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cinema Corumbiara, o vencedor do Festival de Gramado, é bem mais que apenas um Filme




retrato
doBrasil                www.retrAtOdObrAsil.COm | r$ 8,00 | nO 27 | OUtUbrO de 2009




crise
Até que ponto ela afeta
a vida dos que vivem dos
pequenos negócios?

Guerra
Apesar dos esforços de
Obama, no Afeganistão os
talibãs mostram sua força

Biodiesel
A ideia era ajudar os
pobres. Até agora, só
os ricos ganharam

1ª confecom
A grande mídia parece
só querer discutir
amenidades




 Os mOdelOs de
 democracia
 de eUA e ChinA
   Um serve aos propósitos imperialistas do país mais
   poderoso do mUndo. e o oUtro, qUe agora completa 60 anos?

   emilY dicKinson a poeta do século XiX que é uma espécie de shakespeare das américas
retrato
dobrasil   www.retratodobrasil.com | n o 27 | outubro de 2009




06   Ponto de Vista                  18   atirando Para matar
     as democracias                        a violência da polícia de são Paulo aumentou. na maior favela
                                           da capital, um assassinato fez explodir a revolta da população
     de Hu e obama
                                           [Marina Amaral]
     Há sentido em pretender
     que a china adote o mesmo
     modelo democrático que
     serve aos propósitos
     imperialistas do país mais
     poderoso do mundo?


09   só amenidades
     Parece que as grandes
     empresas da mídia não
     querem discutir qualquer
     assunto polêmico na
     1a conferência nacional de
     comunicação
     [Rafael Hernandes]




12   Pequenas emPresas, grandes questões
                                                                          21     o sonHo acabou?
                                                                                 o governo anunciou que
     de que forma a crise afeta os micro e pequenos empresários?
                                                                                 o biodiesel de mamona tiraria
     Qual seu real peso econômico e seu papel no desenvolvimento
                                                                                 da pobreza 1 milhão de
     do País? [Tânia Caliari]
                                                                                 pequenos agricultores. até
                                                                                 agora, só os grandes
                                                                                 produtores ganharam
                                                                                 [Lia Imanishi]


                                                                          29    eleição debaixo
                                                                                de bala
                                                                                 no afeganistão, centenas de
                                                                                 milhares de soldados e
                                                                                 policiais não impediram
                                                                                 que os talibãs continuasse a
                                                                                 impor derrotas às forças de
                                                                                 ocupação ocidentais
                                                                                 [Yuri Martins Fontes]


                                                                          38     luta de classes
                                                                                 islâmica
                                                                                 ahmadinejad, o presidente do
                                                                                 irã que lidera os mulás
                                                                                 pobres, quer realizar
                                                                                 mudanças que conflitam com
                                                                                 o interesse dos aiatolás ricos
                                                                                 [Flávio Dieguez]
fale conosco:
                                                                                                                   www.retratodobrasil.com


                                                                                                                  cartas à reDaÇÃo
                                                                                                                cartas@retratodobrasil.com
                                                                                                                  rua fidalga, 146 conj.42
                                                                                                               cep 05432-000 são paulo - sp


                                                                                                                        assinaturas
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                                                                                                              tel. 11 | 3032 1204 ou 3813 1527
                                                                                                                  de 2a a 6a, das 9h30 às 17h


                                                                                                              atenDiMento ao assinante
32     a revoluÇÃo aos 80                                                                                     assinatura@retratodobrasil.com
        Os comunistas chineses começaram sua revolução                                                              tel. 31 | 3281 4431
        em 1929 e chegaram ao poder vinte anos depois. Agora,                                                     de 2a a 6a, das 9h às 17h
        com a crise, enfrentam seu maior desafio
        [Raimundo Rodrigues Pereira]                                                                                  Para anunciar
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                                                                                                                  de 2a a 6a, das 9h30 às 17h

41   ’enfia essa                                   44       autóPsia
                                                                                                                 circulaÇÃo eM bancas
      câMera no rabo’                                       Do terror                                          circulacao@retratodobrasil.com
      O grande vencedor do                                  A violência política é o tema
      Festival de Cinema de                                 do bom livro do historiador
                                                                                                                  eDiÇões anteriores
      Gramado deste ano foi                                 David Andress. Uma de suas                          vendas@retratodobrasil.com
      Corumbiara, com suas                                  falhas é assemelhar as ações
      imagens que ultrapassam a                             de Robespierre às de Bush
                                                            [Lincoln Secco]                                               reDaÇÃo
      função estética                                                                                           redacao@retratodobrasil.com
      [Leandro Saraiva]                                                                                              tel. 11 | 3814 9030

