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JOSUÉ DE CASTRO
SETE PALMOS DE TERRA E
UM CAIXÃO
ENSAIO SOBRE O NORDESTE, ÁREA EXPLOSIVA
2.ª EDIÇÃO
EDITORA BRASILIENSE
SÃO PAULO
1 9 6 7
Das abas do livro:
JOSUÉ DE CASTRO era o representante do Brasil na Conferência
do Desarmamento de Genebra quando foi surpreendido com o decreto
da cassação de seus direitos políticos. Não sendo um político de
grande projeção no Governo passado ou que nele tivesse exercido
Uma influência muito marcada, a sua cassação pareceu a muitos
incompreensível. Na realidade, era a sua obra que atraía sobre ele a ira
das forças que subiram ao poder com o movimento de Abril de 1964
— esta mesma obra que, traduzida em 19 idiomas e divulgada no
mundo inteiro numa tiragem que hoje alcança mais de um milhão de
exemplares, fez de Josué de Castro um vulto de imensa projeção
internacional. Os seus trabalhos foram considerados, no campo da
alimentação, tão revolucionários quanto os de Copérnico no domínio
da astronomia. Ele denunciou a fome universal como uma praga
fabricada pelo homem e não como um fenômeno natural, mostrando a
inconsistência e o falso das teorias neomalthusianas, que visam apenas
a defesa das minorias privilegiadas contra os interesses autênticos das
maiorias espoliadas, as grandes massas deserdadas do mundo
subdesenvolvido.
Escritor, cientista e professor universitário foi ele o pioneiro no
Brasil dos estudos científicos sobre alimentação, tendo realizado em
1933 o primeiro inquérito levado a efeito para apurar as condições de
vida de nosso povo. Natural de Recife, impressionou-se com a miséria
em que vivia a maioria de sua população, atormentada pela fome. A
princípio deu expansão à sua sensibilidade em obras de ficção, contos
hoje reunidos em seu livro "Documentários do Nordeste" nos quais
retratou com impressionante vigor literário a tragédia daquele povo.
A fome passou a ser o objetivo de seus estudos. Passou a estudá-la
cientificamente, tal como ela se manifesta em nosso país, publicando
sua conhecida obra "Geografia da Fome"; para, em seguida aplicando
o seu novo método de trabalho sociológico em escala universal,
apresentar o seu livro "Geopolítica da Fome", que teria imensa
repercussão internacional. Seu livro foi laureado pela Academia
Americana de Ciências Políticas com o prêmio Franklin D. Roosevelt
e ao mesmo tempo pelo Conselho Mundial da Paz com o prêmio
Internacional da Paz, evidenciando assim tratar-se de uma obra
profundamente humana elaborada acima das posições partidárias e das
intolerâncias políticas. A Associação Brasileira de Escritores e a
Academia Brasileira de Letras também laurearam a obra de Josué de
Castro com os prêmios Pandiá Calogeras e José Veríssimo.
Mas Josué de Castro não se limitou a publicar o seu grande livro
"Geopolítica da Fome". Dedicou toda sua vida ao estudo deste flagelo,
publicando os trabalhos nos seus outros volumes de ensaios — o de
Biologia Social e o de Geografia Humana, trabalhos que lhe valeram
ser eleito em 1951 para o alto cargo de Presidente da Organização de
Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (F.A.O.), e acaba de
publicar seu último ensaio sobre o Nordeste, "Sete Palmos de Terra e
um Caixão". É a lista de seus livros que vêm chamando a atenção de
nosso povo sobre um grave problema do nosso país que parece não
merecer a devida atenção dos nossos governantes, o da situação de
miséria e atraso em que vivem milhões de brasileiros, principalmente
no Nordeste do nosso país.
Os seres humanos são muito propensos a querer ignorar ou
considerar do domínio da utopia os problemas que não podem resolver
ou que lhes parecem de difícil solução. Afora o seu valor científico e
literário, aí reside o sentido prático da obra de Josué de Castro; o de
chamar a atenção de nosso povo para um problema cuja solução não
comporta mais delongas.
OBRAS COMPLETAS DE
Josué de Castro
A OBRA CULTURAL BRASILEIRA MAIS DIFUNDIDA E COMENTADA
NO MUNDO INTEIRO
Publicada no mundo num total de mais de 400.000 exemplares.
Premiada nos E.U.A. com o Prêmio Franklin Delano Roosevelt — 1952.
Traduzida em 19 idiomas.
Consagrada com o Prêmio Internacional da Paz — 1954.
Selecionada nos E.U.A. pela organização do livro do mês, do Book Find Club.
Distinguido um dos seus livros — a Geopolítica da Fome — pela Associação
Americana de Bibliotecas, como um dos "livros notáveis" de 1952, Condensada a
obra pelas publicações "Colliers" e "Reader's Digest Catholic", nos E.U.A. e por
"Constellation", na França.
Prefaciada em suas edições estrangeiras por personalidades invulgares, tais como
Lorde Boyd Orr, Pearl Buck, de André Mayer, Max Sorre, Cario Levi e Pedro
Escudero.
Obra distinguida pela Associação Brasileira de Escritores com o Prêmio Pandiá
Calogeras.
Obra consagrada pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio José Veríssimo.
Constituem as suas Obras Completas os seguintes volumes:
I VOL. — Geografia da Fome
II VOL. — Geopolítica da Fome (I parte)
III VOL. — Geopolítica da Fome (II parte)
IV VOL. — Documentário do Nordeste
V VOL. — Ensaios de Geografia Humana
VI VOL. — Ensaios de Biologia Social
VII VOL. — O Livro Negro da Fome
VIII VOL. — Sete Palmos de Terra e um Caixão
Um aspecto da realidade brasileira e o grande drama do Mundo — a Fome —
estudados por um cientista e divulgados por um escritor de invulgar mérito literário.
A coleção que todo brasileiro deve possuir em sua estante.
EDITORA BRASILIENSE
EM TODAS AS LIVRARIAS OU PELO REEMBOLSO POSTAL
Rua Barão de Itapetininga, 93 - 12º andar . Caixa Postal 30.644 - São Paulo
Convém notar, de logo, que a ciência tem um ponto de partida e que
este ponto de partida é o senso comum.
JEAN WAHL
Pensamos que a obra do sociólogo será sempre uma intervenção e que
será enganar aos outros e iludir a si mesmo, se não tomamos em
consideração esta verdade e a responsabilidade que ela comporta.
CAMILLO PELLIZI
DON FERNANDO DE OLIVEIRA:
Vous ovibliez que des milliers, des millions, d'Indiens brûleraient pour
l'éternité en enfer, si les Espagnols ne leur apportaient pas la foi.
DON ÁLVARO DABO:
Mais des milliers d'Espagnols brûleront pour 1'éternité en enfer, parce
qu'ils seront allés au Nouveau Monde.
DON BERNAL DE LA ENCINA:
Comme si, bien avant Grenade, on n’aimait pas 1'or!
DON ÁLVARO DABO:
On aimait For parece qu'il donnait le pouvoir et qu'avec 1e pouvoir on
faisait de grandes choses. Maintenant on aime le pouvoir parce qu'il
donne l'or et qu'avec cet or on en fait de petites.
Henry de Montherlant
dans la pièce "Le Maître de Santiago"
ÍNDICE
EXPLICAÇÕES .................................................................................. 11
INTRODUÇÃO ................................................................................... 13
CAPÍTULO I
A Reivindicação dos Mortos ........................................................... 23
CAPÍTULO II
Seiscentas Mil Milhas Quadradas de Sofrimento ........................... 37
CAPÍTULO III
A Primeira Descoberta:
O Feudalismo Português do Século XVI ........................................ 95
CAPÍTULO IV
O Brasil Colonial:
A Ausência do Povo ou a Luta Contra o Progresso ...................... 115
CAPÍTULO V
A Segunda Descoberta ou a Conscientização do Povo Nordestino 142
CAPÍTULO VI
O Nordeste e a América Latina ...................................................... 165
CAPÍTULO VII
Anos Decisivos .............................................................................. 183
Biografia do autor ......................................................................... 216
EXPLICAÇÕES
Este livro foi escrito entre outubro de 1962 e fevereiro de 1964.
Quando a 1.° de abril deste ano um movimento militar depôs o
Presidente Goulart, estabelecendo um novo governo no Brasil, os
originais deste livro já se encontravam nas mãos do tradutor, que
terminava a sua versão inglesa. O primeiro impulso do autor foi o de
pedir a devolução destes originais para acrescentar ao livro um novo
capítulo, concernente a este recente episódio, tão ligado em suas
origens e em sua expressão política à luta que se vem travando com
intensidade crescente no Brasil, entre as forças de emancipação
nacional e as forças de contenção do desenvolvimento econômico-
social do país. Mas, melhor refletindo, resolveu o autor deixar que o
livro fosse publicado tal como fora concebido e redigido, antes do
golpe militar de 1.° de abril: Pesou sobremodo nesta sua decisão a
convicção de que nada poderia ele acrescentar ao livro que explicasse
melhor os fatos recentemente ocorridos, do que o conhecimento dos
antecedentes históricos desta região explosiva e da sua interpretação
sociológica, como tentara o autor apresentar neste livro, antes de saber
quando e como poderia ocorrer a explosão. Acrescentar qualquer coisa
depois que suas previsões já começam a se realizar seria tirar o
possível valor do livro como diagnóstico e como prognóstico de uma
situação histórico-cultural. Seria reduzi-lo a um simples inventário das
calamidades que o Brasil atravessa. Preferimos, pois, publicar o
diagnóstico, ou seja, uma interpretação e não um inventário.
Devemos também explicar, que na elaboração deste livro, contou o
autor com a colaboração do sociólogo brasileiro Alberto Passos
Guimarães, a quem se deve a fundamentação dos capítulos dedicados
ao estudo do feudalismo agrário brasileiro e da sua evolução
sociológica. Contou, também, com a cooperação de vários amigos e
colegas do Nordeste, que lhe enviaram informações e dados recentes
da situação econômico--social da região durante o período de
preparação deste ensaio, pensado e escrito na Europa. A todos que
prestaram generosamente sua contribuição à realização deste livro,
desejamos apresentar nossos sinceros agradecimentos.
Genebra, maio de 1964.
J. C.
INTRODUÇÃO
O Nordeste do Brasil foi descoberto pelos portugueses no ano de
1500 e pelos norte-americanos no de 1960. As duas descobertas
foram feitas por engano. Em 1500 graças a um erro de navegação;
em 1960 graças a um erro de interpretação. Os aportugueses erraram
na geografia; os norte-americanos na história. Mas, nos dois casos,
os desvios de rota — a distorção da rota oceânica ou da rota
sociológica — contam decisivamente na História. Sobre o primeiro
engano — a descoberta casual feita por Pedro Álvares Cabral há
quase cinco séculos — existe hoje uma literatura abundante. Sobre a
segunda descoberta, ainda tão recente, a literatura é pobre.
Este livro pretende representar um documento desta segunda
descoberta: uma modesta contribuição à história da redescoberta do
Nordeste brasileiro. Uma espécie, mal comparando, de carta de Fero
Vaz Caminha (1) dos nossos dias, na qual as coisas sejam mostradas
como as coisas são, em sua dura e crua realidade. Mostrando-se
sempre as duas faces da medalha: a face boa e a face má. A que nos
enche de orgulho e a que nos mata de vergonha, Evitaremos desta
forma que aconteça com o Nordeste o que costuma acontecer em
seguida às grandes descobertas: a tendência à disseminação pelos
quatro cantos da Terra de um mundo de lendas, em lugar de fatos,
servindo à formação de uma falsa imagem da terra e do povo
descobertos. Isto é hoje tanto mais perigoso quando vivemos numa
era de slogans. Dos slogans jornalísticos, que tentam reduzir toda a
terra esquematicamente a um tabuleiro de xadrez, com os seus
quadrados exatos e com os exatos limites das suas diferentes
colorações.
Como todo livro significa, em última análise, uma explicação,
pretende começar por explicar este livro, por explicar o seu como e o
seu porquê. Como o autor o concebeu e porque assim o concebeu.
Talvez esta explicação preliminar, na qual o autor procura se
explicar como autor, facilite ao leitor a tarefa de aceitar as
explicações do livro. Isto seria uma grande coisa. Seria alcançar
praticamente todos os nossos objetivos que não são outros senão o de
obter aliados conscientes para defender certas idéias que, a nosso
ver, merecem ser ardorosamente defendidas. Uma das primeiras
coisas que me parece necessário explicar é que este livro foi
especialmente escrito a pedido de uma editora dos Estados Unidos da
América para o público norte-americano. E que desta forma não se
deve admirar o leitor brasileiro de nele encontrar muitas coisas que
lhe parecerão por demais sabidas, desde que ele as conhece como se
fossem traços da palma de sua mão, mas que, no entanto, são coisas
totalmente ignoradas pelo leitor médio dos Estados Unidos, como se
fossem traços da outra face da Lua. Escrevendo para um mundo tão
diferente do nosso, tão distante de nossa realidade social, era preciso
dar uma idéia precisa da região estudada, caracterizando-a com o
que ela tem de mais típico, e, portanto, de mais conhecido no seu
contexto social. Não podia, pois, fugir o autor a esta enumeração de
muita coisa que pode parecer demasiado terra a terra aos olhos dos
habitantes da Terra ou dos estudiosos e dos eruditos, dos seus hábitos
e costumes tradicionais.
Mas, desta tela de fundo bem conhecida em seu conjunto, o autor
procura destacar numa perspectiva, que ele julga até certo ponto
diferente, alguns traços fundamentais já conhecidos e outros, que até
hoje tinham passado desapercebidos da maioria, e desta forma, o
retrato que ele pretende traçar do Nordeste talvez apresente alguma
coisa do novo. Pelo menos naquilo que no próprio Nordeste também é
novo, como é o caso da revolução social que aí se processa em nossos
dias.
Arrisca-se deste modo o autor a ser julgado por uns como um
repetidor maçante de coisas já ditas e por outros como um grande
fantasista, que pinta uma realidade da qual os outros autores nunca
se tinham dado conta. Tínhamos consciência destes riscos, quando
empreendemos nosso projeto, e estamos preparados para correr estes
riscos. Eles constituem mesmo, a nosso ver, parte integrante da nossa
tarefa. É que não tencionamos escrever um livro neutro. Um livro
com pretensões a ser uma fria e rigorosa análise científica da
realidade social do Nordeste. Não. Não é este um ensaio de
sociologia clássica. De uma sociologia acadêmica, espartilhada na
camisa de força de uma metodologia que sempre tentou separar, no
sociólogo, o investigador do homem, c limitando sempre a função do
sociólogo, a de um simples inventariante de tudo aquilo que se
apresenta aos seus olhos, teleguiados por métodos de trabalho
consagrados. O nosso estudo sociológico é o oposto deste gênero de
ensaio. É um estudo de sociologia participante ou comprometida(2).
De uma sociologia que não teme interferir no processo da mudança
social com os seus achados e, por isto mesmo, não tem o menor
interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja
revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes
dominantes. De uma sociologia que estudando cientificamente a
formação, a organização e a transformação de uma sociedade em
vias de desenvolvimento, compreende e admite que os valores mais
desejáveis por esta sociedade são os ligados à mudança e não à
estabilidade, e, por isto mesmo, se aplica em aprofundar ao máximo o
seu conhecimento científico do mecanismo destas mudanças. Digo o
conhecimento científico, porque, a meu ver, a sociologia
comprometida com o processo social não deixa de ser científica, por
este seu engajamento. Ao contrário, ela é bem mais cientifica do que a
antiga sociologia, que se presumia científica, mas não passava em seu
falso cientificismo de um instrumento de inconsciente mistificação da
realidade social, cujo contado direto ela sempre evitava, preocupada
pela fragilidade dos sistemas em vigor e pelo receio de que ao menor
contado tudo pudesse vir abaixo. No fundo, a antiga sociologia era
mais utópica do que científica, e a sua utopia consistia exatamente no
seu inconsciente desejo de que o processo social se imobilizasse, para
ser melhor fotografado. Desta forma, a antiga sociologia era bem
mais comprometida do que a sociologia nova, cuja validade científica
defendemos. Mas era comprometida com uma ideologia do
imobilismo, de uma imagem, estática da sociedade, considerada como
uma coisa já feita, definitiva e perfeita, enquanto a nova sociologia
considera a estrutura social como um processo em constante e rápida
transformação. Ademais, a verdadeira sociologia científica, como
qualquer outro ramo da ciência contemporânea, é bem menos
arrogante acerca de suas verdades do que a sociologia clássica,
desde que hoje se sabe muito bem como todas as verdades são
relativas. E que o que chamamos de realidades científicas, não só no
mundo da sociologia, mas mesmo no terreno mais sólido da natureza
física, são sempre produtos da interação entre os próprios fatos e o
ato de observar do pesquisador, e que na verdade não existem
realidades fora do campo de nossa observação. Há apenas
possibilidades. A transição do possível ao real tem lugar sempre
durante o ato de observar, como afirmou Heisenberg, pondo uma nota
de prudência na atitude um tanto imprudente de certos tipos de
cientistas intolerantes(3). As verdades científicas são, pois, sempre
relativas, desde que estão sempre na estrita dependência do momento
da observação e da perspectiva em que se coloca o observador. Não é
outro o sentido mais geral da teoria da relatividade de Einstein,
através da qual se chega à conclusão inapelável de que o que nós
descrevemos, em verdade, não é a Natureza tal qual ela é, mas tal
qual ela se mostra na perspectiva dos nossos métodos de observação.
É esta inserção inevitável do observador sociológico dentro do
processo social que, a nosso ver, torna impossível a sua não
participação nos fenômenos que ele observa, invalidando a sua
pretensão de obter uma imagem do real que não seja deformada, já
não digo por sua ideologia, mas por sua idealização, isto é, pelas
imagens preconcebidas do seu conhecimento existencial(4). Se a
reprodução das imagens do mundo natural é sempre eivada de certas
deformações, imagine-se como não crescem estas deformações,
quando se observa o mundo dos fenômenos sociais: da vida humana
associativa, à qual o observador está ligado por laços de
solidariedade ou de antagonismo, dos quais a própria estrutura do
seu pensamento lógico não poderá jamais se libertar inteiramente(5).
Aí estão as razões porque não acreditamos no que se chama de
sociologia independente, de sociologia neutra sem outras ligações
com os aspectos sociais que os de sua fria e distante observação. É
este o nosso conceito de sociologia, e é esta a perspectiva sociológica
em que levaremos a efeito este ensaio. Os fatos nele expostos deverão
ser tomados sempre como a cristalização do que se está passando no
Nordeste do Brasil, na perspectiva de um estudioso destes problemas,
mas que é ao mesmo tempo um habitante desta região, impregnado de
corpo e alma da vida desta terra e do sentimento de sua gente. Que
embora este estudioso tenha vivido em vários países do mundo, nunca
se libertou inteiramente da crosta telúrica que recobre até hoje a sua
pele e a sua alma, e que dele faz, um eterno regionalista, embora com
pretensões de ser um espírito universal, mas que põe sempre como
termo de comparação ao seu universalismo os valores regionais da
terra onde nasceu e onde formou a sua mentalidade. Na verdade o
que queremos impor ao mundo, com este livro, é um retrato do
Nordeste como o vê um homem desta região, embora extremamente
interessado pelo espetáculo do mundo. Retrato que, a nosso ver,
representa a realidade com menores deformações do que os retratos
do Nordeste, traçados com o maior rigor e probidade cientifica pela
maioria dos estudiosos dos problemas sociais, habitantes de outras
terras ou continentes. E isto porque as perspectivas desses estudiosos,
longe de ajudá-los, os conduzem Irremediavelmente às grandes
deformações. Deformações tanto maiores quanto mais eles tentam
penetrar nossa realidade, para superpô-la, através do método
comparativo, às realidades sociais com que estão familiarizados em
seus países, transformando-se perigosamente naquilo que um
sociólogo brasileiro chamou com muita propriedade de
"transferidores de cultura".
Na verdade, foi nesta direção que partimos. Na busca de um
retrato sociológico do Nordeste. Mas no caminho verificamos que o
retrato assim pintado arriscava a apresentar-se um tanto incompleto:
ser muito estilizado ou muito fotográfico. Duas deformações que
desejávamos evitar. Já demos a entender que o nosso objetivo
fundamental é o de mostrar o processo de transformação social
acelerado que o Nordeste está vivendo. E mostrá-lo, no contexto
integral de suas trágicas contradições e dos dilacerantes
antagonismos de suas forças sociais. São as mudanças, os traços
cambiantes de sua paisagem humana, que desejamos apreender e
retratar: o complexo problema do seu desenvolvimento econômico e
social. Processo de uma tal complexidade, pelo jogo dos múltiplos
fatores que deles participam, que torna difícil o seu approach através
de um ataque unilateral por meio das indagações válidas que lhe
possa fazer qualquer disciplina científica isolada, mesmo quando esta
disciplina é a sociologia habituada a lidar com sistemas complexos. A
verdade é que os especialistas, se sentem submersos diante do mundo
de variáveis que encobrem todo o seu horizonte de observação,
quando procuram analisar o processo de desenvolvimento. Como a
característica essencial da ciência sempre foi a da simplificação e da
eliminação das variáveis em busca de leis gerais, esta tentativa no
campo do desenvolvimento social jamais poderá ser levada a efeito
por um só setor de especialistas: sejam eles geógrafos ou
antropólogos, sociólogos ou economistas.
"Na prática, a complexidade do processo do desenvolvimento,
torna os especialistas ou o técnico auto-suficiente extremamente
perigosos, e isto porque nenhuma mentalidade isolada é capaz de
compreender, em sua totalidade, todas as nuances de uma sociedade
em transição", afirmou um editoria-lista do New Scientist(6). O
assunto realmente extrapola os limites de qualquer disciplina e este
tem sido um dos principais motivos dos seguidos fracassos dos planos
de desenvolvimento elaborados no papel, por economistas
renomados, que dispunham, entretanto, apenas de uma visão
puramente econômica do problema. Para evitar o fracasso
irremediável do retrato que tínhamos em. mente traçar do Nordeste,
fomos conduzidos à necessidade de não limitarmos o nosso ensaio às
fronteiras convencionais da sociologia, mesmo de uma sociologia
libertada das peias do convencionalismo clássico(7). Adiamos que,
para dar ao retrato um colorido que não se distancie muito das
nuances vivas de sua realidade, tínhamos que usar tintas de várias
origens, molhando aqui e acolá o nosso pincel no campo da
geografia, da economia, da antropologia, da etnografia e de várias
outras disciplinas, que tentam surpreender aspectos parciais da vida
coletiva. Foi desta forma que chegamos à conclusão que o nosso
ensaio não podia rigorosamente ser considerado como um ensaio
sociológico. É apenas um ensaio, tomando-se a palavra na acepção
de tentativa: tentativa de penetrar o por-dentro das coisas. É esta uma
tentativa de interpretação desta região, considerada uma das áreas
explosivas do mundo de nossos dias. Isto é, como uma área onde as
tensões sociais, estão alcançando os limites do tolerável — limite em
que os conflitos latentes entram em combustão violenta, provocando a
explosão social. É esta uma das poucas observações válidas no
contexto das lendas que hoje circulam no mundo sobre o Nordeste
brasileiro. O Nordeste é realmente uma área explosiva, como
procuraremos mostrar neste ensaio, com uma carga explosiva bem
maior do que as cargas existentes na maioria das supostas áreas
explosivas da África e do Oriente: no Congo, na África do Sul, na
Índia, no Vietnam. E se nessas zonas da África e da Ásia os sintomas
de explosão se tem manifestado com maior insistência, é que os
fatores capazes de detonar o processo têm sido aí bem mais ativo, e
continuamente postas em ação a propaganda ideológica e a liderança
revolucionária. Bem mais ativos do que no Nordeste do Brasil, onde a
tensão social explosiva nunca foi habilmente canalizada para o
caminho da revolução. Foi, quando muito, estimulada como
instrumento de demagogia política ou como arma de luta de um grupo
contra outro grupo de poderosos, nunca como autêntica força de
libertação através da explosão popular. Mas força explosiva não
falta. O que tem faltado é o estopim, ou quem acenda o estopim. A
análise elucidativa desta situação de suspense social, na qual poderá
de repente se cristalizar uma nova força detonante, capaz de se
propagar rapidamente por toda a. massa explosiva mantida até hoje
sob pressão, constitui um objetivo da mais alta importância para o
Nordeste e para o mundo. Para o Nordeste, porque o conhecimento
exato da situação poderá permitir que sejam essas forças ou tensões
sociais convenientemente dirigidas num sentido construtivo e criador.
