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COMPANHIA DE JESUS E O PADROADO PORTUGUÊS: conflito de
nacionalidades no seio jesuítico*.
Renato Pereira Brandão**

Resumo
Associado ao poder político da Coroa de Portugal no Ultramar estava o poder do
Padroado da Ordem de Cristo. Apesar de mais presente junto ao clero secular, o poder
do Padroado também se estendia ao clero regular, colocando a atuação de uma
determinada ordem missionária no ultramar português sob o poder não só civil, mas
também eclesiástico da Coroa. Apesar da ação missionária da Companhia de Jesus ter
uma orientação internacionalista e transnacional, o nosso objetivo é demonstrar que
interesses nacionais diversos ao da Coroa de Portugal geraram conflitos entre jesuítas
portugueses com os de outras nacionalidades no ultramar português. Discutimos aqui
três casos. O primeiro é referente à negociação de participação de jesuítas franceses na
invasão  da  Guanabara  comandada  pelo   “calvinista”  Villegaignon.  O  segundo  aborda  a  
ação do padre flamengo Verbiest na China procurando favorecer interesses mercantis da
Coroa de França em detrimento aos de Portugal. O último trata do conflito entre os
jesuítas da Província do Paraguai e os do Colégio do Rio de Janeiro frente às
consequências do trabalho demarcatória do Tratado de Madri.

O Tratado de Tordesilhas, o Padroado da Ordem de Cristo e a Divisão do Mundo
Ao emitir em 3 de maio de 1493 a bula Inter Coetera, com intuito de reservar
para os reinos de Castela e Aragão, posteriormente unidos sob a denominação de
Espanha, o domínio exclusivo das Índias Ocidentais, recém descobertas por Colombo e
reivindicada pelo rei de Portugal D. João II, por força do Tratado de Alcáçovas1, o papa
aragonês Alexandre VI não só criou um problema político de fundamentação
cartográfica, nunca verdadeiramente resolvido, como interveio indiretamente nos termos
da bula de mesmo nome promulgada em 1456 pelo papa Calisto III, tio e mentor da
nomeação de Rodrigo Bórgia, nome original de Alexandre VI, como cardeal.
No Tratado Álcacer-Toledo estava estabelecido que a raia divisória entre Castela
e  Portugal  seria   as  ilhas   Canárias.    As  terras  e  ilhas  por  descobrir  “para   baixo”  isto  é,  
* Versão integral do texto apresentado no XXVII Simpósio Nacional de História Anpuh-Brasil. Natal,
UFRN, 2003.
** LESCON/PPGA - UFF

1 Tratado de paz perpétua celebrado entre o rei de Portugal Afonso V e os reis de Castela e
Aragão; assinado em Alcáçovas, Portugal, em 4 de Setembro de 1479, e ratificados em
Toledo, 6 de março de 1480. (Cf. RAMOS-COELHO, 1892: 42-5).
2
para sul, seriam portuguesas. Associada à questão da divisão do espaço de domínio
político entre as Coroas ibéricas existia outra de suma importância, apesar de
negligenciada pela maior parte dos estudiosos, a questão do Padroado. O direito do
padroado consistia em um conjunto de privilégios eclesiásticos a ser exercido,
usualmente, por uma ordem religiosa. Dentre estes privilégios constavam a nomeação
de bispos e demais dignidades eclesiásticas e o direitos de recolher o dízimo dos fiéis.
O direito do padroado das terras a serem descobertas ao sul do cabo Bojador foi
concedido por Calisto III a Ordem de Cristo, ordem monástica militar herdeira e
sucessora da Ordem dos Templários em Portugal (Cf. AVELAR, 1975:175-6).
Como a latitude  do  Cabo  Bojador  (26º  07’  00”  N)  é  muito  próxima  ao  das  Ilhas  
Canárias   (Ilha   do   Ferro   27º   46’   15”   N),   os   termos   do  Tratado   de   Álcacer-Toledo, que
reservava para Portugal o domínio político das ilhas e terras descoberta ao sul das
Canárias, acabaram por estar associados aos termos da bula que concedeu o padroado à
Ordem  de  Cristo  “da  Guiné  até  as  Índias”.    Observa-se que, tanto para o tratado quanto
para a bula, era latitude a referência de espacialidade. O domínio técnico da
determinação astronômica da latitude (a distância angular contada a partir do Equador
em direção ao Polo) na época permitia que esta fosse calculada com a precisão
necessária para não haver dúvidas a que esfera de poder político ou eclesiástico
pertencia um determinado local no ultramar. Já o mesmo não acontecia com a longitude,
de difícil determinação na época.
Hoje sabemos que esta divisão acabaria por beneficiar enormemente a Portugal,
pois ao sul do paralelo das Canárias estavam as maiores riquezas do continente
americano. Apesar de, a princípio, não se saber o que o continente americano reservava
aos reinos ibéricos, Alexandre VI, por pressão de Fernando de Aragão, promulgou em 3
de maio de 1493 a segunda bula denominada Inter Coetera. Nesta concedia aos reis de
Aragão e Castela o domínio das terras a serem descobertas dos Açores e Cabo Verde
cem léguas para o ocidente e o meio-dia. Ou seja, a referência deixou de ser norte-sul
para ocidente-oriente.

Contudo, a transferência da raia divisória de paralelo para

meridiano criou um problema praticamente insolúvel para a época, por envolver
determinação de longitude2.

2 Até o início do século XVIII, a determinação da longitude estava fora de alcance dos
navegadores, que conseguiam somente estimá-la com pouca precisão em função da distancia
percorrida em um determinado rumo. Em terra, era feita por um complexo processo de
determinações simultâneas do momento exato de uma determinada conjunção planetária,
Ao intervir, Alexandre VI procurou anular os termos do Tratado de ÁlcacerToledo, garantindo a posse das Indias Ocidentais para o futuro reino de Espanha, e
conectar   “los Reyes Católicos com las gracias pontificiais concedidas por la recien
instaurada   Iglesias   de   Granada” (GALMÉS, 1993:612). Ao assim fazê-lo, Alexandre
VI interveio no espaço eclesiástico reservado ao padroado da Ordem de Cristo sem se
voltar diretamente contra a bula Inter Coetera promulgada por Calisto III. Deste modo,
o padroado da Ordem de Cristo acabaria por ser definido espacialmente não mais pelo
termo bula Inter Coetera original, mas sim pela de mesmo nome promulgada
posteriormente por Alexandre VI.
Na recusa de D. João II em aceitar os termos desta bula, os representantes dos
reis ibéricos se reuniram na cidade de Tordesilhas, a fim de se chegar a um consenso.
Surpreendentemente, os representantes de Portugal não questionaram a maneira
improcedente de se estipular a divisão, mas, aceitando a referência da longitude,
propuseram que a linha divisória fosse deslocada para oeste, passando de 100 para 370
léguas de Cabo Verde. Como para os representantes espanhóis este avanço se daria
somente sobre o mar, a proposta encaminhada em nome do rei de Portugal foi aceita,
resultando na assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 7 de junho de 1494.
Este tratado, apesar de prejudicial a Portugal no tocante à América, acabou por
pouco alterar no que tange ao Oriente. Caso mantidas as raias das Canárias e Bojador, a
maior parte dos domínios orientais estariam igualmente sob o domínio político da Coroa
e o eclesiástico do Padroado da Ordem de Cristo. A única exceção expressiva seria
Pequim, que ficaria fora da área abrangida originalmente.
No que tange ao Padroado da Ordem de Cristo, este deveria ter como autoridade
maior o prior do mosteiro de Tomar. Contudo, este acabou por ter o poder obliterado
pelos monarcas portugueses, principalmente após 1550, quando foi concedido pelo papa
Júlio III o mestrado desta ordem militar a D. João III e seus sucessores. Assim, o
padroado monástico da Ordem de Cristo passou a ser, em verdade, Padroado Real.

principalmente da Lua. A longitude era então calculada em função das diferenças horárias
locais. No mar, o problema só ficou resolvido em 1762, quando o inglês John Harrison inventou
um relógio que, mesmo oscilando, mantinha um erro de apenas um segundo por mês.
4
Por essa via [do Padroado da Ordem de Cristo] confirmada por breve papal
de 1516, a Coroa provia os respectivos bispos e demais benefícios
eclesiásticos e recebia os correspondentes dízimos, em particular no Brasil,
o que lhe servia não apenas para fornecer côngruas aos párocos, mas ainda
para sustentar as despesas da administração da Coroa em cada capitania
(RAMOS, 2009:233)

Além disso, o poder do Padroado, por ser concessão papal, foi um importante
instrumento de preservação dos domínios ultramarinos da Coroa de Portugal frente ao
questionamento de legitimidade, por parte de outras monarquias católicas.
Os termos do Tratado de Tordesilhas, que preservava o controle da rota Atlântico
Sul-Índico para Portugal, praticamente isolou a Espanha do acesso ao Oriente. Na
procura, bem sucedida, de uma passagem direta Atlântico-Pacífico, em setembro 1519
Fernão de Magalhães, português a serviço de Espanha, partiu de Sevilha no comando de
uma pequena expedição em demanda ao arquipélago das Molucas, importante centro
produtor e distribuidor de especiarias. A expedição espanhola conseguiu chegar ao
almejado arquipélago em novembro deste mesmo ano. Contudo, somente dezoito
homens em uma única embarcação, sob o comando de Sebastião Del Cano,
conseguiram retornar à Espanha, em 1522, realizando a primeira viagem de
circunavegação da Terra.
Sabedor da presença espanhola nas Molucas, D. João III, rei de Portugal,
questionou junto a Carlos V, seu primo e rei de Espanha, o direito dele em tomar posse
deste arquipélago. Alegava que o estabelecido por este Tratado não se restringia
unicamente à partilha das Índias Ocidentais. Devido à esfericidade da Terra, o
prolongamento deste meridiano, o contra meridiano, dividiria o espaço de domínio
português e espanhol também no Oriente. Apesar de não haver como fazer, na época,
observações astronômicas para determinar se o contra meridiano de Tordesilhas passava
aquém, ou além, das Ilhas Molucas, os monarcas ibéricos estabeleceram um novo
tratado, formalizado na cidade de Saragoça em 22 de Abril de 1529. Neste ficou
acordado que a Espanha desistiria temporariamente de suas pretensões às Molucas em
troca de 350 000 ducados de ouro, até que peritos pudessem determinar a qual Coroa
pertenceria de fato. Caso viesse a constatar a procedência da reivindicação de D. João
III, Portugal, seria reembolsado da soma estipulada (FERREIRA, 1963:791-2).
Contudo, a Espanha se manteve em outro arquipélago descoberto por Magalhães,
situado ao norte das Molucas, posteriormente denominado Filipinas.
Em 1548, D. João III estabeleceu o Governo-Geral no Brasil, nomeando Tomé
de Sousa para o cargo. No ano seguinte, Tomé de Sousa chega ao Brasil acompanhado
do jesuíta Manuel de Nóbrega, superior da missão formada por mais cinco religiosos.
Em 1553, desembarca na Bahia o noviço José de Anchieta, logo enviado à Capitania de
São Vicente. Sucedendo Nóbrega na direção missionária da Companhia de Jesus no
Brasil, Anchieta representa o pilar onde assentou a obra de conversão dos indígenas à fé
cristã.

