderia estar orgulhoso de pensar seu filho a aquele moço extraordinário, endurecido como um homem frente à desgraça, e a pergunta se fazem afirmação em seus lábios: — Meu filho! Sim! Meu filho...!
  • 29. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 29 Com emoção que lhe faz tremer, descobre os rasgos iguais: a frente reta e altiva, as sobrancelhas largas e povoadas, o enérgico queixo quadrado e duro, os largos braços musculosos, o peito alto e largo... E, por contraste doloroso, pensa no Renato, loiro e frágil, mesmo que brilha em seus olhos claros o olhar de uma inteligência superior; no Renato, tão igual a sua mãe, herdeiro legal de sua fortuna e seu sobrenome, seu único filho ante o mundo... — Francisco! — interpela-lhe Sofía com voz alterada, penetrando no humilde recinto. — O que passa? O que faz aqui? O que significa isto? — Sou eu o que posso te perguntar — diz D'Autremont, refazendo-se da surpresa. O que significa isto, Sofía? Por que não está já descansando? — Posso acaso descansar, quando você...? — Quando eu, o que? Acaba! — Nada... Mas queria saber desde quando vai você, com um abajur, comprovando e velando o sonho dos criados. — Não é um criado! — O que é? Diga-o de uma vez! Diga — Né? O que? — é Juan que acorda por causa das alteradas vozes. — O senhor D'Autremont... A senhora... — Não te mova... Fique onde está... Dorme... Descansa... E amanhã vá me buscar assim que te levante — lhe aconselha D'Autremont. — Para que me faça o favor de levar-lhe o desta casa! — Cala! Não vamos falar diante do moço! Bruscamente a tirou pelo braço, obrigando-a a sair ao pátio, abertos os olhos com aquele arrebatamento de cólera violenta que lhe é tão peculiar, e com ira com muita dificuldade contida, acusa-a: — É que perdeu o julgamento, Sofía? — Crie que me falta razão para perdê-lo? — exalta-se Sofia. — Crie que não tenho motivos para estar desesperada? Estavas aí, vendo dormir, lhe contemplando como nunca olhou a nosso Renato! — Basta, Sofía, basta...! — Esse menino é seu filho! Não pode negá-lo. É seu filho. Seu filho... E de alguma dessas perdidas com as que sempre me enganaste. De que charco o tirou para trazê-lo para meu lar, para dá-lo por companheiro a meu filho? — Vais calar-te? — Não! Não me calarei! Que me ouçam os surdos! Porque não vou tolerar! É teu filho e não o quero aqui! Tira-o desta casa! Tira-o, ou serei eu a saia com meu filho! — Quer dar um escândalo?
  • 30. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 30 — Não me importa! Sairei para o Saint-Pierre! O Governador... — O Governador não faz, mas que a minha vontade! — assegura D'Autremont baixando o tom de voz, que o volta mais ameaçador. — vais fazer o ridículo! — O Marechal Pontmerce foi amigo de meu pai, conhece meus irmãos... O terá que me amparar! Porque eu...! — Cala! Cala! — Papai. O que faz a mamãe...? — grita Renato, acercando-se angustiado. D'Autremont soltou o pescoço branco que já loucamente apertavam suas mãos; retrocedeu cambaleante, enquanto seu filho lhe faz frente com impulso feroz: — Não a toques! Não lhe faça mal, porque eu... Eu...! — Renato! — repreende D'Autremont. — Eu lhe Mato se você pegar a mamãe! D'Autremont retrocedeu até mais, apagada de repente sua raiva, totalmente desconcertado... Um momento olha suas mãos que chegaram até o pescoço da Sofía, logo; bruscamente, volta às costas e se perde entre as sombras... — Renato!... Filho!... — exclama Sofía, rompendo a chorar. — Ninguém te fará mal, mamãe. Ninguém vai fazer-te nunca dano. Ao que te faça mal, eu o Mato!
  • 31. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 31 CCapítulo 5 — Que é isso? O senhor D'Autremont...? É Noel, o notário, quem faz a pergunta a Batista, o criado. — Sim... É o cavalo branco do amo... O diabo anda solto nesta casa desde que chegou esse maldito moço. — Rua! Rua! Algo teve que acontecer...! Pedro Noel saiu apressadamente do luxuoso quarto onde lhe instalaram. Não lhe basta olhar pela janela. Sai ao largo portal que rodeia a casa, baixa as escadas de pedra, segue com olhos surpreendidos a branca silhueta daquele cavalo que à luz da lua se perde já sobre os campos, E exclama: — Senhor... Senhor...! Mas que barbaridade! Outros olhos viram afastá-la arrogante figura que é Francisco D'Autremont sobre seu cavalo favorito. Outros olhos infantis, abertos de surpresa, acaso de espanto. É Juan. Tudo o ouviu desde aquele último quarto do pátio dos criados, e agora, fora já da casa, corre como transtornado até que uma mão cai sobre seu braço, lhe retendo rudemente... — E você, aonde vai? — inquire Batista. — Aonde vai, estou-te perguntando... — Eu ia... Eu... — Não tem que ir a nenhuma parte alem à cama, onde lhe mandou faz já duas horas... — É que o senhor D'Autremont... — Não te importa o que faça. O senhor D'Autremont. — Mas a senhora Sofía... — Essa menos te importa o que faça. — É que eu vi, eu ouvi... Eu não quero que por minha culpa... — No que acontecer tua culpa, tampouco te tem que colocar. Você não te governa nem te manda. Trouxeram-lhe para que obedeça e para que te cale. Anda a seu quarto. Anda a sua cama, se não querer que lhe diga isso de outra maneira. Anda! — Deu-lhe um rude empurrão, colocando-o no quarto, e fechando-o com chave. — Me abra! Abra-me! — grita o moço, golpeando com torça a porta. — Te cale, condenado! Já te abrirei quando vier o amo. Cale-se