                                                                                                              Entre em contato com a redação
47    eMily entre nós                                                                                           de retrato do brasil. Dê sua
      A maior poeta dos EUA, que os críticos comparam a Walt Withman,                                             sugestão, critique, opine.
      é cada vez mais reconhecida entre os brasileiros [Antonio Carlos Queiroz]                               Reservamo-nos o direito de editar
                                                                                                                as mensagens recebidas para
                                                                                                               adequá-las ao espaço disponível
                                                                                                               ou para facilitar a compreensão.


caPa Chico Max

eXPeDiente - SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira EDIÇÃO Armando Sartori REDAÇÃO Carlos Azevedo • Flávio Dieguez • Lia Imanishi •
Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari DIREÇÃO DE ARTE Chico Max EDIÇÃO DE ARTE Pedro Ivo Sartori REVISÃO Silvio Lourenço • Gabriela Ghetti •
Bruna Bassette [OK Linguística] COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Antônio Carlos Queiroz • Carla Bispo • Leandro Saraiva • Lincoln Secco • Marina Amaral • Yuri
Martins Fontes • Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A.
EDITORA MANIFESTO S.A. PRESIDENTE Roberto Davis DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Marcos Montenegro DIRETOR EDITORIAL Raimundo
Rodrigues Pereira
GERENTE COMERCIAL Daniela Dornellas REPRESENTANTE EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas • Tel 61 3328 8046
ADMINISTRAÇÃO Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho
OPERAÇÃO EM BANCAS • ASSESSORIA EDICASE [www.edicase.com.br] DISTRIBUIÇÃO ExCLUSIVA EM BANCAS Fernando Chinaglia
Comercial e Distribuidora S/A MANUSEIO FG Press
TIRAGEM 20 mil exemplares [Tiragem auditada pela BDO Trevisan Auditores Independentes]
Cinema




“EnfIA
 ESSA
 CÂmERA
 no RABo”
 Em Corumbiara, o grande    Como uma fleChada, Corum-                      Corumbiara se compõe das filmagens
 vencedor do Festival de    biara nos impacta violentamente, como      feitas por Carelli na região homôni-
                            espectadores desacostumados com um         ma, em Rondônia, entre 1986 e 2006.
 Gramado deste ano, as      cinema feito de compromissos radicais.     Sempre tentando flagrar os criminosos
 imagens documentais        As discussões sobre o estatuto das         responsáveis pelo massacre de um grupo
                            imagens documentais, a natureza do         indígena que “atrapalhava” fazendeiros
 ultrapassam a função       caráter ético e/ou político das relações   locais – pelo desagradável inconve-
 estética e procuram novo   estabelecidas entre quem filma e quem      niente de existir, com o agravante de
                            é filmado, ou mesmo a ética (sempre “a     fazê-lo sobre terras que os fazendeiros
 sentido ético e político   ética”, entendida como compromisso in-     sulistas tinham comprado num negócio
                            dividual entre “autor” e “documentado”)    de lucros amazônicos promovido pelo
 por Leandro Saraiva        da produção audiovisual com relação        desenvolvimentismo patrimonialista –,
                            aos abundantes desvalidos retratados       o cineasta acumulou farto material ao
                            – todas essas questões debatidas nos       longo de duas décadas. Vestígios de
                            últimos anos, de especial crescimento do   ocupação violentamente desfeita, oculta
                            documentário no País, amargam na nossa     de modo primário, ameaças de jagunços,
                            boca, tomando um gosto meio pueril         depoimentos de trabalhadores que tes-
                            defrontadas com a clareza e firmeza        temunharam o ataque, entrevistas com
                            desassombrada dos posicionamentos          especialistas indigenistas, localização de
                            que movem o filme de Vincent Carelli.      índios que fugiram e sobreviveram e até
                            Tamanha contundência tem seu nervo         mesmo a confirmação do massacre por
                            no inconformismo frente à violência        alguns desses sobreviventes.
                            bárbara que rege as relações sociais nas       Carelli não tinha a intenção de “fazer
                            frentes de expansão agrária do País.       um documentário”. Desde o início, o

