2. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 1
MÓDULO 3
CULTURAS E HISTÓRIA
DOS POVOS INDÍGENAS
Reconhecendo preconceitos
sobre os povos indígenas
Vanderléia Paes Leite Mussi
Antonio H. Aguilera Urquiza
Vera Lucia F. Vargas
Campo Grande, MS
2010
3. 2 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Luiz Inácio Lula da Silva
MINISTRO DA EDUCAÇÃO
Fernando Haddad
SECRETÁRIO EXECUTIVO
Jairo Jorge
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE
André Lázaro
SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Carlos Eduardo Bielschowsky
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
REITORA
Célia Maria da Silva Oliveira
VICE-REITOR
João Ricardo Filgueiras Tognini
COORDENADORA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA - UFMS
COORDENADORA DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS
Angela Maria Zanon
COORDENADOR ADJUNTO DA UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFMS
João Ricardo Viola dos Santos
COORDENADOR DO CURSO DE CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS
Antonio Hilario Aguilera Urquiza
Obra aprovada pelo Conselho Editorial da UFMS
CONSELHO EDITORIAL UFMS CÂMARA EDITORIAL
Dercir Pedro de Oliveira (Presidente) SÉRIE
Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento
Claudete Cameschi de Souza
Edgar Aparecido da Costa.
Edgar Cézar Nolasco
Elcia Esnarriaga de Arruda
Gilberto Maia Angela Maria Zanon
José Francisco Ferrari Dario de Oliveira Lima Filho
Maria Rita Marques Damaris Pereira Santana Lima
Maria Tereza Ferreira Duenhas Monreal Jacira Helena do Valle Pereira
Rosana Cristina Zanelatto Santos Magda Cristina Junqueira Godinho Mongelli
Sonia Regina Jurado
Ynes da Silva Felix
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Mussi, Vanderléia Paes Leite
M989c Culturas e história dos povos indígenas, módulo 3 : reconhecendo
preconceitos sobre os povos indígenas / Vanderléia Paes Leite Mussi,
Antonio H. Aguilera Urquiza, Vera Lucia F. Vargas.— Campo Grande,
MS : Ed. UFMS, 2010.
58 p. : il. ; 30 cm.
ISBN 978-85-7613-289-9
1. Ensino a distância. 2. Professores – Formação. 3. Educação
multicultural. 4. Nativos – Brasil – História I.Urquiza, Antonio H.
Aguilera. II. Vargas, Vera Lucia F. III. Título.
CDD (22) 371.3944
4. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 3
SUMÁRIO
Apresentação _____________________________________________________ 5
CAPÍTULO I
As Sociodiversidades Indígenas no Brasil ___________________________ 9
História: lições do passado – depois de 1500... _________________________ 9
A outra visão do contato ___________________________________________ 13
CAPÍTULO II
Visão da Literatura ______________________________________________ 15
A explicação na visão do contato ___________________________________ 15
Literatura: lições dos mitos _________________________________________ 18
Literatura: versão dos mitos indígenas
- a explicação do Ritual do Kuarup __________________________________ 23
CAPÍTULO III
Imaginário do Índio Amazônico ___________________________________ 31
CAPÍTULO IV
Desconstrução de Discursos:
Entendimento do Etnocentrismo em Antropologia __________________ 35
CAPÍTULO V
Povos Indígenas:
Múltiplos Olhares e Múltiplos Entendimentos _____________________ 45
ATIVIDADES _____________________________________________________ 53
CONSIDERAÇÕES FINAIS _________________________________________ 57
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________________ 58
5. 4 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
6. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 5
APRESENTAÇÃO
O curso de Formação de Professores na temática CULTURAS E
HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS insere-se no processo de consolidação
da Rede de Educação para a Diversidade (REDE), uma iniciativa de várias
instituições do Governo Federal: Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), em parceria com a Universidade
Aberta do Brasil (UAB) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Ensino Superior (CAPES). O objetivo da Rede de Educação para a Diversidade
(REDE) é estabelecer um grupo permanente de formação inicial e continuada a
distância para a disseminação e desenvolvimento de metodologias educacionais
de inserção dos temas das áreas da diversidade, quais sejam: educação de jovens
e adultos, educação do campo, educação indígena, educação ambiental,
educação patrimonial, educação para os Direitos Humanos, educação das relações
étnico-raciais, de gênero e orientação sexual e temas da atualidade no cotidiano
das práticas das redes de ensino pública e privada de educação básica no Brasil.
