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Romantismo às avessas: o amor na pós-modernidade e
em tempos de Spotted
Cabral, Luma; Titulação; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
lumacabralfarias@gmail.com
Resumo
Este artigo visa a analisar como a busca pela relação amorosa na contemporaneidade se altera a partir
da mudança do registro privado para público. O objeto de estudo é a página “Spotted PUC­Rio” e a
análise foi feita a partir das reflexões de David Harvey no livro “Condição pós­moderna” e de uma
entrevista de 2011 concedida pelo sociólogo Zygmunt Bauman, onde fala sobre alguns pontos da
pós­modernidade. A análise se focará no porquê e no tipo de conteúdo enviado pelo público para ser
postado em anônimo na página. Também foi analisada, de forma breve, como a reação do público
manifestada através de comentários na respectiva mensagem postada se assemelha à visão do filósofo
Theodor Adorno sobre a experiência estética do sujeito perante a arte contemporânea considerada
autônoma.
Palavras Chave: Spotted; pós­modernidade; privacidade e auto­imagem.
Considerações sobre a pós­modernidade
        O primeiro ponto a ser considerado para compreensão do tema é apresentado por Harvey, no
capítulo 17 do livro “Condição pós­moderna”. Ele aborda que a tecnologia alterou a compreensão de
tempo e espaço, nitidamente percebida pelos trabalhadores na intensificação dos processos de
trabalhos que resultam em uma desqualificação do serviço. Também foi alterado o modo como o
homem sente e age dentro desse novo contexto, sobretudo pelo aperfeiçoamento dos sistemas de
informação e diversificação dos produtos oferecidos. As alterações no sistema de produção refletem
em diversos aspectos subjetivos, como por exemplo, a virtuosidade do instantâneo e volátil que se
apresenta em diversos aspectos da vida cotidiana: modas, pensamentos, relacionamentos, dentre
outros, atingindo o que é descrito por “a experiência cotidiana comum do indivíduo”. A fragmentação
do sujeito é um dos aspectos mais proeminentes no pós­modernismo e perpassa por âmbitos variados
e, juntamente com a propagação de novos meios de socializar através da internet, como será
exemplificado através da página Spotted.
No vídeo de Bauman(2011), essa fragmentação é exemplificada através do conhecido “projeto de
vida” que hoje em dia soa anacrônico, visto que os jovens se sentem na liberdade de transitar e
escolher novos caminhos o tempo todo, ou seja, o propósito e significado da própria vida são
renovados constantemente. Já na questão do público e privado, Bauman fala sobre os talk­shows (que
facilmente podemos traçar uma analogia com o “Spotted”) onde as pessoas dão sua opinião, interferem
na dinâmica e, com essas interferências, se tornam autores do resultado final compreendido pelo grande
público. Tanto nos talk­shows quanto no “Spotted”, há uma transmutação do sentido de público e
privado. Coisas até então que pertenciam ao particular e íntimo agora são confessadas para milhares de
pessoas, ainda que protegidas pelo anonimato. É o chamado “microfone no confessionário”.
As relações amorosas no mundo pós­moderno
         A reflexão de Bauman sobre o conceito de redes e laços humanos também ajuda a exemplificar o
Spotted no contexto do relacionamento amoroso. Os laços humanos são criados a partir do contexto
no qual o indivíduo vive e suas experiências reais. Já as amizades e relacionamentos gerados a partir da
internet têm a característica da facilidade de “conectar” e “desconectar”. É fácil iniciar algo assim como
encerrar. Nessa perspectiva, podemos compreender a efemeridade das “paixões” que são divulgadas
através de mensagens na página. Caso a pessoa desejada não se identifique ou não demonstre
interesse, o remetente precisa apenas “desconectar” daquela situação e seguir em frente, possivelmente,
investindo em alguma outra pessoa que tenha lhe chamado a atenção pelos corredores da PUC­Rio. O
laço humano estaria encaixado no conceito romântico de amor, onde um compromisso com a pessoa
amada é firmado e se espera que seja para sempre. No conceito de rede, segundo Bauman, estamos
ao mesmo tempo sozinhos, por não possuir alguém em quem depositar toda a confiança, mas também
cercados por uma multidão, composta de “cliques” na rede, que podem ser facilmente revertidos caso
a relação não se mostre interessante. Esse conceito também pode ser relacionado ao apresentado por
Beatriz Sarlo no livro “Cenas da vida pós­moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina”. O
conceito de “zapping” trazido pela autora diz quanto à volatilidade com a qual experienciamos imagens,
pessoas e informações, deixando de ter um grande impacto na nossa vida e compreensão e passando a
ser apenas “mais uma na multidão”. Essa experiência acaba por baixar o senso crítico e a capacidade
de admiração ou susto da pessoa. Tal fenômeno é visto no Spotted, onde as pessoas não se
incomodam mais com cantadas que poderiam soar absurdas do ponto de vista moral e de valores. A
geração Spotted não se surpreende com o que pode vir a ser postado na página, mas ainda assim, julga
o conteúdo a partir do seu repertório de valores.