                                                                                       27 retratodoBRASIL    |   41
objetivo era fazer imagens que pudessem                        Carelli e Santos retornam anos               da manipulação. De início, pela própria TV:
 servir à causa indígena, comprovando os                   depois, quando o indigenista obtém                as imagens de Carelli são apresentadas no
 ataques sofridos, flagrando os respon-                    legitimidade na Funai para retomar as             Fantástico sob uma aura sensacionalista, que
 sáveis, provando a existência de índios                   buscas. A câmera, agora, está ao lado da          retira de contexto e exotiza os índios com
 remanescentes nas terras da região, para                  lei: ajuda a forçar a entrada dos oficiais de     os quais ele fez contato. Mas, de qualquer
 garantir a eles seu uso. O autor de Corum-                Justiça nas fazendas da área, cujo acesso,        forma, essa espetacularização por si só
 biara trabalha nas antípodas da autonomia                 antes, era negado, em nome do direito             não chega a atrapalhar a ação na Justiça e a
 das imagens: ele busca fazer imagens que                  de propriedade. E – surpresa! – eles              investigação, junto aos índios, do massacre.
 provem, acusem, testemunhem.                              encontram um pequeno grupo de índios              O jogo se torna mais pesado quando os
     O filme abre com uma declaração                       remanescentes, isolados, que há anos              fazendeiros montam uma contraversão
 das intenções do realizador. Na tela,                     se esforçam para escapar do contato               para os jornais, que parte do imaginário
 as imagens fortes (pouco importa uma                      “civilizatório” com os benfeitores para           exotizante, vestindo os índios contatados
 certa precariedade técnica) de um ritual                  os quais Dr. Flausino trabalha.                   com roupas brancas e afirmando que, se
 nambiquara, a “festa da moça”, que                             As imagens do contato adquirem um            havia uma “montagem”, esta havia sido
 ocorre pela primeira vez em 20 anos,                      duplo uso. Legalmente, servem como                feita por Carelli e Santos.
 explica o realizador, em consequência                     base para a interdição de uma área que                 Enquanto essa batalha segue em
 direta do processo de gravação e exibi-                   permita aos índios manterem seu saudável          curso, Carelli e Santos se esforçam para
 ção que o vídeo permitia experimentar                     isolamento. E são exibidas no Fantástico,         provar o massacre original. Estabelecem
 na aldeia. É uma espécie de ritual de                     o que reforça o primeiro uso, ao mesmo            um convívio cotidiano com os índios.
 iniciação do próprio Carelli, até então                   tempo em que, esperam os realizadores,            Junto com a antropóloga Virgínia Va-
 um indigenista, que se reinventava, em                    ajudam a apoiar os direitos indígenas.            ladão, mulher de Carelli (que faleceu
 1986, como documentarista.                                     A difusão televisiva, entretanto, revela     durante a longa investigação), descobrem
     O cineasta que daí surge, no entanto                  outra dimensão política da imagem: o jogo         se tratar, na verdade, de dois grupos, um
 – e esse é o ponto crucial –, usa a câmera                                                                  akunsu e outro canoê (no total, chegam
 como instrumento da causa indígena.                                                            Divulgação   a dez pessoas). As relações entre eles são
 Esse sempre foi o norte da organização                                                                      complexas, tensas.
 que criou, Vídeo nas Aldeias. Hoje, mais                                                                         A investigação avança com dificul-
 de 60 filmes depois, tendo atuado junto                                                                     dade. São colhidos depoimentos de tra-
 a dezenas de povos, formando realiza-                                                                       balhadores da fazenda suspeita, mas há
 dores indígenas de alto gabarito, com                                                                       muito temor. Os indícios e informações
 obras lançadas em festivais e no mercado                                                                    se acumulam. Nesse meio tempo, outro
 de locação e venda de vídeos, é uma                                                                         índio isolado, sobrevivente do que parece
 incontornável referência internacional                                                                      ser outro massacre, mais recente, é en-
 (ver “Muito além do vídeo”, Retrato do                                                                      contrado, mas recusa o contato, gerando
 Brasil nº 21, abril de 2009).
     Foi nesse contexto que Marcelo
                                                                                                             Carelli (à esq.) e Santos (com os omerê):
 Santos, indigenista da Fundação Nacio-
                                                                                                             trabalho que se confunde com a vida
 nal do Índio (Funai), convidou-o para
 registrar os vestígios de um massacre de
                                              Divulgação




 índios isolados em Corumbiara, o que,
 conta-nos Carelli, era a chance de dar um
 sentido claramente militante ao vídeo,
 exatamente como ele buscava.
     O sentido político das imagens da
 violência econômica explícita da região
 é didaticamente exposto. No “diálogo”
 com um trabalhador fiel aos patrões, a
 fala do rapaz enuncia com objetividade
 o lugar do Estado de Direito na fronteira
 agrícola: “Enfia essa câmera no rabo”.
 A câmera incomoda. Carelli grava os
 vestígios materiais do massacre, faz en-
 trevistas, mas é logo interrompido por
 um jagunço sofisticado, Dr. Flausino,
 advogado dos fazendeiros, refinado
 ideólogo do desenvolvimento a qualquer
 custo, que nega qualquer violência por
 parte desses civilizadores a quem serve,
 benfeitores, segundo ele, que arriscam
 seu capital naqueles grotões.