Culturas e História dos Povos Indígenas é um curso de formação
continuada de professores de educação básica, com carga horária de 240h
distribuído em módulos, o qual se insere na Rede de Educação para a
Diversidade (REDE). Ofertado na modalidade semipresencial, por meio do
sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB), o curso visa formar professores
e profissionais da educação capazes de compreender os temas da diversidade
e, dentre eles, a temática das “culturas e história dos povos indígenas no Brasil”,
e introduzi-los entre os conteúdos pedagógicos e no cotidiano da escola.
O propósito mais amplo deste curso é a formação continuada de professores,
como forma de procurar responder de maneira dinâmica a uma educação
inserida em uma sociedade cada vez mais dinâmica. Desta forma, o objetivo
mais amplo é promover o debate sobre a educação como um direito fundamental,
que precisa ser garantido a todos e todas sem qualquer distinção, promovendo a
cidadania, a igualdade de direitos e o respeito à diversidade sociocultural, étnico-
racial, etária e geracional, de gênero e orientação afetivo-sexual e às pessoas
com necessidades especiais. Os professores e profissionais da educação têm
como principal desafio garantir a efetividade do direito à educação a todos e
cada um dos brasileiros, estabelecendo políticas e mecanismos de participação
e controle social que assegurem aos grupos historicamente desfavorecidos
7. 6 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
condições para sua emancipação e afirmação cidadã. Neste sentido, a temática
deste curso insere-se neste contexto, que é o de trazer à luz dos conteúdos
curriculares a temática das “culturas e história dos povos indígenas do Brasil”,
temática silenciada durante tanto tempo e responsável pelo desconhecimento
deste importante seguimento do povo brasileiro na atualidade.
Este curso de formação continuada propõe módulos temáticos que abrangem
um largo espectro dos temas das “culturas e história dos povos indígenas”, visando
formar professores e outros profissionais da educação da rede de ensino de
educação básica para a promoção e compreensão da educação como direito
fundamental e estratégia para a promoção do desenvolvimento humano das
diversas populações, para a inclusão de saberes diversos e enfrentamento de
todo o tipo de discriminação e preconceito, particularmente contra os povos
indígenas. O curso visa também proporcionar o estabelecimento de uma rede
de colaboração virtual para a discussão e compartilhamento de informações e
aprendizagens sobre práticas pedagógicas inclusivas na escola.
Nos últimos anos, principalmente após a Constituição Federal de 1988 e a
LDB (lei nº 9394/96), percebemos a emergência de uma nova legislação que
insere nos currículos da Educação Básica a proposta de temas referentes à história
e cultura afro-brasileira e, ultimamente, à história e cultura dos povos indígenas
(Lei nº 11.645/2008). Trata-se de elementos constitutivos de nosso substrato
cultural, mas, que por motivos históricos, foi ideologicamente relegado ao quase
esquecimento e, quando trazido à tona, foi feito com um viés etnocêntrico e
repleto de preconceitos.
Educar hoje, para a diversidade e a cidadania, é tratar desta histórica dívida
para com os grupos historicamente desfavorecidos e, dentre eles, os povos
indígenas e negros de forma objetiva, proporcionando o debate construtivo
através do acesso às informações relegadas às novas gerações. Quanto à nossa
realidade regional específica, podemos dizer que Mato Grosso do Sul caracteriza-
se por ser uma região de fronteiras, de acolhida e, ao mesmo tempo de trânsito.