O Apoio Jesuístico a Invasão do Frei Hospitalário Francês.
Em 10 de novembro de 1555, entrou na baía da Guanabara uma esquadra de
naus francesas, logo ocupando uma ilhota próxima à sua barra. Essa ilha, denominada
pelos índios de Serigipe, guarda até hoje o nome do comandante desta expedição
militar, Villegaignon. Usualmente apresentado como um nobre cavaleiro da corte do rei
Henrique II de França que teria se convertido ao calvinismo por influência do almirante
Coligny, para cá teria vindo com objetivo de fundar uma nova colônia francesa na
América, a França Antártica, onde cristãos conviveriam em paz, independente de seu
credo.
Contudo, seu título de Cavaleiro da Ordem de Malta não era de cunho
honorífico, como se costuma supor, mas referente à sua filiação monástica à Ordem de
São João de Jerusalém, onde era frei. Esta ordem militar foi fundada na Palestina,
durante as cruzadas, sendo então conhecida como Ordem do Hospital, e seus cavaleiros
como hospitalários. Após a expulsão dos cristãos da Terra Santa e do fim das cruzadas
passou a ser conhecida como Ordem de Rodes e, posteriormente, por Ordem de Malta.
Apesar de as ordens missionárias serem, a princípio, de cunho ecumenico e
internacionalista, diversas sofreram a influência da nacionalidade de seu fundador,
algumas vezes predominantes na escolha de seus priores ou superiores. No caso da
Ordem de Malta, a predominância francesa se fez presente, desde a sua fundação.
Não nos cabe aqui entrar na discussão da relação de Villegaignon com os
calvinistas, mas convém lembrar que a relação dos católicos com estes ainda não tinha o
carácter   antagônico   conforme   chegado   na   “Noite   de   São   Bartolomeu”,   ocorrida   em  
1572.

Por outro lado, sabemos pela narrativa de Lery que, após instalados na

Guanabara, Villegaignon passou a persegui-lo, assim como aos outros calvinistas. Em
6
seu livro Histoire d´vn voyage fait em la terre dv Bresil, dite Amerique, publicado em
1578, Lery acusa o comandante da França Antártica de ter traído Coligny ao perseguir
implacavelmente os calvinistas, que se viram obrigados logo a retornar para França. (Cf.
LERY, 1960.)
Em 1560, ao retornar a França na busca de apoio para a colônia estabelecida na
Guanabara, Villegaignon negociou a participação de jesuítas franceses. Em seis de
março de 1560 o padre Nicolau Liétard encaminhou uma carta ao Geral da Companhia
solicitando autorização para jesuítas franceses estabelecer um Colégio no Brasil por
intermédio de Villegaignon.

Por muitas vias se nos vão acrescentando as esperanças de alevantarmos
muito cedo Colégio, por meio de um cavaleiro principal de Rodes,
homem assim nas letras gregas e latinas como em virtudes assinalado, o
qual haver cinco anos que, por mandado do Cristianíssimo Rei, foi à Ilha
América para conquistar. E conquistando perto de duzentas léguas, parte
com boas obras que fazia, parte à força de armas, haver três meses que
chegou, não com outro intento senão buscar Bispo e sacerdotes para
cultivar esta Ilha e reduzirem a nossa santa Fé. O Ilustríssimo Cardeal
Lotarigiense, lhe prometeu que lhe daria alguma gente da nossa
Companhia. Com esta confiança veio este cavaleiro a Paris. [...] Em
América há assaz grande lugar, e acomodado, para se exercitarem nossos
ministérios. Há perto de duzentas léguas, onde há muitos infiéis, que se
podem reduzir ao grêmio da igreja, nem faltam lá mancebos franceses,
que entendem já a língua da terra, os quais nos podem servir, na obra do
catecismo, de intérpretes, como tenho entendido de um deles que de lá
veio. As naus se ficam aviando em um porto daqui perto. O nome deste
Cavaleiro é Nicolau Villegaignon. Rogue Vossa Reverência ao Senhor
que mande operários para sua messe. (In WETZEL, 1972:77-8)

Esta negociação está também
denominado

registrada no manuscrito jesuítico português

Informações do Brasil e De Suas Capitanias, datado

de 1584.

Encontrado na Biblioteca de Évora sem indicação de autoria, acabou atribuído a José de
Anchieta por Capistrano de Abreu
Daí a muito tempo, que parece que foi no ano de 1567, começara [os
franceses] a fazer povoações no Rio de Janeiro, e então se fez aquela
fortíssima torre com baluartes e muita artilharia e casas de moradores,
cujo autor foi Nicolau de Villegaignon, cavaleiro de Malta, e fundou-a
em uma ilha que está a entrada da barra no princípio daquela baía, a qual
ficou com o nome de Villegaignon. (...) De Nicolau de Villegaignon
afirmavam todos eles ser catolico e muito douto e grande cavalheiro (...).
No ano de 60 ou 61 segundo parece, vieram sete ou oito frades de habitos
brancos, Franceses, ao Rio de Janeiro depois da fortaleza destruída,
porque como Nicolau de Villegaignon era catolico, tornando á França
trabalhou de mandar religiosos ao Rio de Janeiro, assim para redução dos
hereges como para conversão do gentio. Com êste desejo se foi a um
Colegio da Companhia em França onde, depois de confessado e
comungado, pediu Padres para este empreza, dizendo que tinha na Índia
o Brasil 200 leguas de terras povoadas de gentio sujeito e pacífico: os
Padres muito alvoraçados com esta nova, responderam que mandariam
recado ao Padre Geral a pedir licença para isso e, como isto não se
efetuou pela Companhia, trabalhou de mandar êstes outros religiosos
como já disse. In ANCHIETA, 1988: 319, 321.
Contudo, em 1562, o Geral da Companhia de Jesus decidiu impedir a
participação de jesuítas neste empreendimento.
A proposta de Villegaignon não foi aceita pelo Pe. Geral. Os fatos vieram
a comprovar o acerto de sua decisão, pois a essa data já a armada de
Mém de Sá ancorava na Guanabara e com ela o Pe. Nóbrega. De Roma
escrevia o Geral Laynez ao Provincial de Portugal, a 18 de abril de 1561:
"En lo de aquel cavallero de Rodas, y la empresa de América no hay más
que tratar. Émonos conSolado no poco con lo que scriven del Brasil
acerca de aquella gente que tenia tomado la fortaleza ..." (Archivum
Romanum Societatis Jesu, Roma, Hisp. 66, f. 169r" (WETZEL,
idem:78).
Não sabemos as razões que levaram o P. Laynez, Superior da Companhia,
impedir a participação de jesuitas franceses no empreendimento comandado pelo frei
hospitalário, mas, certamente, a questão do Padroado esteve presente. Contudo, no
momento em que Villegaignon negociava o apoio jesuítico na França, Nóbrega se
refere, em carta datada de 1º de junho de 1560, aos franceses estabelecidos na
Guanabara como se fossem “todos  Lutheranos”  e  Villegaignon  como um calvinista que
já se intitulava Rei do Brasil.

Estes Francezes seguiam as heresias da Allemanha, principalmente as de
Calvino (...) vinham a esta terra a semear estas heresias pelo Gentio; e
segundo soube tinham mandados muitos meninos do Gentio a aprendelas ao mesmo Calvino e outras partes para depois serem mestres, e destes
levou alguns a Villagalhão que era o que fizera aquella fortaleza, e se
intitulara  Rei  do  Brazil”.  Deste  se  conta  que  dizia  que,  quando El-Rei de
França o não quisesse favorecer para poder ganhar esta terra, que se
havia de ir confederar com o Turco, prometendo-lhe de dar por esta parte
8
a conquista da India, e as naus dos Portuguezes que de lá viessem, porque
poderia aqui fazer o Turco suas armadas com a muita madeira da terra
(...) (In NÓBREGA, 1988: 226).

Dada à erudição de Nóbrega e a importância que tinha na Companhia, nos
parece improvável que não tivesse conhecimento da filiação monástica de Villegaginon
e, mesmo estando no Brasil, das negociações que naquele momento ocorriam com o
Provincial de França referentes a ida de jesuítas franceses para a Guanabara.
O mais surpreendente está na referência de uma possível negociação de
Villegaignon com os turcos, já que a Ordem de Malta era afamada como baluarte naval
da cristandade contra a tentativa da marinha otomana em fazer do Mediterrâneo um
“mar  mulçumano”.  Em  1565,  quando  os  franceses  ainda  estavam  no  Rio  de  Janeiro,  os  
otomanso fizeram um grande cerco à Ilha de Malta. A defesa dos Cavaleiros de Malta é
considerada um dos mais importantes feitos da história militar ocidental. O temor do
controle turco do Mediterrâneo somente cessou em 1571, quando a frota turca foi
derrotada na batalha de Lepanto. Nesta, a Ordem de Malta teve importante e decisiva
participação.