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uma situação quase que paradoxal. O                  sim, atuando à margem da especialização        de força e imagem, aparecendo justamente
             índio foge e resiste, sentindo-se acuado             estética, no registro da militância, Carelli   em função dessas tensões políticas, surgem
             pela câmera, mas só a obtenção de sua                extrai daí uma outra estética.                 momentos fortes, de uma qualidade estética
             imagem pode garantir na Justiça a sua                    No campo documental, nos últimos           para além do subjetivo. A voz over de Carelli,
             permanência na terra onde vive.                      anos, muito se falou de uma “ética do          sóbria, narrando um rosário de horrores
                  Durante a investigação, Carelli                 encontro”, que seria também uma estética,      sem empostar quaisquer dramatizações
             percebe que as imagens que fez para o                para caracterizar o cinema documental de       (como quem diz “assim são as coisas”),
             Fantástico precipitaram a reedição da tra-           Eduardo Coutinho (veja-se, por exemplo,        costurando a passagem de décadas de sua
             gédia anterior, sendo a causa do massacre            O cinema de Eduardo Coutinho, de Consuelo      vida, emociona não pelo lirismo, ou pela
             do grupo ao qual pertencia o índio que               Lins. Jorge Zahar, 2004). Em seus docu-        nostalgia do tempo que se perde, da esposa,
             tenta filmar: assustados pela divulgação             mentários, Coutinho faz da entrevista um       que se vai, mas pela firmeza persistente,
             da presença indígena e com a potencial               palco de improvisos, de retórica, encena-      realista e desassombrada, de quem mantém
             interdição de áreas, os fazendeiros resol-           ção e desnudamento, onde vale a ética do       a militância. Na mesma chave, a amizade
             veram agir preventivamente. No fundo, o              encontro, ou da busca do encontro – de         com Marcelo, o reencontro que revela nos
             temor do índio que se esconde tem um                 lampejos de beleza, como costuma dizer,        rostos e nos corpos a passagem do tempo,
             triste fundamento. O moinho da frente                em que o que vale é o encontro entre duas      aparece calcada nesse trabalho político que
             de expansão continua dando voltas.                   subjetividades singulares, mediadas pela       se confunde com a vida.
                  Eventualmente, Carelli obteve um                câmera. Tudo isso é verdade e tem resul-            O contraste entre a espetacularização
             testemunho gravado do chefe akunsu,                  tado estético, numa versão contemporânea       do Fantástico e a delicadeza intensamente
             confirmando o massacre original. Mas, no             e antiespetacular do cinema moderno, em        emocionante dos planos silenciosos e
             lugar da condenação dos culpados, o que              sua atenção aos instantes de invenção, de      distendidos do primeiro contato com os
             conseguiu foi realizar Corumbiara. Um filme          fuga do convencionado.                         canoês está emoldurado nesse quadro po-
             que resultou de um processo de investiga-                Pode-se dizer que também em Corum-         litizado. Cada gesto, hesitante e inaugural,
             ção e militância, lidando, portanto, com             biara uma ética se desdobra em estética.       entre brancos e canoês, nesse momento
             outras funções sociais da imagem, que não            Mas aqui a ética é outra. Não a do encontro    raríssimo, de encontro entre mundos, vibra
             a estética: investigativa, jurídica, jornalística,   intersubjetivo, mas a da ação política, que    com uma particular intensidade, dada pela
             política. Realizado retrospectivamente com           leva, por um lado, a relações de aliança       sombra trágica que paira sobre aquela outra
             montagem desses materiais, Corumbiara                mediadas por objetivos políticos (e não pela   humanidade que se revela à câmera.
             é uma narração desses casos de violência             subjetividade pura) e, por outro, a relações        Mesmo a fisionomia, o que de mais
             social e, ao mesmo tempo, uma meditação              de confronto (“Enfia essa câmera no rabo”).    imediato há nas imagens, o que apreende-
             sobre o lugar da imagem nesse circuito. As-          Entretecidas com as investigações e jogos      mos de chofre quando vemos um rosto, ou
                                                                                                                 mesmo uma paisagem, adquire tons espe-
               Mulher akunsu: ela fazia parte de um grupo de dez índios remanescentes                            cíficos conforme a moldura, a atitude geral
                                                                                                                 que move o filme. Sob a luz política de
Divulgação