  • 32. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 32 — Ana precisa falar imediatamente com a senhora. — A senhora não quer ver ninguém, senhor Noel. Tem enxaqueca... E quando a senhora tem a enxaqueca, não quer ver ninguém. A voz lenta, sem modulações, enjoativa e recarregada da donzela favorita da senhora D'Autremont, se estende como branda barreira detendo o ímpeto do notário, que ia cruzar já sob os cortinados que dão entrada às habitações privadas da Sofía. — O que tenho que lhe dizer é importante — insistência Pedro Noel. — A senhora não ouve ninguém quando lhe dói a cabeça. Diz que quando lhe falam, dói-lhe mais. Além disso, é muito cedo. — Me anuncie lhe diga que é urgente, e já verá como me fará passar. A donzela mestiça sorriu mostrando sua dentadura branca, enquanto move a frisada cabeça adornada com uma diminuta touca de encaixe na moda francesa. Suave e teimosa, teimosa e mansa, parecem ter o dom de esgotar a paciência do notário. — Não ouviste que avise a sua senhora? Por que fica aí parada? — Para lhe avisar à senhora tenho que lhe falar, e a senhora não quer que lhe falem quando lhe dói a cabeça... — O que acontece... — interrompe Sofía, saindo de seu quarto. — Me perdoe senhora, mas é necessário que falemos uns minutos... É importante. — Muito deve sê-lo quando vem você às seis da manhã. — É que o senhor D'Autremont não retornou desde ontem à noite em que saiu a cavalo. — Não retornou? — Não, senhora, e ninguém sabem aonde foi nem por que saiu desse modo. Eu lhe vi passar como alma que leva o diabo e perguntei aos serventes, mas nenhum pôde me dar razão. Sofía fez um leve gesto de cansaço, apoiando-se em sua donzela. Nem as lágrimas longamente choradas, nem. A noite de insônia troca em nada seu aspecto sempre igual: pálida, frágil como uma flor de estufa semi asfixiada entre estufas, dá a impressão de escutar sempre pela primeira vez até as coisas que melhor sabe. Neste caso, seus lábios se apertam levemente e um breve e vermelho relâmpago de rancor cruza por seu olhar. — O que é o que pretende você que eu saiba. Noel? .— Dizem que saiu depois de falar com você. Eu sei que estes dias sofreu emoções muito desagradáveis, que se encontrava em um desastroso estado de inquietação, de naufraga, de violência contida...
  • 33. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 33 — Pois sabe você mais que eu. Pelo visto, é o triste destino das mulheres: que não nos inteire de nada. Veio você ao pior lugar a informar-se... O notário procurou ao menino, com o olhar inquieto, para Renato aproveitou a oportunidade para sair do quarto de sua mãe. Já do outro lado das cortinas, detém-se um instante para ouvir com interesse as palavras do notário. — Atreveria-me a lhe pedir um pouco de paciência para o senhor D'Autremont nestes dias, senhora. Você é a única pessoa que pode aliviar sua carga ou fazê-la mais pesada; porque, até que talvez você haja chegado a duvidá-lo, seu marido a adora, Sofía. — Pois tem uma estranha maneira de me adorar — se lamenta Sofía, com amargura. — Mas isso, certamente, é um assunto pessoal e privado. Concretizando: não sei aonde foi Francisco nem por que aconteceu a noite fora de casa. E agora, desculpe-me, estou muito ocupada: preparo minha viagem ao Saint-Pierre, com o Renato. Pode dizer-lhe a meu marido se for ele quem lhe enviou a informar-se de meu estado de ânimo. Saio para o Saint-Pierre. E já enviei uma carta ao Marechal Pontmerce para que me faça o favor de me receber logo que eu chegue à capital. Livre da companhia de sua mãe e da vigilância da Ana, Renato se afastou a bom passo. Sua cabeça arde... As idéias e os sentimentos parecem girar dentro dele em revolta amalgama. Aquelas duras palavras que jamais escutasse entre seus pais, aquela violência do Francisco D'Autremont, a que fez frente por amor de filho e por instinto de cavalheiros, todo o amontoado de sucessos estranhos que parecem girar em torno dele, amontoam-se sobre o céu azul de sua feliz infância, lhe fazendo sentir- se, pela primeira vez em sua vida, terrivelmente desventurado. Não quer falar com os: serventes, não quer aumentar com comentários a pena de sua mãe... Mas precisa confiar a alguém a angústia, que enche seu coração de menino. Pensa em seu amigo... Por isso busca ao Juan. Mas o quarto no que lhe acreditava encerrado, está vazio. Da janela aberta sobre o campo, falta um barrote o que deixa ao descoberto o oco por onde Juan escapasse... Busca-o.com um anseia nunca sentida, com a amarga sensação de desamparo de quem vê vacilar, pela primeira vez, aos que fossem para ele evangelho e oráculo: seus pais... Pela mesma brecha que abrisse Juan, Renato se desliza também, saltando ao pendente ao mesmo tempo em que chama gritos ao fugitivo: — Juan... Juan...! Acaba de vê-lo, já bastante longe da casa, junto a aquele arroio de leito pedregoso que baixa a saltos da montanha, impetuoso e violento como o é tudo naquela ilha surta dos mares ao sopro de um vulcão, e chega até ele, sufocado pela carreira. — Juan, por que não respondia? Devagar, Juan se pôs que pé, olhando-o quase com desagrado. Sente por ele uma espécie de rancor. É tão distinto a todos os moços que ele visse até então... Com aquele loiro e murcho cabelo muito comprido, o apertado calção de pena, a camisa de