E para o mundo, porque o problema das tensões sociais do Nordeste
é, com algumas nuances que o singulariza, o mesmo problema das
tensões sociais reinantes em todo o mundo subdesenvolvido, que
representa em seu conjunto um dos pólos explosivos do mundo atual.
É claro que no esquema geral de nossos objetivos, no que diz respeito
ao próprio Nordeste, não acreditamos que qualquer interpretação de
sua realidade, por mais lúcida que ela seja, possa ter a virtude
mágica de mudar a direção da História e de resolver da noite para o
dia os angustiantes problemas da região. Mas estamos certos de que a
análise acurada dos fatores subterrâneos desse drama sociológico e a
sua revelação à consciência coletiva ajudarão o processo de
conscientização(8) das massas nordestinas, que é o fenômeno mais
característico da dinâmica social desta área nos nossos dias, e
através da qual essas massas tomam hoje consciência de seus
angustiantes problemas e procuram acelerar por todos os meios as
reações sociais, necessárias à sua libertação do círculo angustiante
das privações que criaram a sua angústia ou neurose coletiva. A
psicanálise desta neurose, causada por inúmeros complexos de
frustração de um povo espoliado e oprimido há vários séculos, deve
ser levada a afeito com acuidade e com probidade. Não apenas para
resolver os conflitos psicológicos que geram a própria neurose e que,
desmontados, poderão curá-la, provocando no entanto com a cura o
esvaziamento de toda a energia criadora, indispensável à vida, tanto
dos indivíduos como da coletividade. Não apenas para realizar esta
espécie de castração, que c em certos casos o processo analítico
redutivo, quando em sua cura aparente extermina também a
vitalidade que dá sentido à própria vida, mas sim para revelar tanto a
natureza exata dos problemas, como os caminhos possíveis que
poderão ser encontrados, para se transpor os obstáculos
aparentemente intransponíveis. É dentro destes princípios da técnica
construtiva prescrita por Jung(9), que julgo útil levar a efeito uma
análise da alma coletiva do Nordeste, para que possa o seu povo
consumar o processo de sua revolução social, com o mínimo de
sofrimento e com o mínimo de violência. E para levá-la a efeito com a
necessária convicção que é este o único remédio para os seus males e
que este remédio está ao seu alcance. E, quanto ao mundo, qual a sua
atitude diante deste drama regional? Que interesse poderá ter para o
mundo a sorte destes nordestinos, devorados por seu complexo de
frustração e colocados à margem da História, da qual praticamente
nunca participaram? A nosso ver, o interesse do mundo por esta área
já hoje é bem grande c tende a crescer cada vez mais. E isto por
várias razões. As elites dirigentes dos países líderes começam hoje a
se aperceber que um grande número de seus erros de julgamento, de
desastrosas conseqüências para os seus interesses, foram produtos de
sua quase que total ignorância da carta do mundo (10). Da carta do
grande mundo e não do pequeno mundo das suas preocupações mais
imediatas, no qual se concentrara até a primeira guerra mundial todo
o interesse dos povos bem desenvolvidos: o chamado Mundo
Ocidental. Até então era como se só o Ocidente existisse (e o Ocidente
era apenas o conjunto dos países colocados dos dois lados do
Atlântico Norte), e como se o resto do mundo fosse apenas uma vaga
massa de terra sem maior interesse nem significação. Esta a imagem
que nos evoca Toynbee(11) quando nos fala do Mundo e do Ocidente:
o Ocidente sujeito fabricante da História, e o mundo, isto é, o resto,
apenas como objeto desta História. Esta é a história das agressões do
Ocidente contra o mundo, que Toynbee descreve com tanta lucidez.
Mas, do próprio encontro do Ocidente com o mundo, que o mesmo
Toynbee considera como o mais significativo acontecimento da
história moderna, nasceu uma nova consciência política mundial — a
consciência de que o mundo já não é apenas o Ocidente. Que não há
apenas um centro de gravitação no mundo, que, de acordo com os
historiadores do começo do nosso século, estava colocado no centro
da Europa, considerado como o coração da terra — the heartland —
sendo o resto uma espécie de ilha. A ilha do mundo, de que nos deixou
um mapa expressivo o criador desta teoria do heartland, Halford
Mackinder(12). Hoje, o centro do mundo está por toda parte e a ilha
do mundo passou a fazer parte do continente da História, porque por
toda parte hoje se faz história, e essa história repercute em toda parte
do mundo. Daí a preocupação mundial em nossos dias de conhecer
melhor terras como estas do Nordeste, que até ontem pareciam sem
qualquer significação para o mundo, mas que hoje se apresentam
como um foco de grande interesse internacional, pela carga de
explosão social que encerram, podendo se converter, de repente, no
cenário de profundas transformações históricas.
É constatando hoje a profunda verdade contida na frase de um
estadista do império britânico, quando diz que "o custo da ignorância
geográfica tem sido incomensurável", e não querendo ser tomado de
surpresa pelos fatos históricos em seu acelerado suceder que os
dirigentes do mundo de hoje estão tão interessados em atualizar a sua
carta do inundo e em precisar nela os traços mais significativos
destas áreas de maior tensão social onde as forças de transformação
ameaçam romper os diques das forças de contenção, alterando os
desenhos da carta atual. O Nordeste brasileiro, é sem nenhuma
dúvida, uma destas áreas. Daí o interesse do mundo em obter uma
imagem mais exata de sua realidade social, uma imagem isenta de
preconceitos e de falsas noções. Em obter, numa palavra, uma carta
atualizada da região.
Um dos objetivos deste livro ó o de fornecer elementos
informativos seguros para o levantamento desta carta. E de fornecê-
los principalmente aos Estados Unidos e a certos países da Europa
onde hoje tanto se fala do Nordeste, sem se dizer quase nada do
verdadeiro Nordeste e dos seus autênticos problemas humanos. Foi
esta a razão principal que nos levou a aceitar a proposta de uma
editora norte-americana para escrever este pequeno livro. Livro no
qual tentaremos dar uma imagem mais nítida da realidade social
dessa região onde vinte e três milhões de seres vivos lutam para abrir
o caminho de sua emancipação, através do denso cipoal trançado
pelas circunstâncias históricas adversas, produtos de erros e
omissões, tanto da política nacional como da política internacional. É
este o nosso principal objetivo, ao escrevermos este livro; o de fazer
penetrar um pouco de luz neste cipoal escuro, embora esteja o autor,
certo de que esta luz só chegará aos olhos daqueles que realmente
querem enxergá-la, porque os outros, aqueles que se negam a ver a
evidência, diante de livros como este, ficarão ainda mais cegos —
cegos de raiva ou cegos de medo.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
Introdução
1 - VAZ DE CAMINHA, PERO, Carta a El-Rei D. Manuel, 1500.
2 - FERRAROTE, FRANCO, La Sociologia come Partecipazione, Turim, 1961.
3 - HEISENBERG, W., Physique et Philosophie, Paris, 1951.
4 - WAHL, JEAN, Science et Philosophie, in "Civiltà delle Macchine", Roma, n.° 2, 1963.
5 - MERTON, ROBERT K., Social Theory and Social Structure, Glencol, 1957.
6 — Editorial World of Opportunity, in "New Scientist", n.° 326, 14 de fevereiro de 1953.
7 — MACCLUNG LEE, A., Partecipazione ed Analise Nella Recerca Sociológica, in
"Rassegna Italiana di Sociologia", janeiro-março de 1961.
8 - ÁVILA, FERNANDO BASTOS de, A Realidade Brasileira em sua Dimensão
Sociológica, in "Síntese Política, Econômica, Social", Rio de Janeiro, n.° 14, 1962,
9 - MARTIN, P. W., Experiment in Depth, Londres, 1955.
10 - MENDE, TIBOR, Regards sur 1'Histoire de Demain, Paris, 1954.
11 - TOYNBEE, ARNOLD, The World and the West, Oxford, 1953.
12 - MACKINDER, HALFORD, Our Evolving Civilization, an Introduction to Geopolitics,
Toronto, 1947.
CAPITULO I
A REIVINDICAÇÃO DOS MORTOS
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto eles não se enterram
são derramados no chão.
JOÃO CABRAL DE MELLO NETO em "Cemitérios Pernambucanos"
EM 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundava a
primeira das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Não fora seu
objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar as
condições de vida dos camponeses da região açucareira, ou de
defender os interesses desses bagaços humanas, esmagados pela roda
do destino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos de
açúcar. O objetivo inicial das Ligas fora o de defender os interesses e
os direitos dos mortos, não os dos vivos. Os interesses dos mortos de
fome e de misérias; os direitos dos camponeses mortos na extrema
miséria da bagaceira. E para lhes dar o direito de dispor de sete
palmos de terra onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o seu
corpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedade do
morto, para com ele apodrecer lentamente pela eternidade afora. Para
isto é que foram fundadas as Ligas Camponesas. De início, tinham
assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo
porque com a vida não havia muito o que fazer... Só mesmo a
resignação. A resignação à fome, ao sofrimento e à humilhação. Mas,
se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida — em lutar por
uma vida melhor e mais decente, por que este obstinado empenho em
reivindicar direitos na morte? Reivindicação de mortos que nunca
tiveram direito em vida! Por que esta desvairada aspiração de possuir,
depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem na vida não
dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase
todos, aos imensos batalhões dos sem--terra que povoam o Nordeste
brasileiro? E por que este desespero em possuir um caixão próprio
para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte nunca
foram proprietários de nada — nem de terra, nem de casa, nem mesmo
do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados a vida inteira aos
senhores da terra? Por que esta conduta aparentemente tão estranha,
tão em contradição com o conformismo, a apatia, a resignação desta
pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando a gente compreende
que, para os camponeses do Nordeste, a morte é que conta, não a vida,
desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela, eles nada
tiram, além do sofrimento, do trabalho esfalfante e da eterna incerteza
do amanhã: da ameaça constante da seca, da polícia, da fome e da
doença. Para eles só a morte é uma coisa certa, segura, garantida. Um
direito que ninguém lhes tira: o seu direito de escapar um dia pela
porta da morte, do cerco da miséria e das injustiças da vida. Tudo
mais é incerto, improvável ou impossível. Daí o interesse do
camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que ele encara como
o da sua libertação à opressão e ao sofrimento da vida. "Aos pobres de
espírito pertence o reino dos céus", dizem as Escrituras Sagradas.
Palavra consoladora para aqueles que há muito já tinham perdido toda
a esperança de conquistar um lugar decente nos reinos da Terra.
A larga experiência de mais de quatro séculos de um regime
agrário de tipo feudal — ali implantado pelos colonos portugueses sob
a forma do latifúndio escravocrata, produtor de açúcar (1) — e a
resistência invencível deste regime em ceder a qualquer exigência ou
reivindicação dos camponeses para melhorar um pouco suas trágicas
condições de vida acabaram por dar a esta gente o sentimento da
inutilidade de qualquer esforço para sair do atoleiro de sua miséria. A
poesia popular, os a-bê-cês dos cantadores, a tradição e a História
sempre se referiram às antigas revoltas camponesas como a
"Balaiada", "A República de Palmares", "Canudos", nas quais
camponeses desesperados lutaram inutilmente contra os senhores
prepotentes.
É verdade que, para sermos justos, não podemos esquecer que os
escravos descendentes dos negros trazidos da África pelos portugueses
tinham obtido em 1888 a sua libertação. A libertação de sua "galé
perpétua" de que falava Castro Alves, o poeta da Abolição. Mas, ter-
se-ia mesmo libertado, os escravos, da escravidão? Ou apenas se
tinham libertado do opróbrio de serem chamados escravos, para
continuarem os mesmos escravos com o nome de moradores — de
servos de seus antigos senhores feudais? A verdade é que, escravos ou
servos, moradores ou foreiros, o que lhes tocara até hoje fora sempre a
mesma cota de sacrifícios, de trabalhos forçados, de fome e de
miséria: a mesma herança que lhes havia legado a escravidão.
Deixando de serem escravos de um dono, para serem escravos de um
sistema: escravos do latifúndio açucareiro.
Para serem triturados como bagaço pela engrenagem deste sistema
econômico, dos mais desumanos que ainda perduram na superfície da
Terra. Mas que foi, sem nenhuma dúvida, há quatro séculos, o sistema
que deu consistência política e base econômica ao país em formação.
Que permitiu que se implantasse neste Nordeste a primeira
organização econômica de além-mar, que daria no século XVI à
metrópole portuguesa o monopólio de um produto nos mercados
europeus: o monopólio da plantação da cana, da indústria e do
comércio açucareiros. Tudo isto feito à base do trabalho escravo. Da
total escravidão do homem e da terra, submetidos incondicionalmente
a serviço da ambição dos grandes senhores feudais de enriquecerem
depressa, plantando sempre mais cana e produzindo sempre mais
açúcar. E entregando-se de corpo e alma a esta audaciosa aventura
açucareira, sem medir suas conseqüências e sem atender a qualquer
sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciável apetite do ouro e
ao desadorado apetite da cana, objeto de sua adoração. Ao feroz
apetite desta planta, de dispor sempre de novas terras para serem
engolidas pelos canaviais e de dispor sempre de mais braços humanos
para serem quebrados ou esgotados, no eito, plantando, limpando e
colhendo cana, ou, nas estradas, puxando e empurrando os carros de
cana, ou nas moendas, ou na esteira das usinas, ou nos cais,
carregando e descarregando os sacos de açúcar. Se com o tempo a
paisagem da região parece ter mudado um pouco — a grande usina
moderna tomando o lugar do velho engenho de água ou de lenha, o
palacete do dono da usina se erguendo no lugar da casa-grande do
engenho — a paisagem humana permaneceu quase que a mesma. Os
antigos escravos, que então viviam na senzala, agora espalhados pelas
choças e pelos casebres no campo e nas aldeias, ou amontoados nas
favelas dos mocambos das cidades, verdadeiras senzalas
remanescentes, fraccionadas em torno das novas casas-grandes, os
palacetes dos novos senhores da terra. Nenhuma força fora capaz de
quebrar o sistema opressor do latifúndio, que vem pesando há séculos,
como uma fatalidade sobre a vida do camponês.
Os cantadores de feira, sempre exaltaram a coragem indômita dos
líderes populares, sacrificados nas ondas violentas da repressão. Mas
de que serviu todo este esforço, toda esta violência? Não serviu para
nada. Nem a força da bala dos cangaceiros, nem a força da fé dos
místicos e dos beatos deram fim ao sofrimento e à opressão, de que até
hoje padecem os camponeses. Nem Antônio Silvino e Lampião, heróis
do banditismo, cantados pela poesia popular, nem o Padre Cícero de
Juazeiro e seus místicos adoradores, puderam mudar o rumo do
destino dessa pobre gente, condenada por seu destino histórico a
permanecer sempre no fundo do abismo. A se sentirem impotentes,
como se o carro de seus destinos se tivesse atolado até o eixo no barro
mole das estradas da cana, no massapê fofo e pegajoso onde se atolam
os carros de boi. E quanto mais força se faz, mais o carro se atola,
como se o diabo ou o destino, ou os dois juntos, agarrassem, de dentro
do barro, os raios da roda do carro. Ou como se todos os
companheiros de infortúnio tivessem sido empurrados pelo mesmo
destino, para dentro de um redemoinho, que fosse como um inferno
d'água, com a força da miséria puxando sempre, como a correnteza,
mais para o fundo, O atoleiro da vida ou o redemoinho da fatalidade
são imagens populares com que a gente do Nordeste exprime, em seu
linguajar simples, a sua revelação de um fenômeno social, que os
cientistas de hoje, chamaram com Winslow de "processo circular
cumulativo" (2). Processo social no qual uma constelação de fatores
negativos atuam de tal forma imbricados, que os grupos pobres ficam
sempre cada vez mais pobres, enquanto os ricos cada vez enriquecem
mais. É a mesma noção do chamado "círculo vicioso da pobreza" de
Nurkse (3), no qual a fome e a pobreza, agindo e reagindo como dois
fatores de ação cumulativa, fazem com que os famintos não possam
comer porque não são capazes de produzir e não produzem porque são
famintos. O homem do Nordeste ignora estas sutilezas dos sociólogos,
estes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala de fatores
negativos agindo como causa e efeito dentro do processo social, mas
sente na sua carne a realidade da miséria estagnante e vê sempre
crescer diante dos seus olhos a riqueza descomunal dos que
enriquecem cada vez mais à custa de sua fome. E é esta revelação que
lhe faz dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, que a
água só corre para o mar. E correndo sempre para o mar, a água deixa
na miséria a terra seca do sertão, e na angústia, a alma ressequida do
homem do Nordeste. Tão ressequida que, de vez em quando, esta alma
vira pedra — a alma e o coração de pedra dos cangaceiros. Na sua
visão fatalista do mundo, estes seres primitivos chegam à conclusão
de que não há barragens que possam estancar esta tendência inevitável
do destino, que leva sempre a água para o mar, onde menos falta ela
faz. Um sentimento de total impotência e da própria desvalia ,se
apoderou da alma do camponês nordestino. Daí a sua humildade e o
seu aparente conformismo diante dessa conspiração invencível das
forças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o
esmagarem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de
condições de vida?
Não foi, portanto, pensando em reivindicações dos direitos
espoliados, nem com o desejo de se organizarem para lutar contra a
exploração do regime agrário reinante, que os humildes camponeses
do Engenho Galiléia fundaram as Ligas Camponesas. Não se chamava
o seu engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, onde o doce
Jesus pregou pela primeira vez a doutrina da igualdade e da
fraternidade humanas, doutrina revolucionária, que, durante dois mil
anos, ainda não conseguiu penetrar de verdade na alma empedernida
dos falsos cristãos, que dominam uma grande parte do mundo?
Portanto, quem melhor armado para entender o profeta da Galiléia do
que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nesse Nordeste do Brasil?
Pobres como os amou Cristo, que por eles se deixou crucificar para
que o reino dos céus se estabelecesse na Terra. Quem melhor para
sentir os ensinamentos e as lições de amor do grande profeta da
Galiléia do que esta gente destituída de tudo, sem maiores ambições
neste mundo? Apenas ambicionando um dia se apresentarem bem
diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suas aspirações
pareceram um tanto excessivas aos olhos dos outros cristãos, os
cristãos proprietários de terras, donos de engenho, senhores do
Nordeste. A aspiração dos associados da Liga era de se prepararem
para sua apresentação no juízo final, em condições que não lhes
fossem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela
Autoridade Suprema. A primeira condição seria, sem dúvida, a de se
apresentarem diante de Deus com as mãos limpas de crimes e com a
alma limpa de vícios. E isto não seria difícil para a maioria deles. Mas
no seu entender simplista, seria também necessário se apresentarem
com um mínimo de decência, numa hora de tamanha importância e de
tanta solenidade: a hora do juízo final. E é aí que a sua extrema
miséria não lhes permitia este mínimo de decência. É um hábito
nessas terras miseráveis que os pobres lavradores, no termo de suas
vidas de miséria, sejam levados ao cemitério num caixão "de
caridade", que a Prefeitura empresta, mas que tem que ser restituído
na boca da cova, para servir outros defuntos. Ora, ser enterrado desta
forma, constitui a humilhação suprema para essa pobre gente, cuja
vida não passa de um rosário de humilhações. Mas esta é a maior de
todas, porque é uma humilhação que passará para o outro lado da vida
— uma humilhação que durará toda a eternidade. A Liga foi criada
para evitar esta suprema humilhação.
Quando em 1960 um jornalista entrevistou um dos principais
dirigentes da Liga, o velho José Francisco de Souza, e lhe perguntou o
que tinha a Liga feito em benefício dos pobres camponeses, ele
respondeu tranqüilamente: "Veja, moço. Antes da Liga, quando um de
nós morria, o caixão era emprestado pela Prefeitura. Depois que o
corpo era levado à vala comum, o caixão voltava para o depósito
municipal. Hoje a Liga paga o enterro e o caixão desce com o morto".
Ali estava o primeiro resultado patente da iniciativa que haviam
tomado João Firmino e seus companheiros do Engenho Galiléia, ao
fundarem nessas terras de tanta pobreza, uma sociedade civil
beneficente, de auxílio-mútuo, para ajudar seus moradores a morrer
com decência: com uma vela na mão, com os olhos fitos na chama
desta vela, que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na
escuridão do além, e com a confortadora certeza de que dispunham
dos seus sete palmos de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar
tranqüilo o juízo final. Esta instituição beneficente foi denominada
"Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco". Mas
o nome não pegou. O que pegou foi o apelido. É que logo em seguida
à sua criação, começaram a chamar a sociedade de Liga. De Liga
Camponesa. O apelido foi botado para desfazer dela. Para dar-lhe uma
origem considerada suspeita pelos conservadores, com ocultas
ligações com o movimento revolucionário iniciado há muitos anos
noutros pontos do Nordeste, sob a forma de organizações camponesas,
visando reunir os trabalhadores da cana numa espécie de sindicato que
lhes desse força política suficiente para reclamar e para reivindicar. E
estas primeiras tentativas tinham sido chamadas de Ligas
Camponesas, provavelmente sob a remota inspiração das Ligas
Camponesas da Idade Média, criadas pelo campesinato europeu como
instrumento de luta dos servos da gleba contra a opressão intolerável
dos príncipes e dos barões feudais. Não se pode esquecer que a
colonização brasileira se iniciou no Nordeste sob o signo do
medievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para introduzir
nestas terras o regime das Capitanias Hereditárias, entregues de mão
beijada aos Donos dos Feudos, os barões do Novo Mundo. É que,
embora no começo do século XVI, quando o Brasil foi colonizado, já
estivéssemos em plena Renascença européia, a Península Ibérica,
desviada da sua rota histórica por sua interminável luta com o Islã, e
isolada geograficamente do resto da Europa pela barreira dos Pirineus,
continuava encastelada no seu feudalismo agrário, caracteristicamente
medieval(4). E Portugal, ainda mais do que a Espanha, separado do
grande mundo por toda a espessa muralha da Meseta Castelhana. Este
secular retardamento histórico fez com que a colonização ibérica no
Novo Mundo se constituísse como uma empresa de tipo medieval,
como uma sobrevivência das Cruzadas, impregnada de um espírito ao
mesmo tempo religioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça.