                                                                                                                 Corumbiara, a desfaçatez dos fazendeiros,
                                                                                                                 a arrogância do Dr. Flausino e, sobretudo,
                                                                                                                 as expressões dos índios – a circunspecção
                                                                                                                 defensiva dos canoês; a incrível força da
                                                                                                                 performance de conotações xamânicas de
                                                                                                                 Tiramantu, a jovem mulher canoê; a digni-
                                                                                                                 dade de Konibi, chefe akunsu, tocando sua
                                                                                                                 flauta; o acuamento do “índio do buraco”
                                                                                                                 – tudo surge carregado de história.
                                                                                                                      Corumbiara se encerra com um close
                                                                                                                 de Tiramantu, completamente absorta na
                                                                                                                 relação com seu filho pequeno. A voz de
                                                                                                                 Carelli, ao longo de toda a sequência que
                                                                                                                 ali se encerra, pontua a conclusão com
                                                                                                                 um duro balanço das grandes dificuldades
                                                                                                                 enfrentadas pelos índios com os quais ele
                                                                                                                 fez contato. Lembramo-nos das imagens
                                                                                                                 do primeiro contato e Tiramantu parece
                                                                                                                 outra pessoa. A estranheza áspera de sua
                                                                                                                 expressão de então se foi. Em seu lugar, há
                                                                                                                 um doce olhar maternal. Aquele momento
                                                                                                                 de ternura vale como esperança, apesar
                                                                                                                 de tudo, ou como rendição? A história,
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                                                                                                                 rumbiara, emoldura até o fim até mesmo a
                                                                                                                 delicada intimidade de Tiramantu.

                                                                                                                                  27 retratodoBRASIL       |   43

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Cinema Corumbiara retrata o Brasil