É, na atualidade, o segundo Estado brasileiro em população indígena, contando
oficialmente, com 08 etnias, destacando-se dentre elas, os Guarani e Kaiowá
com quase 40 mil pessoas, os Terena com 20 mil e os Kadiwéu com 1.500 pessoas.
Todos estes povos possuem suas particularidades históricas e convivem com as
problemáticas atuais de conflitos agrários, subsistência, preconceitos de todos os
tipos, violências, etc.
Mato Grosso do Sul é, também, uma porta que está aberta aos circuitos
ilegais que integram lugares e economias e desintegram estruturas sociais. O
Estado é, na verdade, um laboratório onde acontecem processos fronteiriços e
dinâmicos de integração de toda natureza, sejam eles aparentes, dissimulados,
legais, funcionais, ilícitos, construtivos, históricos, estruturais ou conjunturais,
espaço privilegiado para a discussão dos temas da diversidade e, dentre eles,
especialmente o que diz respeito à trajetória histórica e cultural dos povos
indígenas.
8. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 7
A partir deste conjunto de elementos que conformam nosso contexto regional
serão conjugados, de forma dialógica, os conteúdos teórico-práticos propostos
pelo curso em seus seis módulos (Módulo 01- Conceitos de EAD e ferramenta
Moodle; 02- Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo; 03-
Reconhecendo preconceitos sobre os povos indígenas; 04- Marcos conceituais
referentes à diversidade sociocultural; 5- Projeto pedagógico sobre a temática;
6- Seminário de encerramento), além da avaliação.
Quanto ao presente texto, referente ao 3º Módulo – Reconhecendo
preconceitos sobre os povos indígenas, é composto por cinco sub-temas,
desenvolvidos na sequência:
I) Visão da História
• História: lições do passado – depois de 1500...
• A outra visão do contato
II) Visão da Literatura
• A explicação mítica na visão do contato
• Literatura: lições dos mitos
• Literatura: versão dos mitos indígenas – a explicação do Ritual do Kuarup
III) Imaginário do Índio Amazônico
IV) Desconstrução de discursos: entendimento do etnocentrismo em
antropologia
V) Povos Indígenas: múltiplos olhares e múltiplos entendimentos
Diante de uma sociedade cada vez mais caracterizada pela diversidade e
seus imensos desafios lançados cotidianamente aos educadores, desejamos a
todos/as que estes conteúdos sejam úteis para embasar reflexões e práticas criativas
sobre os aspectos da diversidade e a necessidade da introdução do tema das
Culturas e História dos povos indígenas nas práticas pedagógicas, sempre
em vista da construção de uma sociedade cada vez mais plural e participativa.
9. 8 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
10. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 9
CAPÍTULO I
As Sociedades Indígenas
no Brasil
Este terceiro módulo pretende, concretamente, apresentar elementos es-
senciais sobre a questão dos preconceitos a respeito dos povos indígenas
no Brasil, para, dessa forma, desconstruir as informações equivocadas e
reconstruir as características culturais destes povos e, dessa forma, facilitar
as discussões posteriores sobre os temas específicos da história e cultura
dos povos indígenas.
Ao retornarmos no tempo, por meio dos livros de História ou pelos escritos
literários, podemos ver a imagem dos povos indígenas sendo construída de múl-
tiplas formas: como dóceis, passivos, gentis, ou como silvícolas, selvagens,
indômitos, insolentes, preguiçosos. Seja qual for a imagem construída em deter-
minado tempo e em diferentes contextos históricos, os povos indígenas nunca
se apresentaram como sujeitos de nossa História, ou como parte integrante da
construção da nossa identidade latino-americana. Histórica e culturalmente, são
apresentados como seres que estão à margem, aqueles que auxiliam e nunca
constroem; e, dependendo das circunstâncias, são apenas figurantes na constru-
ção da história brasileira, atuando como coadjuvantes de sua própria história. Se
os discursos foram sendo construídos ou por meio dos livros de história ou por
meio da literatura, então, proponho que juntos possamos identificá-los e
compreendê-los, para a partir daí começar um outro movimento circular: o da
desconstrução! A propósito, não podemos nos esquecer, de que todo discurso é
carregado de intencionalidades.