O Jesuíta Astrônomo Flamengo Como Agente de França na China
Pouco após de Villegaignon fundar a França Antártica na Guanabara, os
portugueses conseguiram no Oriente o importante, e único dentre as nações ocidentais,
privilégio de estabelecer uma colônia na China. Concedida aos portugueses em 1557,
Macau encontra-se situada no sul da China, na parte meridional da ilha de Hiasan, no
Golfo de Cantão. Sua importância estava não só como entreposto mercantil, mas
também por funcionar como base de apoio da soberania e do comércio português nas
ilhas de Solor e Timor, na Oceânia.
Durante a União Ibérica, em 1622, os holandeses prepararam uma grande
expedição para tomar Macau. Contudo, os portugueses conseguiram resistir aos
diversos assaltos. Apesar dos holandeses, em 1624, terem conseguido se instalar em
Formosa, em 1661 o célebre corsário Coxinga expulsa-os definitivamente, deixando
aos portugueses o privilégio único de ter uma colônia na China. (Cf. CLEMENTS,
2005). Com a Restauração, apesar da tentativa do governador das Filipinas em manter o
arquipélago sob a autoridade espanhola e da ameaça holandesa, os macauenses
conseguiram permanecer unidos à Coroa de Portugal.
Concomitante ao desenrolar destes acontecimentos, Galileu, após aperfeiçoar as
lunetas de observação astronômica, desenvolveu um método prático e preciso de
determinação da longitude, tendo por base as observações das previsíveis eclipses dos
satélites de Júpiter. Seu trabalho teve continuidade por outro italiano, Domenico
Cassini, que adotou a nacionalidade francesa ao ser nomeado astrônomo e astrólogo do
rei Luís XIV. Posteriormente, Cassini organizou e fundou o Observatório Astronômico
de Paris, vindo a ser seu primeiro diretor.
Ao dominar a técnica de determinação da longitude por observações de eclipses
dos satélites de Júpiter, os astrônomos matemáticos da Companhia de Jesus,
principalmente italianos e franceses, passaram a ser solicitados pelos monarcas
europeus, a fim de refazer os mapeamentos de seus domínios.
Estando a China na órbita do Padroado Português, em 1659 o jesuíta flamengo
Ferdinand Verbiest, astrônomo de grande prestígio, obteve autorização do rei de
Portugal Pedro II para partir de Lisboa para Macau. Ali chegando, instalou-se
inicialmente no Colégio da Companhia de Jesus de Madre de Deus. Já no ano seguinte
foi transferido para Pequim. Em 1667 é integrado à missão diplomática enviada pelo rei
de   Portugal   a   corte   do   imperador   Kangxi.   “A   actuação   do   Pe.   Verbiest,   nessas  
negociações, saldou-se para Portugal deveras positivamente na medida em que ele tinha
um particular reconhecimento pela acção missionária que a Coroa portuguesa vinha
implementando   também   em   terra   da   China”.   (MATOS,   1999:   158-9). Ao ganhar
confiança e admiração do imperador, é nomeado, em 1669, Presidente do Tribunal das
Matemáticas de Pequim. A partir de 1672 acumula a direção do observatório
astronômico de Pequim.
No ano seguinte, em 1673, o jesuíta português Antonio Viera alerta, em carta de
Roma, ao representante português em Paris de que o rei de França estava agindo junto a
Santa Sé para obstruir os privilégios da Coroa de Portugal, concedidos pelo Padroado.
Já disse a Vossa Senhoria que elRey Christianissimo com os seus
exércitos a primeira cidade que tem conquistado he Roma, onde
lhe concederão, quanto seus ministros quizerem sobre os Bispos
Franceses mandados ao Oriente pella Propaganda querem agora
que para se evitarem discórdia se lhes dividão Diecesis, e se
10
revoguem as Bullas antigas de Portugal. Roma, 8 de Agosto de
673. (In MONIZ, 1910: 158).
Cedendo a pressão de Luís XIV, neste mesmo ano o papa Clemente X emite um
breve autorizando os membros das ordens religiosas de embarcarem para as regiões sob
o domínio do Padroado Português em navios e portos que não fossem necessariamente
portugueses. Desta maneira, a Santa Sé retirava do rei de Portugal a prerrogativa de
escolher os missionários que partiriam para seus domínios ultramarinos.
A partir de então, Verbiest passa agir como um verdadeiro agente do rei de
França na China. Contando com seu apoio, Luís XIV encarregou Cassini, diretor do
Observatório Astronômico de Paris, de preparar uma missão científica, que veio a ter à
frente o padre matemático jesuíta De la Chaise, a quem Colbert outorgou, por decreto de
28 de janeiro de 1683, o titulo de Matemático do Rei. Esta missão científica partiu do
porto de La Rochelle em 3 de março de 1685, dela fazendo parte, além de De la Chaise,
mais seis matemáticos e astrônomos jesuítas, dos quais cinco chegaram à China (Cf.
MATOS, idem: 167-8).
A razão do envolvimento pessoal de Colbert neste projeto, a princípio de cunho
exclusivamente científico, se revela na participação de Verbienst, já como superior da
Companhia de Jesus em Pequim, na participação de jesuítas nas negociações entre a
China e Rússia que resultaram na assinatura do Tratado de Nerchinsk. Este tratado, que
delimitava a fronteira entre estes impérios e punha fim a uma série de conflitos entre
comunidades fronteiriças russas e chinesas, era de suma importância no estabelecimento
de uma nova rota mercantil da Europa Ocidental, principalmente a França, com a China
via Sibéria. Assim, a França não mais ficaria na dependência da rota náutica LisboaGoa-Macau, dominada pelos portugueses.
O trabalho de mapeamento e de determinações das coordenadas geográficas de
diversas regiões do Império Celeste era de fundamental importância não só para o
Imperador aumentar o controle de seus domínios como para a concretização do plano de
estabelecer uma nova rota mercantil com o Oriente. Tendo Cassini à frente do
Observatório Astronômico de Paris, associado aos astrônomos jesuítas franceses
liderados por Verbiest, responsável pelo Observatório Astronômico de Pequim,
nenhuma outra nação europeia poderia concorrer com a França na realização deste
trabalho cartográfico.
Contudo,   a   “infiltração”   de   jesuitas   franceses   na   China   não   ficou   restrita   aos  
astrônomos.   “Em   resultado   das   diligências   que   faz   junto   de   Luis   XIV   e   em   Roma,   os  
primeiros 5 jesuítas franceses (entre eles Gerbillon) chegam à China em 1687 à revelia
do   controle   português   e   contra   a   vontade   dos   jesuítas   do   Padroado”   (MIRANDA,  
1993:112). D. Polycarpo de Sousa, bispo de Pequim, passou então a dividir a
preocupação da ação dos franceses e outros, seguidores do plano concebido por
Ferdinand   Verbiest   com   os   jesuitas   portugueses   estabelecidos   na   China,   “defensores  
incondicionais da exclusividade que assitiam ao seu rei na qualidade de patrono da
missionação católica desde a região do golfo pérsico aos mares territoriais da imensa
China”  (Ibid.  121).  
Apesar do objetivo maior de Verbiest, o estabelecimento de uma rota mercantil
com a China através da Sibéria, não ter sido atingido (Cf. Ibid. 111), mesmo após a
morte de Verbiest em 1688, o trabalho de determinação de coordenadas e mapeamento
teve continuidade. Do mesmo modo, teve também continuidade a tensão e o
antagonismo entre jesuítas portugueses e franceses que missionavam na China. Os
mapas da China feitos por estes jesuítas franceses acabaram por publicados em Paris
em 1735.