O Spotted PUC­Rio
O “Spotted PUC­Rio” é uma página no Facebook cujo foco é o envio de mensagens com conteúdo                               
majoritariamente romântico, que são postados, deixando o remetente em anônimo. Sendo assim, a                       
“cantada” é lançada para o público (atualmente, com mais de 13mil seguidores na página) e eles se                               
encarregam de identificar o destinatário e julgar a mensagem. É possível perceber que a dinâmica do                             
relacionamento sofreu nítidas mudanças. A pessoa que envia não está procurando um amor duradouro,                         
está atrás de uma relação efêmera, que é intermediada por uma multidão. As pessoas que comentam no                               
post são responsáveis por criar julgamentos e interpretações para o mesmo, fazendo com que, quando o                             
destinatário perceber que aquela mensagem é endereçada para ele, leia os comentários e, mesmo que                           
subjetivamente, “filtre” a mensagem original a partir da perspectiva apresentada por terceiros. No vídeo,                         
Bauman cita o termo prosumer que diz respeito ao indivíduo social que é produtor e consumidor,                             
criticando e consumindo informações ao mesmo tempo. Esta terminologia se aplica ao modo como os                           
usuários da página interagem com o conteúdo: muitas vezes, comentam de forma divertida a “cantada”                           
lançada, mas também assumem posturas moralistas quanto à manifestação de outrem. Abaixo, um                       
exemplo de mensagem publicada na página onde as opiniões dos usuários ora corrorboram ora criticam o                             
conteúdo. Neste exemplo, podemos ver valores moralistas sendo colocados, assim como piadas com a                         
situação.
 exemplo de postagem na página Spotted PUC­Rio
 mais comentários referentes à postagem da mensagem da imagem anterior
Nas imagens acima, podemos perceber como os comentários se distanciam e alteram o sentido original                           
da mensagem postada. Fazendo uma analogia com o pensamento do filósofo Theodor Adorno sobre a                           
experiência estética na arte contemporânea, o sentido da obra é criado a partir dela própria, a partir de                                 
um contato sensorial que possibilita inesgotáveis sentidos e interpretações do objeto em questão. Esta                         
visão está diretamente relacionada com o fato de que as pessoas que comentam na mensagem possuem                             
diversas visões sobre aquilo que é postado, provenientes de seu repertório pessoal. Essa postura entra                           
em contraponto com a contemplação da chamada “arte tradicional” que possui funções claras e                         
determinadas, assim como as antigas cartas de amor. Não apenas cartas podem ser usadas em                           
comparação com Spotted, os torpedos (SMS) que se popularizaram na virada do milênio, ainda                         
possuíam características semelhantes, pois, mesmo se tratando de uma mensagem curta, ainda era um                         
contato direto com a pessoa desejada.
Uma carta de amor ou uma mensagem no Spotted?