  • 34. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 34 seda branca... É como um boneco de porcelana que se escapou de um dos adornos do salão. Mas Renato lhe sorri de um modo varonil e franco, e os claros olhos lhe olham afetuosos, sinceros, em uma corrente de irresistível simpatia, a que "Juan do Diabo" resiste encolhendo os ombros... — Para que anda gritando? Quer que me apanhem? — Acaso te escapou? — Claro! Não me vê? — Humm... Batista disse a Ana que te tinha encerrado para que não incomodasse; e eu, assim que pude, escapei-me do quarto de mamãe para ir abrir-te a porta. — Para não incomodar, me comprido. — Te largar? Quer dizer que vai? — Pois claro. Mas não sei por onde... Não quero estar aqui mais! — Mas papai quer que esteja, e eu também. É meu amigo e não vou deixar-te. Não vá, Juan. Eu, agora, também estou triste... O senhor Noel disse à mamãe que você tinha sido muito desgraçado, que tinha sofrido já muito para seus anos, e eu, então, não o entendi bem, porque não sabia o que era sofrer de verdade. — E agora sabe? — Sim... Porque agora estou triste. Papai, de repente, se voltou mal. — De repente? Alguma vez tinham brigado antes? — Não... Alguma vez. Mas como sabe que brigaram? Estava acordado ontem à noite? — Eles despertaram... — Quais? Papai e mamãe? Pois a mim, não. Eu estava acordado. Papai me tinha mandado dormir, mas eu, às vezes, não faço conta. De repente o vi passar e pensei que ia arreganhar-te pelo que eu lhe tinha contado que fez na tarde. Depois passou mamãe, então esperei um momento, até que ouvi que gritavam, e quando cheguei... Bom, se estava acordado o ouviu tudo. Papai... — a voz se quebra em sua garganta. — Papai se comportou mal com mamãe. Agora é ele quem foge a 'olhar do Juan, como se lhe envergonhasse pensar que este tinha escutado a cena passada. Mas Juan aperta os lábios sem responder, sentindo-se homem frente a Renato, com a instintiva consciência de que deve calar seguir discretamente aquele segredo lhe torturem que não sabe se for mentira ou verdade... — Eu não sei como começou a briga. Ouvi que mamãe queria ir ao Saint-Pierre e que papai não queria deixá-la. E ficou furioso quando ela disse que iria de todos os modos a ver o Governador e ao esse Marechal... Que não sei nem como se chama, mas que era amigo de meu avô... E então... Se o ouviu, já sabe. Tive que me colocar para
  • 35. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 35 defender a mamãe e papai e eu estamos brigados. O se foi a cavalo e ainda não voltou para a casa. Por isso estou triste... Renato aguardou uma resposta, um comentário, mas nada responde Juan, carrancudo e silencioso, por isso interroga com suavidade: — Você crie que papai não voltará mais? Eu sei que há homens que se zangam muito e se vão para sempre de sua casa. — Seguro que volta. — Crie que volte? De verdade? — exclama Renato, com alegria. Mas ato seguido invade-lhe a preocupação. — Mas seguirá brigando com mamãe se voltar? E a mim, Juan? A mim, crie que papai não vai querer-me mais? — Querer... — Não sabe o que é querer? Alguma vez lhe quiseram? Alguma vez quis a ninguém? Nem a sua mamãe? — Eu não tive... — Todos têm. Será que não te lembra. As mamas são muito boas e quando a gente é pequena o cuidam muito e dormem nos braços. Todos têm. Até os, mas pobres, os que vivem nos barracos... Alguns não se lembram, mas todos tiveram mãe... — de repente se volteia e exclama: — OH! Olha essa gente que vem por lá. — Aí Sim... Parece como que trazem um morto... — Um morto? — Não sabe o que é um morto? Alguma vez viu um morto? — Não, nunca o vi. Mas... Isso não é um morto... É uma maca de ramos. Trazem para um homem deitado. — Ferido ou morto... — É papai! — quase grita Renato, com o espanto refletido em seu branco rosto. — É papai!
  • 36. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 36 CCapítulo 6 — Que acontece — alarma-se Sofía. — Até vive, senhora — responde Pedro Noel, triste, mas serena de uma vez. — E enquanto há vida, há esperança. Aniquilada, derrubada pela brutal impressão da noticia, Sofía se desabou sobre os almofadões de um sofá, cobrindo o rosto com as mãos, enquanto murmura: — Francisco... Francisco...! — Desde que lhe vi sair dessa maneira, temi um acidente. Por isso fiz que lhe buscassem por toda parte. — Mas, o que ocorreu? Como foi? — quer saber, em seu angustia, a senhora D'Autremont. — Suponho que, em sua cólera, fez galopar ao cavalo até desbocar-se por atalhos muito escarpados. Naturalmente, foram dar ao fundo de uma ravina. Saiu louco, cego de ira... Nem sequer permitiu que lhe selassem o cavalo! — Onde está? Quero vê-lo! — Agora lhe trazem. Adiantei-me para acautelá-la, e já enviei um homem com o cavalo mais rápido, a trazer um médico da capital. Caiu de uma grande altura... Aí estão já! — Francisco... Meu Francisco pode ver-me? Pode ouvir-me? Inclinada sobre o leito amplíssimo, contendo com esforço as lágrimas que se amontoam em suas pálpebras, Sofía D'Autremont espera com ânsia a palavra que possam pronunciar os lábios trementes do Francisco; mas são inúteis, só as pálpebras se elevam com esforço e o olhar vago se fixou nela: olhos de uma alma que se desprende já das ligaduras terrestres. — Ouve-me? Entende-me? Francisco... Meu Francisco! — Acredito que é inútil... — expressa Noel tristemente. — Não... Não diga isso! — desespera-se Sofía. — Esse médico, esse médico que mandou você procurar, quando estará aqui? — Temo-me que tarde bastante. Por desgraça, há-se perdido muito tempo. O acidente deve ter acontecido há várias horas já... E logo, trazê-lo até aqui... — Ré... Nato — sussurra, com esforço, D'Autremont.