Os Mapas da China dos Jesuítas Franceses e Conflito na Demarcação da Fronteira
Meridional Estabelecida pelo Tratado de Madri.
A impossibilidade de demarcação da linha divisória, além da imprecisa maneira
em que o tratado foi redigido (Cf. Tratado de Tordesilhas. In CORTESÃO, 1956: 3-21),
possibilitou o avanço dos portugueses não só sobre áreas onde se havia dúvidas a qual
Coroa pertenceria, como também sobre territórios que, incontestavelmente, estavam
dentro dos domínios da Espanha. A Colônia de Sacramento, núcleo populacional
formado por luso-brasileiros estabelecidos em 1680 no estuário do Rio da Prata, se
encontrava, indubitavelmente, em território hispânico, razão de ter sua legalidade
prontamente contestada por parte de Espanha, instaurando, a partir de então, uma zona
de permanente conflito.
Pouco após, em 1700, a Europa se vê em estado de beligerância com a Inglaterra
em decorrência da crise instaurada com a morte do rei de Espanha Carlos II sem deixar
sucessor direto. O conflito se estendeu até 1713, quando é assinada o Tratado de
12
Utrecht, onde é reconhecido o direito de Felipe de Anjou ocupar o trono de Espanha
como Felipe V.
Contudo, para ter seu neto no trono da Espanha, o Rei Sol fez grandes
concessões à Inglaterra. Portugal, aliado desta, acabou também beneficiado em questões
de fronteiras na América. Com a França obteve o reconhecimento do rio Oiapoque
como a fronteira natural entre o Brasil e a Guiana. Por parte da Espanha, obteve a
devolução da Colônia de Sacramento.
Apesar do estabelecido no Tratado de Utrecht, a posse luso-brasileira de
Sacramento permaneceu como ponto de discórdia com Espanha. Em 1735, um incidente
menor com o embaixador de Portugal em Madri, resultando em tensão entre as duas
Coroas, foi motivo para que o Governador de Buenos Aires sitiasse Sacramento.
Em 1746 o rei de Espanha Felipe V veio a falecer, sendo sucedido por seu filho
Fernando VI, por sua vez casado com Maria Bárbara, filha de D. João V de Portugal.
Por intermediação da rainha portuguesa de Espanha, as duas Coroas ibérica,
estabelecem negociações para redefinir a fronteira entre a América Espanhola e
Portuguesa, já que esta nunca fora demarcada por dificuldades no cálculo da longitude.
Tendo como objetivo maior retomar o controle do estuário do Rio da Prata, o
negociador por parte da Coroa de Espanha, o Marques de Carvajal, argumentava que,
mesmo com a dificuldade em se materializar o meridiano estabelecido pelo Tratado de
Tordesilhas, era evidente o avanço feito pelos portugueses nos territórios espanhóis.
Contudo, em nome da estabilidade política entre as Coroas ibéricas, não reivindicava,
como seria de direito, o retorno ao limite original, apresentando, em contrapartida, uma
proposta a princípio generosa e conciliadora. Esta seria a troca da posse da Colônia de
Sacramento pela região das minas de Cuiabá e Goiás, apesar de todas as áreas em
questão estarem, evidentemente, dentro da reservada ao domínio da Espanha.
O brasileiro Alexandre de Gusmão, desembargador do Conselho Ultramarino e
secretário do Rei, assume então a responsabilidade pelas negociações, se
correspondendo diretamente com Carvajal. Lança ele, então, mão de uma argumentação
inesperada e desconcertante. Os mapas da China feitos pelos jesuítas franceses,
publicados em Paris em 1735, demonstravam que o arquipélago das Filipinas, principal
entreposto mercantil da Coroa de Espanha no Oriente, estava indubitavelmente, dentro
dos limites estabelecidos para Portugal pelo contra meridiano do Tratado de Tordesilhas,
referendado ainda pelo Tratado de Saragoça. De posse, então, destes mapas, pode
Alexandre de Gusmão sustentar sua reivindicação do princípio do utis-possidetis,
conforme comunica a Carvajal.
Os dittos Jezuitas pois (como sepode ver nos seis Mapas da
descripção da China impressa em Paris em 1735) situarão a ponta
Meridonal da Ilha de Formosa em 138 graos contados do primeiro
Meridiano da Ilha do Ferro p.a o Oriente. Ora a extremidade
occidental da Ilha de Luçon fica mais ao Poente que a ditta ponta
de Formosa quatros grãos Meridianos como mostra a mayor parte
dos Mapas Modernos. ( In CORTESÃO, 1950: 175)
Despido o Marques de Carvajal do recurso de uma contra argumentação
tecnicamente consistente, a proposta apresentada por Gusmão foi finalmente aceita. Esta
consentia em trocar a posse das Filipinas e da Colônia de Sacramento por um novo
espaço territorial para a América Portuguesa que, em sua porção meridional, teria como
limite oriental o rio Uruguai. Esta nova configuração fazia com que uma parte das
missões jesuítas da Província do Paraguai, os Sete Povos das Missões, passassem para a
jurisdição do Padroado Português.
O processo de demarcação da fronteira sul teve início em outubro de 1752, sendo
designado como Comissário por parte de Portugal Gomes Freire de Andrade e, por parte
de Espanha, o Marquês de Valdelirios. Foram dadas aos indígenas missioneiros as
alternativas de permanecer no local sob a autoridade da Coroa de Portugal, o que
colocaria os jesuítas missioneiros sob o poder do Padroado Português, ou transferir as
missões para a margem oriental do Uruguai. A negativa a estas propostas acabou por
deflagra, no ano seguinte, a Guerra Guaranítica.
Em decorrência dos resultados desta guerra, os jesuítas que atuavam nas missões
hispânicas, espanhóis em sua maioria, acabaram por retratar Gomes Freire como
sanguinário, inimigo dos índios e da Companhia de Jesus. Contudo, o governador do
Rio de Janeiro era próximo aos jesuítas do Padroado Português, especialmente do
Colégio do Rio de Janeiro. Pouco antes da partida de Gomes Freire para o Sul, um
padre da Companhia de Jesus participou de uma cerimônia na qual o governador havia
sido calorosamente homenageado (Cf. CAVALCANTI, 2004: 69).
Neste contexto, a Guerra Guaranítica desaguou na situação de contraponto, ou
mesmo de conflito direto entre os jesuítas do Colégio do Rio de janeiro e os das missões
hispânicas. Enquanto estes instaram os índios a reagirem belicamente, aqueles se
14
fizeram presente estabelecendo novos aldeamentos para acolher os índios missioneiros
que aceitassem se estabelecer sob a égide do Padroado Português.
A esta data [1751] já se tinha assinado o Tratado de Permuta de 1750 e
sobreviveram todas as lutas, debates, e carnificinas de que anda cheia a
história dos Sete Povos das Missões. Para ter mão nos Índios, da parte do
exército Português, foram chamados alguns Jesuítas do Brasil, (...) No
dia 2 de Fevereiro de 1755 já estavam na Candelária, o P. Francisco
Bernardes, que fez aí a profissão solene, e o Padre Bernardo Lopes, que a
recebeu, dois anos depois, o Catálogo assinala, dependente do Colégio do
Rio de Janeiro, (o grifo é nosso) a Aldeia do Rio Grande com o mesmo P.
Francisco Bernardes por Superior e um terceiro Padre, Francisco da
Silva, como companheiro. Em 1757 aparecem duas residências: Na
Aldeia de Nossa Senhora da Conceição do Estreito, ao norte do Pôrto do
Rio Grande, o Padre Bernardo Lopes como pároco dos Índios, à
requisição de Gomes Freire de Andrade; e na Fortaleza e Acampamento
de Rio Pardo, o P. Francisco Bernardes, que ali passou da Aldeia do
Estreito. (LEITE, 1945:531)
Reconhecendo a existência do conflito de nacionalidades no seio da Companhia,
assim o padre Serafim Leite procura justificá-la:
Na história da Colónia de Sacramento aparecem Jesuítas de Portugal e
Jesuítas de Espanha, a saber, Jesuítas da Província do Brasil e Jesuítas da
Província do Paraguai. Todos da Companhia, mas com deveres políticos
oposto. Num ponto, os mesmo: na unidade da doutrina e da moral,
unidade substancial, religiosa, a mesma em todo o mundo, como no
Universo são unidos na Fé e na Moral todos os católicos cultos,
conscientes e dignos de tão grande nome e honra. Mesmo assim como
no resto do mundo, em tempo de guerra, se encontram Católicos nos dois
campos opostos, assim também neste, os Jesuítas do Brasil defendiam a
bandeira portuguesa, os Jesuítas do Paraguai a bandeira espanhola. Era a
estrita obrigação de cada qual, como cidadãos e patriotas. (Ibidem: 535)
No entanto, na questão da Guerra Guaranítica, Espanha e Portugal não estavam
em campos opostos, conforme nos faz supor Serafim Leite. Neste caso, não cabe aludir
à guerra como razão do comportamento conflitante entre os jesuítas do Colégio do Rio
de Janeiro com os missioneiros do Paraguai. Devemos ainda lembrar que, também no
caso de Villegaignon como no de Verbiest não havia estado de guerra entre Portugal e
França, o que invalida a justificativa apresentada pelo célebre historiador jesuíta. A
nosso ver, o que estava em jogo eram interesses nacionais e locais, principalmente
mercantis, e não propriamente estado de guerra entre nações.
Considerações Finais
Cientes que o conjunto dos casos abordados engloba o longo espaço temporal
de dois séculos, do meado do XVI ao do XVIII, refirmamos a pertinência da questão da
nacionalidade, atentos, porém, aos contornos diversos que esta toma ao longo do tempo.
Em relação direta ao abordado, sabe-se que a transformação do Condado
Portucalense em reino independente se fez em função da construção de uma identidade
nacional consolidada ao longo do século XIII. Não havendo esta, a estreita faixa
litorânea atlântica teria sido igualmente sugada pelo processo incorporador dos diversos
reinos ibéricos que desaguou na formação de Espanha. Para tal, concorreu o fato da
primeira dinastia de reis portugueses ter tido origem não na Península Ibérica, mas em
Borgonha. Contudo, se hoje os filhos da Borgonha têm a nacionalidade francesa, o
mesmo não ocorria quando da sagração de Afonso Henriques como rei de Portugal.
Apesar de ducado, a Borgonha tinha então uma identidade nacional própria, em
contraposição à de França. Obliterada posteriormente a manu militari, a identidade
nacional borgonhesa tomou rumo inverso àquela fundada em solo português, cada vez
mais cônscio de sua independência do caldeirão ibérico.
Com a expansão ultramarina no século XVI, a identidade nacional portuguesa
ganha dimensão transcontinental, extrapolando o espaço reinol. Usamos hoje o artifício
de antepor o termo luso para identificar a diversidade dentro da unidade: lusobrasileiros, luso-angolanos, luso-macauense etc... Contudo, documentalmente tal
diferenciação não existe: são todos portugueses. Serafim Leite cita, em nota, o
levantamento estatístico feito em 1688 pelo P. João Antonio Andreoni das entradas e
saídas de noviços no Brasil. Para o período de 1566 a 1608, do total de 248 noviços
“portugueses” que ingressaram na Companhia 131 vieram de Portugal, 63 eram
nascidos no Brasil, 42 vieram das Ilhas e 11 “de  outros  Reynos”, ou seja, dos diversos
outros domínios ultramarinos, acreditamos que principalmente asiáticos. (Cf. LEITE,
1938: 437, t. 2)
Esta dimensão possibilitará que a Restauração não tenha ficado restrita ao
processo de resgate da independência política do reino e de sua identidade nacional.
Tendo como suporte a diversidade étnica, esta excêntrica identidade nacional
multiespacial possibilitou que o movimento separatista se espraiasse do próximo espaço
ilhéu atlântico ao Extremo Oriente.
16
Assim, ao longo do tempo esta questão, mesmo ganhando tons variáveis, é
persistente. No século XVI, os jesuítas envolvidos, contra ou a favor, com o
empreendimento de Villegaignon

eram

franceses e portugueses natos. Contudo,

diferentemente no século XVIII, diversos dos jesuítas do Colégio do Rio de Janeiro,
assim como alguns das missões hispânicas, tinham nascidos em solo americano, e não
necessariamente de origem étnica exclusivamente ibérica. Não pode passar
despercebido o fato do protagonista maior do Tratado de Madri, Alexandre de Gusmão,
ter tido não só formação jesuítica como ter nascido no Brasil, na cidade de Santos.
No caso do Rio de Janeiro, a ação de jesuítas franceses no Padroado da Ordem
de Cristo não passou de uma intensão, abortada pelo Superior da Companhia. Numa
visão maior de conflito interno no seio da Igreja, é interessante observar que, durante as
cruzadas, foram intensas e constantes as hostilidades entre a Ordem dos Templários,
matriz da Ordem de Cristo, e a Ordem dos Hospitalários, a qual pertencia Villegaignon.
No caso da China, contudo, a ação dos jesuítas franceses agindo contra os
direitos do Padroado Português foi real e efetiva, apesar de não ter sido concretizado o
projeto de implantação da rota mercantil França-China via Sibéria. Neste caso, ressalta
o fato de ter sido o resultado do mapeamento da missão francesa, patrocinada pela
aliança de Verbiest com Luís XIV, o instrumento utilizado por Gusmão para desenhar
uma nova fronteira. A demarcação desta acabou por desaguar na Guerra Guaranítica,
de resultados tenebrosos para a Companhia de Jesus, por trazer repercussões que irão se
mostrar presentes no processo de expulsão de Portugal e de Espanha.
Destaca-se ainda a maneira como Nóbrega procurou ocultar a proximidade de
Villegaignon com jesuítas franceses ao apresentar o frei da Ordem de São João de
Jerusalém como calvinista.

Por outro lado, apesar do compreensível melindre ao

abordar tal espinhosa questão para um jesuíta, Serafim Leite não se omite em revelar a
constante hostilidade que intermediava a relação entre