1.1 História: Lições do Passado
- Depois de 1500...
Após Cristóvão Colombo ter descoberto terra firme, em 1492, na região
que hoje conhecemos como as Antilhas, na América Central, a “descoberta” do
Brasil por Cabral, representava uma virada nos acontecimentos daquela época;
e a chamada “captura” das especiarias asiáticas pelos portugueses também mo-
dificou profundamente a evolução do mundo ocidental.
Descoberto o Novo Mundo, os interesses europeus misturaram estrategi-
camente a fé com a colonização, e se ambas deveriam caminhar juntas, estaria
aí, então, uma justificativa adequada para a cristianização dos habitantes da ter-
11. 10 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
ra recém descoberta (os indígenas), de maneira que não oferecessem resistên-
cia aos seus interesses exploratórios. Desqualificados como seres humanos, vis-
tos como animais sem alma, bárbaros, demônios e seres indômitos... estava
justificada não só a necessidade de sua cristianização, como de sua sujeição à
civilização afirmada como redentora pelo conquistador. Aqui se constitui o pon-
to de partida para a construção das imagens e discursos aplicados aos povos
indígenas e que se tem propagado até os dias atuais.
Reconhecido o território, Colombo se converteria em um caçador de es-
cravos e ávido garimpador de ouro; afinal, eram bens para serem vendidos ou
trocados na Espanha, por finas mercadorias. Se o ouro é maleável às mãos do
colonizador, os indígenas, entretanto, apesar de considerados bens de uso e
troca, não eram totalmente desprovidos de vontade e de resistência a quem lhes
feria o corpo e a alma.
Convém observar que geralmente os livros de história apontam as especia-
rias, a água em abundância, a mão-de-obra dócil e disponível, as safras agrícolas
fartas e constantes como sendo os principais fatores que motivaram todo o pro-
cesso de colonização e exploração concebido pela metrópole; no entanto, é
preciso considerar, também, outro fator que nem sempre é citado, mas foi a
causa de muita luta e custou o sangue de milhares de pessoas espalhados pelo
sertão do Brasil: o ouro e, no rastro de sua cata, os nativos. A propósito, podemos
dizer que o movimento de resistência indígena começa a ser uma constante e
ganha mais relevo, junto aos não indígenas, a partir deste período.
Não se pretende, com esta reflexão, fazer uma análise crítica dos livros
didáticos de História e Literatura; antes disso, o propósito é partir das proposi-
ções discursivas de alguns autores e obras, tomando-os como ponto de partida
para o entendimento de generalizações e equívocos em relação às comunida-
des indígenas, que se cristalizaram com o tempo e se estenderam ao senso co-
mum, tendo reflexos negativos até os dias atuais.
De modo geral, na História do Brasil os indígenas aparecem como
Desqualificados enquanto seres humanos, vistos como animais sem alma, bár-
baros, demônios. No livro intitulado: História das Cavernas ao Terceiro Milênio
das autoras: Myriam Becho Mota e Patrícia Ramos Braick a figura dos indígenas
aparece no bojo do Descobrimento no item O Olhar dos Vencidos da seguinte
forma:
[...] Nativos que devoravam os prisioneiros de guerra, animais exóticos, a
própria exuberância da flora tropical geravam espanto e temor. O que
havia sido encontrado afinal, o jardim do paraíso ou as portas do inferno?
Todavia, o choque e o medo foram ainda maiores entre os nativos do
Novo Mundo. Aos olhos dos indígenas, os conquistadores assemelhavam-
se a figuras monstruosas montadas em outros monstros, os cavalos, também
desconhecidos (Mota, 1997, p. 115).