  • 37. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 37 — Sim... — É Sofía que sente bater as asas em seu coração um hálito de esperança. — Renato... — volta a murmurar D'Autremont. — Há dito Renato — comenta Sofía. — Sim; chama a seu filho — explica Noel. — O chama, quer lhe ver, quer falar com ele. Onde está? — Renato... Filho! Vêem para cá! Sofía elevou a voz e foi para a porta, onde os dois moços, mudos, tensos, agarrados da mão, contemplam a dolorosa cena, e de um brusco puxão os separa arrastando a seu filho até o leito do moribundo, cujas pálpebras tornaram a elevar-se e em cujas pupilas tremem a luz de um anseia, de um desejo imperioso... — Aqui o tem, e aqui estou eu também. Meu Francisco. — Renato... Vais ficar em meu lugar... — Não diga isso — interrompe Sofía. — O médico virá em seguida e te porá. Bem. — Logo será você o amo desta casa... — Fez um enorme esforço, levantando a cabeça para olhar o grupo que formam, junto a ele, o filho e a mãe. E sua mão se eleva até tocar a frente infantil rodeada de cabelos loiros. — Sei que cuidará de sua mãe... Que saberá defendê-la quando eu já não esteja. Disso estou bem seguro... Mas há algo mais... Que quero te pedir: cuida do Juan Cuida do Juan, Renato... Quê-lo e ajuda-o... Como se fora seu próprio irmão! — Francisco... Francisco! — angustia-se Sofía. — Me perdoe Sofía... E não impessa que Renato cumpra minha última vontade. OH... — Senhora... Senhora! O médico está chegando... O médico da capital está chegando — anuncia Batista, que se aproxima pressuroso e sufocado. — Já o viram sair do desfiladeiro, já vem para cá... — Tarde... Tarde... Muito tarde! — grita Sofía, atendo-se nas garras do desespero.
  • 38. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 38 CCapítulo 7 Os funerais do Francisco D'Autremont duram já três dias. A viúva não quis que fosse transladado ao Saint-Pierre, e é na pequena igreja de Campo Real, aquele imóvel com honras de povo, onde seu corpo foi posto em capela ardente entre círios e flores, e aonde chegam a lhe render a última comemoração, dos mais humildes homens que trabalham suas terras, até as mais importantes personalidades da capital: o Governador, os altos funcionários do Estado, o Marechal Pontmerce e a alta oficialidade da fragata, que só por isso atrasou sua hora de zarpar. Na amplíssima casa, nos jardins, nos caminhos, é o ir e vir silencioso e constante: uma agitação sem sorrisos nem alegria, que, trançada de dor a alma, com um fundo e conteúdo tortura que não transborda em soluços nem em lágrimas, preside a frágil mulher que lhe sobreviveu, contra o que todo mundo poderia esperar. Esquecido de todos os luxuosos trajes de pano azul quebrado e manchado, os cabelos revoltos e os pés refugos, rondam Juan a pequena igreja branca com uma ânsia irresistível de aproximar-se ao que jaz para sempre, ao que lhe mandaram aborrecer os lábios do Bertolozi, e ao que estranhamente, entretanto, ama com um sentimento contuso, surdo, profundamente doloroso, que lhe faz sentir uma sensação de desamparo como não a sentiu nunca em seu abandono, e murmura para si: — Pai! Era meu pai... Era meu pai... Já está junto ao féretro, na capela lotada de flores, onde milagrosamente não há ninguém neste instante... Só a frágil forma enlutada de uma mulher a quem o moço não viu uma mulher que se aproxima tremendo de cólera, apenas lhe vê apoiar as mãos no bordo da caixa mortuária. É Sofia que. Com ira logo que contida, grita-lhe: — O que faz aqui? Por que entraste aqui? Não tem nada que procurar! Vate! Largue-te! Vate onde eu não te veja mais! Vate para sempre, maldito! Cega de uma cólera que em vão trata de afogar em sua garganta, Sofía assinalou ao Juan a porta da capela, mas depois do moço retrocede trêmulo, sentindo que o gesto e as palavras daquela mulher lhe ferem e lhe ofendem como ninguém lhe ofendeu jamais. Aí, muito perto, para sempre imóvel e gelado em sua luxuosa caixa, está o homem que lhe deu a vida, o pai que com tardio arrependimento tratou de lhe amparar. E é a primeira vez em seus doze anos, que em seu coração áspero e selvagem está a ponto de florescer um sentimento de ternura... Mas de um golpe, a voz e as palavras daquela mulher o hão destroçado. Retrocede a olha de frente e sai como um sonâmbulo, enquanto Renato D'Autremont se aproxima pela porta contraria, indagando: — Mamãe, o que aconteceu? Por que joga ao Juan?