religiosos portugueses e

espanhóis, obrigados ao convívio no Brasil durante a União Ibérica (LEITE, 1938:4403). Com o fim desta, que resultou no impedimento para os espanhóis, somente os
jesuítas italianos e alemães continuaram a não sofrer restrições, por parte da corte de
Lisboa, para se estabelecerem no Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
AVELAR, Hélio de Alcântara. História administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: DASP,
1965.
CAVALCANTI, Nireu de Oliveira. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção
da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.
CLEMENTS, Jonathan. O Rei Pirata: Coxinga e a queda da dinastia Ming. São Paulo:
Madras, 2005.
CORTESÃO, Jaime (org.). Pauliceae Lusitana Monumenta Historica. Lisboa, Real
Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, 1956, v 1 (1494-1600).
FERREIRA,  Maria  Emília  Cordeiro.  “Tratado  de  Saragoça”.  In  Joel  Serrão  (org.)  
Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativa Ed., 1963, v. 3, pp. 791-2.
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Portuguesa e Encontro de Culturas. Braga: Universidade Católica Portuguesa,
1993, v. 3, pp. 607-625.
GUSMÃO,   Alexandre.   “Réplica   ao   Marques   de   Carvajal”.   In   CORTESÃO,   Jaime.  
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LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália; Rio de
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LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo, Martins, 1960.
MATOS,   Manuel   Cadafaz   de.   “Ferdinand   Verbiest.   A   defesa   dos   interesses   da   Coroa  
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contendo os actos e relações políticas e diplomáticas de Portugal com as diversas
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ATIVIDADE 3 - DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM MOTORA - 52_2024
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  • 1. COMPANHIA DE JESUS E O PADROADO PORTUGUÊS: conflito de nacionalidades no seio jesuítico*. Renato Pereira Brandão** Resumo Associado ao poder político da Coroa de Portugal no Ultramar estava o poder do Padroado da Ordem de Cristo. Apesar de mais presente junto ao clero secular, o poder do Padroado também se estendia ao clero regular, colocando a atuação de uma determinada ordem missionária no ultramar português sob o poder não só civil, mas também eclesiástico da Coroa. Apesar da ação missionária da Companhia de Jesus ter uma orientação internacionalista e transnacional, o nosso objetivo é demonstrar que interesses nacionais diversos ao da Coroa de Portugal geraram conflitos entre jesuítas portugueses com os de outras nacionalidades no ultramar português. Discutimos aqui três casos. O primeiro é referente à negociação de participação de jesuítas franceses na invasão  da  Guanabara  comandada  pelo   “calvinista”  Villegaignon.  O  segundo  aborda  a   ação do padre flamengo Verbiest na China procurando favorecer interesses mercantis da Coroa de França em detrimento aos de Portugal. O último trata do conflito entre os jesuítas da Província do Paraguai e os do Colégio do Rio de Janeiro frente às consequências do trabalho demarcatória do Tratado de Madri. O Tratado de Tordesilhas, o Padroado da Ordem de Cristo e a Divisão do Mundo Ao emitir em 3 de maio de 1493 a bula Inter Coetera, com intuito de reservar para os reinos de Castela e Aragão, posteriormente unidos sob a denominação de Espanha, o domínio exclusivo das Índias Ocidentais, recém descobertas por Colombo e reivindicada pelo rei de Portugal D. João II, por força do Tratado de Alcáçovas1, o papa aragonês Alexandre VI não só criou um problema político de fundamentação cartográfica, nunca verdadeiramente resolvido, como interveio indiretamente nos termos da bula de mesmo nome promulgada em 1456 pelo papa Calisto III, tio e mentor da nomeação de Rodrigo Bórgia, nome original de Alexandre VI, como cardeal. No Tratado Álcacer-Toledo estava estabelecido que a raia divisória entre Castela e  Portugal  seria   as  ilhas   Canárias.    As  terras  e  ilhas  por  descobrir  “para   baixo”  isto  é,   * Versão integral do texto apresentado no XXVII Simpósio Nacional de História Anpuh-Brasil. Natal, UFRN, 2003. ** LESCON/PPGA - UFF 1 Tratado de paz perpétua celebrado entre o rei de Portugal Afonso V e os reis de Castela e Aragão; assinado em Alcáçovas, Portugal, em 4 de Setembro de 1479, e ratificados em Toledo, 6 de março de 1480. (Cf. RAMOS-COELHO, 1892: 42-5).
  • 2. 2 para sul, seriam portuguesas. Associada à questão da divisão do espaço de domínio político entre as Coroas ibéricas existia outra de suma importância, apesar de negligenciada pela maior parte dos estudiosos, a questão do Padroado. O direito do padroado consistia em um conjunto de privilégios eclesiásticos a ser exercido, usualmente, por uma ordem religiosa. Dentre estes privilégios constavam a nomeação de bispos e demais dignidades eclesiásticas e o direitos de recolher o dízimo dos fiéis. O direito do padroado das terras a serem descobertas ao sul do cabo Bojador foi concedido por Calisto III a Ordem de Cristo, ordem monástica militar herdeira e sucessora da Ordem dos Templários em Portugal (Cf. AVELAR, 1975:175-6). Como a latitude  do  Cabo  Bojador  (26º  07’  00”  N)  é  muito  próxima  ao  das  Ilhas   Canárias   (Ilha   do   Ferro   27º   46’   15”   N),   os   termos   do  Tratado   de   Álcacer-Toledo, que reservava para Portugal o domínio político das ilhas e terras descoberta ao sul das Canárias, acabaram por estar associados aos termos da bula que concedeu o padroado à Ordem  de  Cristo  “da  Guiné  até  as  Índias”.    Observa-se que, tanto para o tratado quanto para a bula, era latitude a referência de espacialidade. O domínio técnico da determinação astronômica da latitude (a distância angular contada a partir do Equador em direção ao Polo) na época permitia que esta fosse calculada com a precisão necessária para não haver dúvidas a que esfera de poder político ou eclesiástico pertencia um determinado local no ultramar. Já o mesmo não acontecia com a longitude, de difícil determinação na época. Hoje sabemos que esta divisão acabaria por beneficiar enormemente a Portugal, pois ao sul do paralelo das Canárias estavam as maiores riquezas do continente americano. Apesar de, a princípio, não se saber o que o continente americano reservava aos reinos ibéricos, Alexandre VI, por pressão de Fernando de Aragão, promulgou em 3 de maio de 1493 a segunda bula denominada Inter Coetera. Nesta concedia aos reis de Aragão e Castela o domínio das terras a serem descobertas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o ocidente e o meio-dia. Ou seja, a referência deixou de ser norte-sul para ocidente-oriente. Contudo, a transferência da raia divisória de paralelo para meridiano criou um problema praticamente insolúvel para a época, por envolver determinação de longitude2. 2 Até o início do século XVIII, a determinação da longitude estava fora de alcance dos navegadores, que conseguiam somente estimá-la com pouca precisão em função da distancia percorrida em um determinado rumo. Em terra, era feita por um complexo processo de determinações simultâneas do momento exato de uma determinada conjunção planetária,
  • 3. Ao intervir, Alexandre VI procurou anular os termos do Tratado de ÁlcacerToledo, garantindo a posse das Indias Ocidentais para o futuro reino de Espanha, e conectar   “los Reyes Católicos com las gracias pontificiais concedidas por la recien instaurada   Iglesias   de   Granada” (GALMÉS, 1993:612). Ao assim fazê-lo, Alexandre VI interveio no espaço eclesiástico reservado ao padroado da Ordem de Cristo sem se voltar diretamente contra a bula Inter Coetera promulgada por Calisto III. Deste modo, o padroado da Ordem de Cristo acabaria por ser definido espacialmente não mais pelo termo bula Inter Coetera original, mas sim pela de mesmo nome promulgada posteriormente por Alexandre VI. Na recusa de D. João II em aceitar os termos desta bula, os representantes dos reis ibéricos se reuniram na cidade de Tordesilhas, a fim de se chegar a um consenso. Surpreendentemente, os representantes de Portugal não questionaram a maneira improcedente de se estipular a divisão, mas, aceitando a referência da longitude, propuseram que a linha divisória fosse deslocada para oeste, passando de 100 para 370 léguas de Cabo Verde. Como para os representantes espanhóis este avanço se daria somente sobre o mar, a proposta encaminhada em nome do rei de Portugal foi aceita, resultando na assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 7 de junho de 1494. Este tratado, apesar de prejudicial a Portugal no tocante à América, acabou por pouco alterar no que tange ao Oriente. Caso mantidas as raias das Canárias e Bojador, a maior parte dos domínios orientais estariam igualmente sob o domínio político da Coroa e o eclesiástico do Padroado da Ordem de Cristo. A única exceção expressiva seria Pequim, que ficaria fora da área abrangida originalmente. No que tange ao Padroado da Ordem de Cristo, este deveria ter como autoridade maior o prior do mosteiro de Tomar. Contudo, este acabou por ter o poder obliterado pelos monarcas portugueses, principalmente após 1550, quando foi concedido pelo papa Júlio III o mestrado desta ordem militar a D. João III e seus sucessores. Assim, o padroado monástico da Ordem de Cristo passou a ser, em verdade, Padroado Real. principalmente da Lua. A longitude era então calculada em função das diferenças horárias locais. No mar, o problema só ficou resolvido em 1762, quando o inglês John Harrison inventou um relógio que, mesmo oscilando, mantinha um erro de apenas um segundo por mês.
  • 4. 4 Por essa via [do Padroado da Ordem de Cristo] confirmada por breve papal de 1516, a Coroa provia os respectivos bispos e demais benefícios eclesiásticos e recebia os correspondentes dízimos, em particular no Brasil, o que lhe servia não apenas para fornecer côngruas aos párocos, mas ainda para sustentar as despesas da administração da Coroa em cada capitania (RAMOS, 2009:233) Além disso, o poder do Padroado, por ser concessão papal, foi um importante instrumento de preservação dos domínios ultramarinos da Coroa de Portugal frente ao questionamento de legitimidade, por parte de outras monarquias católicas. Os termos do Tratado de Tordesilhas, que preservava o controle da rota Atlântico Sul-Índico para Portugal, praticamente isolou a Espanha do acesso ao Oriente. Na procura, bem sucedida, de uma passagem direta Atlântico-Pacífico, em setembro 1519 Fernão de Magalhães, português a serviço de Espanha, partiu de Sevilha no comando de uma pequena expedição em demanda ao arquipélago das Molucas, importante centro produtor e distribuidor de especiarias. A expedição espanhola conseguiu chegar ao almejado arquipélago em novembro deste mesmo ano. Contudo, somente dezoito homens em uma única embarcação, sob o comando de Sebastião Del Cano, conseguiram retornar à Espanha, em 1522, realizando a primeira viagem de circunavegação da Terra. Sabedor da presença espanhola nas Molucas, D. João III, rei de Portugal, questionou junto a Carlos V, seu primo e rei de Espanha, o direito dele em tomar posse deste arquipélago. Alegava que o estabelecido por este Tratado não se restringia unicamente à partilha das Índias Ocidentais. Devido à esfericidade da Terra, o prolongamento deste meridiano, o contra meridiano, dividiria o espaço de domínio português e espanhol também no Oriente. Apesar de não haver como fazer, na época, observações astronômicas para determinar se o contra meridiano de Tordesilhas passava aquém, ou além, das Ilhas Molucas, os monarcas ibéricos estabeleceram um novo tratado, formalizado na cidade de Saragoça em 22 de Abril de 1529. Neste ficou acordado que a Espanha desistiria temporariamente de suas pretensões às Molucas em troca de 350 000 ducados de ouro, até que peritos pudessem determinar a qual Coroa pertenceria de fato. Caso viesse a constatar a procedência da reivindicação de D. João III, Portugal, seria reembolsado da soma estipulada (FERREIRA, 1963:791-2). Contudo, a Espanha se manteve em outro arquipélago descoberto por Magalhães, situado ao norte das Molucas, posteriormente denominado Filipinas.