A representação que se faz frente ao processo de descobrimento, traz à
tona uma visão eurocêntrica que marca a trajetória de contato. A ressalva que se
12. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 11
faz é a de que nesta trajetória de contato só aparece nos livros de História a
visão dos “Vencidos” e de forma unilateral. Como tentativa de mostrar os dois
lados apontaremos, mais adiante, a visão de contato que os Povos indígenas
apresentavam sobre os não indígenas.
Convém observar que na Unidade III do referido livro, no item que trata
dos Nossos Contemporâneos Indígenas, é retomada a discussão chamando a
atenção para os riscos de generalizações no exame da cultura das sociedades
tribais: Sociedades Indígenas a partir das reflexões de Antonella Tassinari. Na
sequência, assume o risco das generalizações, afirmando que a vida social dos
indígenas estava centrada nas relações familiares e no papel que cada elemento
ocupava na comunidade.
A par dos riscos, as terminologias utilizadas ainda mostram que há falta de
entendimento do que representam tais grupos étnicos no universo Latino-Ame-
ricano e que ainda são muito explicitas as expressões generalizantes; vejamos
como isso ocorre: [...] Os ameríndios dominavam a arte de fazer fogo a partir da
rotação rápida de um pedaço de madeira dura em outro mais flexível. [...] A
tribo era organização social mais abrangente dessas populações. Outro ponto
que nos chama a atenção, além das terminologias generalizantes, é a indistinção
que se faz entre as nações indígenas americanas, registrando na mesma ordem
de apresentação os povos indígenas do Brasil e os povos da América do Norte,
além dos Pré-colombianos (Mota, 1997, p. 158 a 160). Desta forma, os jovens
que estão tendo contato pela primeira vez com documentos escritos tratando da
História do Brasil ainda não têm como discernir o tempo histórico e as
especificidades culturais que permeiam a compreensão de tais grupos étnicos.
Assim sendo, tais visões generalizantes não contribuem, portanto, para o enten-
dimento crítico das especificidades culturais destes povos além de submetê-los
a uma ordem de comparação simplista, e equivocada!
Neste sentido, a presença dos indígenas nos livros didáticos é quase sem-
pre fragmentada, depreciativa e, muitas vezes, de uma forma secundária, as-
sociando-se a ideia de que falar de “índio” é falar de passado. Nos livros de
História, principalmente, a figura do índio aparece em função do colonizador.
E da mesma forma que aparecem na história do Brasil, acabam por desapare-
cer como um passe de mágica ou simplesmente como uma cegueira histórica!
O problema resultante das sucessivas propostas tanto dos livros de História
quanto dos livros de Literatura é que além de imagens fragmentadas e
distorcidas, conforme já mencionada, tais iniciativas acabam por não preparar
as crianças e os jovens para entender a presença dos povos indígenas nem no
presente e nem no futuro.
Nesta perspectiva propositiva, Everardo Rocha (1984) aponta que a figura
do índio no livro didático representa uma forma vazia que confere sentido ao
mundo dos não-indígenas (dos brancos). Os indígenas são tidos como seres “alu-
gados” nas Histórias do Brasil, de modo que se constroem as imagens de acordo
com as alternâncias de funções. Por exemplo, em um mesmo livro, eles podem
13. 12 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
aparecer de três formas diferentes: em um primeiro momento, no capítulo do
“descobrimento” aparece como a figura do “selvagem”, “primitivo”, “antropó-
fago”, isso na tentativa de mostrar o quanto os colonizadores europeus eram
superiores. Já no capítulo que trata da catequese, a figura do índio é vista como
“criança”, “inocente”, “infantil”, “almas virgens”, o que vem demonstrar o quanto
eles precisavam de religião, bem como de “proteção”. E no capítulo posterior,
que trata da “etnia brasileira”, a figura do índio já é a de um ser “corajoso”,
“altivo”, cheio de “amor a liberdade”, que por ser tão livre era incapaz de
trabalhar (Rocha, 1984, p. 17-19).