  • 39. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 39 — Deixa tranqüilo ao Juan! Fique aqui, ao lado, junto ao féretro de seu pai... Onde deve estar. — Mas papai mandou... — Cala! Apertou-lhe o braço, lhe obrigando a calar, enquanto na porta do frente, de par em par aberta sobre o campo, aparecem já às figuras imponentes do Governador e do Marechal Pontmerce Começa à hora mais solene dos suntuosos funerais. Os dedos da Sofía se afrouxam soltando o braço do Renato, as lágrimas vão a seus olhos, e um soluço amarguíssimo estala ao fim em sua garganta, enquanto Renato escapa dali... — Juan... Juan! — Me deixe Renato. Vou agora mesmo... — Não pode ir!Papai não quer que vá! — A senhora me jogou. — Já o ouvi... Mas não importa. Papai me mandou que te cuidasse. — Você? Cuidar-me você? — O que te crie? Depois de papai e mamãe, sou eu o que manda. — Agora seu papai está morto e quão único manda é a senhora. Ela não quer ver-me mais... Disse-me que me fora... — Que fosse da igreja, mas não de Campo Real. Saint-Pierre está muito longe. Tem que ir de carro ou a cavalo. Ademais, não vão deixar te sair. — Quem não vai deixar-me? — Os criados, os trabalhadores... E os soldados. Não viu quantos soldados há? — Sim... Mas não têm nada que ver comigo. — Sim têm que ver. Papai não queria que fosse. Todo mundo sabe. Se lhe virem, seguraram-lhe, prenderam-lhe... — E escaparei! — Não sabe o caminho... — Sei que caminhando pela borda do mar, sempre chega um ao Saint-Pierre. — Bom... Se encontrar um bote, chegarei antes. — E pescará no bote? — Claro, posto que tenho que comer. — Come-te o pescado que pescas, assim, igual ao tira? — É melhor que morrer de fome.
  • 40. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 40 — Me leve contigo, Juan! — A ti? Está louco? — Me leve contigo! Eu quero aprender a pescar e a manejar um bote. Quando for grande, serei marinheiro e mandarei uma fragata, como o Marechal. — Quando for grande, irá de viagem. Agora não. — Vou e logo volto como fazia meu papai. O sempre disse que quando ele chegasse a faltar, eu mandaria na casa e séria tanto como ele. Agora, quero ir contigo e tenho dinheiro para comprar um bote... — Tem dinheiro? Teu dinheiro? Teu? — Juan se mostra interessado. — Pois claro. Tenho muito dinheiro em uma caixa... — Menino Renato! — chama a voz de Batista, o criado. — Já lhe estão procurando — sorri Juan, depreciativo. — Figura o que fariam se fosse. — Vamos com todo meu dinheiro se me esperar de noite. Sabe onde? Lá abaixo, ao lado do arroio... — Menino Renato! — volta a soar a voz do criado, já mais perto. — Agora tenho que ir. Escapei-me nada mais para te dizer que não fosse. Mas se me leva contigo, não importa... Vamos e cuidarei de ti como quer que faça meu papai. — Mas está surdo, menino? — diz Batista, aproximando-se onde se encontram os moços. — Sua mamãe me mandou a procurar-te. Já tem idade para entender que deve estar a seu lado... — Já vou, Batista. Não tem que gritar... — Não grito, mas a senhora se desespera — responde o criado baixando a voz. Mais em seguida, em tom áspero, exclama — Ah! Também me disse que buscasse a ti e que não te deixasse partir. Entendeu? Espera por aí a que a senhora disponha de sua sorte, porque agora é ela, e só ela, a que manda nesta casa. As horas aconteceram lentamente. O corpo do Francisco D'Autremont se acha já clandestinamente; os importantes funcionários que foram da capital retornaram a ela detrás render seus respeitos à viúva, e um silêncio espesso, tanto de pena como de esgotamento e de cansaço, cai sobre a suntuosa morada, sobre os férteis campos, sobre os cem barracos dos trabalhadores, como se um braçadeira de luto de luto flutuasse sobre o céu que já envolvem as sombras na opulenta fazenda do campo Real. Entretanto, há luz nas habitações da Sofía, a cujas portas chegam Batista, o mais fiel e antigo de seus servidores, trêmulo e mudado. — Senhora... O menino não aparece por nenhuma parte. — O que?
  • 41. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 41 — Quarto por quarto procuramos Isabel, Ana e eu, por toda a casa. Mandei a percorrer os campos e a perguntar pelos barracos. Mas tampouco está. — Era o único que faltava! — Senhora D'Autremont... Disse-me Ana... — É Pedro Noel, que irrompe na quarto da Sofía. — Renato desapareceu — explica, angustiada, Sofía. — Não o encontram, não dão com ele. Procuraram-no por toda parte. — Por favor, acalme-se... Não pode ter ido muito longe. Estava junto a você faz uma hora escassa. Escondeu-se em algum rincão, como fazem os meninos quando têm pena... — Se meu filho tiver pena, deve estar a meu lado. — Efetivamente; mas são reações estranhas das criaturas. Que razão dele dá Juan? — Essa é outra — intervém Batista. — O primeiro que fiz foi buscá-lo para lhe perguntar se sabia do menino, mas o tal Juan tampouco aparece por nenhuma parte. — Pois devem estar juntos — supõe Noel. — É o que temo. Que o tal Juan arraste ao menino, quem sabe a que extravagâncias. É pior que uma fera o tal menino. É um verdadeiro selvagem... — Quando eu digo... — queixa-se Sofía. — Basta, Batista. Não alarme à senhora mais do que está — ordena o notário. — Você sabe que tomamos por louco no Saint-Pierre — recorda Batista — quando entrou em lhe levar a senhor aquela carta... — O que? Que carta? — interrompe Sofía, corajosa e alarmada. — Rogo-lhe que se acalme — suplica Noel brandamente. — Quando acontece uma desgraça, tudo são prognósticos trágicos. Mas não há verdadeira razão para alarmar-se. Estou seguro de que não os procuraram bem. Em uma hora não pode percorrer-se, como pretendem, o imóvel e a casa. Permita-me que eu seja quem me encarregue do assunto, senhora... — Eu tenho já em movimento a toda a servidão, mas tomara que o tal Juan não tenha levado muito longe ao menino. Não me esquecimento de que pretendia levar em seu bote ao senhor, aquela noite em que caíam cassetetes de ponta e choviam raios... — Aonde queria levá-lo? — pergunta Sofía, intrigada. — Sofía, por favor, acalme-se. O moço chegou com uma carta de seu pai, que se estava morrendo, para lhe pedir ao senhor D'Autremont que o amparasse. O assunto não tem nada de particular. E agora, vamos procurar ao Renato! — Juan... — chama fracamente Renato.