  • 5. Em 1548, D. João III estabeleceu o Governo-Geral no Brasil, nomeando Tomé de Sousa para o cargo. No ano seguinte, Tomé de Sousa chega ao Brasil acompanhado do jesuíta Manuel de Nóbrega, superior da missão formada por mais cinco religiosos. Em 1553, desembarca na Bahia o noviço José de Anchieta, logo enviado à Capitania de São Vicente. Sucedendo Nóbrega na direção missionária da Companhia de Jesus no Brasil, Anchieta representa o pilar onde assentou a obra de conversão dos indígenas à fé cristã. O Apoio Jesuístico a Invasão do Frei Hospitalário Francês. Em 10 de novembro de 1555, entrou na baía da Guanabara uma esquadra de naus francesas, logo ocupando uma ilhota próxima à sua barra. Essa ilha, denominada pelos índios de Serigipe, guarda até hoje o nome do comandante desta expedição militar, Villegaignon. Usualmente apresentado como um nobre cavaleiro da corte do rei Henrique II de França que teria se convertido ao calvinismo por influência do almirante Coligny, para cá teria vindo com objetivo de fundar uma nova colônia francesa na América, a França Antártica, onde cristãos conviveriam em paz, independente de seu credo. Contudo, seu título de Cavaleiro da Ordem de Malta não era de cunho honorífico, como se costuma supor, mas referente à sua filiação monástica à Ordem de São João de Jerusalém, onde era frei. Esta ordem militar foi fundada na Palestina, durante as cruzadas, sendo então conhecida como Ordem do Hospital, e seus cavaleiros como hospitalários. Após a expulsão dos cristãos da Terra Santa e do fim das cruzadas passou a ser conhecida como Ordem de Rodes e, posteriormente, por Ordem de Malta. Apesar de as ordens missionárias serem, a princípio, de cunho ecumenico e internacionalista, diversas sofreram a influência da nacionalidade de seu fundador, algumas vezes predominantes na escolha de seus priores ou superiores. No caso da Ordem de Malta, a predominância francesa se fez presente, desde a sua fundação. Não nos cabe aqui entrar na discussão da relação de Villegaignon com os calvinistas, mas convém lembrar que a relação dos católicos com estes ainda não tinha o carácter   antagônico   conforme   chegado   na   “Noite   de   São   Bartolomeu”,   ocorrida   em   1572. Por outro lado, sabemos pela narrativa de Lery que, após instalados na Guanabara, Villegaignon passou a persegui-lo, assim como aos outros calvinistas. Em
  • 6. 6 seu livro Histoire d´vn voyage fait em la terre dv Bresil, dite Amerique, publicado em 1578, Lery acusa o comandante da França Antártica de ter traído Coligny ao perseguir implacavelmente os calvinistas, que se viram obrigados logo a retornar para França. (Cf. LERY, 1960.) Em 1560, ao retornar a França na busca de apoio para a colônia estabelecida na Guanabara, Villegaignon negociou a participação de jesuítas franceses. Em seis de março de 1560 o padre Nicolau Liétard encaminhou uma carta ao Geral da Companhia solicitando autorização para jesuítas franceses estabelecer um Colégio no Brasil por intermédio de Villegaignon. Por muitas vias se nos vão acrescentando as esperanças de alevantarmos muito cedo Colégio, por meio de um cavaleiro principal de Rodes, homem assim nas letras gregas e latinas como em virtudes assinalado, o qual haver cinco anos que, por mandado do Cristianíssimo Rei, foi à Ilha América para conquistar. E conquistando perto de duzentas léguas, parte com boas obras que fazia, parte à força de armas, haver três meses que chegou, não com outro intento senão buscar Bispo e sacerdotes para cultivar esta Ilha e reduzirem a nossa santa Fé. O Ilustríssimo Cardeal Lotarigiense, lhe prometeu que lhe daria alguma gente da nossa Companhia. Com esta confiança veio este cavaleiro a Paris. [...] Em América há assaz grande lugar, e acomodado, para se exercitarem nossos ministérios. Há perto de duzentas léguas, onde há muitos infiéis, que se podem reduzir ao grêmio da igreja, nem faltam lá mancebos franceses, que entendem já a língua da terra, os quais nos podem servir, na obra do catecismo, de intérpretes, como tenho entendido de um deles que de lá veio. As naus se ficam aviando em um porto daqui perto. O nome deste Cavaleiro é Nicolau Villegaignon. Rogue Vossa Reverência ao Senhor que mande operários para sua messe. (In WETZEL, 1972:77-8) Esta negociação está também denominado registrada no manuscrito jesuítico português Informações do Brasil e De Suas Capitanias, datado de 1584. Encontrado na Biblioteca de Évora sem indicação de autoria, acabou atribuído a José de Anchieta por Capistrano de Abreu Daí a muito tempo, que parece que foi no ano de 1567, começara [os franceses] a fazer povoações no Rio de Janeiro, e então se fez aquela fortíssima torre com baluartes e muita artilharia e casas de moradores, cujo autor foi Nicolau de Villegaignon, cavaleiro de Malta, e fundou-a em uma ilha que está a entrada da barra no princípio daquela baía, a qual ficou com o nome de Villegaignon. (...) De Nicolau de Villegaignon
  • 7. afirmavam todos eles ser catolico e muito douto e grande cavalheiro (...). No ano de 60 ou 61 segundo parece, vieram sete ou oito frades de habitos brancos, Franceses, ao Rio de Janeiro depois da fortaleza destruída, porque como Nicolau de Villegaignon era catolico, tornando á França trabalhou de mandar religiosos ao Rio de Janeiro, assim para redução dos hereges como para conversão do gentio. Com êste desejo se foi a um Colegio da Companhia em França onde, depois de confessado e comungado, pediu Padres para este empreza, dizendo que tinha na Índia o Brasil 200 leguas de terras povoadas de gentio sujeito e pacífico: os Padres muito alvoraçados com esta nova, responderam que mandariam recado ao Padre Geral a pedir licença para isso e, como isto não se efetuou pela Companhia, trabalhou de mandar êstes outros religiosos como já disse. In ANCHIETA, 1988: 319, 321. Contudo, em 1562, o Geral da Companhia de Jesus decidiu impedir a participação de jesuítas neste empreendimento. A proposta de Villegaignon não foi aceita pelo Pe. Geral. Os fatos vieram a comprovar o acerto de sua decisão, pois a essa data já a armada de Mém de Sá ancorava na Guanabara e com ela o Pe. Nóbrega. De Roma escrevia o Geral Laynez ao Provincial de Portugal, a 18 de abril de 1561: "En lo de aquel cavallero de Rodas, y la empresa de América no hay más que tratar. Émonos conSolado no poco con lo que scriven del Brasil acerca de aquella gente que tenia tomado la fortaleza ..." (Archivum Romanum Societatis Jesu, Roma, Hisp. 66, f. 169r" (WETZEL, idem:78). Não sabemos as razões que levaram o P. Laynez, Superior da Companhia, impedir a participação de jesuitas franceses no empreendimento comandado pelo frei hospitalário, mas, certamente, a questão do Padroado esteve presente. Contudo, no momento em que Villegaignon negociava o apoio jesuítico na França, Nóbrega se refere, em carta datada de 1º de junho de 1560, aos franceses estabelecidos na Guanabara como se fossem “todos  Lutheranos”  e  Villegaignon  como um calvinista que já se intitulava Rei do Brasil. Estes Francezes seguiam as heresias da Allemanha, principalmente as de Calvino (...) vinham a esta terra a semear estas heresias pelo Gentio; e segundo soube tinham mandados muitos meninos do Gentio a aprendelas ao mesmo Calvino e outras partes para depois serem mestres, e destes levou alguns a Villagalhão que era o que fizera aquella fortaleza, e se intitulara  Rei  do  Brazil”.  Deste  se  conta  que  dizia  que,  quando El-Rei de França o não quisesse favorecer para poder ganhar esta terra, que se havia de ir confederar com o Turco, prometendo-lhe de dar por esta parte
  • 8. 8 a conquista da India, e as naus dos Portuguezes que de lá viessem, porque poderia aqui fazer o Turco suas armadas com a muita madeira da terra (...) (In NÓBREGA, 1988: 226). Dada à erudição de Nóbrega e a importância que tinha na Companhia, nos parece improvável que não tivesse conhecimento da filiação monástica de Villegaginon e, mesmo estando no Brasil, das negociações que naquele momento ocorriam com o Provincial de França referentes a ida de jesuítas franceses para a Guanabara. O mais surpreendente está na referência de uma possível negociação de Villegaignon com os turcos, já que a Ordem de Malta era afamada como baluarte naval da cristandade contra a tentativa da marinha otomana em fazer do Mediterrâneo um “mar  mulçumano”.  Em  1565,  quando  os  franceses  ainda  estavam  no  Rio  de  Janeiro,  os   otomanso fizeram um grande cerco à Ilha de Malta. A defesa dos Cavaleiros de Malta é considerada um dos mais importantes feitos da história militar ocidental. O temor do controle turco do Mediterrâneo somente cessou em 1571, quando a frota turca foi derrotada na batalha de Lepanto. Nesta, a Ordem de Malta teve importante e decisiva participação. O Jesuíta Astrônomo Flamengo Como Agente de França na China Pouco após de Villegaignon fundar a França Antártica na Guanabara, os portugueses conseguiram no Oriente o importante, e único dentre as nações ocidentais, privilégio de estabelecer uma colônia na China. Concedida aos portugueses em 1557, Macau encontra-se situada no sul da China, na parte meridional da ilha de Hiasan, no Golfo de Cantão. Sua importância estava não só como entreposto mercantil, mas também por funcionar como base de apoio da soberania e do comércio português nas ilhas de Solor e Timor, na Oceânia. Durante a União Ibérica, em 1622, os holandeses prepararam uma grande expedição para tomar Macau. Contudo, os portugueses conseguiram resistir aos diversos assaltos. Apesar dos holandeses, em 1624, terem conseguido se instalar em Formosa, em 1661 o célebre corsário Coxinga expulsa-os definitivamente, deixando aos portugueses o privilégio único de ter uma colônia na China. (Cf. CLEMENTS, 2005). Com a Restauração, apesar da tentativa do governador das Filipinas em manter o