Sob este aspecto bem diferente da colonização inglesa da América,
mais de índole burguesa e de espírito moderno, pós--renascentista e
pós-luterano. Dentro do patrimônio medieval trazido pelos colonos
portugueses, com seus hábitos arraigados no complexo do latifúndio
feudal, é bem possível que tenham os camponeses do Nordeste,
também, herdado a tradição das Ligas Camponesas do Medievo
europeu, que um dia iria repontar com inesperada violência no
processo da evolução social do Nordeste. Como herdeiros presumíveis
desta tradição secular as 140 famílias que habitavam as terras do
Engenho Galiléia, criaram a sua Liga Camponesa e depois de
elegerem sua primeira diretoria, convidaram, num gesto de tradicional
humildade do servo para com o senhor, o próprio senhor do engenho
para ser seu presidente de honra. E ele aceitou. E fez-se a sua posse
com solenidade, com festas e com foguetes. E registrou-se o estatuto
da sociedade, no qual, além da ajuda funerária, figuravam como
objetivos mais remotos, a aquisição de sementes e de instrumentos
agrícolas e a possível obtenção de uma ajuda governamental. Mas não
durou muito esta lua de mel do senhor das terras com os seus servos,
associados da Liga. É que outros latifundiários da redondeza, senhores
de engenho como ele, se apressaram em alertá-lo da loucura que ele
tinha feito em se deixar envolver por esta perigosa aventura. Em ter
consentido a instalação em suas terras deste perigoso instrumento de
agitação social. Desta espécie de cavalo de Tróia, introduzido
disfarçadamente dentro dos seus domínios de porteiras fechadas, para
abrir na calada da noite todas as porteiras ao comunismo. E o homem
assombrou-se e não quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiu
mesmo o seu fechamento imediato. Foi aí que a história mudou de
rumo. A maioria dos camponeses resistiu ao fechamento, e a partir
deste momento, sob a pressão dos acontecimentos, a .sociedade
mutualista funerária virou mesmo uma Liga Camponesa para lutar
pelos direitos dos camponeses contra a opressão dos mortos, ela iria
agora se constituir como instrumento de reivindicação dos direitos dos
vivos. Mas, não é mesmo morrendo que melhor se aprende a viver?
Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tratando dos problemas da
morte que os camponeses do Engenho Galiléia abriram seus olhos
para a vida. E viram melhor, e melhor compreenderam as injustiças da
vida e quais eram os autores destas injustiças. Era a tomada de
consciência da sua realidade social, fenômeno que vem ocorrendo em
nossos dias por todo o mundo chamado subdesenvolvido — mundo
escravizado e espoliado — e que naquele dia se cristalizava como uma
força nova na sociedade fechada e primitiva dos moradores do
Engenho Galiléia. E com esta força eles enfrentaram o patrão. Não se
submeteram como faziam até então, com sua costumeira docilidade,
às suas ordens absurdas. Contam que o senhor do engenho, como
revide à obstinação do grupo em não querer fechar a Liga, determinou
a suspensão de uma ordem que tinha dado para que fosse retirada de
suas matas a madeira necessária à construção de uma capela. Os
camponeses protestaram contra esta suspensão e o patrão os ameaçou
com a polícia, sob o pretexto de que eles pretendiam devastar as suas
matas. Seguem-se as intimações, as chamadas à Delegacia e as
ameaças dos capangas. Mas, diante de tudo isto, aumentou cada vez
mais a hostilidade dos camponeses. Surgem então os processos
judiciários contra os mais responsáveis, responsabilizados como
agitadores e terroristas. E finalmente apareceram as ações de despejo,
a expulsão sumária dos camponeses da terra onde sempre viveram,
feita em nome da lei. Nesta altura da luta, os camponeses fincaram o
pé. Não sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todas
as agruras da vida e onde esperavam ver enterrados os seus ossos. É
que nenhum povo do mundo se mostra mais enraizado à terra, mais
profundamente ligado ao seu solo natal do que o povo do Nordeste.
Sondando a alma complexa e singular do povo chinês, o qual, embora
sofrendo há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de
cataclismos naturais, com que lhes brinda sua terra martirizante — as
secas, as inundações, os terremotos, as nuvens de gafanhotos — se
mostram sempre tão indissolüvelmente ligados a esta terra,
Keyserling(5) escreveu as seguintes palavras: "Não há outro camponês
no mundo que dê tal impressão de identificação total com a terra. De
participar tão intensamente da vida da terra. Tudo na China — toda a
vida e toda a morte — se desenrola na terra herdada. É o homem que
pertence à terra, não a terra que pertence ao homem". Mas há. Há
outro camponês no mundo, tão identificado com a terra quanto o
chinês: é o camponês do Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca
conheceu e do qual o mundo inteiro sempre teve bem pouco
conhecimento, vivendo o Nordeste à margem do mundo, relegado em
sua obscuridade e em sua solidão. Mas por isto mesmo, por sua
solidão forçada, o homem do Nordeste, abandonado do resto do país e
do mundo, se voltou para a sua paisagem circundante e nela fincou as
raízes de sua alma. Mesmo o homem do sertão semi-árido, que vive
uma vida de semi-nômade, escorraçado de vez em quando pelo
cataclismo das secas, é extremamente apegado à sua terra e a ela
aspira voltar, .sempre que o cataclismo passa. Até os seus nomes são
nomes da terra — dos lugares, das aldeias, dos povoados, onde
nasceram: Antônio Pedro do Juazeiro, Jucá da Serra Talhada, Manoel
João da Lagoa Grande... nomes de homens e de terra, como na Idade
Média, afirma com certo orgulho o escritor sertanejo Luís da Câmara
Cascudo(6). Este desadorado amor à terra que sempre lhe fez sofrer,
faz com que o homem do Nordeste a defenda sempre, até o extremo
limite de suas forças e tenha sempre desta terra um ciúme tão intenso,
como se ela fosse uma mulher. É como se ele não pudesse viver longe
dela, exilado deste amor. E se agora, no meio desta luta intensa,
queriam expulsar de suas terras os moradores do Engenho Galiléia em
nome da lei, usando contra eles os subterfúgios da lei, que eles
candidamente ignoravam, era necessário, para que eles pudessem ,se
defender e resistir, que fosse consultado um advogado, versado na lei.
Mas advogado custa muito dinheiro e a caixa da Liga estava bem
pouco provida de recursos. Pressionados pelas circunstâncias,
procuraram os dirigentes da Liga um advogado modesto, até então
obscuro, mas que já havia aceito defender outras causas de
camponeses escorraçados pelos donos de latifúndios noutras terras:
este advogado se chamava Francisco Julião. Aceitando patrocinar a
sua causa, Julião deu início à luta judiciária pela permanência dos
camponeses na Galiléia. Seu instrumento de luta era o Código Civil,
que ele cedo verificou ser uma arma de pouca serventia para defender
os direitos dos pobres, tendo sido elaborada para defender os
interesses dos ricos, enquanto o Código é que fora concebido para ser
aplicado aos pobres(7). Perdendo terreno na arena judiciária, Julião
apelou para outro campo de luta, usando, ao lado da tribuna do Foro, a
tribuna política, aproveitando a circunstância de dispor de um
mandato de Deputado Estadual na Assembléia do Estado de
Pernambuco. E foi assim que o advogado Julião se foi transformando
pouco a pouco em agitador social. Em denunciador público dos crimes
hediondos do latifundiarismo. E foi assim que as Ligas Camponesas
começaram a se espalhar por toda a região, com a criação de novos
núcleos, que se constituíram sob a pressão das circunstâncias — da
violência e da opressão desbragadas do latifundiarismo — num
instrumento de ação política libertadora, esgrimindo a ideologia, o
proseletismo, a doutrinação. Nesta fase de acesa luta, a imprensa
começou a tomar conhecimento das escaramuças mais importantes,
relatadas sempre com violentos ataques aos "terroristas" na página
policial dos jornais. Depois o assunto passou para a página política,
fornecendo matéria para os artigos de fundo. E as Ligas camponesas
foram assim tomando corpo e ganhando nova alma. Começaram a
assustar seriamente o Nordeste inteiro, como se fossem uma espécie
de dragão ameaçando engolir toda a terra dos grandes proprietários do
Nordeste e destruir a paz, a ordem e a riqueza de que sempre gozaram
esses proprietários tão amantes da ordem. Nessa onda de violências,
de mistificações e de falsas interpretações no choque entre as
aspirações populares e as resistências conservadoras, ambas
radicalizadas ao extremo, as Ligas foram criando raízes, projetando a
sombra de suas verdes esperanças e de suas negras ameaças, pelo país
inteiro. Falava-se delas como se fosse o próprio Apocalipse e de
Julião, como se fosse o anticristo. Foi neste momento que os Estados
Unidos da América redescobriram o Nordeste. E esta descoberta se
deve em grande parte ao obscuro e incipiente movimento das Ligas
Camponesas. Em fins de 1960, com o seu povo extremamente sensível
aos perigos da revolução comunista de Fidel Castro em Cuba e à sua
possível propagação para o continente, a imprensa norte-americana se
lançou com um dramático interesse sobre o Nordeste brasileiro
explosivo e ameaçador. E os Estados Unidos que tinham descoberto
vagamente o Nordeste brasileiro durante a segunda guerra mundial,
quando os aviões de transporte, em viagem para a África e a Europa
faziam pouso na região, principalmente no aeroporto de Natal, que se
transformou na época no maior aeroporto do mundo, voltaram a
descobrir, desta vez com atônita e perplexa curiosidade, essa terra
ignota. Esse estranho mundo que parecia uma nova Cuba em
formação: a Cuba continental. Como Cuba, miserável e revoltado.
Como Cuba possuindo um líder considerado um marxista, conduzindo
à revolução, essa massa de deserdados e fanatizados, dispostos a tudo,
como foi mostrado em várias reportagens, publicadas nos grandes
jornais dos Estados Unidos, e mostrado em imagens de um colorido
impressionante, num filme apresentado numa grande cadeia de
televisão. Era o Nordeste na ordem do dia como vedete, como uma
espécie de novo far-west, a acender a imaginação de milhões de
indivíduos que poucos dias antes ignoravam mesmo a sua existência
geográfica (8).
Esta inesperada revelação de um mundo tão estranho à
mentalidade do norte-americano médio, levada pela imprensa sem a
menor preparação ou apresentação ao seu público, criou uma grande
perplexidade e certa confusão nos Estados Unidos. De um lado, um
sentimento de pânico pelos perigos desta nova explosão social tão
ameaçadora, e de outro lado, um grande desejo de ajudar, de fazer
alguma coisa para evitar explosão. Mas a falta de uma serena visão
dos fatos, o desconhecimento total da realidade social do Nordeste e
das raízes históricas que tinham dado origem a essa aberração social,
tornavam bem difícil um approach razoável e deformante, ou o da
fantasmagoria histórica das manchetes apocalípticas. E assim, o
Nordeste, descoberto quando ajudava os Estados Unidos na última
guerra e agora redescoberto, quando parecia ajudar os inimigos dos
Estados Unidos no continente, continuou, na verdade, como um
desconhecido dos Estados Unidos. E por que não dizer a verdade
como um desconhecido do mundo. Embora no cartaz, o que dele se
apresenta por toda parte é, em geral, uma falsa imagem do seu papel
histórico, tanto no passado como no futuro. Falsa imagem tanto das
suas possibilidades, como das suas deficiências e dificuldades. Do que
é possível se fazer de bem pelo Nordeste, como do que é possível que
o Nordeste venha a fazer de mal ao mundo: à sua segurança e à sua
tranqüilidade.
Se dedicamos ao estudo das Ligas Camponesas o primeiro capítulo
deste livro, foi com a premeditada intenção de mostrar, como uma
iniciativa brotada das tradições do feudalismo agrário, aí reinante,
com objetivos humanitários e pacíficos, pode-se transformar num
instrumento revolucionário, de explosiva agitação social, em face da
cega incompreensão e da obstinada resistência da própria estrutura
feudal. E mostrar, também como pode um fenômeno social ser
totalmente distorcido em sua realidade pelas falsas interpretações do
jornalismo tendencioso ou sensacionalista. De fato, a imagem das
Ligas Camponesas difundida pela imprensa de certos países, como
sendo um instrumento do comunismo internacional, fabricado em
Moscou e implantado no Nordeste brasileiro, para repetir nessa área o
episódio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma imagem
totalmente falsa, que não resiste a uma análise fria dos fatos. Uma
análise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer, os
principais personagens e os episódios centrais das origens desse
movimento.
Criadas dentro do espírito do cristianismo primitivo, que até hoje
impregna a alma coletiva da população nordestina, as Ligas
Camponesas foram mesmo, em certa fase, mal vistas e tenazmente
combatidas pelos líderes marxistas da região. E, se posteriormente se
aliaram as Ligas aos comunistas, na luta comum pela emancipação da
massa camponesa, não quer isto dizer que a sua inspiração brotara da
doutrina de Marx ou da ação política de Lenine ou de Fidel Castro,
mas na experiência vivida e sofrida por essa massa humana em sua
luta desigual por um mínimo de aspirações, em face ao máximo de
resistência dos seus opressores feudais. Tem toda razão o jornalista
Robert Coughlan da revista Life, quando afirma com excepcional
lucidez que atribuir o descontentamento social da América Latina "a
um complot forjado em Moscou, como fazem muitos, é ser
perigosamente ingênuo. Suas raízes mergulham fundo no seu passado,
que conta, como ingredientes, a conquista, a exploração, a fome e a
extrema miséria".
Outra razão da prioridade dada às Ligas Camponesas no plano
deste livro deriva do fato incontestável de que foram elas que
projetaram o Nordeste na imprensa norte--americana, provocando a
redescoberta desta região e determinando em grande parte a criação da
"Aliança para o Progresso" como uma tentativa dos E.U.A. de evitar a
suposta bolchevização do continente.
Antes de terminar este capítulo, julgamos indispensável deixar
bem claro que, a nosso ver, as Ligas Camponesas nunca alcançaram
uma importância política destacada: uma estruturação funcional e uma
liderança suficientemente vigorosa para desencadearem um verdadeiro
processo revolucionário. Longe disto. Sempre foram, como
instrumento revolucionário, uma arma quase infantil. E se esta arma
de brinquedo assustou tanto aos grandes senhores feudais e seus
associados, é que eles se encontram há muito tempo num estado de
pavor permanente. Pavor que os leva a ver no menor gesto ou atitude
de inconformismo das massas espoliadas, um perigo tremendo para a
manutenção dos seus privilégios. O perigo das líricas Ligas
Camponesas sempre fora pequeno, o medo delas é que era grande e
continua crescendo cada vez mais.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1 - PRADO JR., CAIO, História Econômica do Brasil, 1945.
2 - WINSLOW, E. A., The Cost of Sickness and the Price of Health, Genebra, 1951.
3 — NURKSE, RAGNAR, Some Aspects of Capital Accumulation in
Underdeveloped Countries, Cairo, 1952.
4 - SANCHEZ ALBORNOZ, CLÁUDIO, La Edad Media y la Empresa de America,
La Plata, 1934.
5 - KEYSERLING, HERMANN, Journal de Voyage d'un Philosophe, 1952.
6 - CASCUDO, LUÍS DA CÂMARA, Viajando pelo Sertão.
7 — JULIÃO, FRANCISCO, Que são as Ligas Camponesas, Rio de Janeiro, 1962.
8 - HIRSCHMANN, ALFRED, Journeiy Toward Progress, Nova Iorque, 1963.
CAPITULO II
SEISCENTAS MIL MILHAS QUADRADAS DE
SOFRIMENTO
O TRAÇO mais marcante da carta ou fisionomia do Nordeste é o
sofrimento. E não apenas o sofrimento do homem, mas também o
sofrimento da terra. Terra e homem, martirizados há séculos por uma
espécie de complot de forças adversas: de forças naturais e de forças
culturais. O sofrimento, ou melhor, as marcas da sua presença, são tão
constantes na paisagem nordestina, que dão a impressão à gente de
que toda a terra do Nordeste não passa de um cenário especialmente
montado para nele ser representada uma grande tragédia. E no fundo,
é isto que é o Nordeste: um imenso cenário de cerca de 600 mil milhas
quadradas de superfície, exibindo, por toda parte, os sinais
inconfundíveis de seu sofrimento cósmico.
Terra de sofrimento, o Nordeste se estende do Estado do Maranhão
ao Estado de Alagoas, compreendendo uma tal variedade de paisagem
que, na verdade, dentro do conceito científico da área geográfica, não
se pode falar de uma área do Nordeste, mas de várias áreas naturais
diferentes, compondo a região do Nordeste. Áreas distintas por seu
clima, seu tipo de solo, seu revestimento vegetal e mesmo por sua
organização econômico-social. Procurando esquematizar ao máximo
estas nuances geográficas, podemos considerar o grande Nordeste
como composto pelo menos de dois nordestes: O Nordeste Oriental ou
Marítimo e o Nordeste Ocidental ou Central. São estes dois nordestes
tradicionalmente mais conhecidos como o Nordeste do açúcar e o
Nordeste das secas, porque se num deles tudo sempre girou em torno
da economia da cana, noutro o que sempre marcou sua existência foi o
tremendo drama de suas secas periódicas, a trágica história do seu
clima incerto e inclemente. A verdade é que foi realmente o clima que
delimitou os dois nordestes. Enquanto no Nordeste Oriental, próximo
da costa marítima, o clima é úmido, com uma grande abundância e
regularidade de chuvas, no Nordeste Central, o clima é seco, as chuvas
são escassas e, principalmente, muito irregulares, imprimindo um
facies semi-árido à região. Foi esta marcante diferença dos dois climas
que determinou o marcante contraste entre as paisagens naturais das
suas áreas: uma área toda ela recoberta de verde — outrora o verde
das suas matas, e hoje o verde dos infindos canaviais — e outra área
toda em tons acinzentados, com a sua terra seca, quase sempre nua de
vegetação, ou apenas revestida em pontos limitados por tufos isolados
de uma vegetação rasteira, coberta de poeira e eriçada de espinhos:
vegetação formada de bromeliáceas e de cactáceas, plantas adaptadas
ao extremo à condição de secura do meio ambiente. Uma área de solo
espesso, poroso, permeável, embebido da água das chuvas abundantes
— o famoso massapê de extrema fertilidade — e a outra área, de solo
duro, de tipo arenoso, rico em seixos rolados e pobre em elementos
nutritivos, quase mais pedra do que solo. O Nordeste é este contraste
vivo estampado nas duas paisagens: na paisagem acolhedora,
envolvente, da área da mata, com sua gradação de verdes, as suas
manchas d'água, as suas sombras frescas, e na paisagem ríspida, seca,
do sertão, com as suas planícies descampadas, o seu solo pedregoso, o
seu céu sempre sem nuvens e o seu sol de fogo. Nestes dois quadros
naturais tão diferentes se formaram também duas sociedades distintas,
embora complementares, tanto em sua economia como em sua
história. E a história econômico-social dessas duas comunidades
contíguas representa o patrimônio histórico de toda a região do
Nordeste.
Embora o passado tivesse acumulado nessa região uma grande
reserva de tradições e uma apreciável riqueza cultural de sabor típico e
original, o que mais se acumulou entretanto nesta zona, como já
afirmamos, foi mesmo o sofrimento. É o sofrimento a grande herança
cultural do Nordeste. Realmente que terra poderá dar maior impressão
de sofrimento do que essa terra do sertão nordestino, com seu solo
curtido e roí do pelos rigores do clima? Com a pele do seu solo magro,
mal encobrindo o seu esqueleto de granito e de calcáreo, dilacerada
em vários pontos, rompida pelas pontas das rochas mais duras que
irrompem no meio da paisagem em brancos blocos escarpados, como
se fossem mesmo os ossos da terra descarnada. E como se revela
como uma dor pungente, como uma expressão de desolador
sofrimento, essa terra toda aberta de fundas feridas, de grandes
brechas, rompidas no seu corpo pela violência das grandes torrentes
erosivas! Outro traço do sofrimento telúrico da paisagem, que nos
chama a atenção e que oprime o nosso espírito, é o da própria secura
da terra em certas épocas do ano. Da terra toda crestada, toda rachada,
como se fosse um pedaço de couro velho deixado ao Sol. Não é menor
o sofrimento da terra que foi devorada pela cana. Da terra que a
monocultura da cana-de-açúcar, introduzida nessa região, devorou em
poucos anos, com um apetite insaciável, consumindo todo o seu
húmus, engolindo todo o seu solo. Mas a história dessa cultura
autofágica da cana-de-açúcar, que acaba por devorar sua própria
economia, é uma história que merece ser analisada mais adiante, em
maiores detalhes, para bem mostrar como ocorreu o processo dessa
aventura mercantil, que deu origem à sociedade do Nordeste: a
exploração monocultora e latifundiária da cana-de-açúcar.
Nesse fundo cinzento do sofrimento da terra — da terra traída pelo
clima, ofendida pela seca, degradada ao extremo pela exploração
colonial — se destaca gritante a permanência invariável do sofrimento
do homem.
No Nordeste, as marcas mais fundas da presença do homem
parecem não ser as marcas de sua vida, mas as marcas de sua morte. A
presença da morte se manifesta com uma tal força que parece
sobrepujar na região à própria força da vida. A morte é uma tal
constante, um fator social de tamanha importância na vida da região,
que em certas cidades do interior, parece que o que mais prospera são
os cemitérios, apresentando-se como os recantos mais florescentes
dessas pequenas cidades: sempre murados, ajardinados e urbanizados.
Enquanto as cidades ao seu lado são às vezes simples enovelados de
sórdidas ruelas, sem ordem sem higiene, sem o mínimo conforto. É
como se os vivos não existissem na paisagem. Só existissem mesmo, a
reclamar cuidados, os mortos. E foi talvez por isto que um poeta do
Nordeste, num poema em que fala destes cemitérios, se inquietou
diante dos muros que os separam das cidades, que isolam esses
cemitérios do resto da paisagem que é também tão morta, que ele a
chama de paisagem defunta:
"Por que iodo este muro?
Por que isolar estas tumbas
do outro ossário mais geral
que é a paisagem defunta?"(1)
A paisagem defunta é esta paisagem impregnada da presença
constante da morte, da expectativa da morte, da fraternal
promiscuidade dessa gente com a morte. É que os índices de
mortalidade nestas terras ,são extremamente altos, dos mais altos do
mundo, principalmente os da mortalidade infantil. Morre tanta criança
no Nordeste que chega a parecer que morre mais gente do que nasce, e
isto principalmente porque se nasce discretamente, enquanto a morte
implica sempre na cerimônia pública do enterro, que chama tanto a
atenção. De fato, o enterro é um dos traços mais vivos e mais
presentes na paisagem social do Nordeste, como ocorre na Sicília,
como ocorre na China, enfim, em todos os povos muito ligados à
terra, que fazem um grande alvoroço ao voltarem ao seio dessa terra.
É verdade que a maior parte deles volta cedo, logo nos primeiros
meses de vida, como se se tivesse arrependido de ter nascido numa
terra tão pobre, ou como se não tivessem vindo preparados para uma
viagem mais longa. O fato é que as crianças nascem mais para morrer
do que para viver. Mais para povoar os céus como anjos, na consola-
clora crença dos seus pais, do que para povoar a terra como homens.