  • 42. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 42 — Aqui estou. Traz a prata? — Pois claro. Olha-a. Com tudo e caixa... — A caixa não serve; joga as moedas em seu lenço, e joga a caixa. — Meu lenço? — Eu não tenho. Joga-me isso no teu e me faz o favor completo. Anda! Rudemente, como se aquele velho rancor contra o mundo inteiro, que Andrés Bertolozi derramasse em sua alma, despertou-se naquelas últimas horas, ardente e total, Juan quase arrebatou que mãos do Renato o lenço repleto de moedas, as aproximando, para melhor as olhar, à clara luz da lua e, surpreso, confirma: — São moedas de prata... — Pois claro. E há dois de ouro. As olha... Cada uma destas vale por cem de prata. Papai sempre dava de presente uma moeda de ouro o dia de meu aniversário... Muitas as gastei. Compram muitas coisas com uma moeda de ouro... Teremos um bote grande, grande, desses com velas, e navegaremos nele por todos os mares... — Ouve? — alerta Juan, aguçando o ouvido. — Sim — afirma Renato com a maior tranqüilidade. — Nos estão procurando, mas não por este lado. Pensam que lhe temos medo ao arroio crescido... — Eu não lhe tenho medo a nada. Vou agora mesmo. Atou fortemente as moedas no lenço, atando-o logo a sua cintura. Rapidamente se despoja da jaqueta, subindo-as pernas da calça e as mangas da camisa, enquanto Renato lhe contempla fascinado. — Renato... Menino Renato...! — De longe chega à voz de Batista. — É a ti a quem procuram — explica Juan, em um murmúrio. — Juan... Juan...! Onde está? — ouça-se também, te chama à voz do Pedro Noel. — Também lhe buscam Por aonde vamos? — indaga Renato. — Eu, pelo arroio — diz Juan, ao tempo que chapinha na água. — Juan... Juan...! Espere-me! Ajude-me... Juan não responde, não volta à cabeça. Saltando sobre as pedras, entre o arroio que se despenha em pequenas cascatas, vai curso acima, roda às vezes, quando lhe falta o pé, até o fundo de uma poça, mas volta a levantar-se, eleva-se se agarrando aos ramos, subindo pelas cordas naturais que caem sobre a água, e assim se perde no íngreme monte... — Renato! Renato! A voz de sua mãe paralisou ao pequeno Renato, disposto já a seguir ao Juan. Abraçado à jaqueta do traje azul que este deixasse em suas mãos, os pés afundados no barro da borda do arroio, sustenta sua primeira luta terrível entre a voz da
  • 43. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 43 aventura que lhe chama e o tenro amor que sente por sua mãe, e por fim, a contra gosto, responde: — Aqui estou... — Filho! Meu Renato! — grita Sofía, muito nervoso, abraçando a seu filho. — O que fazia aqui? Por que saiu a estas horas de casa? — Arrumado a cabeça a que o surrupiou o tal Juan — assegura Batista. — Mas onde está ele? — alarma-se o notário. — Onde se colocou? Terá que seguir procurando... — Estava com o menino, posso jurá-lo. Olha... Olha... Deixou-lhe a jaqueta nas mãos! Aqui há uma caixa... Uma caixa de prata... — É minha! — informa Renato. — Aqui é onde você guarda suas moedas, Renato. O que significa isto? — interroga Sofía. — Nada, mamãe... — Como nada? Onde está Juan? Responde a verdade! A verdade! — Pois sim, mamãe... Íamos escapamos... Eu queria que me ensinasse a navegar e a agarrar pescados, mas ele se foi sozinho... Não quis me esperar... — Foi, mas levando-se seu dinheiro. É um trombadinha! — afirma Batista. — Mas se a senhora me permitir que eu saia para buscá-lo... — Não, Batista. Deixe-o. Que se vá... Que se vá para sempre! É o único que ganhamos! Vamos a casa, filho... Sofía D'Autremont se ergueu, e um instante sua cabeça altiva se volta para aquele arroio por onde Juan escapasse saltando entre a água e as pedras, enquanto sua mão branca, de dedos nervosos, aprisiona a de seu filho Renato. Ferozmente o atrai para ela, em um gesto que é ternura e domínio, e o arrasta, afastando-se daquele lugar. — Não lhe tivesse vindo mal ao tal Juan receber uma boa lição antes de largar- se — comenta como para si, Batista, resmungando com irritação. — por que lhe tem tão má vontade ao moço, Batista? — pergunta Noel com sua voz suave. — Como para não ter-lhe senhor notário. Desde que aparereceu no horizonte, não trouxe mais que calamidades e dê obrigado. Porque o que lhe passou ao senhor D'Autremont... — Mais vale que não insista muito sobre quem possa ter uma boa parte de culpa pelo que lhe ocorreu ao senhor D'Autremont. — Vai dizer que foi a senhora, senhor notário? — se escandaliza Batista.