  • 1. cinema Corumbiara, o vencedor do Festival de Gramado, é bem mais que apenas um Filme retrato doBrasil www.retrAtOdObrAsil.COm | r$ 8,00 | nO 27 | OUtUbrO de 2009 crise Até que ponto ela afeta a vida dos que vivem dos pequenos negócios? Guerra Apesar dos esforços de Obama, no Afeganistão os talibãs mostram sua força Biodiesel A ideia era ajudar os pobres. Até agora, só os ricos ganharam 1ª confecom A grande mídia parece só querer discutir amenidades Os mOdelOs de democracia de eUA e ChinA Um serve aos propósitos imperialistas do país mais poderoso do mUndo. e o oUtro, qUe agora completa 60 anos? emilY dicKinson a poeta do século XiX que é uma espécie de shakespeare das américas
  • 2. retrato dobrasil www.retratodobrasil.com | n o 27 | outubro de 2009 06 Ponto de Vista 18 atirando Para matar as democracias a violência da polícia de são Paulo aumentou. na maior favela da capital, um assassinato fez explodir a revolta da população de Hu e obama [Marina Amaral] Há sentido em pretender que a china adote o mesmo modelo democrático que serve aos propósitos imperialistas do país mais poderoso do mundo? 09 só amenidades Parece que as grandes empresas da mídia não querem discutir qualquer assunto polêmico na 1a conferência nacional de comunicação [Rafael Hernandes] 12 Pequenas emPresas, grandes questões 21 o sonHo acabou? o governo anunciou que de que forma a crise afeta os micro e pequenos empresários? o biodiesel de mamona tiraria Qual seu real peso econômico e seu papel no desenvolvimento da pobreza 1 milhão de do País? [Tânia Caliari] pequenos agricultores. até agora, só os grandes produtores ganharam [Lia Imanishi] 29 eleição debaixo de bala no afeganistão, centenas de milhares de soldados e policiais não impediram que os talibãs continuasse a impor derrotas às forças de ocupação ocidentais [Yuri Martins Fontes] 38 luta de classes islâmica ahmadinejad, o presidente do irã que lidera os mulás pobres, quer realizar mudanças que conflitam com o interesse dos aiatolás ricos [Flávio Dieguez]
  • 3. fale conosco: www.retratodobrasil.com cartas à reDaÇÃo cartas@retratodobrasil.com rua fidalga, 146 conj.42 cep 05432-000 são paulo - sp assinaturas vendas@retratodobrasil.com tel. 11 | 3032 1204 ou 3813 1527 de 2a a 6a, das 9h30 às 17h atenDiMento ao assinante 32 a revoluÇÃo aos 80 assinatura@retratodobrasil.com Os comunistas chineses começaram sua revolução tel. 31 | 3281 4431 em 1929 e chegaram ao poder vinte anos depois. Agora, de 2a a 6a, das 9h às 17h com a crise, enfrentam seu maior desafio [Raimundo Rodrigues Pereira] Para anunciar comercial@retratodobrasil.com tel. 11 | 3032 1204 ou 3813 1527 de 2a a 6a, das 9h30 às 17h 41 ’enfia essa 44 autóPsia circulaÇÃo eM bancas câMera no rabo’ Do terror circulacao@retratodobrasil.com O grande vencedor do A violência política é o tema Festival de Cinema de do bom livro do historiador eDiÇões anteriores Gramado deste ano foi David Andress. Uma de suas vendas@retratodobrasil.com Corumbiara, com suas falhas é assemelhar as ações imagens que ultrapassam a de Robespierre às de Bush [Lincoln Secco] reDaÇÃo função estética redacao@retratodobrasil.com [Leandro Saraiva] tel. 11 | 3814 9030 Entre em contato com a redação 47 eMily entre nós de retrato do brasil. Dê sua A maior poeta dos EUA, que os críticos comparam a Walt Withman, sugestão, critique, opine. é cada vez mais reconhecida entre os brasileiros [Antonio Carlos Queiroz] Reservamo-nos o direito de editar as mensagens recebidas para adequá-las ao espaço disponível ou para facilitar a compreensão. caPa Chico Max eXPeDiente - SUPERVISÃO EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira EDIÇÃO Armando Sartori REDAÇÃO Carlos Azevedo • Flávio Dieguez • Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita • Tânia Caliari DIREÇÃO DE ARTE Chico Max EDIÇÃO DE ARTE Pedro Ivo Sartori REVISÃO Silvio Lourenço • Gabriela Ghetti • Bruna Bassette [OK Linguística] COLABORARAM NESTA EDIÇÃO Antônio Carlos Queiroz • Carla Bispo • Leandro Saraiva • Lincoln Secco • Marina Amaral • Yuri Martins Fontes • Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. EDITORA MANIFESTO S.A. PRESIDENTE Roberto Davis DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Marcos Montenegro DIRETOR EDITORIAL Raimundo Rodrigues Pereira GERENTE COMERCIAL Daniela Dornellas REPRESENTANTE EM BRASÍLIA Joaquim Barroncas • Tel 61 3328 8046 ADMINISTRAÇÃO Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho OPERAÇÃO EM BANCAS • ASSESSORIA EDICASE [www.edicase.com.br] DISTRIBUIÇÃO ExCLUSIVA EM BANCAS Fernando Chinaglia Comercial e Distribuidora S/A MANUSEIO FG Press TIRAGEM 20 mil exemplares [Tiragem auditada pela BDO Trevisan Auditores Independentes]