Há cidades do Nordeste onde a mortalidade infantil alcança a casa de
500 por 1000, o que quer dizer que metade dos que nascem apenas
espiam a vida um breve instante e antes de um ano já se foram para
debaixo da terra. É este um dos traços mais característicos das áreas
de geografia da fome, como é o caso desta área do Nordeste — desta
estranha geografia, onde não é a terra que dá de-comer ao homem, é
antes o homem que nasce apenas para dar de-comer à terra. Para
alimentar esta terra-cemitério, que engorda com a sua matéria
orgânica. E que, quando acontecer escapar, é para sobreviver sempre
assustado desta presença da morte, sentindo sempre o seu bafo frio
como uma constante ameaça. Qual a causa desta tão desadorada
mortalidade do Nordeste? A explicação está no fato de ,ser o Nordeste
realmente uma área subdesenvolvida. E que o subdesenvolvimento
impõe sempre a existência de altos índices de mortalidade, como
também de altos índices de natalidade. Os do Nordeste são os mais
elevados do Brasil. Esse tipo de evolução demográfica, chamado de
antieconômico porque nele nasce muita gente e também morre muita
gente, constitui uma das características fundamentais do
subdesenvolvimento, o que explica, aliás, que apesar de toda esta
mortalidade terrível, as regiões subdesenvolvidas mantenham suas
populações num ritmo de crescimento explosivo, ameaçando explodir
a sua miséria. Há quem acredite que esta explosão da capacidade
reprodutora seja uma forma de defesa da espécie ameaçada, que, para
lutar contra a força impiedosa da morte, joga na arena da luta os seus
excessos de crianças, para serem sacrificadas, dizimadas, em sua
maioria, mas sobrando sempre algumas para manterem a
sobrevivência da espécie. Na verdade, é através de um complexo
mecanismo bio-social que o subdesenvolvimento entretém estes tão
altos índices de natalidade e de mortalidade. No que diz respeito à alta
natalidade nas regiões de fome e de miséria, já tentei explicar o
fenômeno em outro livro e não pretendo voltar ao assunto neste
ensaio, porque o julgo aqui supérfluo. Desnecessária a explicação
tanto para os estudiosos do assunto, como para os habitantes do
Nordeste. Para os estudiosos basta o fato indiscutível, evidenciado
através da eloqüência dos números. Dos extraordinários, índices de
natalidade das regiões subdesenvolvidas. Para os habitantes do
Nordeste, não há necessidade de explicações, porque, na verdade,
muito antes de nós, eles já se tinham apercebido do fenômeno quando
repetiam o ditado popular: "A mesa do pobre é escassa, mas o leito da
miséria é fecundo". Se não vamos insistir em explicar porque são tão
altos os coeficientes de natalidade, desejamos entretanto explicar em
detalhes porque são também tão altos os coeficientes de mortalidade.
De que morre tanta gente no Nordeste? Morre-se de tudo, mas
principalmente de fome. É a fome em seus variados e múltiplos
disfarces, o mais ativo dos cavaleiros do Apocalipse que arrasa as
populações nordestinas. Em sua faina destruidora, a fome mata como
doença — como a mais grave e generalizada das doenças de massa
das regiões subdesenvolvidas — e como fator preparatório do terreno
para a ação nefasta de outras doenças. Principalmente das doenças
infectuosas, parasitárias, que atuam endemicamente nessas áreas, em
combinação com a fome, tendo a mesma preparado o terreno para a
sua ação deletéria. Não encontramos em toda a área do Nordeste um
só e mesmo tipo de fome dizimando as suas populações! Enquanto na
área do Nordeste açucareiro, grassa um tipo de fome crônica e
endêmica, o que nós encontramos no sertão são as epidemias de fome
aguda, que aparecem nos períodos de seca. Mas, para que se
compreenda bem como se instalou no Nordeste o reino da fome, como
essas diferentes manifestações da doença se apresentam nas duas áreas
nordestinas, é preciso que se conheça melhor a estrutura econômico-
social destas áreas, determinante, em última análise, deste estado de
fome.
Quando se estudam as condições de alimentação da área do açúcar,
o que logo surpreende o investigador é o contraste marcante entre as
possibilidades geográficas existentes e a extrema exigüidade dos
recursos alimentares da região. Que uma região árida como o Saara
seja uma zona de fome, que a região amazônica com suas florestas
impenetráveis sofra também o flagelo da fome, ,são fenômenos que se
explicam naturalmente. A fome nessas zonas pode decorrer
principalmente de fatores naturais, da pobreza natural do meio
ambiente. Já no Nordeste, o fenômeno da fome é bem mais chocante,
porque não se pode explicá-lo à base de razões naturais. Tanto as
condições de solo, como as do clima regional, sempre foram das mais
propícias ao cultivo certo e rendoso de uma infinidade de produtos
alimentares, que poderiam permitir a organização de uma dieta
alimentar satisfatória. O solo desta área, em sua maior parte do tipo
massapê — terra escura, gorda e pegajosa, que recobre em espessa
camada porosa os xistos argilosos e os calcáreos do cretáceo — é de
uma magnífica fertilidade. É um solo de qualidades físico-químicas
privilegiadas, com grande riqueza de húmus e sais minerais. O clima
tropical, sem o excesso de água de outras regiões tropicais, com um
regime de chuva de estações bem definidas, também contribui
favoravelmente para o cultivo fácil e seguro de uma grande variedade
de cereais, frutas, legumes e de verduras. A própria floresta nativa
dispunha de excepcional abundância de árvores frutíferas, e outras
árvores, transplantadas de continentes distantes, se aclimataram tão
bem no Nordeste como se estivessem em suas áreas naturais. É o caso
da fruta-pão, trazida das distantes ilhas da Oceania, do coco, da manga
e da jaca, trazidos pelos colonizadores do Oriente longínquo. Todas
essas plantas, integradas na paisagem nordestina, produziam frutos
excepcionalmente valiosos para a alimentação humana. Tudo brotava
com tamanho ímpeto e produzia com tanta exuberância nessas
manchas de terra gorda do Nordeste, que não se pode acusar de
descabido exagero a famosa frase do escritor Pero Vaz de Caminha,
autor da primeira carta sobre estas terras do Brasil, de que "a terra é
em tal maneira dadivosa, que, em se querendo aproveitar, dar-se-á
nela tudo" (2). Infelizmente, não se quis. Não o quis o colonizador
português. De nada valeram as grandes possibilidades naturais que a
terra oferecia, pois que foram malbaratadas e inteiramente
desaproveitadas em sua capacidade potencial de fornecer alimentos às
populações regionais.
Descobrindo cedo que as terras do Nordeste se prestavam
maravilhosamente ao cultivo da cana-de-açúcar, os colonizadores
sacrificaram todas as outras possibilidades da terra ao exclusivo
cultivo dessa planta. Aos interesses de sua monocultura intempestiva,
destruindo quase que inteiramente o revestimento vivo, vegetal e
animal da região, subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da
paisagem e entravando, por todos os meios, quaisquer tentativas de
cultivo de outras plantas alimentares, degradando desta forma ao
máximo, os recursos alimentares da região. Esta influência nefasta da
cana sobre as condições da alimentação regional não se fez
principalmente pela ação direta da cana sobre o solo, mas sim, por sua
ação indireta, através do sistema de exploração da terra, que a
economia açucareira impôs: o sistema da exploração monocultora e
latifundiária. Trazendo a cana-de-açúcar para as terras do Brasil, já o
português conhecia bem esta planta, com as suas exigências
específicas, desde que havia utilizado as ilhas atlânticas da Madeira e
do Cabo Verde, como verdadeiras estações experimentais para o ,seu
cultivo. E conhecia também os segredos do comércio açucareiro, que
se apresentava no momento o mais promissor do mundo. Com esta
experiência da agricultura e do comércio do açúcar o português sabia
que este produto só se poderia constituir como uma atividade
econômica compensadora, se produzido em grande escala, com terra
suficiente para o cultivo extensivo da planta com mão de obra
abundante e barata para o trabalho agrícola e com capitais suficientes
para o estabelecimento de sua indústria, em bases de um verdadeiro
monopólio do produto. Por isso organizou ele a sua empresa com os
mais abundantes capitais até então trazidos para estas bandas e
impulsionou a vinda dos escravos da costa da África e se assenhoreou
de terra boa e suficiente ao empreendimento ousado. Lançado na
aventura açucareira, o colonizador português sabia que se tinha que
entregar de corpo e alma à cana-de-açúcar, sob pena de fracassar em
sua empresa E a cana se mostrou realmente capaz de dar muito lucro,
mas de exigir também muita coisa em compensação. De exigir, como
já dissemos, uma escravidão tremendamente dura, não só do homem
mas também da terra ao seu serviço. Homem e terra que tiveram de se
despojar de inúmeras prerrogativas para satisfazer o apetite
desadorado da cana: o seu apetite insaciável de boas terras, bem
preparadas e bem drenadas para o crescimento da planta. Já afirmou
alguém, com razão, que a exploração da cana-de-açúcar se processa
sempre num regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de
si, engolindo terras e mais terras, consumindo o húmus do solo,
aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano
que serviu de base à sua vida. E é a pura verdade. A história da
economia canavieira no Nordeste, como em outras zonas de
monocultura da cana, no mundo, tem sido sempre uma demonstração
categórica desta capacidade que tem a cana de dar muito no princípio,
para devorar tudo depois autofàgicamente. Donde a caracterização
inconfundível das diferentes áreas geográficas do açúcar, com seu
ciclo econômico típico, com uma rápida fase de ascensão e de
esplendor transitório, e uma fase seguinte de irremediável decadência.
Ciclo, este, que se processa tanto mais rapidamente quanto menores
forem os recursos de terra disponíveis. Daí a semelhança de aspectos
entre as diferentes áreas geográficas do açúcar no mundo, entre esta
área do Nordeste do Brasil e Cuba, Haiti, Java, Porto Rico, Barbados.
A ilha de Barbados, por sua limitada extensão, representou uma
espécie de laboratório de sociologia experimental, onde se
processaram com impressionante nitidez as sucessivas fases do ciclo
da economia monocultora da cana, permitindo ao investigador analisar
a fundo as reações-sociais intempestivas, que a introdução do cultivo
da cana provocou na sociedade local. Vincent Harlow(3), que estudou
a fundo a história desta ilha, mostra-nos como a princípio a
colonização de Barbados se fizera à base da policultura, dividindo as
suas terras em pequenas propriedades produtoras de algodão, tabaco,
frutas cítricas, gado vacum e suíno e outros produtos de sustentação.
Que, nessa primeira fase da sua história, compreendida entre 1625 e
1645, as condições de vida eram bem favoráveis na ilha, e a população
de raça inglesa crescera bastante, subindo nas seguintes proporções:
1.400 habitantes em 1628, 6.000 em 1636 e 37.000 em 1643. Com o
desenvolvimento da cana-de-açúcar, que se processou a partir dos
meados do século XVII, aí transplantada pelos holandeses fugidos do
Nordeste do Brasil, a policultura foi sendo asfixiada, as pequenas
propriedades agrícolas engolidas pelo latifúndio açucareiro e as
reservas alimentares da ilha ficando cada vez mais limitadas. Esta
evolução econômica, tão desfavorável, provocou o êxodo em massa
para outras terras, dos habitantes da raça branca. Começou então a
descida da curva demográfica: em 1667 só havia 20.000 brancos na
ilha, em 1786, 16.000, em 1807, 15.500, e atualmente cerca de 15.000.
O braço escravo veio substituir o do branco, passando a constituir a
base do trabalho agrário. Assim se desenvolveu em Barbados esta
economia latifundiária, escravocrata, com esplendor fugaz, que durou
de 1650 a 1685, entrando logo a seguir em decadência. Já nesta época,
estava a ilha praticamente esgotada. Suas florestas, que a princípio
eram tão densas que fora difícil achar espaço para a fundação da
colônia(4), estavam inteiramente devastadas, com todas as culturas de
sustentação estagnadas e o açúcar economicamente arruinado, por não
ser mais possível produzi-lo a preços capazes de agüentar a terrível
concorrência internacional.
Esta é a história do transitório ciclo do açúcar em Barbados,
contada por Harlow e confirmada em seus traços mais característicos
por outros historiadores idôneos. Em Jamaica, em Trinidad, em Cuba,
e noutras antilhas açucareiras, o processo seguiu as mesmas diretrizes,
apenas num ritmo menos acelerado, como se pode verificar através
estudos dos historiadores da colonização inglesa e espanhola do Mar
das Caraíbas(5).
Fizemos esta digressão acerca do processo evolutivo da economia
açucareira em outras zonas, para pôr em evidência o fato de que a
fraqueza do colono português diante do ímpeto avassalador da cana do
Nordeste brasileiro não foi específica deste colonizador. Nenhum
outro colono, nem o inglês de Barbados, nem o francês do Haiti, nem
o espanhol de Cuba, pôde escapar à sua esmagadora prepotência. Ao
contrário, deixaram-se todos dominar, sob certos aspectos, mais ainda
do que o português do Nordeste. Porque, se na luta para adaptar-se ao
meio tropical, o português cedeu com bastante plasticidade às
contingências de certas forças naturais, soube também, por outro lado,
escapar tecnicamente a muitas delas, através do uso inteligente de
certos fatores de aclimatação, que os colonos de outras raças e de
outras culturas não souberam manejar com tanta precisão, fracassando
por isso em suas tentativas de levar a feito uma colonização de
enraizamento em terras tropicais(8).
Deve-se, sem nenhuma dúvida, ao desenvolvimento da cana-de-
açúcar, com todos os seus nocivos exageros de planta individualista,
com sua hostilidade quase mórbida por outras espécies vegetais, uma
grande parte do trabalho de enraizamento e de consolidação da
colonização portuguesa nos trópicos, a qual já há cerca de um século,
vinha ensaiando outros processos menos frutíferos, sem conseguir
estabelecer nada de mais firme do que simples feitorias comerciais nas
costas da África, da América e do Extremo Oriente.
O processo de transformação e de desvalorização que a cana
realizou no Nordeste, começou pela destruição da floresta, que
recobria praticamente toda a chamada Região da Mata, abrindo, com
as queimadas, as clareiras para o seu cultivo e alargando depois essas
clareiras par estender os seus canaviais sem fim. A destruição da
floresta alcançou tal intensidade, e se processou em tal extensão, que
nesta região, outrora chamada da mata do Nordeste, hoje restam
apenas pequenos retalhos esfarrapados deste primitivo manto florestal.
Com a destruição da floresta, contribuiu também a monocultura para o
empobrecimento rápido e o esgotamento violento do solo, diminuindo
de um lado a renovação do seu húmus formado pela decomposição da
matéria orgânica vegetal, e de outro lado facilitando ao extremo, os
processos de lavagem do solo e sua conseqüente erosão. Ward
Shepard, antigo especialista do Departamento de Agricultura dos
Estados Unidos(6), estudando o fenômeno da erosão no continente
americano, aponta a área do Nordeste do Brasil como uma das mais
sacrificadas, e sacrificada, principalmente, pelo cultivo intempestivo
da cana-de-açúcar. De fato, despida do seu manto florestal, estas terras
se deixaram facilmente arrastar pela ação erosiva das águas, desde que
os pequenos rios que atravessam a região nordestina e que a princípio
se haviam mostrado tão dóceis e serviçais, ajudando o colono a
conquistar a terra e aí desenvolver a economia agrária da cana, logo
que sentiram as suas margens desprotegidas de árvores pelo
desflorestamento abusivo e despido de vegetação os seus vales, se
transformaram da noite para o dia em rios devastadores, rios ladrões
de terra, arrasando o solo úmido das planícies e levando com as águas
das enxurradas, os elementos minerais e o húmus dissolvidos,
transformando-se, enfim, num bárbaro fator de degradação da riqueza
do solo. Não foi apenas degradando a riqueza do solo, fazendo
minguar os recursos vegetais, que o desflorestamento se constitui num
fator negativo para a região, mas também destruindo praticamente os
recursos da fauna regional, cuja vida estava tão intimamente ligada à
própria vida da floresta(7). Os recursos representados pelas caças que
aí existiam em grande abundância nos primeiros tempos da
colonização, praticamente desapareceram, desde que os animais foram
afugentados pelas coivaras, se escondendo nas nesgas de mata cada
vez mais ralas, mais limitadas, até quase se extinguirem de vez. O que
é mais grave nesse complexo da cultura da cana em relação à
alimentação regional, é que não foi apenas destruindo o que havia de
aproveitável como alimento-riqueza da fauna, da flora e do próprio
solo — que a cana foi prejudicial, mas também, e principalmente,
dificultando e hostilizando em extremo a introdução de quaisquer
outros recursos de subsistência que encontrariam nessas terras
condições das mais propícias ao seu desenvolvimento.
Com estes dados que apresentamos, já não pode haver nenhuma
dúvida de que foi realmente a monocultura da cana-de-açúcar, o
principal fator de degradação do tipo de alimentação desta região.
Tipo de alimentação que seria bem melhor se fosse possível aos
colonos portugueses, que aportaram às costas do Nordeste brasileiro,
manterem nessa área a tradição do regime alimentar das terras onde
nasceram, do tipo de alimentação de Portugal, caracterizado,
principalmente, por uma relativa riqueza e variedade de vegetais — de
frutas, legumes e verduras — produtos do cultivo intensivo, fino e
delicado da horta e do pomar, cultivo introduzido há séculos na
Península Ibérica pelos invasores árabes e aí transmitido a portugueses
e espanhóis. Infelizmente, esse tipo ibérico de alimentação,
equilibrado e bem adaptado às condições da vida tropical, constituindo
até certo ponto um verdadeiro fator técnico de aclimatação, não se
pôde manter nas terras do Brasil.
O primeiro obstáculo à sua fixação nestas novas terras foi a
impossibilidade de aí se encontrar ou se produzir o alimento básico da
área alimentar do Mediterrâneo europeu de clima temperado, que é o
trigo. Não dispondo do trigo, o português teve que substituí-lo no
regime alimentar pela farinha de mandioca, alimento bem inferior sob
o ponto de vista nutritivo, com um teor de proteína, de sais minerais e
vitaminas, bem inferior ao do cereal europeu. Procurando-se ajustar às
novas contingências naturais, o colonizador português, de início,
incentivou não só o cultivo da mandioca, mas de outras plantas nativas
que o índio cultivava, tais como o aipim, o amendoim, o ananás, e
procurou introduzir no Nordeste outras plantas que sua experiência de
conquistador de terras tropicais lhe fazia saber propícias ao novo
quadro geográfico. Assim se fez no Nordeste uma tentativa de
policultura, que deveria dar de sobra para manter num regime sadio,
os primeiros colonos da terra de Santa Cruz. Mas como ocorreu em
Barbados, a policultura iniciada tão promissoramente fora logo
estancada pelo furor da monocultura da cana, as roças de mandioca
abandonadas praticamente aos cuidados primitivos do indígena, sem o
amparo e o interesse do colono; as plantações de frutas limitadas aos
pequenos pomares, para uso exclusivo da família do senhor de
engenho, e assim se desfez toda a influência benéfica que a cultura
peninsular poderia ter trazido ao tipo de dieta do Nordeste do Brasil.
É verdade que o índio nativo procurou reagir a essa limitação,
negando-se a colaborar na agricultura do açúcar, no plantio da cana
para a fabricação deste produto de exportação. Mas faltava-lhe força
para influenciar a formação da nova sociedade. A sua influência se
limitou a esta resistência à pressão da monocultura, fugindo para a
floresta e fazendo dela o seu reduto, e defendendo-a com arcos e
flechas, moderando desta forma enquanto pôde, a expansão
monocultora e suas funestas conseqüências.
Já os negros, trazidos da África e sentindo na sua própria carne os
efeitos terríveis da fome, desde que já nos barcos negreiros em que
eram conduzidos morriam em grande número de fome, procuraram
reagir com mais eficácia contra a monotonia alimentar instituída na
região pelos portugueses. Como povo de tradição agrícola, de um tipo
de agricultura de sustentação, o negro trazido da África reagia contra a
monocultura de forma bem mais efetiva do que o índio.
Desobedecendo às ordens do senhor e plantando às escondidas o
seu roçadinho de mandioca, de batata-doce, de feijão e de milho,
sujando aqui e acolá o verde monótono dos canaviais com pequenas
manchas diferentes de outras culturas. Benditas manchas salvadoras
da monotonia alimentar da região. Que o negro nunca perdeu este
instinto policultor, este amor à terra e à agricultura de sustentação,
apesar da brutalidade com que fora arrastado de sua terra, com todas
as suas raízes culturais violentamente arrancadas, é o que podemos
verificar através do estudo da organização econômico-social dos
quilombos, isto é, dos núcleos de negros fugidos e escondidos no
mato. Palmares, que foi o mais significativo dos núcleos de libertação
negra da tirania monocultora, se apresenta como uma demonstração
decisiva da absoluta integração do negro à natureza regional,
aproveitando integralmente os seus recursos naturais, e
desenvolvendo, a favor de suas possibilidades, novos recursos.
Na paisagem cultural de Palmares, com os traços naturais da terra
tão bem ajustados às necessidades do homem, vamos encontrar um
regime de policultura sistemática(8). Uma das principais atividades
dos negros de Palmares era a agricultura de sustentação: agricultura de
milho, de batata-doce, de mandioca, de banana, de feijão, e de outras
plantas alimentares. Infelizmente, essa ação restauradora do negro
também foi limitada, não adquirindo consistência e extensão, capazes
de atuar decisivamente na economia alimentar da região, como
aconteceu na ilha de Jamaica, por exemplo, onde o negro, rebelado
contra a ganância dos plantadores, contribui para melhorar
sensivelmente o regime alimentar da ilha.
No Brasil, a resistência dos índios abstencionistas e dos negros
rebeldes dos quilombos, e mesmo a dos colonos brancos e mestiços,
mais pobres, desprovidos de terra e desejosos de cultivá-la a seu
modo, não deu para vencer a força opressiva do latifundiarismo, para
vencer as proibições contra a agricultura de outras utilidades e a
criação de qualquer espécie, contra as interdições estabelecidas nas
cartas regias(9), e reforçadas ao máximo pela autoridade ilimitada dos
senhores de engenho, onipotentes em seu regime de vida escravocrata
e patriarcal. Homens com ciúme de suas terras maior do que de suas
mulheres e horrorizados com o perigo de que essas terras se
rebaixassem devassamente a produzir qualquer outra coisa que não
fosse cana, qualquer coisa menos nobre, seja de origem índia, seja de
origem negra: mandioca, milho, amendoim, feijão. Assim, subjugados
pela forte pressão dos fatores de natureza econômica, cederam todos à
influência da cana, e o complexo alimentar da região se fixou em
torno da farinha de mandioca, de cultivo fácil e barato, sem grandes
exigências nem de solo, nem de clima, nem de mão de obra.
Complexo da alimentação terrivelmente pobre, que arrastou a área do
Nordeste açucareiro à condição de uma das zonas de mais acentuada
subalimentação do país, mais do que isto, de zona realmente de fome e
de fome crônica e endêmica.
Em todos os tempos, os viajantes que por essas regiões passaram,
sempre se referiram à pobreza e à monotonia de sua alimentação.
Através de escritos como o do Padre Fernão Cardim, das cartas do
Padre Vieira, das impressões de viagem de ingleses e franceses, dos
estudos com certo ar científico dos doutores da época e de outros
documentos históricos, verifica-se a constante precariedade da
alimentação regional, podendo-se concluir que, desde quase o início
da colonização brasileira até hoje, a alimentação dessa área do
Nordeste sempre fora de má qualidade.
O que não se sabia com exatidão era até que ponto essa
alimentação defeituosa influía na saúde dos habitantes da região.