  • 44. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 44 — Vou dizer que um menino não é culpado das circunstancias em que lhe traz para o mundo; que lhe maltratar a conta dos pecados de seus pais é uma covardia e um crime. — Todo isso é com a senhora, senhor notário? — Todo isso é com você, Batista. E vou acrescentar algo mais: a senhora deu ordem de que se deixe em paz a menino. Não você tente ir atrás dele, porque tropeçará comigo... Além disso, a última vontade do senhor D'Autremont foi que se amparasse a esse menino. — Eu o ampararia com uma estaca! É um ladrão, um trombadinha! Começou por lhe roubar seu porquinho ao menino Renato e tivesse acabado por roubar-lhe tudo se o deixam crescer nesta casa. — Essa é sua opinião... — E muito bem encaminhada. Conheço o mundo e não é o primeiro caso... A senhora sabe... Quão mesmo você e que eu. Não vale nos fazer os parvos quando estão ao cabo da rua. — Nunca me faço o parvo, mas jamais afirmo mais que o que posso provar; e neste caso... — Não há provas, nem falta que fazem. Não serviriam, mas sim para que você enredasse as coisas. — Sabe que sua insolência passa da raia, Batista? — Pois se lhe agrada, dele você- queixa-as à senhora. Ela sabe que não tem um criado mais fiel nem um servidor mais leal que eu. Pela senhora e pelo menino Renato dou meu sangue. E quanto a esse bastardo... — Silêncio! Terá que ver quão alto ladram os cães assim que se apaga a voz do amo! — Senhor notário... Senhor notário... — chama Ana, aproximando-se onde discutem os dois homens. — O que acontece? — A senhora está esperando-o em seu quarto, e me mandou que o buscasse e lhe dissesse que fora para lá logo, logo, porque tem que lhe falar. Que se fora em seguida... Foi-se, procurando conter seu desgosto, enquanto a donzela nativa contempla aos dois homens com sua expressão panaca e jovial, dando, voltas entre os dedos ao avental de encaixe, como se a cólera de ambos lhe divertisse, e comenta com ironia: — Quantas coisas vão passar! A mim gosta que passem coisas. Aborreço-me quando não passa nada. — Anda a suas obrigações, Ana!
  • 45. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 45 — Caramba. Batista! Saiu-te a voz igual à do amo. Claro, como vai para maioral... — ri zombadora. — Do que te ri, tola? — resmunga Batista, lhe aflorando a ira ao rosto. — Das coisas que vão passar... — Aqui me tem senhora, atento a seu chamado e disposto a lhe servir em tudo, como sempre — se oferece Noel a Sofía. E em seguida, aconselha-lhe: — Mas se minha modesta opinião vale de algo, acredito que quão único deve você fazer é descansar, tomar umas boas horas de repouso... — Sobrará tempo para descansar depois... Tenho entendido que todos os papéis da casa D'Autremont estão no cartório de você, não? — Exato. Partida de nascimento, ata de matrimônio, o testamento de nosso nunca bem chorado amigo D'Autremont... Que por outra parte quase é inútil. Tudo que há é, naturalmente, de você e de seu filho Renato. — Sei que tudo está em ordem... Mas quero guardar esses papéis em minha casa. Todos. 'Absolutamente todos! Há algum inconveniente para que os ponha em ordem e me entregue isso, para que eu os guarde? — Absolutamente — assente Noel com surpresa e desgosto. — estarão preparados em uma hora se você o mandar. Sairei imediatamente para o Saint-Pierre, e amanhã, se assim o desejar, farei-lhe a entrega oficial de tudo em meu escritório. — Batista irá por eles... É o mais antigo e o melhor de meus servidores. Nomeei- o Administrador general da fazenda, e ele fará que as coisas partam. — Mas é absurdo, totalmente absurdo! E eu quisesse aconselhar-lhe... — Não vou a ouvir nenhum conselho dele. Noel. Não perca o tempo em me dar isso — Lamento profundamente sua estranha atitude, senhora D'-Autremont. — Não é estranha, posto que defendo a meu filho... — Seu filho... — surpreende-se o notário. — Senhora... Senhora... — É Ana que irrompe na habitação, agitada e gaguejando. — O que acontece. Ana? — pergunta Sofía. — O menino Renato... Como que está mau... Isabel me mandou lhe avisar... — Mau? Quer dizer, doente? — Sim, senhora. Como que tem febre e diz coisas estranhas..., — Renato, filho... Renato... I Sofía tem cansado de joelhos frente ao pequeno leito branco, onde Renato, abertos, sem ver, os grandes olhos, úmido de suor gelado o loiro cabelo, agita-se no
  • 46. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 46 delírio de uma alta febre. Depois dela, pálido, mudado, chegou também Pedro Noel que se detém sob o arco da porta, entre as duas donzelas assustadas. — E o médico? Onde está o médico? — inquire Sofía. — Foi, senhora... Como todos. — Que corram ao Saint-Pierre para lhe buscar! Renato, filho...! — Juan... Juan...! — murmura Renato em seu delírio — Juan... Não me deixe... Me leve contigo... Me leve a navegar... Eu cuidarei de ti... Papai o mandou! Papai disse... Como a um irmão... Como a um irmão... Juan... — Deus meu! — exclama Sofía, em um lamento. Há retrocedido cambaleando- se, sentindo como se a terra que a sustenta vacilasse. Ira e dor se cravam ao mesmo tempo em sua alma, e voltando-se para o Noel, espeta-lhe: — E até se estranha você por que defendo a meu filho? Tenho que defendê-lo com os dentes, com as garras! — Senhora D'Autremont... Ninguém lhe atacou. Está você cega, e em seu egoísmo maternal... — Basta! — interrompe-lhe Sofía. — Nenhuma palavra mais! Você saia desta casa de campo Saia! Saia! E não volte jamais!