Conviria observar que a gênese da reflexão antropológica é contemporâ-
nea ao período do descobrimento. No entanto, de acordo com as concepções
de François Laplantine (2006), o Renascimento (séc. XV e XVI) começa a explo-
rar espaços até então desconhecidos e a construir discursos sobre os povos que
lá habitavam. As primeiras observações e os primeiros discursos sobre esses po-
vos provinham, principalmente, dos relatos de viajantes e dos relatórios dos mis-
sionários, principalmente dos Jesuítas. Assim, inúmeras questões se colocavam
na época a respeito daqueles seres recém descobertos como, por exemplo, se
eles eram seres humanos, se pertenciam mesmo à humanidade; se, por serem
extremamente selvagens, tinham alma? Com isto, o critério essencial para atri-
buir-lhes um estatuto humano era estritamente de cunho religioso.
Desta forma, ainda de acordo com as concepções do referido autor
(Laplantine, 2006, p.41), entre os critérios utilizados pelos europeus, a partir do
século XIV, para conferir ao índio um estatuto humano, além do religioso, con-
forme mencionado podemos situar alguns dos comportamentos usuais mais dis-
seminados:
[...] a aparência física: eles estão nus ou vestidos de peles de animais;
Os comportamentos alimentares: eles “comem carne crua”, e é todo o
imaginário do canibalismo que irá aqui se elaborar;
A inteligência tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles
falam “uma língua ininteligível (Laplantine, 2006, p.41).
Desta forma, o discurso da alteridade vai sendo construído a partir de
metáforas zoológicas, ou seja, das associações de condutas iguais às dos animais
bem como as referências a variadas ausências como: “sem moral, sem religião,
sem lei, sem Estado, sem escrita, sem consciência, sem razão, sem objetivo, sem
arte, sem passado, sem futuro”.
1.2. A Outra Visão do Contato
No final do século XV e início do século XVI, havia muitas curiosidades e
indagações acerca desses “novos” seres humanos, ou seja, os chamados nativos;
nesse período, inicia-se a busca por modelos explicativos da diferença. Em um
primeiro momento, todos são tomados pelo impacto do novo que causa estra-
nheza e perplexidade perante o desconhecido; e a violência ao outro, que
14. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 13
incomoda e instaura a desordem de um mundo tão estável, como era o mundo
medieval: essa visão de mundo é que iria permear as relações entre povos,
sociedades e culturas.
O contato físico entre essas culturas tão diferentes pode ser visto como um
longo processo de aproximação e construção de imagens em que, primeira-
mente, houve troca de ornamentos, cujo significado cada um “traduziu” nos
termos de sua própria cultura. No segundo momento, a apreensão do “outro”
foi feita de uma forma bastante violenta, pois, na falta de entendimento desse
“nativo” como um ser autônomo e habitante da terra recém conhecida, o euro-
peu colocou-o como “primitivo”, em uma condição de “atraso” ao desenvolvi-
mento. E assim, ideologicamente a imagem do “outro” e sua cultura, ou seja,
daquele que é diferente de nós, foi sendo construída de forma distorcida: ora
primitivo e violento, ora bonzinho e romanceado, como na história de Iracema,
ora sem alma, bárbaro, incivilizado, entre outras qualificações. Em outras pala-
vras, podemos dizer que ao “outro” foi negado o mínimo de autonomia para
falar de si mesmo (Rocha, 1984 p.16 a 21). Mas afinal, se a ideia do europeu era
a de que os povos nativos, ou seja, os indígenas eram primitivos, atrasados, vio-
lentos, indóceis, preguiçosos... qual era a visão que os indígenas faziam a respei-
to do homem não-indígena?
Para os indígenas, a origem do homem não-indígena, conhecido como ci-
vilizado, também é alvo de muito interesse, mas também de muitas dúvidas.