Procurando esclarecer o assunto, levamos a efeito em 1932, um
inquérito sobre as condições alimentares do povo dessa área, e seus
resultados, confirmados por outros vários inquéritos posteriormente
realizados, vieram provar que o regime alimentar do Nordeste
açucareiro, era um regime de fome e era de fome que mais se morria
no Nordeste: das conseqüências da fome crônica em que vivem há
séculos as populações regionais. Sofre-se nessa região de todas as
variedades de fomes específicas, de fomes parciais, de fomes ocultas.
De fome de proteínas, de fome de sais minerais, de fome de vitaminas.
Enumerar as várias espécies de fomes aí reinantes, seria um desfilar de
contas de um interminável rosário, seria um nunca--acabar de
doenças, de males, a serem exibidos. Por isso, apenas apresentamos
algumas das formas de fome existentes na região: as formas mais
graves, as mais extensas, as mais generalizadas. A primeira
manifestação de fome nessa região é a deficiência ou insuficiência
calórica da dieta.
Por sua conta decorre em grande parte a reduzida capacidade de
trabalho dessa gente e, portanto, a sua limitada capacidade produtiva,
desde que essa gente se cansa ao menor esforço, não sendo capaz de
acompanhar o ritmo de trabalho do operário de outras regiões, de
melhor tipo de alimentação, do sul do país, ou mesmo dos habitantes
da zona do sertão. O sertanejo sempre se sentiu superior ao habitante
do brejo, isto é, da área do açúcar, tachando-o de preguiçoso por sua
menor capacidade de trabalho. Outra deficiência específica, e esta a
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A dura realidade do Nordeste brasileiro

  • 1. JOSUÉ DE CASTRO SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXÃO ENSAIO SOBRE O NORDESTE, ÁREA EXPLOSIVA 2.ª EDIÇÃO EDITORA BRASILIENSE SÃO PAULO 1 9 6 7
  • 2.
  • 3. Das abas do livro: JOSUÉ DE CASTRO era o representante do Brasil na Conferência do Desarmamento de Genebra quando foi surpreendido com o decreto da cassação de seus direitos políticos. Não sendo um político de grande projeção no Governo passado ou que nele tivesse exercido Uma influência muito marcada, a sua cassação pareceu a muitos incompreensível. Na realidade, era a sua obra que atraía sobre ele a ira das forças que subiram ao poder com o movimento de Abril de 1964 — esta mesma obra que, traduzida em 19 idiomas e divulgada no mundo inteiro numa tiragem que hoje alcança mais de um milhão de exemplares, fez de Josué de Castro um vulto de imensa projeção internacional. Os seus trabalhos foram considerados, no campo da alimentação, tão revolucionários quanto os de Copérnico no domínio da astronomia. Ele denunciou a fome universal como uma praga fabricada pelo homem e não como um fenômeno natural, mostrando a inconsistência e o falso das teorias neomalthusianas, que visam apenas a defesa das minorias privilegiadas contra os interesses autênticos das maiorias espoliadas, as grandes massas deserdadas do mundo subdesenvolvido. Escritor, cientista e professor universitário foi ele o pioneiro no Brasil dos estudos científicos sobre alimentação, tendo realizado em 1933 o primeiro inquérito levado a efeito para apurar as condições de vida de nosso povo. Natural de Recife, impressionou-se com a miséria em que vivia a maioria de sua população, atormentada pela fome. A princípio deu expansão à sua sensibilidade em obras de ficção, contos hoje reunidos em seu livro "Documentários do Nordeste" nos quais retratou com impressionante vigor literário a tragédia daquele povo. A fome passou a ser o objetivo de seus estudos. Passou a estudá-la cientificamente, tal como ela se manifesta em nosso país, publicando sua conhecida obra "Geografia da Fome"; para, em seguida aplicando o seu novo método de trabalho sociológico em escala universal, apresentar o seu livro "Geopolítica da Fome", que teria imensa repercussão internacional. Seu livro foi laureado pela Academia Americana de Ciências Políticas com o prêmio Franklin D. Roosevelt e ao mesmo tempo pelo Conselho Mundial da Paz com o prêmio
  • 4. Internacional da Paz, evidenciando assim tratar-se de uma obra profundamente humana elaborada acima das posições partidárias e das intolerâncias políticas. A Associação Brasileira de Escritores e a Academia Brasileira de Letras também laurearam a obra de Josué de Castro com os prêmios Pandiá Calogeras e José Veríssimo. Mas Josué de Castro não se limitou a publicar o seu grande livro "Geopolítica da Fome". Dedicou toda sua vida ao estudo deste flagelo, publicando os trabalhos nos seus outros volumes de ensaios — o de Biologia Social e o de Geografia Humana, trabalhos que lhe valeram ser eleito em 1951 para o alto cargo de Presidente da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (F.A.O.), e acaba de publicar seu último ensaio sobre o Nordeste, "Sete Palmos de Terra e um Caixão". É a lista de seus livros que vêm chamando a atenção de nosso povo sobre um grave problema do nosso país que parece não merecer a devida atenção dos nossos governantes, o da situação de miséria e atraso em que vivem milhões de brasileiros, principalmente no Nordeste do nosso país. Os seres humanos são muito propensos a querer ignorar ou considerar do domínio da utopia os problemas que não podem resolver ou que lhes parecem de difícil solução. Afora o seu valor científico e literário, aí reside o sentido prático da obra de Josué de Castro; o de chamar a atenção de nosso povo para um problema cuja solução não comporta mais delongas.
  • 5.
  • 6. OBRAS COMPLETAS DE Josué de Castro A OBRA CULTURAL BRASILEIRA MAIS DIFUNDIDA E COMENTADA NO MUNDO INTEIRO Publicada no mundo num total de mais de 400.000 exemplares. Premiada nos E.U.A. com o Prêmio Franklin Delano Roosevelt — 1952. Traduzida em 19 idiomas. Consagrada com o Prêmio Internacional da Paz — 1954. Selecionada nos E.U.A. pela organização do livro do mês, do Book Find Club. Distinguido um dos seus livros — a Geopolítica da Fome — pela Associação Americana de Bibliotecas, como um dos "livros notáveis" de 1952, Condensada a obra pelas publicações "Colliers" e "Reader's Digest Catholic", nos E.U.A. e por "Constellation", na França. Prefaciada em suas edições estrangeiras por personalidades invulgares, tais como Lorde Boyd Orr, Pearl Buck, de André Mayer, Max Sorre, Cario Levi e Pedro Escudero. Obra distinguida pela Associação Brasileira de Escritores com o Prêmio Pandiá Calogeras. Obra consagrada pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio José Veríssimo. Constituem as suas Obras Completas os seguintes volumes: I VOL. — Geografia da Fome II VOL. — Geopolítica da Fome (I parte) III VOL. — Geopolítica da Fome (II parte) IV VOL. — Documentário do Nordeste V VOL. — Ensaios de Geografia Humana VI VOL. — Ensaios de Biologia Social VII VOL. — O Livro Negro da Fome VIII VOL. — Sete Palmos de Terra e um Caixão Um aspecto da realidade brasileira e o grande drama do Mundo — a Fome — estudados por um cientista e divulgados por um escritor de invulgar mérito literário. A coleção que todo brasileiro deve possuir em sua estante. EDITORA BRASILIENSE EM TODAS AS LIVRARIAS OU PELO REEMBOLSO POSTAL Rua Barão de Itapetininga, 93 - 12º andar . Caixa Postal 30.644 - São Paulo
  • 7. Convém notar, de logo, que a ciência tem um ponto de partida e que este ponto de partida é o senso comum. JEAN WAHL Pensamos que a obra do sociólogo será sempre uma intervenção e que será enganar aos outros e iludir a si mesmo, se não tomamos em consideração esta verdade e a responsabilidade que ela comporta. CAMILLO PELLIZI
  • 8. DON FERNANDO DE OLIVEIRA: Vous ovibliez que des milliers, des millions, d'Indiens brûleraient pour l'éternité en enfer, si les Espagnols ne leur apportaient pas la foi. DON ÁLVARO DABO: Mais des milliers d'Espagnols brûleront pour 1'éternité en enfer, parce qu'ils seront allés au Nouveau Monde. DON BERNAL DE LA ENCINA: Comme si, bien avant Grenade, on n’aimait pas 1'or! DON ÁLVARO DABO: On aimait For parece qu'il donnait le pouvoir et qu'avec 1e pouvoir on faisait de grandes choses. Maintenant on aime le pouvoir parce qu'il donne l'or et qu'avec cet or on en fait de petites. Henry de Montherlant dans la pièce "Le Maître de Santiago"
  • 9. ÍNDICE EXPLICAÇÕES .................................................................................. 11 INTRODUÇÃO ................................................................................... 13 CAPÍTULO I A Reivindicação dos Mortos ........................................................... 23 CAPÍTULO II Seiscentas Mil Milhas Quadradas de Sofrimento ........................... 37 CAPÍTULO III A Primeira Descoberta: O Feudalismo Português do Século XVI ........................................ 95 CAPÍTULO IV O Brasil Colonial: A Ausência do Povo ou a Luta Contra o Progresso ...................... 115 CAPÍTULO V A Segunda Descoberta ou a Conscientização do Povo Nordestino 142 CAPÍTULO VI O Nordeste e a América Latina ...................................................... 165 CAPÍTULO VII Anos Decisivos .............................................................................. 183 Biografia do autor ......................................................................... 216
  • 10.
  • 11. EXPLICAÇÕES Este livro foi escrito entre outubro de 1962 e fevereiro de 1964. Quando a 1.° de abril deste ano um movimento militar depôs o Presidente Goulart, estabelecendo um novo governo no Brasil, os originais deste livro já se encontravam nas mãos do tradutor, que terminava a sua versão inglesa. O primeiro impulso do autor foi o de pedir a devolução destes originais para acrescentar ao livro um novo capítulo, concernente a este recente episódio, tão ligado em suas origens e em sua expressão política à luta que se vem travando com intensidade crescente no Brasil, entre as forças de emancipação nacional e as forças de contenção do desenvolvimento econômico- social do país. Mas, melhor refletindo, resolveu o autor deixar que o livro fosse publicado tal como fora concebido e redigido, antes do golpe militar de 1.° de abril: Pesou sobremodo nesta sua decisão a convicção de que nada poderia ele acrescentar ao livro que explicasse melhor os fatos recentemente ocorridos, do que o conhecimento dos antecedentes históricos desta região explosiva e da sua interpretação sociológica, como tentara o autor apresentar neste livro, antes de saber quando e como poderia ocorrer a explosão. Acrescentar qualquer coisa depois que suas previsões já começam a se realizar seria tirar o possível valor do livro como diagnóstico e como prognóstico de uma situação histórico-cultural. Seria reduzi-lo a um simples inventário das calamidades que o Brasil atravessa. Preferimos, pois, publicar o diagnóstico, ou seja, uma interpretação e não um inventário. Devemos também explicar, que na elaboração deste livro, contou o autor com a colaboração do sociólogo brasileiro Alberto Passos Guimarães, a quem se deve a fundamentação dos capítulos dedicados ao estudo do feudalismo agrário brasileiro e da sua evolução sociológica. Contou, também, com a cooperação de vários amigos e colegas do Nordeste, que lhe enviaram informações e dados recentes
  • 12. da situação econômico--social da região durante o período de preparação deste ensaio, pensado e escrito na Europa. A todos que prestaram generosamente sua contribuição à realização deste livro, desejamos apresentar nossos sinceros agradecimentos. Genebra, maio de 1964. J. C.
  • 13. INTRODUÇÃO O Nordeste do Brasil foi descoberto pelos portugueses no ano de 1500 e pelos norte-americanos no de 1960. As duas descobertas foram feitas por engano. Em 1500 graças a um erro de navegação; em 1960 graças a um erro de interpretação. Os aportugueses erraram na geografia; os norte-americanos na história. Mas, nos dois casos, os desvios de rota — a distorção da rota oceânica ou da rota sociológica — contam decisivamente na História. Sobre o primeiro engano — a descoberta casual feita por Pedro Álvares Cabral há quase cinco séculos — existe hoje uma literatura abundante. Sobre a segunda descoberta, ainda tão recente, a literatura é pobre. Este livro pretende representar um documento desta segunda descoberta: uma modesta contribuição à história da redescoberta do Nordeste brasileiro. Uma espécie, mal comparando, de carta de Fero Vaz Caminha (1) dos nossos dias, na qual as coisas sejam mostradas como as coisas são, em sua dura e crua realidade. Mostrando-se sempre as duas faces da medalha: a face boa e a face má. A que nos enche de orgulho e a que nos mata de vergonha, Evitaremos desta forma que aconteça com o Nordeste o que costuma acontecer em seguida às grandes descobertas: a tendência à disseminação pelos quatro cantos da Terra de um mundo de lendas, em lugar de fatos, servindo à formação de uma falsa imagem da terra e do povo descobertos. Isto é hoje tanto mais perigoso quando vivemos numa era de slogans. Dos slogans jornalísticos, que tentam reduzir toda a terra esquematicamente a um tabuleiro de xadrez, com os seus quadrados exatos e com os exatos limites das suas diferentes colorações. Como todo livro significa, em última análise, uma explicação, pretende começar por explicar este livro, por explicar o seu como e o seu porquê. Como o autor o concebeu e porque assim o concebeu. Talvez esta explicação preliminar, na qual o autor procura se explicar como autor, facilite ao leitor a tarefa de aceitar as explicações do livro. Isto seria uma grande coisa. Seria alcançar praticamente todos os nossos objetivos que não são outros senão o de obter aliados conscientes para defender certas idéias que, a nosso
  • 14. ver, merecem ser ardorosamente defendidas. Uma das primeiras coisas que me parece necessário explicar é que este livro foi especialmente escrito a pedido de uma editora dos Estados Unidos da América para o público norte-americano. E que desta forma não se deve admirar o leitor brasileiro de nele encontrar muitas coisas que lhe parecerão por demais sabidas, desde que ele as conhece como se fossem traços da palma de sua mão, mas que, no entanto, são coisas totalmente ignoradas pelo leitor médio dos Estados Unidos, como se fossem traços da outra face da Lua. Escrevendo para um mundo tão diferente do nosso, tão distante de nossa realidade social, era preciso dar uma idéia precisa da região estudada, caracterizando-a com o que ela tem de mais típico, e, portanto, de mais conhecido no seu contexto social. Não podia, pois, fugir o autor a esta enumeração de muita coisa que pode parecer demasiado terra a terra aos olhos dos habitantes da Terra ou dos estudiosos e dos eruditos, dos seus hábitos e costumes tradicionais. Mas, desta tela de fundo bem conhecida em seu conjunto, o autor procura destacar numa perspectiva, que ele julga até certo ponto diferente, alguns traços fundamentais já conhecidos e outros, que até hoje tinham passado desapercebidos da maioria, e desta forma, o retrato que ele pretende traçar do Nordeste talvez apresente alguma coisa do novo. Pelo menos naquilo que no próprio Nordeste também é novo, como é o caso da revolução social que aí se processa em nossos dias. Arrisca-se deste modo o autor a ser julgado por uns como um repetidor maçante de coisas já ditas e por outros como um grande fantasista, que pinta uma realidade da qual os outros autores nunca se tinham dado conta. Tínhamos consciência destes riscos, quando empreendemos nosso projeto, e estamos preparados para correr estes riscos. Eles constituem mesmo, a nosso ver, parte integrante da nossa tarefa. É que não tencionamos escrever um livro neutro. Um livro com pretensões a ser uma fria e rigorosa análise científica da realidade social do Nordeste. Não. Não é este um ensaio de sociologia clássica. De uma sociologia acadêmica, espartilhada na camisa de força de uma metodologia que sempre tentou separar, no sociólogo, o investigador do homem, c limitando sempre a função do
  • 15. sociólogo, a de um simples inventariante de tudo aquilo que se apresenta aos seus olhos, teleguiados por métodos de trabalho consagrados. O nosso estudo sociológico é o oposto deste gênero de ensaio. É um estudo de sociologia participante ou comprometida(2). De uma sociologia que não teme interferir no processo da mudança social com os seus achados e, por isto mesmo, não tem o menor interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes dominantes. De uma sociologia que estudando cientificamente a formação, a organização e a transformação de uma sociedade em vias de desenvolvimento, compreende e admite que os valores mais desejáveis por esta sociedade são os ligados à mudança e não à estabilidade, e, por isto mesmo, se aplica em aprofundar ao máximo o seu conhecimento científico do mecanismo destas mudanças. Digo o conhecimento científico, porque, a meu ver, a sociologia comprometida com o processo social não deixa de ser científica, por este seu engajamento. Ao contrário, ela é bem mais cientifica do que a antiga sociologia, que se presumia científica, mas não passava em seu falso cientificismo de um instrumento de inconsciente mistificação da realidade social, cujo contado direto ela sempre evitava, preocupada pela fragilidade dos sistemas em vigor e pelo receio de que ao menor contado tudo pudesse vir abaixo. No fundo, a antiga sociologia era mais utópica do que científica, e a sua utopia consistia exatamente no seu inconsciente desejo de que o processo social se imobilizasse, para ser melhor fotografado. Desta forma, a antiga sociologia era bem mais comprometida do que a sociologia nova, cuja validade científica defendemos. Mas era comprometida com uma ideologia do imobilismo, de uma imagem, estática da sociedade, considerada como uma coisa já feita, definitiva e perfeita, enquanto a nova sociologia considera a estrutura social como um processo em constante e rápida transformação. Ademais, a verdadeira sociologia científica, como qualquer outro ramo da ciência contemporânea, é bem menos arrogante acerca de suas verdades do que a sociologia clássica, desde que hoje se sabe muito bem como todas as verdades são relativas. E que o que chamamos de realidades científicas, não só no mundo da sociologia, mas mesmo no terreno mais sólido da natureza
  • 16. física, são sempre produtos da interação entre os próprios fatos e o ato de observar do pesquisador, e que na verdade não existem realidades fora do campo de nossa observação. Há apenas possibilidades. A transição do possível ao real tem lugar sempre durante o ato de observar, como afirmou Heisenberg, pondo uma nota de prudência na atitude um tanto imprudente de certos tipos de cientistas intolerantes(3). As verdades científicas são, pois, sempre relativas, desde que estão sempre na estrita dependência do momento da observação e da perspectiva em que se coloca o observador. Não é outro o sentido mais geral da teoria da relatividade de Einstein, através da qual se chega à conclusão inapelável de que o que nós descrevemos, em verdade, não é a Natureza tal qual ela é, mas tal qual ela se mostra na perspectiva dos nossos métodos de observação. É esta inserção inevitável do observador sociológico dentro do processo social que, a nosso ver, torna impossível a sua não participação nos fenômenos que ele observa, invalidando a sua pretensão de obter uma imagem do real que não seja deformada, já não digo por sua ideologia, mas por sua idealização, isto é, pelas imagens preconcebidas do seu conhecimento existencial(4). Se a reprodução das imagens do mundo natural é sempre eivada de certas deformações, imagine-se como não crescem estas deformações, quando se observa o mundo dos fenômenos sociais: da vida humana associativa, à qual o observador está ligado por laços de solidariedade ou de antagonismo, dos quais a própria estrutura do seu pensamento lógico não poderá jamais se libertar inteiramente(5). Aí estão as razões porque não acreditamos no que se chama de sociologia independente, de sociologia neutra sem outras ligações com os aspectos sociais que os de sua fria e distante observação. É este o nosso conceito de sociologia, e é esta a perspectiva sociológica em que levaremos a efeito este ensaio. Os fatos nele expostos deverão ser tomados sempre como a cristalização do que se está passando no Nordeste do Brasil, na perspectiva de um estudioso destes problemas, mas que é ao mesmo tempo um habitante desta região, impregnado de corpo e alma da vida desta terra e do sentimento de sua gente. Que embora este estudioso tenha vivido em vários países do mundo, nunca se libertou inteiramente da crosta telúrica que recobre até hoje a sua
  • 17. pele e a sua alma, e que dele faz, um eterno regionalista, embora com pretensões de ser um espírito universal, mas que põe sempre como termo de comparação ao seu universalismo os valores regionais da terra onde nasceu e onde formou a sua mentalidade. Na verdade o que queremos impor ao mundo, com este livro, é um retrato do Nordeste como o vê um homem desta região, embora extremamente interessado pelo espetáculo do mundo. Retrato que, a nosso ver, representa a realidade com menores deformações do que os retratos do Nordeste, traçados com o maior rigor e probidade cientifica pela maioria dos estudiosos dos problemas sociais, habitantes de outras terras ou continentes. E isto porque as perspectivas desses estudiosos, longe de ajudá-los, os conduzem Irremediavelmente às grandes deformações. Deformações tanto maiores quanto mais eles tentam penetrar nossa realidade, para superpô-la, através do método comparativo, às realidades sociais com que estão familiarizados em seus países, transformando-se perigosamente naquilo que um sociólogo brasileiro chamou com muita propriedade de "transferidores de cultura". Na verdade, foi nesta direção que partimos. Na busca de um retrato sociológico do Nordeste. Mas no caminho verificamos que o retrato assim pintado arriscava a apresentar-se um tanto incompleto: ser muito estilizado ou muito fotográfico. Duas deformações que desejávamos evitar. Já demos a entender que o nosso objetivo fundamental é o de mostrar o processo de transformação social acelerado que o Nordeste está vivendo. E mostrá-lo, no contexto integral de suas trágicas contradições e dos dilacerantes antagonismos de suas forças sociais. São as mudanças, os traços cambiantes de sua paisagem humana, que desejamos apreender e retratar: o complexo problema do seu desenvolvimento econômico e social. Processo de uma tal complexidade, pelo jogo dos múltiplos fatores que deles participam, que torna difícil o seu approach através de um ataque unilateral por meio das indagações válidas que lhe possa fazer qualquer disciplina científica isolada, mesmo quando esta disciplina é a sociologia habituada a lidar com sistemas complexos. A verdade é que os especialistas, se sentem submersos diante do mundo de variáveis que encobrem todo o seu horizonte de observação,