A postura do remetente tem características peculiares, que, quando comparadas com o modo
tradicional de relacionamento amoroso, se mostram bastante marcadas pelos efeitos do
pós­modernismo. Na tabela esquemática apresentada por David Harvey (página 48) podemos
identificar itens que se alteram do modernismo para o pós­modernismo. Abaixo, estão listados os mais
relevantes para a análise:
Na relação amorosa tida como tradicional, o ser amado era mantido a certa distância e longas cartas
apaixonadas, onde se desejava casamento e prometia o amor eterno era a forma de comunicação. No
Spotted, percebemos que a multidão participa do processo de “flerte” onde uma pessoa anônima tenta
conquistar outra descrevendo suas características (que podem ser físicas ou até mesmo usar a
descrição de bens materiais, como marca de celular, de carro, roupa dentre outras). Um fato
interessante é que, mesmo quando o remetente sabe o nome da pessoa para quem deseja enviar a
mensagem, ele não revela, seja para não expor o destinatário, seja para participar do jogo de adivinha
que impulsiona os membros da página a comentarem e participarem da cantada.. A pessoa amada
como centro da relação também é uma característica que caiu por terra nas relações pós­modernas
exemplificadas neste artigo. Hoje, o sujeito pode estar apaixonado e em pouco tempo, se desencantar.
Inclusive, a mesma pessoa pode mandar mensagem para diversas outras e o anonimato da página o
protegerá de um possível julgamento por terceiros. A profundidade do conteúdo das cartas de amor e
dos ‘spotteds’ também difere nitidamente. As mensagens na página do facebook são recheadas de
humor, piadas e trocadilhos com músicas, livros e gostos populares, muitas vezes utilizados para se
aproximar da pessoa desejada. Por exemplo, o remetente sabe que a pessoa é fã de alguma banda e
envia uma mensagem composta por trocadilhos com os nomes das músicas dessa banda.
Já a indeterminação e fugacidade do desejo podem ser analisadas sob a perspectiva de Bauman e
comparadas com o tipo de relacionamento amoroso recorrente no Spotted. Os laços humanos são
criados a partir do contexto no qual o indivíduo está. Já as amizades e relacionamentos gerados a partir
da internet possuem a facilidade do ato de “conectar” e “desconectar”. Iniciar ou encerrar uma relação
se torna fácil e corriqueiro. Nessa perspectiva, podemos compreender a efemeridade das “paixões”
que são divulgadas através de mensagens na página. Caso a pessoa desejada não se identifique ou não
demonstre interesse, o remetente precisa apenas “desconectar” daquela situação e seguir em frente,
possivelmente, investindo em alguma outra pessoa que tenha lhe chamado a atenção pelos corredores
da PUC­Rio. O laço humano estaria encaixado no conceito romântico de amor, onde um compromisso
com a pessoa amada é firmado e se espera que seja para sempre. O sujeito que envia uma mensagem
no Spotted dificilmente está interessado em algo mais profundo ou que dure eternamente. O objetivo e
desejo são efêmeros, podendo ter o seu fim em um dia ou duas semanas.
Conclusão
A partir da análise feita, é possível identificar alguns pontos de diferença entre o relacionamento
amoroso antigamente e atualmente, oriundo de um mundo pós­moderno onde as visões e expectativas
perpassam diversos elementos da vida, como por exemplo, o uso das tecnologias e a velocidade com a
qual a informação é difundida. A partir do momento em que o amor vai de encontro ao mundo
tecnológico (considerando o Spotted como um exemplo de dinâmica amorosa inserida neste contexto),
precisa se adequar às dinâmicas que envolvem esta esfera além de criar as suas próprias, visto que se
trata de uma atividade relativamente nova. Se, no campo da cultura a troca promovida pelos meios de
comunicação e a fragmentação do sujeito pós­moderno possuem inúmeros pontos positivos, no âmbito
das relações humanas se torna questionável, pois a interferência da multidão e anonimato do remetente
pode estar escondendo, dificultando ou transmutando intenções boas ou até mesmo ruins. A ideia de
fragmentação soa interessante na perspectiva individual do sujeito, visto que o torna multifacetado e
mutável, mas ao se tratar de relações humanas, pode vir a ser um sintoma de uma geração com
dificuldades para construir laços duradouros e, sobretudo, construir a capacidade de confiar
verdadeiramente em alguém.
Referências
HARVEY, David. Condição pós­moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
13ed. São Paulo: Loyola, 2004.
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós­moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina.
3ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
Spotted PUC­Rio. Disponível em: http://facebook.com/SpottedPUCRio Acesso em 21 jun.2013
Entrevista exclusiva: Zygmunt Bauman. Disponível em: <http://vimeo.com/27702137> Acesso em 21
jun.2013

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