Enfim, como seres humanos, indígenas e não-indígenas constroem hipóteses
sobre si mesmos e sobre o “outro”, assuntando seus mistérios e esforçando-se
por decifrar seus enigmas. É como se um dissesse ao outro: “Decifra-me ou te
devoro!”. E o mais interessante é que, para ambos, indígenas e não-indígenas, o
nome é o lume, é a luz, como diziam os gregos, ou seja, dar nomes às coisas é
iluminá-las pelo conhecimento. A linguagem, portanto, desempenha um fator
de grande importância para entendimentos, se bem que, para desentendimen-
tos, também.
Assim, os povos indígenas, ao se referirem aos brasileiros não-indígenas,
usam termos diferenciados; por exemplo, os Tenetehara (povo do Maranhão e
Pará) quando queriam se referir aos não-indígenas costumavam chamá-los de
“Karaiw”, ou de “Caraíba”, palavra que aparece entre outros povos de língua
tupi desde o século XVI. Os Tupinambá usavam o termo caraíba para se referi-
rem aos seus pajés-profetas, homens com habilidades de falar com os espíritos e
ter sabedoria da previsão. Antes disso, costumava chamar os luso-brasileiros de
“mázán”, termo equivalente a “marinheiro” ou mesmo português.
Os Tupinambá também costumavam chamar os franceses que estiveram no
Rio de Janeiro de “maíra”, ou seja, “encantado”, terminologia que, na visão
indígena, representava o herói civilizador; posteriormente, passaram a distin-
gui-los por meio de uma expressão que significava “povo de hábitos diferen-
tes”. Já os Avá-Canoeiro, povo tupi do alto Rio Tocantins, chamam ainda hoje os
não-indígenas de “maíra”. Os atuais Guarani, que descendem dos Carijó e
15. 14 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
Guarani do século XVI, chamam de juruá, aos não indígenas, termo sem signifi-
cado especial, assim como os Terena, do Mato Grosso do Sul, chamam-nos de
purutuye.
Em síntese, observa-se que nessa concepção indígena, os europeus apare-
cem como seres especiais dotados de poderes divinos, ou simplesmente como
homens comuns, mas com dons de encantar; já, para os europeus, os indígenas
não passavam de seres selvagens, silvícolas, primitivos ou povo sem alma; aliás,
até o século XVIII, ainda se tinha dúvida se os indígenas podiam ser considera-
dos cristãos, dignos de serem batizados, ou até mesmo se eram seres humanos,
indivíduos, gente, conforme já mencionados...
Que contraste! Para os indígenas, como se viu, o homem branco era consi-
derado um ser supremo, dotado de sabedoria, dons extraordinários e encanta-
mentos. Veja que no encontro das culturas cada um, ou cada cultura, possui uma
forma diferenciada de olhar. Como percebemos com o relato de Macunaíma,
do escritor Mário de Andrade, para uns, Cruzeiro do Sul; para outros, Pai do
Mutum. E, acima das diferenças de cultura e de concepção de mundo, as estre-
las continuam a brilhar e o céu é para todos!
Nesse sentido, quando cada povo, cada cultura se encontra, se conhece,
reconhece e interage, vão surgindo explicações cheias de fantasia ou muitas
vezes lógicas definitivas: cada um se esforça para impor as suas crenças ao ou-
tro, como ocorre com a origem do homem. Assim como existem variadas expli-
cações fornecidas pelos estudiosos sobre a origem do homem no continente
americano, o mesmo ocorre com os povos não-indígenas, que também buscam
fornecer explicações sobre a origem do homem branco.
16. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 15
CAPÍTULO II
Visão da
Literatura
Inicialmente, neste capítulo, estaremos atentos para a compreensão dos
(pré) conceitos presentes em alguns dos mais importantes textos literários
produzidos sobre os povos indígenas no Brasil, todos eles assumindo uma
concepção etnocêntrica, com ligeiras variações quando relacionados aos
povos indígenas.