  • 4. Cinema “EnfIA ESSA CÂmERA no RABo” Em Corumbiara, o grande Como uma fleChada, Corum- Corumbiara se compõe das filmagens vencedor do Festival de biara nos impacta violentamente, como feitas por Carelli na região homôni- espectadores desacostumados com um ma, em Rondônia, entre 1986 e 2006. Gramado deste ano, as cinema feito de compromissos radicais. Sempre tentando flagrar os criminosos imagens documentais As discussões sobre o estatuto das responsáveis pelo massacre de um grupo imagens documentais, a natureza do indígena que “atrapalhava” fazendeiros ultrapassam a função caráter ético e/ou político das relações locais – pelo desagradável inconve- estética e procuram novo estabelecidas entre quem filma e quem niente de existir, com o agravante de é filmado, ou mesmo a ética (sempre “a fazê-lo sobre terras que os fazendeiros sentido ético e político ética”, entendida como compromisso in- sulistas tinham comprado num negócio dividual entre “autor” e “documentado”) de lucros amazônicos promovido pelo por Leandro Saraiva da produção audiovisual com relação desenvolvimentismo patrimonialista –, aos abundantes desvalidos retratados o cineasta acumulou farto material ao – todas essas questões debatidas nos longo de duas décadas. Vestígios de últimos anos, de especial crescimento do ocupação violentamente desfeita, oculta documentário no País, amargam na nossa de modo primário, ameaças de jagunços, boca, tomando um gosto meio pueril depoimentos de trabalhadores que tes- defrontadas com a clareza e firmeza temunharam o ataque, entrevistas com desassombrada dos posicionamentos especialistas indigenistas, localização de que movem o filme de Vincent Carelli. índios que fugiram e sobreviveram e até Tamanha contundência tem seu nervo mesmo a confirmação do massacre por no inconformismo frente à violência alguns desses sobreviventes. bárbara que rege as relações sociais nas Carelli não tinha a intenção de “fazer frentes de expansão agrária do País. um documentário”. Desde o início, o 27 retratodoBRASIL | 41
  • 5. objetivo era fazer imagens que pudessem Carelli e Santos retornam anos da manipulação. De início, pela própria TV: servir à causa indígena, comprovando os depois, quando o indigenista obtém as imagens de Carelli são apresentadas no ataques sofridos, flagrando os respon- legitimidade na Funai para retomar as Fantástico sob uma aura sensacionalista, que sáveis, provando a existência de índios buscas. A câmera, agora, está ao lado da retira de contexto e exotiza os índios com remanescentes nas terras da região, para lei: ajuda a forçar a entrada dos oficiais de os quais ele fez contato. Mas, de qualquer garantir a eles seu uso. O autor de Corum- Justiça nas fazendas da área, cujo acesso, forma, essa espetacularização por si só biara trabalha nas antípodas da autonomia antes, era negado, em nome do direito não chega a atrapalhar a ação na Justiça e a das imagens: ele busca fazer imagens que de propriedade. E – surpresa! – eles investigação, junto aos índios, do massacre. provem, acusem, testemunhem. encontram um pequeno grupo de índios O jogo se torna mais pesado quando os O filme abre com uma declaração remanescentes, isolados, que há anos fazendeiros montam uma contraversão das intenções do realizador. Na tela, se esforçam para escapar do contato para os jornais, que parte do imaginário as imagens fortes (pouco importa uma “civilizatório” com os benfeitores para exotizante, vestindo os índios contatados certa precariedade técnica) de um ritual os quais Dr. Flausino trabalha. com roupas brancas e afirmando que, se nambiquara, a “festa da moça”, que As imagens do contato adquirem um havia uma “montagem”, esta havia sido ocorre pela primeira vez em 20 anos, duplo uso. Legalmente, servem como feita por Carelli e Santos. explica o realizador, em consequência base para a interdição de uma área que Enquanto essa batalha segue em direta do processo de gravação e exibi- permita aos índios manterem seu saudável curso, Carelli e Santos se esforçam para ção que o vídeo permitia experimentar isolamento. E são exibidas no Fantástico, provar o massacre original. Estabelecem na aldeia. É uma espécie de ritual de o que reforça o primeiro uso, ao mesmo um convívio cotidiano com os índios. iniciação do próprio Carelli, até então tempo em que, esperam os realizadores, Junto com a antropóloga Virgínia Va- um indigenista, que se reinventava, em ajudam a apoiar os direitos indígenas. ladão, mulher de Carelli (que faleceu 1986, como documentarista. A difusão televisiva, entretanto, revela durante a longa investigação), descobrem O cineasta que daí surge, no entanto outra dimensão política da imagem: o jogo se tratar, na verdade, de dois grupos, um – e esse é o ponto crucial –, usa a câmera akunsu e outro canoê (no total, chegam como instrumento da causa indígena. Divulgação a dez pessoas). As relações entre eles são Esse sempre foi o norte da organização complexas, tensas. que criou, Vídeo nas Aldeias. Hoje, mais A investigação avança com dificul- de 60 filmes depois, tendo atuado junto dade. São colhidos depoimentos de tra- a dezenas de povos, formando realiza- balhadores da fazenda suspeita, mas há dores indígenas de alto gabarito, com muito temor. Os indícios e informações obras lançadas em festivais e no mercado se acumulam. Nesse meio tempo, outro de locação e venda de vídeos, é uma índio isolado, sobrevivente do que parece incontornável referência internacional ser outro massacre, mais recente, é en- (ver “Muito além do vídeo”, Retrato do contrado, mas recusa o contato, gerando Brasil nº 21, abril de 2009). Foi nesse contexto que Marcelo Carelli (à esq.) e Santos (com os omerê): Santos, indigenista da Fundação Nacio- trabalho que se confunde com a vida nal do Índio (Funai), convidou-o para registrar os vestígios de um massacre de Divulgação índios isolados em Corumbiara, o que, conta-nos Carelli, era a chance de dar um sentido claramente militante ao vídeo, exatamente como ele buscava. O sentido político das imagens da violência econômica explícita da região é didaticamente exposto. No “diálogo” com um trabalhador fiel aos patrões, a fala do rapaz enuncia com objetividade o lugar do Estado de Direito na fronteira agrícola: “Enfia essa câmera no rabo”. A câmera incomoda. Carelli grava os vestígios materiais do massacre, faz en- trevistas, mas é logo interrompido por um jagunço sofisticado, Dr. Flausino, advogado dos fazendeiros, refinado ideólogo do desenvolvimento a qualquer custo, que nega qualquer violência por parte desses civilizadores a quem serve, benfeitores, segundo ele, que arriscam seu capital naqueles grotões. 42 | retratodoBRASIL 27