  • 9. arquipélago sob a autoridade espanhola e da ameaça holandesa, os macauenses conseguiram permanecer unidos à Coroa de Portugal. Concomitante ao desenrolar destes acontecimentos, Galileu, após aperfeiçoar as lunetas de observação astronômica, desenvolveu um método prático e preciso de determinação da longitude, tendo por base as observações das previsíveis eclipses dos satélites de Júpiter. Seu trabalho teve continuidade por outro italiano, Domenico Cassini, que adotou a nacionalidade francesa ao ser nomeado astrônomo e astrólogo do rei Luís XIV. Posteriormente, Cassini organizou e fundou o Observatório Astronômico de Paris, vindo a ser seu primeiro diretor. Ao dominar a técnica de determinação da longitude por observações de eclipses dos satélites de Júpiter, os astrônomos matemáticos da Companhia de Jesus, principalmente italianos e franceses, passaram a ser solicitados pelos monarcas europeus, a fim de refazer os mapeamentos de seus domínios. Estando a China na órbita do Padroado Português, em 1659 o jesuíta flamengo Ferdinand Verbiest, astrônomo de grande prestígio, obteve autorização do rei de Portugal Pedro II para partir de Lisboa para Macau. Ali chegando, instalou-se inicialmente no Colégio da Companhia de Jesus de Madre de Deus. Já no ano seguinte foi transferido para Pequim. Em 1667 é integrado à missão diplomática enviada pelo rei de   Portugal   a   corte   do   imperador   Kangxi.   “A   actuação   do   Pe.   Verbiest,   nessas   negociações, saldou-se para Portugal deveras positivamente na medida em que ele tinha um particular reconhecimento pela acção missionária que a Coroa portuguesa vinha implementando   também   em   terra   da   China”.   (MATOS,   1999:   158-9). Ao ganhar confiança e admiração do imperador, é nomeado, em 1669, Presidente do Tribunal das Matemáticas de Pequim. A partir de 1672 acumula a direção do observatório astronômico de Pequim. No ano seguinte, em 1673, o jesuíta português Antonio Viera alerta, em carta de Roma, ao representante português em Paris de que o rei de França estava agindo junto a Santa Sé para obstruir os privilégios da Coroa de Portugal, concedidos pelo Padroado. Já disse a Vossa Senhoria que elRey Christianissimo com os seus exércitos a primeira cidade que tem conquistado he Roma, onde lhe concederão, quanto seus ministros quizerem sobre os Bispos Franceses mandados ao Oriente pella Propaganda querem agora que para se evitarem discórdia se lhes dividão Diecesis, e se
  • 10. 10 revoguem as Bullas antigas de Portugal. Roma, 8 de Agosto de 673. (In MONIZ, 1910: 158). Cedendo a pressão de Luís XIV, neste mesmo ano o papa Clemente X emite um breve autorizando os membros das ordens religiosas de embarcarem para as regiões sob o domínio do Padroado Português em navios e portos que não fossem necessariamente portugueses. Desta maneira, a Santa Sé retirava do rei de Portugal a prerrogativa de escolher os missionários que partiriam para seus domínios ultramarinos. A partir de então, Verbiest passa agir como um verdadeiro agente do rei de França na China. Contando com seu apoio, Luís XIV encarregou Cassini, diretor do Observatório Astronômico de Paris, de preparar uma missão científica, que veio a ter à frente o padre matemático jesuíta De la Chaise, a quem Colbert outorgou, por decreto de 28 de janeiro de 1683, o titulo de Matemático do Rei. Esta missão científica partiu do porto de La Rochelle em 3 de março de 1685, dela fazendo parte, além de De la Chaise, mais seis matemáticos e astrônomos jesuítas, dos quais cinco chegaram à China (Cf. MATOS, idem: 167-8). A razão do envolvimento pessoal de Colbert neste projeto, a princípio de cunho exclusivamente científico, se revela na participação de Verbienst, já como superior da Companhia de Jesus em Pequim, na participação de jesuítas nas negociações entre a China e Rússia que resultaram na assinatura do Tratado de Nerchinsk. Este tratado, que delimitava a fronteira entre estes impérios e punha fim a uma série de conflitos entre comunidades fronteiriças russas e chinesas, era de suma importância no estabelecimento de uma nova rota mercantil da Europa Ocidental, principalmente a França, com a China via Sibéria. Assim, a França não mais ficaria na dependência da rota náutica LisboaGoa-Macau, dominada pelos portugueses. O trabalho de mapeamento e de determinações das coordenadas geográficas de diversas regiões do Império Celeste era de fundamental importância não só para o Imperador aumentar o controle de seus domínios como para a concretização do plano de estabelecer uma nova rota mercantil com o Oriente. Tendo Cassini à frente do Observatório Astronômico de Paris, associado aos astrônomos jesuítas franceses liderados por Verbiest, responsável pelo Observatório Astronômico de Pequim, nenhuma outra nação europeia poderia concorrer com a França na realização deste trabalho cartográfico.
  • 11. Contudo,   a   “infiltração”   de   jesuitas   franceses   na   China   não   ficou   restrita   aos   astrônomos.   “Em   resultado   das   diligências   que   faz   junto   de   Luis   XIV   e   em   Roma,   os   primeiros 5 jesuítas franceses (entre eles Gerbillon) chegam à China em 1687 à revelia do   controle   português   e   contra   a   vontade   dos   jesuítas   do   Padroado”   (MIRANDA,   1993:112). D. Polycarpo de Sousa, bispo de Pequim, passou então a dividir a preocupação da ação dos franceses e outros, seguidores do plano concebido por Ferdinand   Verbiest   com   os   jesuitas   portugueses   estabelecidos   na   China,   “defensores   incondicionais da exclusividade que assitiam ao seu rei na qualidade de patrono da missionação católica desde a região do golfo pérsico aos mares territoriais da imensa China”  (Ibid.  121).   Apesar do objetivo maior de Verbiest, o estabelecimento de uma rota mercantil com a China através da Sibéria, não ter sido atingido (Cf. Ibid. 111), mesmo após a morte de Verbiest em 1688, o trabalho de determinação de coordenadas e mapeamento teve continuidade. Do mesmo modo, teve também continuidade a tensão e o antagonismo entre jesuítas portugueses e franceses que missionavam na China. Os mapas da China feitos por estes jesuítas franceses acabaram por publicados em Paris em 1735. Os Mapas da China dos Jesuítas Franceses e Conflito na Demarcação da Fronteira Meridional Estabelecida pelo Tratado de Madri. A impossibilidade de demarcação da linha divisória, além da imprecisa maneira em que o tratado foi redigido (Cf. Tratado de Tordesilhas. In CORTESÃO, 1956: 3-21), possibilitou o avanço dos portugueses não só sobre áreas onde se havia dúvidas a qual Coroa pertenceria, como também sobre territórios que, incontestavelmente, estavam dentro dos domínios da Espanha. A Colônia de Sacramento, núcleo populacional formado por luso-brasileiros estabelecidos em 1680 no estuário do Rio da Prata, se encontrava, indubitavelmente, em território hispânico, razão de ter sua legalidade prontamente contestada por parte de Espanha, instaurando, a partir de então, uma zona de permanente conflito. Pouco após, em 1700, a Europa se vê em estado de beligerância com a Inglaterra em decorrência da crise instaurada com a morte do rei de Espanha Carlos II sem deixar sucessor direto. O conflito se estendeu até 1713, quando é assinada o Tratado de
  • 12. 12 Utrecht, onde é reconhecido o direito de Felipe de Anjou ocupar o trono de Espanha como Felipe V. Contudo, para ter seu neto no trono da Espanha, o Rei Sol fez grandes concessões à Inglaterra. Portugal, aliado desta, acabou também beneficiado em questões de fronteiras na América. Com a França obteve o reconhecimento do rio Oiapoque como a fronteira natural entre o Brasil e a Guiana. Por parte da Espanha, obteve a devolução da Colônia de Sacramento. Apesar do estabelecido no Tratado de Utrecht, a posse luso-brasileira de Sacramento permaneceu como ponto de discórdia com Espanha. Em 1735, um incidente menor com o embaixador de Portugal em Madri, resultando em tensão entre as duas Coroas, foi motivo para que o Governador de Buenos Aires sitiasse Sacramento. Em 1746 o rei de Espanha Felipe V veio a falecer, sendo sucedido por seu filho Fernando VI, por sua vez casado com Maria Bárbara, filha de D. João V de Portugal. Por intermediação da rainha portuguesa de Espanha, as duas Coroas ibérica, estabelecem negociações para redefinir a fronteira entre a América Espanhola e Portuguesa, já que esta nunca fora demarcada por dificuldades no cálculo da longitude. Tendo como objetivo maior retomar o controle do estuário do Rio da Prata, o negociador por parte da Coroa de Espanha, o Marques de Carvajal, argumentava que, mesmo com a dificuldade em se materializar o meridiano estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas, era evidente o avanço feito pelos portugueses nos territórios espanhóis. Contudo, em nome da estabilidade política entre as Coroas ibéricas, não reivindicava, como seria de direito, o retorno ao limite original, apresentando, em contrapartida, uma proposta a princípio generosa e conciliadora. Esta seria a troca da posse da Colônia de Sacramento pela região das minas de Cuiabá e Goiás, apesar de todas as áreas em questão estarem, evidentemente, dentro da reservada ao domínio da Espanha. O brasileiro Alexandre de Gusmão, desembargador do Conselho Ultramarino e secretário do Rei, assume então a responsabilidade pelas negociações, se correspondendo diretamente com Carvajal. Lança ele, então, mão de uma argumentação inesperada e desconcertante. Os mapas da China feitos pelos jesuítas franceses, publicados em Paris em 1735, demonstravam que o arquipélago das Filipinas, principal entreposto mercantil da Coroa de Espanha no Oriente, estava indubitavelmente, dentro dos limites estabelecidos para Portugal pelo contra meridiano do Tratado de Tordesilhas,
  • 13. referendado ainda pelo Tratado de Saragoça. De posse, então, destes mapas, pode Alexandre de Gusmão sustentar sua reivindicação do princípio do utis-possidetis, conforme comunica a Carvajal. Os dittos Jezuitas pois (como sepode ver nos seis Mapas da descripção da China impressa em Paris em 1735) situarão a ponta Meridonal da Ilha de Formosa em 138 graos contados do primeiro Meridiano da Ilha do Ferro p.a o Oriente. Ora a extremidade occidental da Ilha de Luçon fica mais ao Poente que a ditta ponta de Formosa quatros grãos Meridianos como mostra a mayor parte dos Mapas Modernos. ( In CORTESÃO, 1950: 175) Despido o Marques de Carvajal do recurso de uma contra argumentação tecnicamente consistente, a proposta apresentada por Gusmão foi finalmente aceita. Esta consentia em trocar a posse das Filipinas e da Colônia de Sacramento por um novo espaço territorial para a América Portuguesa que, em sua porção meridional, teria como limite oriental o rio Uruguai. Esta nova configuração fazia com que uma parte das missões jesuítas da Província do Paraguai, os Sete Povos das Missões, passassem para a jurisdição do Padroado Português. O processo de demarcação da fronteira sul teve início em outubro de 1752, sendo designado como Comissário por parte de Portugal Gomes Freire de Andrade e, por parte de Espanha, o Marquês de Valdelirios. Foram dadas aos indígenas missioneiros as alternativas de permanecer no local sob a autoridade da Coroa de Portugal, o que colocaria os jesuítas missioneiros sob o poder do Padroado Português, ou transferir as missões para a margem oriental do Uruguai. A negativa a estas propostas acabou por deflagra, no ano seguinte, a Guerra Guaranítica. Em decorrência dos resultados desta guerra, os jesuítas que atuavam nas missões hispânicas, espanhóis em sua maioria, acabaram por retratar Gomes Freire como sanguinário, inimigo dos índios e da Companhia de Jesus. Contudo, o governador do Rio de Janeiro era próximo aos jesuítas do Padroado Português, especialmente do Colégio do Rio de Janeiro. Pouco antes da partida de Gomes Freire para o Sul, um padre da Companhia de Jesus participou de uma cerimônia na qual o governador havia sido calorosamente homenageado (Cf. CAVALCANTI, 2004: 69). Neste contexto, a Guerra Guaranítica desaguou na situação de contraponto, ou mesmo de conflito direto entre os jesuítas do Colégio do Rio de janeiro e os das missões hispânicas. Enquanto estes instaram os índios a reagirem belicamente, aqueles se