  • 18. quando procuram analisar o processo de desenvolvimento. Como a característica essencial da ciência sempre foi a da simplificação e da eliminação das variáveis em busca de leis gerais, esta tentativa no campo do desenvolvimento social jamais poderá ser levada a efeito por um só setor de especialistas: sejam eles geógrafos ou antropólogos, sociólogos ou economistas. "Na prática, a complexidade do processo do desenvolvimento, torna os especialistas ou o técnico auto-suficiente extremamente perigosos, e isto porque nenhuma mentalidade isolada é capaz de compreender, em sua totalidade, todas as nuances de uma sociedade em transição", afirmou um editoria-lista do New Scientist(6). O assunto realmente extrapola os limites de qualquer disciplina e este tem sido um dos principais motivos dos seguidos fracassos dos planos de desenvolvimento elaborados no papel, por economistas renomados, que dispunham, entretanto, apenas de uma visão puramente econômica do problema. Para evitar o fracasso irremediável do retrato que tínhamos em. mente traçar do Nordeste, fomos conduzidos à necessidade de não limitarmos o nosso ensaio às fronteiras convencionais da sociologia, mesmo de uma sociologia libertada das peias do convencionalismo clássico(7). Adiamos que, para dar ao retrato um colorido que não se distancie muito das nuances vivas de sua realidade, tínhamos que usar tintas de várias origens, molhando aqui e acolá o nosso pincel no campo da geografia, da economia, da antropologia, da etnografia e de várias outras disciplinas, que tentam surpreender aspectos parciais da vida coletiva. Foi desta forma que chegamos à conclusão que o nosso ensaio não podia rigorosamente ser considerado como um ensaio sociológico. É apenas um ensaio, tomando-se a palavra na acepção de tentativa: tentativa de penetrar o por-dentro das coisas. É esta uma tentativa de interpretação desta região, considerada uma das áreas explosivas do mundo de nossos dias. Isto é, como uma área onde as tensões sociais, estão alcançando os limites do tolerável — limite em que os conflitos latentes entram em combustão violenta, provocando a explosão social. É esta uma das poucas observações válidas no contexto das lendas que hoje circulam no mundo sobre o Nordeste brasileiro. O Nordeste é realmente uma área explosiva, como
  • 19. procuraremos mostrar neste ensaio, com uma carga explosiva bem maior do que as cargas existentes na maioria das supostas áreas explosivas da África e do Oriente: no Congo, na África do Sul, na Índia, no Vietnam. E se nessas zonas da África e da Ásia os sintomas de explosão se tem manifestado com maior insistência, é que os fatores capazes de detonar o processo têm sido aí bem mais ativo, e continuamente postas em ação a propaganda ideológica e a liderança revolucionária. Bem mais ativos do que no Nordeste do Brasil, onde a tensão social explosiva nunca foi habilmente canalizada para o caminho da revolução. Foi, quando muito, estimulada como instrumento de demagogia política ou como arma de luta de um grupo contra outro grupo de poderosos, nunca como autêntica força de libertação através da explosão popular. Mas força explosiva não falta. O que tem faltado é o estopim, ou quem acenda o estopim. A análise elucidativa desta situação de suspense social, na qual poderá de repente se cristalizar uma nova força detonante, capaz de se propagar rapidamente por toda a. massa explosiva mantida até hoje sob pressão, constitui um objetivo da mais alta importância para o Nordeste e para o mundo. Para o Nordeste, porque o conhecimento exato da situação poderá permitir que sejam essas forças ou tensões sociais convenientemente dirigidas num sentido construtivo e criador. E para o mundo, porque o problema das tensões sociais do Nordeste é, com algumas nuances que o singulariza, o mesmo problema das tensões sociais reinantes em todo o mundo subdesenvolvido, que representa em seu conjunto um dos pólos explosivos do mundo atual. É claro que no esquema geral de nossos objetivos, no que diz respeito ao próprio Nordeste, não acreditamos que qualquer interpretação de sua realidade, por mais lúcida que ela seja, possa ter a virtude mágica de mudar a direção da História e de resolver da noite para o dia os angustiantes problemas da região. Mas estamos certos de que a análise acurada dos fatores subterrâneos desse drama sociológico e a sua revelação à consciência coletiva ajudarão o processo de conscientização(8) das massas nordestinas, que é o fenômeno mais característico da dinâmica social desta área nos nossos dias, e através da qual essas massas tomam hoje consciência de seus angustiantes problemas e procuram acelerar por todos os meios as
  • 20. reações sociais, necessárias à sua libertação do círculo angustiante das privações que criaram a sua angústia ou neurose coletiva. A psicanálise desta neurose, causada por inúmeros complexos de frustração de um povo espoliado e oprimido há vários séculos, deve ser levada a afeito com acuidade e com probidade. Não apenas para resolver os conflitos psicológicos que geram a própria neurose e que, desmontados, poderão curá-la, provocando no entanto com a cura o esvaziamento de toda a energia criadora, indispensável à vida, tanto dos indivíduos como da coletividade. Não apenas para realizar esta espécie de castração, que c em certos casos o processo analítico redutivo, quando em sua cura aparente extermina também a vitalidade que dá sentido à própria vida, mas sim para revelar tanto a natureza exata dos problemas, como os caminhos possíveis que poderão ser encontrados, para se transpor os obstáculos aparentemente intransponíveis. É dentro destes princípios da técnica construtiva prescrita por Jung(9), que julgo útil levar a efeito uma análise da alma coletiva do Nordeste, para que possa o seu povo consumar o processo de sua revolução social, com o mínimo de sofrimento e com o mínimo de violência. E para levá-la a efeito com a necessária convicção que é este o único remédio para os seus males e que este remédio está ao seu alcance. E, quanto ao mundo, qual a sua atitude diante deste drama regional? Que interesse poderá ter para o mundo a sorte destes nordestinos, devorados por seu complexo de frustração e colocados à margem da História, da qual praticamente nunca participaram? A nosso ver, o interesse do mundo por esta área já hoje é bem grande c tende a crescer cada vez mais. E isto por várias razões. As elites dirigentes dos países líderes começam hoje a se aperceber que um grande número de seus erros de julgamento, de desastrosas conseqüências para os seus interesses, foram produtos de sua quase que total ignorância da carta do mundo (10). Da carta do grande mundo e não do pequeno mundo das suas preocupações mais imediatas, no qual se concentrara até a primeira guerra mundial todo o interesse dos povos bem desenvolvidos: o chamado Mundo Ocidental. Até então era como se só o Ocidente existisse (e o Ocidente era apenas o conjunto dos países colocados dos dois lados do Atlântico Norte), e como se o resto do mundo fosse apenas uma vaga
  • 21. massa de terra sem maior interesse nem significação. Esta a imagem que nos evoca Toynbee(11) quando nos fala do Mundo e do Ocidente: o Ocidente sujeito fabricante da História, e o mundo, isto é, o resto, apenas como objeto desta História. Esta é a história das agressões do Ocidente contra o mundo, que Toynbee descreve com tanta lucidez. Mas, do próprio encontro do Ocidente com o mundo, que o mesmo Toynbee considera como o mais significativo acontecimento da história moderna, nasceu uma nova consciência política mundial — a consciência de que o mundo já não é apenas o Ocidente. Que não há apenas um centro de gravitação no mundo, que, de acordo com os historiadores do começo do nosso século, estava colocado no centro da Europa, considerado como o coração da terra — the heartland — sendo o resto uma espécie de ilha. A ilha do mundo, de que nos deixou um mapa expressivo o criador desta teoria do heartland, Halford Mackinder(12). Hoje, o centro do mundo está por toda parte e a ilha do mundo passou a fazer parte do continente da História, porque por toda parte hoje se faz história, e essa história repercute em toda parte do mundo. Daí a preocupação mundial em nossos dias de conhecer melhor terras como estas do Nordeste, que até ontem pareciam sem qualquer significação para o mundo, mas que hoje se apresentam como um foco de grande interesse internacional, pela carga de explosão social que encerram, podendo se converter, de repente, no cenário de profundas transformações históricas. É constatando hoje a profunda verdade contida na frase de um estadista do império britânico, quando diz que "o custo da ignorância geográfica tem sido incomensurável", e não querendo ser tomado de surpresa pelos fatos históricos em seu acelerado suceder que os dirigentes do mundo de hoje estão tão interessados em atualizar a sua carta do inundo e em precisar nela os traços mais significativos destas áreas de maior tensão social onde as forças de transformação ameaçam romper os diques das forças de contenção, alterando os desenhos da carta atual. O Nordeste brasileiro, é sem nenhuma dúvida, uma destas áreas. Daí o interesse do mundo em obter uma imagem mais exata de sua realidade social, uma imagem isenta de preconceitos e de falsas noções. Em obter, numa palavra, uma carta atualizada da região.
  • 22. Um dos objetivos deste livro ó o de fornecer elementos informativos seguros para o levantamento desta carta. E de fornecê- los principalmente aos Estados Unidos e a certos países da Europa onde hoje tanto se fala do Nordeste, sem se dizer quase nada do verdadeiro Nordeste e dos seus autênticos problemas humanos. Foi esta a razão principal que nos levou a aceitar a proposta de uma editora norte-americana para escrever este pequeno livro. Livro no qual tentaremos dar uma imagem mais nítida da realidade social dessa região onde vinte e três milhões de seres vivos lutam para abrir o caminho de sua emancipação, através do denso cipoal trançado pelas circunstâncias históricas adversas, produtos de erros e omissões, tanto da política nacional como da política internacional. É este o nosso principal objetivo, ao escrevermos este livro; o de fazer penetrar um pouco de luz neste cipoal escuro, embora esteja o autor, certo de que esta luz só chegará aos olhos daqueles que realmente querem enxergá-la, porque os outros, aqueles que se negam a ver a evidência, diante de livros como este, ficarão ainda mais cegos — cegos de raiva ou cegos de medo. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS Introdução 1 - VAZ DE CAMINHA, PERO, Carta a El-Rei D. Manuel, 1500. 2 - FERRAROTE, FRANCO, La Sociologia come Partecipazione, Turim, 1961. 3 - HEISENBERG, W., Physique et Philosophie, Paris, 1951. 4 - WAHL, JEAN, Science et Philosophie, in "Civiltà delle Macchine", Roma, n.° 2, 1963. 5 - MERTON, ROBERT K., Social Theory and Social Structure, Glencol, 1957. 6 — Editorial World of Opportunity, in "New Scientist", n.° 326, 14 de fevereiro de 1953. 7 — MACCLUNG LEE, A., Partecipazione ed Analise Nella Recerca Sociológica, in "Rassegna Italiana di Sociologia", janeiro-março de 1961. 8 - ÁVILA, FERNANDO BASTOS de, A Realidade Brasileira em sua Dimensão Sociológica, in "Síntese Política, Econômica, Social", Rio de Janeiro, n.° 14, 1962, 9 - MARTIN, P. W., Experiment in Depth, Londres, 1955. 10 - MENDE, TIBOR, Regards sur 1'Histoire de Demain, Paris, 1954. 11 - TOYNBEE, ARNOLD, The World and the West, Oxford, 1953. 12 - MACKINDER, HALFORD, Our Evolving Civilization, an Introduction to Geopolitics, Toronto, 1947.
  • 23. CAPITULO I A REIVINDICAÇÃO DOS MORTOS Nenhum dos mortos daqui vem vestido de caixão. Portanto eles não se enterram são derramados no chão. JOÃO CABRAL DE MELLO NETO em "Cemitérios Pernambucanos" EM 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundava a primeira das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Não fora seu objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar as condições de vida dos camponeses da região açucareira, ou de defender os interesses desses bagaços humanas, esmagados pela roda do destino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos de açúcar. O objetivo inicial das Ligas fora o de defender os interesses e os direitos dos mortos, não os dos vivos. Os interesses dos mortos de fome e de misérias; os direitos dos camponeses mortos na extrema miséria da bagaceira. E para lhes dar o direito de dispor de sete palmos de terra onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o seu corpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedade do morto, para com ele apodrecer lentamente pela eternidade afora. Para isto é que foram fundadas as Ligas Camponesas. De início, tinham assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo porque com a vida não havia muito o que fazer... Só mesmo a resignação. A resignação à fome, ao sofrimento e à humilhação. Mas,
  • 24. se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida — em lutar por uma vida melhor e mais decente, por que este obstinado empenho em reivindicar direitos na morte? Reivindicação de mortos que nunca tiveram direito em vida! Por que esta desvairada aspiração de possuir, depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem na vida não dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase todos, aos imensos batalhões dos sem--terra que povoam o Nordeste brasileiro? E por que este desespero em possuir um caixão próprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte nunca foram proprietários de nada — nem de terra, nem de casa, nem mesmo do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados a vida inteira aos senhores da terra? Por que esta conduta aparentemente tão estranha, tão em contradição com o conformismo, a apatia, a resignação desta pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando a gente compreende que, para os camponeses do Nordeste, a morte é que conta, não a vida, desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela, eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho esfalfante e da eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante da seca, da polícia, da fome e da doença. Para eles só a morte é uma coisa certa, segura, garantida. Um direito que ninguém lhes tira: o seu direito de escapar um dia pela porta da morte, do cerco da miséria e das injustiças da vida. Tudo mais é incerto, improvável ou impossível. Daí o interesse do camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que ele encara como o da sua libertação à opressão e ao sofrimento da vida. "Aos pobres de espírito pertence o reino dos céus", dizem as Escrituras Sagradas. Palavra consoladora para aqueles que há muito já tinham perdido toda a esperança de conquistar um lugar decente nos reinos da Terra. A larga experiência de mais de quatro séculos de um regime agrário de tipo feudal — ali implantado pelos colonos portugueses sob a forma do latifúndio escravocrata, produtor de açúcar (1) — e a resistência invencível deste regime em ceder a qualquer exigência ou reivindicação dos camponeses para melhorar um pouco suas trágicas condições de vida acabaram por dar a esta gente o sentimento da inutilidade de qualquer esforço para sair do atoleiro de sua miséria. A poesia popular, os a-bê-cês dos cantadores, a tradição e a História sempre se referiram às antigas revoltas camponesas como a
  • 25. "Balaiada", "A República de Palmares", "Canudos", nas quais camponeses desesperados lutaram inutilmente contra os senhores prepotentes. É verdade que, para sermos justos, não podemos esquecer que os escravos descendentes dos negros trazidos da África pelos portugueses tinham obtido em 1888 a sua libertação. A libertação de sua "galé perpétua" de que falava Castro Alves, o poeta da Abolição. Mas, ter- se-ia mesmo libertado, os escravos, da escravidão? Ou apenas se tinham libertado do opróbrio de serem chamados escravos, para continuarem os mesmos escravos com o nome de moradores — de servos de seus antigos senhores feudais? A verdade é que, escravos ou servos, moradores ou foreiros, o que lhes tocara até hoje fora sempre a mesma cota de sacrifícios, de trabalhos forçados, de fome e de miséria: a mesma herança que lhes havia legado a escravidão. Deixando de serem escravos de um dono, para serem escravos de um sistema: escravos do latifúndio açucareiro. Para serem triturados como bagaço pela engrenagem deste sistema econômico, dos mais desumanos que ainda perduram na superfície da Terra. Mas que foi, sem nenhuma dúvida, há quatro séculos, o sistema que deu consistência política e base econômica ao país em formação. Que permitiu que se implantasse neste Nordeste a primeira organização econômica de além-mar, que daria no século XVI à metrópole portuguesa o monopólio de um produto nos mercados europeus: o monopólio da plantação da cana, da indústria e do comércio açucareiros. Tudo isto feito à base do trabalho escravo. Da total escravidão do homem e da terra, submetidos incondicionalmente a serviço da ambição dos grandes senhores feudais de enriquecerem depressa, plantando sempre mais cana e produzindo sempre mais açúcar. E entregando-se de corpo e alma a esta audaciosa aventura açucareira, sem medir suas conseqüências e sem atender a qualquer sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciável apetite do ouro e ao desadorado apetite da cana, objeto de sua adoração. Ao feroz apetite desta planta, de dispor sempre de novas terras para serem engolidas pelos canaviais e de dispor sempre de mais braços humanos para serem quebrados ou esgotados, no eito, plantando, limpando e colhendo cana, ou, nas estradas, puxando e empurrando os carros de
  • 26. cana, ou nas moendas, ou na esteira das usinas, ou nos cais, carregando e descarregando os sacos de açúcar. Se com o tempo a paisagem da região parece ter mudado um pouco — a grande usina moderna tomando o lugar do velho engenho de água ou de lenha, o palacete do dono da usina se erguendo no lugar da casa-grande do engenho — a paisagem humana permaneceu quase que a mesma. Os antigos escravos, que então viviam na senzala, agora espalhados pelas choças e pelos casebres no campo e nas aldeias, ou amontoados nas favelas dos mocambos das cidades, verdadeiras senzalas remanescentes, fraccionadas em torno das novas casas-grandes, os palacetes dos novos senhores da terra. Nenhuma força fora capaz de quebrar o sistema opressor do latifúndio, que vem pesando há séculos, como uma fatalidade sobre a vida do camponês. Os cantadores de feira, sempre exaltaram a coragem indômita dos líderes populares, sacrificados nas ondas violentas da repressão. Mas de que serviu todo este esforço, toda esta violência? Não serviu para nada. Nem a força da bala dos cangaceiros, nem a força da fé dos místicos e dos beatos deram fim ao sofrimento e à opressão, de que até hoje padecem os camponeses. Nem Antônio Silvino e Lampião, heróis do banditismo, cantados pela poesia popular, nem o Padre Cícero de Juazeiro e seus místicos adoradores, puderam mudar o rumo do destino dessa pobre gente, condenada por seu destino histórico a permanecer sempre no fundo do abismo. A se sentirem impotentes, como se o carro de seus destinos se tivesse atolado até o eixo no barro mole das estradas da cana, no massapê fofo e pegajoso onde se atolam os carros de boi. E quanto mais força se faz, mais o carro se atola, como se o diabo ou o destino, ou os dois juntos, agarrassem, de dentro do barro, os raios da roda do carro. Ou como se todos os companheiros de infortúnio tivessem sido empurrados pelo mesmo destino, para dentro de um redemoinho, que fosse como um inferno d'água, com a força da miséria puxando sempre, como a correnteza, mais para o fundo, O atoleiro da vida ou o redemoinho da fatalidade são imagens populares com que a gente do Nordeste exprime, em seu linguajar simples, a sua revelação de um fenômeno social, que os cientistas de hoje, chamaram com Winslow de "processo circular cumulativo" (2). Processo social no qual uma constelação de fatores
  • 27. negativos atuam de tal forma imbricados, que os grupos pobres ficam sempre cada vez mais pobres, enquanto os ricos cada vez enriquecem mais. É a mesma noção do chamado "círculo vicioso da pobreza" de Nurkse (3), no qual a fome e a pobreza, agindo e reagindo como dois fatores de ação cumulativa, fazem com que os famintos não possam comer porque não são capazes de produzir e não produzem porque são famintos. O homem do Nordeste ignora estas sutilezas dos sociólogos, estes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala de fatores negativos agindo como causa e efeito dentro do processo social, mas sente na sua carne a realidade da miséria estagnante e vê sempre crescer diante dos seus olhos a riqueza descomunal dos que enriquecem cada vez mais à custa de sua fome. E é esta revelação que lhe faz dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, que a água só corre para o mar. E correndo sempre para o mar, a água deixa na miséria a terra seca do sertão, e na angústia, a alma ressequida do homem do Nordeste. Tão ressequida que, de vez em quando, esta alma vira pedra — a alma e o coração de pedra dos cangaceiros. Na sua visão fatalista do mundo, estes seres primitivos chegam à conclusão de que não há barragens que possam estancar esta tendência inevitável do destino, que leva sempre a água para o mar, onde menos falta ela faz. Um sentimento de total impotência e da própria desvalia ,se apoderou da alma do camponês nordestino. Daí a sua humildade e o seu aparente conformismo diante dessa conspiração invencível das forças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o esmagarem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de condições de vida? Não foi, portanto, pensando em reivindicações dos direitos espoliados, nem com o desejo de se organizarem para lutar contra a exploração do regime agrário reinante, que os humildes camponeses do Engenho Galiléia fundaram as Ligas Camponesas. Não se chamava o seu engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, onde o doce Jesus pregou pela primeira vez a doutrina da igualdade e da fraternidade humanas, doutrina revolucionária, que, durante dois mil anos, ainda não conseguiu penetrar de verdade na alma empedernida dos falsos cristãos, que dominam uma grande parte do mundo? Portanto, quem melhor armado para entender o profeta da Galiléia do