  • 6. uma situação quase que paradoxal. O sim, atuando à margem da especialização de força e imagem, aparecendo justamente índio foge e resiste, sentindo-se acuado estética, no registro da militância, Carelli em função dessas tensões políticas, surgem pela câmera, mas só a obtenção de sua extrai daí uma outra estética. momentos fortes, de uma qualidade estética imagem pode garantir na Justiça a sua No campo documental, nos últimos para além do subjetivo. A voz over de Carelli, permanência na terra onde vive. anos, muito se falou de uma “ética do sóbria, narrando um rosário de horrores Durante a investigação, Carelli encontro”, que seria também uma estética, sem empostar quaisquer dramatizações percebe que as imagens que fez para o para caracterizar o cinema documental de (como quem diz “assim são as coisas”), Fantástico precipitaram a reedição da tra- Eduardo Coutinho (veja-se, por exemplo, costurando a passagem de décadas de sua gédia anterior, sendo a causa do massacre O cinema de Eduardo Coutinho, de Consuelo vida, emociona não pelo lirismo, ou pela do grupo ao qual pertencia o índio que Lins. Jorge Zahar, 2004). Em seus docu- nostalgia do tempo que se perde, da esposa, tenta filmar: assustados pela divulgação mentários, Coutinho faz da entrevista um que se vai, mas pela firmeza persistente, da presença indígena e com a potencial palco de improvisos, de retórica, encena- realista e desassombrada, de quem mantém interdição de áreas, os fazendeiros resol- ção e desnudamento, onde vale a ética do a militância. Na mesma chave, a amizade veram agir preventivamente. No fundo, o encontro, ou da busca do encontro – de com Marcelo, o reencontro que revela nos temor do índio que se esconde tem um lampejos de beleza, como costuma dizer, rostos e nos corpos a passagem do tempo, triste fundamento. O moinho da frente em que o que vale é o encontro entre duas aparece calcada nesse trabalho político que de expansão continua dando voltas. subjetividades singulares, mediadas pela se confunde com a vida. Eventualmente, Carelli obteve um câmera. Tudo isso é verdade e tem resul- O contraste entre a espetacularização testemunho gravado do chefe akunsu, tado estético, numa versão contemporânea do Fantástico e a delicadeza intensamente confirmando o massacre original. Mas, no e antiespetacular do cinema moderno, em emocionante dos planos silenciosos e lugar da condenação dos culpados, o que sua atenção aos instantes de invenção, de distendidos do primeiro contato com os conseguiu foi realizar Corumbiara. Um filme fuga do convencionado. canoês está emoldurado nesse quadro po- que resultou de um processo de investiga- Pode-se dizer que também em Corum- litizado. Cada gesto, hesitante e inaugural, ção e militância, lidando, portanto, com biara uma ética se desdobra em estética. entre brancos e canoês, nesse momento outras funções sociais da imagem, que não Mas aqui a ética é outra. Não a do encontro raríssimo, de encontro entre mundos, vibra a estética: investigativa, jurídica, jornalística, intersubjetivo, mas a da ação política, que com uma particular intensidade, dada pela política. Realizado retrospectivamente com leva, por um lado, a relações de aliança sombra trágica que paira sobre aquela outra montagem desses materiais, Corumbiara mediadas por objetivos políticos (e não pela humanidade que se revela à câmera. é uma narração desses casos de violência subjetividade pura) e, por outro, a relações Mesmo a fisionomia, o que de mais social e, ao mesmo tempo, uma meditação de confronto (“Enfia essa câmera no rabo”). imediato há nas imagens, o que apreende- sobre o lugar da imagem nesse circuito. As- Entretecidas com as investigações e jogos mos de chofre quando vemos um rosto, ou mesmo uma paisagem, adquire tons espe- Mulher akunsu: ela fazia parte de um grupo de dez índios remanescentes cíficos conforme a moldura, a atitude geral que move o filme. Sob a luz política de Divulgação Corumbiara, a desfaçatez dos fazendeiros, a arrogância do Dr. Flausino e, sobretudo, as expressões dos índios – a circunspecção defensiva dos canoês; a incrível força da performance de conotações xamânicas de Tiramantu, a jovem mulher canoê; a digni- dade de Konibi, chefe akunsu, tocando sua flauta; o acuamento do “índio do buraco” – tudo surge carregado de história. Corumbiara se encerra com um close de Tiramantu, completamente absorta na relação com seu filho pequeno. A voz de Carelli, ao longo de toda a sequência que ali se encerra, pontua a conclusão com um duro balanço das grandes dificuldades enfrentadas pelos índios com os quais ele fez contato. Lembramo-nos das imagens do primeiro contato e Tiramantu parece outra pessoa. A estranheza áspera de sua expressão de então se foi. Em seu lugar, há um doce olhar maternal. Aquele momento de ternura vale como esperança, apesar de tudo, ou como rendição? A história, impregnada em cada fotograma de Co- rumbiara, emoldura até o fim até mesmo a delicada intimidade de Tiramantu. 27 retratodoBRASIL | 43