  • 14. 14 fizeram presente estabelecendo novos aldeamentos para acolher os índios missioneiros que aceitassem se estabelecer sob a égide do Padroado Português. A esta data [1751] já se tinha assinado o Tratado de Permuta de 1750 e sobreviveram todas as lutas, debates, e carnificinas de que anda cheia a história dos Sete Povos das Missões. Para ter mão nos Índios, da parte do exército Português, foram chamados alguns Jesuítas do Brasil, (...) No dia 2 de Fevereiro de 1755 já estavam na Candelária, o P. Francisco Bernardes, que fez aí a profissão solene, e o Padre Bernardo Lopes, que a recebeu, dois anos depois, o Catálogo assinala, dependente do Colégio do Rio de Janeiro, (o grifo é nosso) a Aldeia do Rio Grande com o mesmo P. Francisco Bernardes por Superior e um terceiro Padre, Francisco da Silva, como companheiro. Em 1757 aparecem duas residências: Na Aldeia de Nossa Senhora da Conceição do Estreito, ao norte do Pôrto do Rio Grande, o Padre Bernardo Lopes como pároco dos Índios, à requisição de Gomes Freire de Andrade; e na Fortaleza e Acampamento de Rio Pardo, o P. Francisco Bernardes, que ali passou da Aldeia do Estreito. (LEITE, 1945:531) Reconhecendo a existência do conflito de nacionalidades no seio da Companhia, assim o padre Serafim Leite procura justificá-la: Na história da Colónia de Sacramento aparecem Jesuítas de Portugal e Jesuítas de Espanha, a saber, Jesuítas da Província do Brasil e Jesuítas da Província do Paraguai. Todos da Companhia, mas com deveres políticos oposto. Num ponto, os mesmo: na unidade da doutrina e da moral, unidade substancial, religiosa, a mesma em todo o mundo, como no Universo são unidos na Fé e na Moral todos os católicos cultos, conscientes e dignos de tão grande nome e honra. Mesmo assim como no resto do mundo, em tempo de guerra, se encontram Católicos nos dois campos opostos, assim também neste, os Jesuítas do Brasil defendiam a bandeira portuguesa, os Jesuítas do Paraguai a bandeira espanhola. Era a estrita obrigação de cada qual, como cidadãos e patriotas. (Ibidem: 535) No entanto, na questão da Guerra Guaranítica, Espanha e Portugal não estavam em campos opostos, conforme nos faz supor Serafim Leite. Neste caso, não cabe aludir à guerra como razão do comportamento conflitante entre os jesuítas do Colégio do Rio de Janeiro com os missioneiros do Paraguai. Devemos ainda lembrar que, também no caso de Villegaignon como no de Verbiest não havia estado de guerra entre Portugal e França, o que invalida a justificativa apresentada pelo célebre historiador jesuíta. A nosso ver, o que estava em jogo eram interesses nacionais e locais, principalmente mercantis, e não propriamente estado de guerra entre nações.
  • 15. Considerações Finais Cientes que o conjunto dos casos abordados engloba o longo espaço temporal de dois séculos, do meado do XVI ao do XVIII, refirmamos a pertinência da questão da nacionalidade, atentos, porém, aos contornos diversos que esta toma ao longo do tempo. Em relação direta ao abordado, sabe-se que a transformação do Condado Portucalense em reino independente se fez em função da construção de uma identidade nacional consolidada ao longo do século XIII. Não havendo esta, a estreita faixa litorânea atlântica teria sido igualmente sugada pelo processo incorporador dos diversos reinos ibéricos que desaguou na formação de Espanha. Para tal, concorreu o fato da primeira dinastia de reis portugueses ter tido origem não na Península Ibérica, mas em Borgonha. Contudo, se hoje os filhos da Borgonha têm a nacionalidade francesa, o mesmo não ocorria quando da sagração de Afonso Henriques como rei de Portugal. Apesar de ducado, a Borgonha tinha então uma identidade nacional própria, em contraposição à de França. Obliterada posteriormente a manu militari, a identidade nacional borgonhesa tomou rumo inverso àquela fundada em solo português, cada vez mais cônscio de sua independência do caldeirão ibérico. Com a expansão ultramarina no século XVI, a identidade nacional portuguesa ganha dimensão transcontinental, extrapolando o espaço reinol. Usamos hoje o artifício de antepor o termo luso para identificar a diversidade dentro da unidade: lusobrasileiros, luso-angolanos, luso-macauense etc... Contudo, documentalmente tal diferenciação não existe: são todos portugueses. Serafim Leite cita, em nota, o levantamento estatístico feito em 1688 pelo P. João Antonio Andreoni das entradas e saídas de noviços no Brasil. Para o período de 1566 a 1608, do total de 248 noviços “portugueses” que ingressaram na Companhia 131 vieram de Portugal, 63 eram nascidos no Brasil, 42 vieram das Ilhas e 11 “de  outros  Reynos”, ou seja, dos diversos outros domínios ultramarinos, acreditamos que principalmente asiáticos. (Cf. LEITE, 1938: 437, t. 2) Esta dimensão possibilitará que a Restauração não tenha ficado restrita ao processo de resgate da independência política do reino e de sua identidade nacional. Tendo como suporte a diversidade étnica, esta excêntrica identidade nacional multiespacial possibilitou que o movimento separatista se espraiasse do próximo espaço ilhéu atlântico ao Extremo Oriente.
  • 16. 16 Assim, ao longo do tempo esta questão, mesmo ganhando tons variáveis, é persistente. No século XVI, os jesuítas envolvidos, contra ou a favor, com o empreendimento de Villegaignon eram franceses e portugueses natos. Contudo, diferentemente no século XVIII, diversos dos jesuítas do Colégio do Rio de Janeiro, assim como alguns das missões hispânicas, tinham nascidos em solo americano, e não necessariamente de origem étnica exclusivamente ibérica. Não pode passar despercebido o fato do protagonista maior do Tratado de Madri, Alexandre de Gusmão, ter tido não só formação jesuítica como ter nascido no Brasil, na cidade de Santos. No caso do Rio de Janeiro, a ação de jesuítas franceses no Padroado da Ordem de Cristo não passou de uma intensão, abortada pelo Superior da Companhia. Numa visão maior de conflito interno no seio da Igreja, é interessante observar que, durante as cruzadas, foram intensas e constantes as hostilidades entre a Ordem dos Templários, matriz da Ordem de Cristo, e a Ordem dos Hospitalários, a qual pertencia Villegaignon. No caso da China, contudo, a ação dos jesuítas franceses agindo contra os direitos do Padroado Português foi real e efetiva, apesar de não ter sido concretizado o projeto de implantação da rota mercantil França-China via Sibéria. Neste caso, ressalta o fato de ter sido o resultado do mapeamento da missão francesa, patrocinada pela aliança de Verbiest com Luís XIV, o instrumento utilizado por Gusmão para desenhar uma nova fronteira. A demarcação desta acabou por desaguar na Guerra Guaranítica, de resultados tenebrosos para a Companhia de Jesus, por trazer repercussões que irão se mostrar presentes no processo de expulsão de Portugal e de Espanha. Destaca-se ainda a maneira como Nóbrega procurou ocultar a proximidade de Villegaignon com jesuítas franceses ao apresentar o frei da Ordem de São João de Jerusalém como calvinista. Por outro lado, apesar do compreensível melindre ao abordar tal espinhosa questão para um jesuíta, Serafim Leite não se omite em revelar a constante hostilidade que intermediava a relação entre religiosos portugueses e espanhóis, obrigados ao convívio no Brasil durante a União Ibérica (LEITE, 1938:4403). Com o fim desta, que resultou no impedimento para os espanhóis, somente os jesuítas italianos e alemães continuaram a não sofrer restrições, por parte da corte de Lisboa, para se estabelecerem no Brasil.
  • 17. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. AVELAR, Hélio de Alcântara. História administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: DASP, 1965. CAVALCANTI, Nireu de Oliveira. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. CLEMENTS, Jonathan. O Rei Pirata: Coxinga e a queda da dinastia Ming. São Paulo: Madras, 2005. CORTESÃO, Jaime (org.). Pauliceae Lusitana Monumenta Historica. Lisboa, Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, 1956, v 1 (1494-1600). FERREIRA,  Maria  Emília  Cordeiro.  “Tratado  de  Saragoça”.  In  Joel  Serrão  (org.)   Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativa Ed., 1963, v. 3, pp. 791-2. GALMÉS, Lorenzo. Incidencia del Patronato de Indias em la evagelización del Nuevo Mundo. In Actas do Congresso Internacional de História: Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 1993, v. 3, pp. 607-625. GUSMÃO,   Alexandre.   “Réplica   ao   Marques   de   Carvajal”.   In   CORTESÃO,   Jaime.   Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. t 1 Negociações. Documento nº XLVI. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950, pp: 173-84. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, t. 2 e 6. LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo, Martins, 1960. MATOS,   Manuel   Cadafaz   de.   “Ferdinand   Verbiest.   A   defesa   dos   interesses   da   Coroa   Portuguesa   em   Macau   e   o   contributo   dado   à   história   da   imprensa   missionária”.   Revista Camões. Lisboa: Min. Dos Negócios Estrangeiros, n° 7, 1999, p. 156-175. MIRANDA, João.  “A  missionação  portuguesa  e  a  Rússia  nos  séculos  XVII  e  XVIII”. In Actas do Congresso Internacional de História: Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 1993, v. 3, p. 103-122. NÓBREGA, Manuel de. Cartas do Brasil 1549-1560. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. RAMOS, Rui (Coord.). História de Portugal. Lisboa, Esfera do Livro, 2009
  • 18. 18 RAMOS-COELHO, José. Alguns documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo acerca das navegações e conquistas portuguezas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892. . VIEIRA, Antonio P. “Carta   a   Duarte   Ribeiro   de   Macedo,   ministro   em   França”. In MONIZ, Jaime Constantino de Freitas (org). Corpo diplomático portuguez contendo os actos e relações políticas e diplomáticas de Portugal com as diversas potencias do mundo desde o século XVI até os nossos dias. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1910, t.14. WETZEL Ewaldo. Mém de Sá, terceiro Governador-Geral (1557-1572). Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura, 1972.