  • 47. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 47 CCapítulo 8 A enfermidade do Renato foi larga. Durante muitos dias teve febre alta, e cem vezes pronunciou em seu delírio, como os unindo para sempre, os nomes do Juan e de seu pai. Ao fim, uma manhã amanheceu espaçoso, reconheceu a sua mãe e chorou em seus braços... Aquela tarde... — Vai você mesmo ao Saint-Pierre, Batista. — Sim, senhora. Como você mande. O menino já não está em perigo e diz o médico que muito em breve poderá levantar-se. — Apenas se reponha, mandarei-o a França. Por isso quero que recolha os papéis de casa do Noel e entregue esta carta em própria mão ao Governador. O me ajudará. — Não tenho palavras com o que lhe agradecer o grande favor que vai você a me fazer, senhora Molnar. A moléstia de levar consigo ao Renato... — Por Deus, amiga minha. Se essa não for moléstia; ao contrário. Que mais posso querer eu, para este viaje no que vou sozinha com minhas duas garotinhas, que a companhia de um moço como Renato, que é quase um homenzinho? — Confio em que saiba ser um cavalheiro. — Repito-lhe que estou encantada. E terá que ver o bem que se leva com minhas pequenas, e mais ainda que com a maior, que é tão suave, com essa revoltosa da pequenina... É no despacho do capitão do porto do Saint-Pierre, junto aos moles em que aguarda um navio preparado a partir rumo à França. Ali é onde conversam Sofía D'Autremont e a parenta do Governador, Catalina Molnar, uma mulher Madura, tímida e bondosa, de gestos suaves, que olha com ternura ao grupo que formam a curta distância, ao outro lado da larga porta aberta, Renato D'Autremont e as duas pequenas Molnar, de nove e sete anos. A maior é magra e fina, inquieta e nervosa, de grandes olhos claros. A menor, de rosto rosado e olhos ardentes, tem em seus poucos anos a exuberância dos frutos do trópico. — Meu Renato precisa esquecer muitas coisas desagradáveis. Esta viagem é o melhor remédio para ele... — É você muito valorosa separando-se assim de seu único filho. Repito que a adoto. Além disso, suponho que tratará de cumprir com isto a última vontade de seu marido...
  • 48. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 48 — Efetivamente... — Forçada a mentir, Sofía D'Autremont se mordeu os lábios; logo sorri com esforço, trocando o espinhoso tema da conversação: — Suas meninas são preciosas. Falou-me muito delas o primo de você, o Governador. Qual é Aimée? — A menor... — A maior é Mônica, verdade? Já sei que, por empenho de seu pai, vão educar- se a França. — Mas eu não sou tão heróica como você, e não as sotaque ir sozinhas mesmo que tenha que me separar de meu marido. Mas acredito que buscam a você... — Ah, se! É Noel... Com sua permissão... — Tudo está em ordem, e o navio a ponto de zarpar. Acabo de entregar ao comissário de bordo os últimos papéis de. Renato e, portanto, minha missão está terminada — explica o notário. — Muito obrigado. Noel. OH, aguarde! Não quer acompanha-me até deixar no navio o Renato? — Será uma grande honra — acata Noel, mas o tom com que o diz é francamente seco, quase hostil. — Compreendo que está aborrecido comigo. Tratei-lhe bruscamente a última vez que falamos — tenta desculpar-se Sofía. — Esqueça esse assunto, senhora. Não tem a menor importância. — Então, permite-me lhe fazer uma pergunta indiscreta? — Certamente, embora não lhe prometo lhe responder. — Agradecerei-lhe muito que me responda. Procurou você a esse moço que meu marido queria recolha r? Tem alguma notícia do Juan... Do Diabo? — A notícia que tenho é boa para você, ainda quando a mim, sinceramente, me causar pena. — Espero que não lhe terá ocorrido alguma desgraça... — Ainda não, mas será muito estranho que voltemos ouvir dele. — Por quê? — Depois de muito averiguar, tive notícias de que embarcou como grumete em um veleiro de carga que zarpava rumo à Jamaica. Não souberam me dar o nome do veleiro nem de seu capitão, por isso considero totalmente perdida a pista do moço. Sinto muito... Sinto muito... Tinha-me pedido que o deixasse em minha casa como servente e, depois de tudo, tivesse sido o melhor. Mas quem podia adivinhar... Enfim, você olha por onde os dois pequenos vão estar ao mesmo tempo cruzando o mar... — A sereia do casco de navio, que está logo a zarpar, interrompe-lhe com a estridência de seu Esse som é o navio que leva a seu filho. Vamos? O navio que se leva ao Renato deixou atrás o promontório de rochas no que se eleva o farol, e, com a proa apontando para alto mar, apressa a marcha. De pé junto à
  • 49. PPÉÉGGAASSUUSS LLAANNÇÇAAMMEENNTTOOSS 49 branda de coberta, acreditando sentir até sobre o. Rosto os beijos e as lágrimas de sua mãe, Renato olha aquela terra que se afasta, tendo a cada lado a uma das pequenas Molnar: Aimée sorri, enquanto Mônica se seca uma lágrima. E como uma promessa a aquela tumba que deixasse no cemitério de Campo Real, como um grito de seu coração de doze anos. Renato oferece: — Voltarei logo, papai. Voltarei... Para procurar o Juan.