  • 28. que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nesse Nordeste do Brasil? Pobres como os amou Cristo, que por eles se deixou crucificar para que o reino dos céus se estabelecesse na Terra. Quem melhor para sentir os ensinamentos e as lições de amor do grande profeta da Galiléia do que esta gente destituída de tudo, sem maiores ambições neste mundo? Apenas ambicionando um dia se apresentarem bem diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suas aspirações pareceram um tanto excessivas aos olhos dos outros cristãos, os cristãos proprietários de terras, donos de engenho, senhores do Nordeste. A aspiração dos associados da Liga era de se prepararem para sua apresentação no juízo final, em condições que não lhes fossem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela Autoridade Suprema. A primeira condição seria, sem dúvida, a de se apresentarem diante de Deus com as mãos limpas de crimes e com a alma limpa de vícios. E isto não seria difícil para a maioria deles. Mas no seu entender simplista, seria também necessário se apresentarem com um mínimo de decência, numa hora de tamanha importância e de tanta solenidade: a hora do juízo final. E é aí que a sua extrema miséria não lhes permitia este mínimo de decência. É um hábito nessas terras miseráveis que os pobres lavradores, no termo de suas vidas de miséria, sejam levados ao cemitério num caixão "de caridade", que a Prefeitura empresta, mas que tem que ser restituído na boca da cova, para servir outros defuntos. Ora, ser enterrado desta forma, constitui a humilhação suprema para essa pobre gente, cuja vida não passa de um rosário de humilhações. Mas esta é a maior de todas, porque é uma humilhação que passará para o outro lado da vida — uma humilhação que durará toda a eternidade. A Liga foi criada para evitar esta suprema humilhação. Quando em 1960 um jornalista entrevistou um dos principais dirigentes da Liga, o velho José Francisco de Souza, e lhe perguntou o que tinha a Liga feito em benefício dos pobres camponeses, ele respondeu tranqüilamente: "Veja, moço. Antes da Liga, quando um de nós morria, o caixão era emprestado pela Prefeitura. Depois que o corpo era levado à vala comum, o caixão voltava para o depósito municipal. Hoje a Liga paga o enterro e o caixão desce com o morto". Ali estava o primeiro resultado patente da iniciativa que haviam
  • 29. tomado João Firmino e seus companheiros do Engenho Galiléia, ao fundarem nessas terras de tanta pobreza, uma sociedade civil beneficente, de auxílio-mútuo, para ajudar seus moradores a morrer com decência: com uma vela na mão, com os olhos fitos na chama desta vela, que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na escuridão do além, e com a confortadora certeza de que dispunham dos seus sete palmos de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar tranqüilo o juízo final. Esta instituição beneficente foi denominada "Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco". Mas o nome não pegou. O que pegou foi o apelido. É que logo em seguida à sua criação, começaram a chamar a sociedade de Liga. De Liga Camponesa. O apelido foi botado para desfazer dela. Para dar-lhe uma origem considerada suspeita pelos conservadores, com ocultas ligações com o movimento revolucionário iniciado há muitos anos noutros pontos do Nordeste, sob a forma de organizações camponesas, visando reunir os trabalhadores da cana numa espécie de sindicato que lhes desse força política suficiente para reclamar e para reivindicar. E estas primeiras tentativas tinham sido chamadas de Ligas Camponesas, provavelmente sob a remota inspiração das Ligas Camponesas da Idade Média, criadas pelo campesinato europeu como instrumento de luta dos servos da gleba contra a opressão intolerável dos príncipes e dos barões feudais. Não se pode esquecer que a colonização brasileira se iniciou no Nordeste sob o signo do medievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para introduzir nestas terras o regime das Capitanias Hereditárias, entregues de mão beijada aos Donos dos Feudos, os barões do Novo Mundo. É que, embora no começo do século XVI, quando o Brasil foi colonizado, já estivéssemos em plena Renascença européia, a Península Ibérica, desviada da sua rota histórica por sua interminável luta com o Islã, e isolada geograficamente do resto da Europa pela barreira dos Pirineus, continuava encastelada no seu feudalismo agrário, caracteristicamente medieval(4). E Portugal, ainda mais do que a Espanha, separado do grande mundo por toda a espessa muralha da Meseta Castelhana. Este secular retardamento histórico fez com que a colonização ibérica no Novo Mundo se constituísse como uma empresa de tipo medieval, como uma sobrevivência das Cruzadas, impregnada de um espírito ao
  • 30. mesmo tempo religioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça. Sob este aspecto bem diferente da colonização inglesa da América, mais de índole burguesa e de espírito moderno, pós--renascentista e pós-luterano. Dentro do patrimônio medieval trazido pelos colonos portugueses, com seus hábitos arraigados no complexo do latifúndio feudal, é bem possível que tenham os camponeses do Nordeste, também, herdado a tradição das Ligas Camponesas do Medievo europeu, que um dia iria repontar com inesperada violência no processo da evolução social do Nordeste. Como herdeiros presumíveis desta tradição secular as 140 famílias que habitavam as terras do Engenho Galiléia, criaram a sua Liga Camponesa e depois de elegerem sua primeira diretoria, convidaram, num gesto de tradicional humildade do servo para com o senhor, o próprio senhor do engenho para ser seu presidente de honra. E ele aceitou. E fez-se a sua posse com solenidade, com festas e com foguetes. E registrou-se o estatuto da sociedade, no qual, além da ajuda funerária, figuravam como objetivos mais remotos, a aquisição de sementes e de instrumentos agrícolas e a possível obtenção de uma ajuda governamental. Mas não durou muito esta lua de mel do senhor das terras com os seus servos, associados da Liga. É que outros latifundiários da redondeza, senhores de engenho como ele, se apressaram em alertá-lo da loucura que ele tinha feito em se deixar envolver por esta perigosa aventura. Em ter consentido a instalação em suas terras deste perigoso instrumento de agitação social. Desta espécie de cavalo de Tróia, introduzido disfarçadamente dentro dos seus domínios de porteiras fechadas, para abrir na calada da noite todas as porteiras ao comunismo. E o homem assombrou-se e não quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiu mesmo o seu fechamento imediato. Foi aí que a história mudou de rumo. A maioria dos camponeses resistiu ao fechamento, e a partir deste momento, sob a pressão dos acontecimentos, a .sociedade mutualista funerária virou mesmo uma Liga Camponesa para lutar pelos direitos dos camponeses contra a opressão dos mortos, ela iria agora se constituir como instrumento de reivindicação dos direitos dos vivos. Mas, não é mesmo morrendo que melhor se aprende a viver? Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tratando dos problemas da morte que os camponeses do Engenho Galiléia abriram seus olhos
  • 31. para a vida. E viram melhor, e melhor compreenderam as injustiças da vida e quais eram os autores destas injustiças. Era a tomada de consciência da sua realidade social, fenômeno que vem ocorrendo em nossos dias por todo o mundo chamado subdesenvolvido — mundo escravizado e espoliado — e que naquele dia se cristalizava como uma força nova na sociedade fechada e primitiva dos moradores do Engenho Galiléia. E com esta força eles enfrentaram o patrão. Não se submeteram como faziam até então, com sua costumeira docilidade, às suas ordens absurdas. Contam que o senhor do engenho, como revide à obstinação do grupo em não querer fechar a Liga, determinou a suspensão de uma ordem que tinha dado para que fosse retirada de suas matas a madeira necessária à construção de uma capela. Os camponeses protestaram contra esta suspensão e o patrão os ameaçou com a polícia, sob o pretexto de que eles pretendiam devastar as suas matas. Seguem-se as intimações, as chamadas à Delegacia e as ameaças dos capangas. Mas, diante de tudo isto, aumentou cada vez mais a hostilidade dos camponeses. Surgem então os processos judiciários contra os mais responsáveis, responsabilizados como agitadores e terroristas. E finalmente apareceram as ações de despejo, a expulsão sumária dos camponeses da terra onde sempre viveram, feita em nome da lei. Nesta altura da luta, os camponeses fincaram o pé. Não sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todas as agruras da vida e onde esperavam ver enterrados os seus ossos. É que nenhum povo do mundo se mostra mais enraizado à terra, mais profundamente ligado ao seu solo natal do que o povo do Nordeste. Sondando a alma complexa e singular do povo chinês, o qual, embora sofrendo há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de cataclismos naturais, com que lhes brinda sua terra martirizante — as secas, as inundações, os terremotos, as nuvens de gafanhotos — se mostram sempre tão indissolüvelmente ligados a esta terra, Keyserling(5) escreveu as seguintes palavras: "Não há outro camponês no mundo que dê tal impressão de identificação total com a terra. De participar tão intensamente da vida da terra. Tudo na China — toda a vida e toda a morte — se desenrola na terra herdada. É o homem que pertence à terra, não a terra que pertence ao homem". Mas há. Há outro camponês no mundo, tão identificado com a terra quanto o
  • 32. chinês: é o camponês do Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca conheceu e do qual o mundo inteiro sempre teve bem pouco conhecimento, vivendo o Nordeste à margem do mundo, relegado em sua obscuridade e em sua solidão. Mas por isto mesmo, por sua solidão forçada, o homem do Nordeste, abandonado do resto do país e do mundo, se voltou para a sua paisagem circundante e nela fincou as raízes de sua alma. Mesmo o homem do sertão semi-árido, que vive uma vida de semi-nômade, escorraçado de vez em quando pelo cataclismo das secas, é extremamente apegado à sua terra e a ela aspira voltar, .sempre que o cataclismo passa. Até os seus nomes são nomes da terra — dos lugares, das aldeias, dos povoados, onde nasceram: Antônio Pedro do Juazeiro, Jucá da Serra Talhada, Manoel João da Lagoa Grande... nomes de homens e de terra, como na Idade Média, afirma com certo orgulho o escritor sertanejo Luís da Câmara Cascudo(6). Este desadorado amor à terra que sempre lhe fez sofrer, faz com que o homem do Nordeste a defenda sempre, até o extremo limite de suas forças e tenha sempre desta terra um ciúme tão intenso, como se ela fosse uma mulher. É como se ele não pudesse viver longe dela, exilado deste amor. E se agora, no meio desta luta intensa, queriam expulsar de suas terras os moradores do Engenho Galiléia em nome da lei, usando contra eles os subterfúgios da lei, que eles candidamente ignoravam, era necessário, para que eles pudessem ,se defender e resistir, que fosse consultado um advogado, versado na lei. Mas advogado custa muito dinheiro e a caixa da Liga estava bem pouco provida de recursos. Pressionados pelas circunstâncias, procuraram os dirigentes da Liga um advogado modesto, até então obscuro, mas que já havia aceito defender outras causas de camponeses escorraçados pelos donos de latifúndios noutras terras: este advogado se chamava Francisco Julião. Aceitando patrocinar a sua causa, Julião deu início à luta judiciária pela permanência dos camponeses na Galiléia. Seu instrumento de luta era o Código Civil, que ele cedo verificou ser uma arma de pouca serventia para defender os direitos dos pobres, tendo sido elaborada para defender os interesses dos ricos, enquanto o Código é que fora concebido para ser aplicado aos pobres(7). Perdendo terreno na arena judiciária, Julião apelou para outro campo de luta, usando, ao lado da tribuna do Foro, a
  • 33. tribuna política, aproveitando a circunstância de dispor de um mandato de Deputado Estadual na Assembléia do Estado de Pernambuco. E foi assim que o advogado Julião se foi transformando pouco a pouco em agitador social. Em denunciador público dos crimes hediondos do latifundiarismo. E foi assim que as Ligas Camponesas começaram a se espalhar por toda a região, com a criação de novos núcleos, que se constituíram sob a pressão das circunstâncias — da violência e da opressão desbragadas do latifundiarismo — num instrumento de ação política libertadora, esgrimindo a ideologia, o proseletismo, a doutrinação. Nesta fase de acesa luta, a imprensa começou a tomar conhecimento das escaramuças mais importantes, relatadas sempre com violentos ataques aos "terroristas" na página policial dos jornais. Depois o assunto passou para a página política, fornecendo matéria para os artigos de fundo. E as Ligas camponesas foram assim tomando corpo e ganhando nova alma. Começaram a assustar seriamente o Nordeste inteiro, como se fossem uma espécie de dragão ameaçando engolir toda a terra dos grandes proprietários do Nordeste e destruir a paz, a ordem e a riqueza de que sempre gozaram esses proprietários tão amantes da ordem. Nessa onda de violências, de mistificações e de falsas interpretações no choque entre as aspirações populares e as resistências conservadoras, ambas radicalizadas ao extremo, as Ligas foram criando raízes, projetando a sombra de suas verdes esperanças e de suas negras ameaças, pelo país inteiro. Falava-se delas como se fosse o próprio Apocalipse e de Julião, como se fosse o anticristo. Foi neste momento que os Estados Unidos da América redescobriram o Nordeste. E esta descoberta se deve em grande parte ao obscuro e incipiente movimento das Ligas Camponesas. Em fins de 1960, com o seu povo extremamente sensível aos perigos da revolução comunista de Fidel Castro em Cuba e à sua possível propagação para o continente, a imprensa norte-americana se lançou com um dramático interesse sobre o Nordeste brasileiro explosivo e ameaçador. E os Estados Unidos que tinham descoberto vagamente o Nordeste brasileiro durante a segunda guerra mundial, quando os aviões de transporte, em viagem para a África e a Europa faziam pouso na região, principalmente no aeroporto de Natal, que se transformou na época no maior aeroporto do mundo, voltaram a
  • 34. descobrir, desta vez com atônita e perplexa curiosidade, essa terra ignota. Esse estranho mundo que parecia uma nova Cuba em formação: a Cuba continental. Como Cuba, miserável e revoltado. Como Cuba possuindo um líder considerado um marxista, conduzindo à revolução, essa massa de deserdados e fanatizados, dispostos a tudo, como foi mostrado em várias reportagens, publicadas nos grandes jornais dos Estados Unidos, e mostrado em imagens de um colorido impressionante, num filme apresentado numa grande cadeia de televisão. Era o Nordeste na ordem do dia como vedete, como uma espécie de novo far-west, a acender a imaginação de milhões de indivíduos que poucos dias antes ignoravam mesmo a sua existência geográfica (8). Esta inesperada revelação de um mundo tão estranho à mentalidade do norte-americano médio, levada pela imprensa sem a menor preparação ou apresentação ao seu público, criou uma grande perplexidade e certa confusão nos Estados Unidos. De um lado, um sentimento de pânico pelos perigos desta nova explosão social tão ameaçadora, e de outro lado, um grande desejo de ajudar, de fazer alguma coisa para evitar explosão. Mas a falta de uma serena visão dos fatos, o desconhecimento total da realidade social do Nordeste e das raízes históricas que tinham dado origem a essa aberração social, tornavam bem difícil um approach razoável e deformante, ou o da fantasmagoria histórica das manchetes apocalípticas. E assim, o Nordeste, descoberto quando ajudava os Estados Unidos na última guerra e agora redescoberto, quando parecia ajudar os inimigos dos Estados Unidos no continente, continuou, na verdade, como um desconhecido dos Estados Unidos. E por que não dizer a verdade como um desconhecido do mundo. Embora no cartaz, o que dele se apresenta por toda parte é, em geral, uma falsa imagem do seu papel histórico, tanto no passado como no futuro. Falsa imagem tanto das suas possibilidades, como das suas deficiências e dificuldades. Do que é possível se fazer de bem pelo Nordeste, como do que é possível que o Nordeste venha a fazer de mal ao mundo: à sua segurança e à sua tranqüilidade. Se dedicamos ao estudo das Ligas Camponesas o primeiro capítulo deste livro, foi com a premeditada intenção de mostrar, como uma
  • 35. iniciativa brotada das tradições do feudalismo agrário, aí reinante, com objetivos humanitários e pacíficos, pode-se transformar num instrumento revolucionário, de explosiva agitação social, em face da cega incompreensão e da obstinada resistência da própria estrutura feudal. E mostrar, também como pode um fenômeno social ser totalmente distorcido em sua realidade pelas falsas interpretações do jornalismo tendencioso ou sensacionalista. De fato, a imagem das Ligas Camponesas difundida pela imprensa de certos países, como sendo um instrumento do comunismo internacional, fabricado em Moscou e implantado no Nordeste brasileiro, para repetir nessa área o episódio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma imagem totalmente falsa, que não resiste a uma análise fria dos fatos. Uma análise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer, os principais personagens e os episódios centrais das origens desse movimento. Criadas dentro do espírito do cristianismo primitivo, que até hoje impregna a alma coletiva da população nordestina, as Ligas Camponesas foram mesmo, em certa fase, mal vistas e tenazmente combatidas pelos líderes marxistas da região. E, se posteriormente se aliaram as Ligas aos comunistas, na luta comum pela emancipação da massa camponesa, não quer isto dizer que a sua inspiração brotara da doutrina de Marx ou da ação política de Lenine ou de Fidel Castro, mas na experiência vivida e sofrida por essa massa humana em sua luta desigual por um mínimo de aspirações, em face ao máximo de resistência dos seus opressores feudais. Tem toda razão o jornalista Robert Coughlan da revista Life, quando afirma com excepcional lucidez que atribuir o descontentamento social da América Latina "a um complot forjado em Moscou, como fazem muitos, é ser perigosamente ingênuo. Suas raízes mergulham fundo no seu passado, que conta, como ingredientes, a conquista, a exploração, a fome e a extrema miséria". Outra razão da prioridade dada às Ligas Camponesas no plano deste livro deriva do fato incontestável de que foram elas que projetaram o Nordeste na imprensa norte--americana, provocando a redescoberta desta região e determinando em grande parte a criação da "Aliança para o Progresso" como uma tentativa dos E.U.A. de evitar a
  • 36. suposta bolchevização do continente. Antes de terminar este capítulo, julgamos indispensável deixar bem claro que, a nosso ver, as Ligas Camponesas nunca alcançaram uma importância política destacada: uma estruturação funcional e uma liderança suficientemente vigorosa para desencadearem um verdadeiro processo revolucionário. Longe disto. Sempre foram, como instrumento revolucionário, uma arma quase infantil. E se esta arma de brinquedo assustou tanto aos grandes senhores feudais e seus associados, é que eles se encontram há muito tempo num estado de pavor permanente. Pavor que os leva a ver no menor gesto ou atitude de inconformismo das massas espoliadas, um perigo tremendo para a manutenção dos seus privilégios. O perigo das líricas Ligas Camponesas sempre fora pequeno, o medo delas é que era grande e continua crescendo cada vez mais. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 - PRADO JR., CAIO, História Econômica do Brasil, 1945. 2 - WINSLOW, E. A., The Cost of Sickness and the Price of Health, Genebra, 1951. 3 — NURKSE, RAGNAR, Some Aspects of Capital Accumulation in Underdeveloped Countries, Cairo, 1952. 4 - SANCHEZ ALBORNOZ, CLÁUDIO, La Edad Media y la Empresa de America, La Plata, 1934. 5 - KEYSERLING, HERMANN, Journal de Voyage d'un Philosophe, 1952. 6 - CASCUDO, LUÍS DA CÂMARA, Viajando pelo Sertão. 7 — JULIÃO, FRANCISCO, Que são as Ligas Camponesas, Rio de Janeiro, 1962. 8 - HIRSCHMANN, ALFRED, Journeiy Toward Progress, Nova Iorque, 1963.
  • 37. CAPITULO II SEISCENTAS MIL MILHAS QUADRADAS DE SOFRIMENTO O TRAÇO mais marcante da carta ou fisionomia do Nordeste é o sofrimento. E não apenas o sofrimento do homem, mas também o sofrimento da terra. Terra e homem, martirizados há séculos por uma espécie de complot de forças adversas: de forças naturais e de forças culturais. O sofrimento, ou melhor, as marcas da sua presença, são tão constantes na paisagem nordestina, que dão a impressão à gente de que toda a terra do Nordeste não passa de um cenário especialmente montado para nele ser representada uma grande tragédia. E no fundo, é isto que é o Nordeste: um imenso cenário de cerca de 600 mil milhas quadradas de superfície, exibindo, por toda parte, os sinais inconfundíveis de seu sofrimento cósmico. Terra de sofrimento, o Nordeste se estende do Estado do Maranhão ao Estado de Alagoas, compreendendo uma tal variedade de paisagem que, na verdade, dentro do conceito científico da área geográfica, não se pode falar de uma área do Nordeste, mas de várias áreas naturais diferentes, compondo a região do Nordeste. Áreas distintas por seu clima, seu tipo de solo, seu revestimento vegetal e mesmo por sua
  • 38. organização econômico-social. Procurando esquematizar ao máximo estas nuances geográficas, podemos considerar o grande Nordeste como composto pelo menos de dois nordestes: O Nordeste Oriental ou Marítimo e o Nordeste Ocidental ou Central. São estes dois nordestes tradicionalmente mais conhecidos como o Nordeste do açúcar e o Nordeste das secas, porque se num deles tudo sempre girou em torno da economia da cana, noutro o que sempre marcou sua existência foi o tremendo drama de suas secas periódicas, a trágica história do seu clima incerto e inclemente. A verdade é que foi realmente o clima que delimitou os dois nordestes. Enquanto no Nordeste Oriental, próximo da costa marítima, o clima é úmido, com uma grande abundância e regularidade de chuvas, no Nordeste Central, o clima é seco, as chuvas são escassas e, principalmente, muito irregulares, imprimindo um facies semi-árido à região. Foi esta marcante diferença dos dois climas que determinou o marcante contraste entre as paisagens naturais das suas áreas: uma área toda ela recoberta de verde — outrora o verde das suas matas, e hoje o verde dos infindos canaviais — e outra área toda em tons acinzentados, com a sua terra seca, quase sempre nua de vegetação, ou apenas revestida em pontos limitados por tufos isolados de uma vegetação rasteira, coberta de poeira e eriçada de espinhos: vegetação formada de bromeliáceas e de cactáceas, plantas adaptadas ao extremo à condição de secura do meio ambiente. Uma área de solo espesso, poroso, permeável, embebido da água das chuvas abundantes — o famoso massapê de extrema fertilidade — e a outra área, de solo duro, de tipo arenoso, rico em seixos rolados e pobre em elementos nutritivos, quase mais pedra do que solo. O Nordeste é este contraste vivo estampado nas duas paisagens: na paisagem acolhedora, envolvente, da área da mata, com sua gradação de verdes, as suas manchas d'água, as suas sombras frescas, e na paisagem ríspida, seca, do sertão, com as suas planícies descampadas, o seu solo pedregoso, o seu céu sempre sem nuvens e o seu sol de fogo. Nestes dois quadros naturais tão diferentes se formaram também duas sociedades distintas, embora complementares, tanto em sua economia como em sua história. E a história econômico-social dessas duas comunidades contíguas representa o patrimônio histórico de toda a região do Nordeste.
  • 39. Embora o passado tivesse acumulado nessa região uma grande reserva de tradições e uma apreciável riqueza cultural de sabor típico e original, o que mais se acumulou entretanto nesta zona, como já afirmamos, foi mesmo o sofrimento. É o sofrimento a grande herança cultural do Nordeste. Realmente que terra poderá dar maior impressão de sofrimento do que essa terra do sertão nordestino, com seu solo curtido e roí do pelos rigores do clima? Com a pele do seu solo magro, mal encobrindo o seu esqueleto de granito e de calcáreo, dilacerada em vários pontos, rompida pelas pontas das rochas mais duras que irrompem no meio da paisagem em brancos blocos escarpados, como se fossem mesmo os ossos da terra descarnada. E como se revela como uma dor pungente, como uma expressão de desolador sofrimento, essa terra toda aberta de fundas feridas, de grandes brechas, rompidas no seu corpo pela violência das grandes torrentes erosivas! Outro traço do sofrimento telúrico da paisagem, que nos chama a atenção e que oprime o nosso espírito, é o da própria secura da terra em certas épocas do ano. Da terra toda crestada, toda rachada, como se fosse um pedaço de couro velho deixado ao Sol. Não é menor o sofrimento da terra que foi devorada pela cana. Da terra que a monocultura da cana-de-açúcar, introduzida nessa região, devorou em poucos anos, com um apetite insaciável, consumindo todo o seu húmus, engolindo todo o seu solo. Mas a história dessa cultura autofágica da cana-de-açúcar, que acaba por devorar sua própria economia, é uma história que merece ser analisada mais adiante, em maiores detalhes, para bem mostrar como ocorreu o processo dessa aventura mercantil, que deu origem à sociedade do Nordeste: a exploração monocultora e latifundiária da cana-de-açúcar. Nesse fundo cinzento do sofrimento da terra — da terra traída pelo clima, ofendida pela seca, degradada ao extremo pela exploração colonial — se destaca gritante a permanência invariável do sofrimento do homem. No Nordeste, as marcas mais fundas da presença do homem parecem não ser as marcas de sua vida, mas as marcas de sua morte. A presença da morte se manifesta com uma tal força que parece sobrepujar na região à própria força da vida. A morte é uma tal constante, um fator social de tamanha importância na vida da região,
  • 40. que em certas cidades do interior, parece que o que mais prospera são os cemitérios, apresentando-se como os recantos mais florescentes dessas pequenas cidades: sempre murados, ajardinados e urbanizados. Enquanto as cidades ao seu lado são às vezes simples enovelados de sórdidas ruelas, sem ordem sem higiene, sem o mínimo conforto. É como se os vivos não existissem na paisagem. Só existissem mesmo, a reclamar cuidados, os mortos. E foi talvez por isto que um poeta do Nordeste, num poema em que fala destes cemitérios, se inquietou diante dos muros que os separam das cidades, que isolam esses cemitérios do resto da paisagem que é também tão morta, que ele a chama de paisagem defunta: "Por que iodo este muro? Por que isolar estas tumbas do outro ossário mais geral que é a paisagem defunta?"(1) A paisagem defunta é esta paisagem impregnada da presença constante da morte, da expectativa da morte, da fraternal promiscuidade dessa gente com a morte. É que os índices de mortalidade nestas terras ,são extremamente altos, dos mais altos do mundo, principalmente os da mortalidade infantil. Morre tanta criança no Nordeste que chega a parecer que morre mais gente do que nasce, e isto principalmente porque se nasce discretamente, enquanto a morte implica sempre na cerimônia pública do enterro, que chama tanto a atenção. De fato, o enterro é um dos traços mais vivos e mais presentes na paisagem social do Nordeste, como ocorre na Sicília, como ocorre na China, enfim, em todos os povos muito ligados à terra, que fazem um grande alvoroço ao voltarem ao seio dessa terra. É verdade que a maior parte deles volta cedo, logo nos primeiros meses de vida, como se se tivesse arrependido de ter nascido numa terra tão pobre, ou como se não tivessem vindo preparados para uma viagem mais longa. O fato é que as crianças nascem mais para morrer do que para viver. Mais para povoar os céus como anjos, na consola-
  • 41. clora crença dos seus pais, do que para povoar a terra como homens. Há cidades do Nordeste onde a mortalidade infantil alcança a casa de 500 por 1000, o que quer dizer que metade dos que nascem apenas espiam a vida um breve instante e antes de um ano já se foram para debaixo da terra. É este um dos traços mais característicos das áreas de geografia da fome, como é o caso desta área do Nordeste — desta estranha geografia, onde não é a terra que dá de-comer ao homem, é antes o homem que nasce apenas para dar de-comer à terra. Para alimentar esta terra-cemitério, que engorda com a sua matéria orgânica. E que, quando acontecer escapar, é para sobreviver sempre assustado desta presença da morte, sentindo sempre o seu bafo frio como uma constante ameaça. Qual a causa desta tão desadorada mortalidade do Nordeste? A explicação está no fato de ,ser o Nordeste realmente uma área subdesenvolvida. E que o subdesenvolvimento impõe sempre a existência de altos índices de mortalidade, como também de altos índices de natalidade. Os do Nordeste são os mais elevados do Brasil. Esse tipo de evolução demográfica, chamado de antieconômico porque nele nasce muita gente e também morre muita gente, constitui uma das características fundamentais do subdesenvolvimento, o que explica, aliás, que apesar de toda esta mortalidade terrível, as regiões subdesenvolvidas mantenham suas populações num ritmo de crescimento explosivo, ameaçando explodir a sua miséria. Há quem acredite que esta explosão da capacidade reprodutora seja uma forma de defesa da espécie ameaçada, que, para lutar contra a força impiedosa da morte, joga na arena da luta os seus excessos de crianças, para serem sacrificadas, dizimadas, em sua maioria, mas sobrando sempre algumas para manterem a sobrevivência da espécie. Na verdade, é através de um complexo mecanismo bio-social que o subdesenvolvimento entretém estes tão altos índices de natalidade e de mortalidade. No que diz respeito à alta natalidade nas regiões de fome e de miséria, já tentei explicar o fenômeno em outro livro e não pretendo voltar ao assunto neste ensaio, porque o julgo aqui supérfluo. Desnecessária a explicação tanto para os estudiosos do assunto, como para os habitantes do Nordeste. Para os estudiosos basta o fato indiscutível, evidenciado através da eloqüência dos números. Dos extraordinários, índices de
  • 42. natalidade das regiões subdesenvolvidas. Para os habitantes do Nordeste, não há necessidade de explicações, porque, na verdade, muito antes de nós, eles já se tinham apercebido do fenômeno quando repetiam o ditado popular: "A mesa do pobre é escassa, mas o leito da miséria é fecundo". Se não vamos insistir em explicar porque são tão altos os coeficientes de natalidade, desejamos entretanto explicar em detalhes porque são também tão altos os coeficientes de mortalidade. De que morre tanta gente no Nordeste? Morre-se de tudo, mas principalmente de fome. É a fome em seus variados e múltiplos disfarces, o mais ativo dos cavaleiros do Apocalipse que arrasa as populações nordestinas. Em sua faina destruidora, a fome mata como doença — como a mais grave e generalizada das doenças de massa das regiões subdesenvolvidas — e como fator preparatório do terreno para a ação nefasta de outras doenças. Principalmente das doenças infectuosas, parasitárias, que atuam endemicamente nessas áreas, em combinação com a fome, tendo a mesma preparado o terreno para a sua ação deletéria. Não encontramos em toda a área do Nordeste um só e mesmo tipo de fome dizimando as suas populações! Enquanto na área do Nordeste açucareiro, grassa um tipo de fome crônica e endêmica, o que nós encontramos no sertão são as epidemias de fome aguda, que aparecem nos períodos de seca. Mas, para que se compreenda bem como se instalou no Nordeste o reino da fome, como essas diferentes manifestações da doença se apresentam nas duas áreas nordestinas, é preciso que se conheça melhor a estrutura econômico- social destas áreas, determinante, em última análise, deste estado de fome. Quando se estudam as condições de alimentação da área do açúcar, o que logo surpreende o investigador é o contraste marcante entre as possibilidades geográficas existentes e a extrema exigüidade dos recursos alimentares da região. Que uma região árida como o Saara seja uma zona de fome, que a região amazônica com suas florestas impenetráveis sofra também o flagelo da fome, ,são fenômenos que se explicam naturalmente. A fome nessas zonas pode decorrer principalmente de fatores naturais, da pobreza natural do meio ambiente. Já no Nordeste, o fenômeno da fome é bem mais chocante, porque não se pode explicá-lo à base de razões naturais. Tanto as
  • 43. condições de solo, como as do clima regional, sempre foram das mais propícias ao cultivo certo e rendoso de uma infinidade de produtos alimentares, que poderiam permitir a organização de uma dieta alimentar satisfatória. O solo desta área, em sua maior parte do tipo massapê — terra escura, gorda e pegajosa, que recobre em espessa camada porosa os xistos argilosos e os calcáreos do cretáceo — é de uma magnífica fertilidade. É um solo de qualidades físico-químicas privilegiadas, com grande riqueza de húmus e sais minerais. O clima tropical, sem o excesso de água de outras regiões tropicais, com um regime de chuva de estações bem definidas, também contribui favoravelmente para o cultivo fácil e seguro de uma grande variedade de cereais, frutas, legumes e de verduras. A própria floresta nativa dispunha de excepcional abundância de árvores frutíferas, e outras árvores, transplantadas de continentes distantes, se aclimataram tão bem no Nordeste como se estivessem em suas áreas naturais. É o caso da fruta-pão, trazida das distantes ilhas da Oceania, do coco, da manga e da jaca, trazidos pelos colonizadores do Oriente longínquo. Todas essas plantas, integradas na paisagem nordestina, produziam frutos excepcionalmente valiosos para a alimentação humana. Tudo brotava com tamanho ímpeto e produzia com tanta exuberância nessas manchas de terra gorda do Nordeste, que não se pode acusar de descabido exagero a famosa frase do escritor Pero Vaz de Caminha, autor da primeira carta sobre estas terras do Brasil, de que "a terra é em tal maneira dadivosa, que, em se querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo" (2). Infelizmente, não se quis. Não o quis o colonizador português. De nada valeram as grandes possibilidades naturais que a terra oferecia, pois que foram malbaratadas e inteiramente desaproveitadas em sua capacidade potencial de fornecer alimentos às populações regionais. Descobrindo cedo que as terras do Nordeste se prestavam maravilhosamente ao cultivo da cana-de-açúcar, os colonizadores sacrificaram todas as outras possibilidades da terra ao exclusivo cultivo dessa planta. Aos interesses de sua monocultura intempestiva, destruindo quase que inteiramente o revestimento vivo, vegetal e animal da região, subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando, por todos os meios, quaisquer tentativas de
  • 44. cultivo de outras plantas alimentares, degradando desta forma ao máximo, os recursos alimentares da região. Esta influência nefasta da cana sobre as condições da alimentação regional não se fez principalmente pela ação direta da cana sobre o solo, mas sim, por sua ação indireta, através do sistema de exploração da terra, que a economia açucareira impôs: o sistema da exploração monocultora e latifundiária. Trazendo a cana-de-açúcar para as terras do Brasil, já o português conhecia bem esta planta, com as suas exigências específicas, desde que havia utilizado as ilhas atlânticas da Madeira e do Cabo Verde, como verdadeiras estações experimentais para o ,seu cultivo. E conhecia também os segredos do comércio açucareiro, que se apresentava no momento o mais promissor do mundo. Com esta experiência da agricultura e do comércio do açúcar o português sabia que este produto só se poderia constituir como uma atividade econômica compensadora, se produzido em grande escala, com terra suficiente para o cultivo extensivo da planta com mão de obra abundante e barata para o trabalho agrícola e com capitais suficientes para o estabelecimento de sua indústria, em bases de um verdadeiro monopólio do produto. Por isso organizou ele a sua empresa com os mais abundantes capitais até então trazidos para estas bandas e impulsionou a vinda dos escravos da costa da África e se assenhoreou de terra boa e suficiente ao empreendimento ousado. Lançado na aventura açucareira, o colonizador português sabia que se tinha que entregar de corpo e alma à cana-de-açúcar, sob pena de fracassar em sua empresa E a cana se mostrou realmente capaz de dar muito lucro, mas de exigir também muita coisa em compensação. De exigir, como já dissemos, uma escravidão tremendamente dura, não só do homem mas também da terra ao seu serviço. Homem e terra que tiveram de se despojar de inúmeras prerrogativas para satisfazer o apetite desadorado da cana: o seu apetite insaciável de boas terras, bem preparadas e bem drenadas para o crescimento da planta. Já afirmou alguém, com razão, que a exploração da cana-de-açúcar se processa sempre num regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, consumindo o húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano que serviu de base à sua vida. E é a pura verdade. A história da
  • 45. economia canavieira no Nordeste, como em outras zonas de monocultura da cana, no mundo, tem sido sempre uma demonstração categórica desta capacidade que tem a cana de dar muito no princípio, para devorar tudo depois autofàgicamente. Donde a caracterização inconfundível das diferentes áreas geográficas do açúcar, com seu ciclo econômico típico, com uma rápida fase de ascensão e de esplendor transitório, e uma fase seguinte de irremediável decadência. Ciclo, este, que se processa tanto mais rapidamente quanto menores forem os recursos de terra disponíveis. Daí a semelhança de aspectos entre as diferentes áreas geográficas do açúcar no mundo, entre esta área do Nordeste do Brasil e Cuba, Haiti, Java, Porto Rico, Barbados. A ilha de Barbados, por sua limitada extensão, representou uma espécie de laboratório de sociologia experimental, onde se processaram com impressionante nitidez as sucessivas fases do ciclo da economia monocultora da cana, permitindo ao investigador analisar a fundo as reações-sociais intempestivas, que a introdução do cultivo da cana provocou na sociedade local. Vincent Harlow(3), que estudou a fundo a história desta ilha, mostra-nos como a princípio a colonização de Barbados se fizera à base da policultura, dividindo as suas terras em pequenas propriedades produtoras de algodão, tabaco, frutas cítricas, gado vacum e suíno e outros produtos de sustentação. Que, nessa primeira fase da sua história, compreendida entre 1625 e 1645, as condições de vida eram bem favoráveis na ilha, e a população de raça inglesa crescera bastante, subindo nas seguintes proporções: 1.400 habitantes em 1628, 6.000 em 1636 e 37.000 em 1643. Com o desenvolvimento da cana-de-açúcar, que se processou a partir dos meados do século XVII, aí transplantada pelos holandeses fugidos do Nordeste do Brasil, a policultura foi sendo asfixiada, as pequenas propriedades agrícolas engolidas pelo latifúndio açucareiro e as reservas alimentares da ilha ficando cada vez mais limitadas. Esta evolução econômica, tão desfavorável, provocou o êxodo em massa para outras terras, dos habitantes da raça branca. Começou então a descida da curva demográfica: em 1667 só havia 20.000 brancos na ilha, em 1786, 16.000, em 1807, 15.500, e atualmente cerca de 15.000. O braço escravo veio substituir o do branco, passando a constituir a base do trabalho agrário. Assim se desenvolveu em Barbados esta
  • 46. economia latifundiária, escravocrata, com esplendor fugaz, que durou de 1650 a 1685, entrando logo a seguir em decadência. Já nesta época, estava a ilha praticamente esgotada. Suas florestas, que a princípio eram tão densas que fora difícil achar espaço para a fundação da colônia(4), estavam inteiramente devastadas, com todas as culturas de sustentação estagnadas e o açúcar economicamente arruinado, por não ser mais possível produzi-lo a preços capazes de agüentar a terrível concorrência internacional. Esta é a história do transitório ciclo do açúcar em Barbados, contada por Harlow e confirmada em seus traços mais característicos por outros historiadores idôneos. Em Jamaica, em Trinidad, em Cuba, e noutras antilhas açucareiras, o processo seguiu as mesmas diretrizes, apenas num ritmo menos acelerado, como se pode verificar através estudos dos historiadores da colonização inglesa e espanhola do Mar das Caraíbas(5). Fizemos esta digressão acerca do processo evolutivo da economia açucareira em outras zonas, para pôr em evidência o fato de que a fraqueza do colono português diante do ímpeto avassalador da cana do Nordeste brasileiro não foi específica deste colonizador. Nenhum outro colono, nem o inglês de Barbados, nem o francês do Haiti, nem o espanhol de Cuba, pôde escapar à sua esmagadora prepotência. Ao contrário, deixaram-se todos dominar, sob certos aspectos, mais ainda do que o português do Nordeste. Porque, se na luta para adaptar-se ao meio tropical, o português cedeu com bastante plasticidade às contingências de certas forças naturais, soube também, por outro lado, escapar tecnicamente a muitas delas, através do uso inteligente de certos fatores de aclimatação, que os colonos de outras raças e de outras culturas não souberam manejar com tanta precisão, fracassando por isso em suas tentativas de levar a feito uma colonização de enraizamento em terras tropicais(8). Deve-se, sem nenhuma dúvida, ao desenvolvimento da cana-de- açúcar, com todos os seus nocivos exageros de planta individualista, com sua hostilidade quase mórbida por outras espécies vegetais, uma grande parte do trabalho de enraizamento e de consolidação da colonização portuguesa nos trópicos, a qual já há cerca de um século, vinha ensaiando outros processos menos frutíferos, sem conseguir
  • 47. estabelecer nada de mais firme do que simples feitorias comerciais nas costas da África, da América e do Extremo Oriente. O processo de transformação e de desvalorização que a cana realizou no Nordeste, começou pela destruição da floresta, que recobria praticamente toda a chamada Região da Mata, abrindo, com as queimadas, as clareiras para o seu cultivo e alargando depois essas clareiras par estender os seus canaviais sem fim. A destruição da floresta alcançou tal intensidade, e se processou em tal extensão, que nesta região, outrora chamada da mata do Nordeste, hoje restam apenas pequenos retalhos esfarrapados deste primitivo manto florestal. Com a destruição da floresta, contribuiu também a monocultura para o empobrecimento rápido e o esgotamento violento do solo, diminuindo de um lado a renovação do seu húmus formado pela decomposição da matéria orgânica vegetal, e de outro lado facilitando ao extremo, os processos de lavagem do solo e sua conseqüente erosão. Ward Shepard, antigo especialista do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos(6), estudando o fenômeno da erosão no continente americano, aponta a área do Nordeste do Brasil como uma das mais sacrificadas, e sacrificada, principalmente, pelo cultivo intempestivo da cana-de-açúcar. De fato, despida do seu manto florestal, estas terras se deixaram facilmente arrastar pela ação erosiva das águas, desde que os pequenos rios que atravessam a região nordestina e que a princípio se haviam mostrado tão dóceis e serviçais, ajudando o colono a conquistar a terra e aí desenvolver a economia agrária da cana, logo que sentiram as suas margens desprotegidas de árvores pelo desflorestamento abusivo e despido de vegetação os seus vales, se transformaram da noite para o dia em rios devastadores, rios ladrões de terra, arrasando o solo úmido das planícies e levando com as águas das enxurradas, os elementos minerais e o húmus dissolvidos, transformando-se, enfim, num bárbaro fator de degradação da riqueza do solo. Não foi apenas degradando a riqueza do solo, fazendo minguar os recursos vegetais, que o desflorestamento se constitui num fator negativo para a região, mas também destruindo praticamente os recursos da fauna regional, cuja vida estava tão intimamente ligada à própria vida da floresta(7). Os recursos representados pelas caças que aí existiam em grande abundância nos primeiros tempos da
  • 48. colonização, praticamente desapareceram, desde que os animais foram afugentados pelas coivaras, se escondendo nas nesgas de mata cada vez mais ralas, mais limitadas, até quase se extinguirem de vez. O que é mais grave nesse complexo da cultura da cana em relação à alimentação regional, é que não foi apenas destruindo o que havia de aproveitável como alimento-riqueza da fauna, da flora e do próprio solo — que a cana foi prejudicial, mas também, e principalmente, dificultando e hostilizando em extremo a introdução de quaisquer outros recursos de subsistência que encontrariam nessas terras condições das mais propícias ao seu desenvolvimento. Com estes dados que apresentamos, já não pode haver nenhuma dúvida de que foi realmente a monocultura da cana-de-açúcar, o principal fator de degradação do tipo de alimentação desta região. Tipo de alimentação que seria bem melhor se fosse possível aos colonos portugueses, que aportaram às costas do Nordeste brasileiro, manterem nessa área a tradição do regime alimentar das terras onde nasceram, do tipo de alimentação de Portugal, caracterizado, principalmente, por uma relativa riqueza e variedade de vegetais — de frutas, legumes e verduras — produtos do cultivo intensivo, fino e delicado da horta e do pomar, cultivo introduzido há séculos na Península Ibérica pelos invasores árabes e aí transmitido a portugueses e espanhóis. Infelizmente, esse tipo ibérico de alimentação, equilibrado e bem adaptado às condições da vida tropical, constituindo até certo ponto um verdadeiro fator técnico de aclimatação, não se pôde manter nas terras do Brasil. O primeiro obstáculo à sua fixação nestas novas terras foi a impossibilidade de aí se encontrar ou se produzir o alimento básico da área alimentar do Mediterrâneo europeu de clima temperado, que é o trigo. Não dispondo do trigo, o português teve que substituí-lo no regime alimentar pela farinha de mandioca, alimento bem inferior sob o ponto de vista nutritivo, com um teor de proteína, de sais minerais e vitaminas, bem inferior ao do cereal europeu. Procurando-se ajustar às novas contingências naturais, o colonizador português, de início, incentivou não só o cultivo da mandioca, mas de outras plantas nativas que o índio cultivava, tais como o aipim, o amendoim, o ananás, e procurou introduzir no Nordeste outras plantas que sua experiência de
  • 49. conquistador de terras tropicais lhe fazia saber propícias ao novo quadro geográfico. Assim se fez no Nordeste uma tentativa de policultura, que deveria dar de sobra para manter num regime sadio, os primeiros colonos da terra de Santa Cruz. Mas como ocorreu em Barbados, a policultura iniciada tão promissoramente fora logo estancada pelo furor da monocultura da cana, as roças de mandioca abandonadas praticamente aos cuidados primitivos do indígena, sem o amparo e o interesse do colono; as plantações de frutas limitadas aos pequenos pomares, para uso exclusivo da família do senhor de engenho, e assim se desfez toda a influência benéfica que a cultura peninsular poderia ter trazido ao tipo de dieta do Nordeste do Brasil. É verdade que o índio nativo procurou reagir a essa limitação, negando-se a colaborar na agricultura do açúcar, no plantio da cana para a fabricação deste produto de exportação. Mas faltava-lhe força para influenciar a formação da nova sociedade. A sua influência se limitou a esta resistência à pressão da monocultura, fugindo para a floresta e fazendo dela o seu reduto, e defendendo-a com arcos e flechas, moderando desta forma enquanto pôde, a expansão monocultora e suas funestas conseqüências. Já os negros, trazidos da África e sentindo na sua própria carne os efeitos terríveis da fome, desde que já nos barcos negreiros em que eram conduzidos morriam em grande número de fome, procuraram reagir com mais eficácia contra a monotonia alimentar instituída na região pelos portugueses. Como povo de tradição agrícola, de um tipo de agricultura de sustentação, o negro trazido da África reagia contra a monocultura de forma bem mais efetiva do que o índio. Desobedecendo às ordens do senhor e plantando às escondidas o seu roçadinho de mandioca, de batata-doce, de feijão e de milho, sujando aqui e acolá o verde monótono dos canaviais com pequenas manchas diferentes de outras culturas. Benditas manchas salvadoras da monotonia alimentar da região. Que o negro nunca perdeu este instinto policultor, este amor à terra e à agricultura de sustentação, apesar da brutalidade com que fora arrastado de sua terra, com todas as suas raízes culturais violentamente arrancadas, é o que podemos verificar através do estudo da organização econômico-social dos quilombos, isto é, dos núcleos de negros fugidos e escondidos no
  • 50. mato. Palmares, que foi o mais significativo dos núcleos de libertação negra da tirania monocultora, se apresenta como uma demonstração decisiva da absoluta integração do negro à natureza regional, aproveitando integralmente os seus recursos naturais, e desenvolvendo, a favor de suas possibilidades, novos recursos. Na paisagem cultural de Palmares, com os traços naturais da terra tão bem ajustados às necessidades do homem, vamos encontrar um regime de policultura sistemática(8). Uma das principais atividades dos negros de Palmares era a agricultura de sustentação: agricultura de milho, de batata-doce, de mandioca, de banana, de feijão, e de outras plantas alimentares. Infelizmente, essa ação restauradora do negro também foi limitada, não adquirindo consistência e extensão, capazes de atuar decisivamente na economia alimentar da região, como aconteceu na ilha de Jamaica, por exemplo, onde o negro, rebelado contra a ganância dos plantadores, contribui para melhorar sensivelmente o regime alimentar da ilha. No Brasil, a resistência dos índios abstencionistas e dos negros rebeldes dos quilombos, e mesmo a dos colonos brancos e mestiços, mais pobres, desprovidos de terra e desejosos de cultivá-la a seu modo, não deu para vencer a força opressiva do latifundiarismo, para vencer as proibições contra a agricultura de outras utilidades e a criação de qualquer espécie, contra as interdições estabelecidas nas cartas regias(9), e reforçadas ao máximo pela autoridade ilimitada dos senhores de engenho, onipotentes em seu regime de vida escravocrata e patriarcal. Homens com ciúme de suas terras maior do que de suas mulheres e horrorizados com o perigo de que essas terras se rebaixassem devassamente a produzir qualquer outra coisa que não fosse cana, qualquer coisa menos nobre, seja de origem índia, seja de origem negra: mandioca, milho, amendoim, feijão. Assim, subjugados pela forte pressão dos fatores de natureza econômica, cederam todos à influência da cana, e o complexo alimentar da região se fixou em torno da farinha de mandioca, de cultivo fácil e barato, sem grandes exigências nem de solo, nem de clima, nem de mão de obra. Complexo da alimentação terrivelmente pobre, que arrastou a área do Nordeste açucareiro à condição de uma das zonas de mais acentuada subalimentação do país, mais do que isto, de zona realmente de fome e
  • 51. de fome crônica e endêmica. Em todos os tempos, os viajantes que por essas regiões passaram, sempre se referiram à pobreza e à monotonia de sua alimentação. Através de escritos como o do Padre Fernão Cardim, das cartas do Padre Vieira, das impressões de viagem de ingleses e franceses, dos estudos com certo ar científico dos doutores da época e de outros documentos históricos, verifica-se a constante precariedade da alimentação regional, podendo-se concluir que, desde quase o início da colonização brasileira até hoje, a alimentação dessa área do Nordeste sempre fora de má qualidade. O que não se sabia com exatidão era até que ponto essa alimentação defeituosa influía na saúde dos habitantes da região. Procurando esclarecer o assunto, levamos a efeito em 1932, um inquérito sobre as condições alimentares do povo dessa área, e seus resultados, confirmados por outros vários inquéritos posteriormente realizados, vieram provar que o regime alimentar do Nordeste açucareiro, era um regime de fome e era de fome que mais se morria no Nordeste: das conseqüências da fome crônica em que vivem há séculos as populações regionais. Sofre-se nessa região de todas as variedades de fomes específicas, de fomes parciais, de fomes ocultas. De fome de proteínas, de fome de sais minerais, de fome de vitaminas. Enumerar as várias espécies de fomes aí reinantes, seria um desfilar de contas de um interminável rosário, seria um nunca--acabar de doenças, de males, a serem exibidos. Por isso, apenas apresentamos algumas das formas de fome existentes na região: as formas mais graves, as mais extensas, as mais generalizadas. A primeira manifestação de fome nessa região é a deficiência ou insuficiência calórica da dieta. Por sua conta decorre em grande parte a reduzida capacidade de trabalho dessa gente e, portanto, a sua limitada capacidade produtiva, desde que essa gente se cansa ao menor esforço, não sendo capaz de acompanhar o ritmo de trabalho do operário de outras regiões, de melhor tipo de alimentação, do sul do país, ou mesmo dos habitantes da zona do sertão. O sertanejo sempre se sentiu superior ao habitante do brejo, isto é, da área do açúcar, tachando-o de preguiçoso por sua menor capacidade de trabalho. Outra deficiência específica, e esta a