2.1 A explicação Mítica
na Visão do Contato
Embora os indígenas não dispusessem dos mesmos recursos tecnológicos
das sociedades não-indígenas, auxiliados por sofisticados instrumentos de preci-
são, eles também fornecem respostas sobre a origem do homem branco, por
meio de explicações míticas. A falta de precisão está diretamente ligada à carên-
cia de conhecimento dos fenômenos físicos, biológicos e humanos. Por exem-
plo, como esses indígenas vão dar explicações geográficas sobre os não-indíge-
nas, quando, na verdade, com raras exceções não ultrapassam os espaços que
percorrem em suas aldeias?
Mas afinal, em que consiste a preocupação dos indígenas com a origem dos
brancos civilizados e como isso pode ser constatado em suas explicações míticas?
Retomando os estudos de Júlio Cezar Melatti (2007), é possível entender como
isso acontece na prática; mas a “prática”, aqui, deve ser entendida como con-
cepção de mundo, aquela tal de “cosmovisão” de que já falamos e que se mani-
festa nos relatos lendários, ou seja, por meio de narrativas míticas, muito própri-
as da educação indígena. Afinal, nas sociedades indígenas, são as narrativas que
ensinam definitivamente e a conduta do dia a dia é a demonstração concreta de
que a lição foi aprendida.
Aqui vão dois exemplos muito interessantes. O primeiro mostra que nas
várias aldeias dos índios Timbira, que vivem no sul do Maranhão, e norte de
Goiás, os indígenas acreditam que o homem branco surgiu da transformação de
um menino chamado “Aukê”. A história desse menino era mais ou menos assim:
antigamente não havia civilizados, mas apenas índios. Uma mulher indígena
ficou grávida e toda vez que ia tomar banho no ribeirão próximo da aldeia, seu
filho, que ainda não tinha nem nascido, saía do seu ventre e se transformava em
17. 16 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
um animal, brincando à beira d’água; depois, a criança voltava outra vez ao
ventre materno. A mãe não dizia nada a ninguém.
Um dia, o menino nasceu. Aukê, ainda recém-nascido, transformava-se
em rapaz, em homem adulto, em velho. Os habitantes da aldeia temiam os
poderes sobrenaturais de Aukê e, de acordo com seu avô materno, resolveram
matá-lo; nas primeiras tentativas, não tiveram sucesso. Conta-se que uma vez,
seu avô, em nova tentativa de matá-lo, levou-o para o alto de um morro e em-
purrou-o de lá no abismo. O menino, porém, ao cair não morreu, pois virou
folha seca e foi caindo devagarzinho, voltando para a aldeia são e salvo! Foi
então que o avô resolveu fazer uma grande fogueira e nela atirar Aukê, o que
realmente ocorreu.
Dias depois, quando o avô foi ao local do assassinato para recolher as cinzas
do menino, achou no lugar uma grande casa de fazenda, com bois e outros
animais domésticos. Aukê não havia morrido, mas transformou-se no primeiro
homem civilizado e ordenou ao avô que fosse buscar os outros habitantes da
aldeia. Todos vieram e Aukê pediu que escolhessem entre a espingarda e o
arco. Como os índios ficaram com medo de pegar a espingarda, preferiram o
arco. Por terem preferido o arco, permaneceram como índios. Se tivessem es-
colhido a espingarda, teriam se transformado em civilizados. Aukê chorou com
pena dos índios por não terem escolhido a civilização.
Com essa história, em que os índios Timbira explicam a origem dos não-
indígenas chamados de civilizados, também é possível depreender alguns con-
ceitos e determinadas explicações sobre aquela nação indígena. Por exemplo, o
estado de submissão e pobreza em que eles vivem diante dos brancos, ou seja,
dos não-indígenas. É importante notar que os “civilizados” conhecidos pelos
Timbira são os que estão mais próximos de suas aldeias, destacando-se entre
eles os que possuem maiores recursos materiais, ou seja, os fazendeiros, gran-
des proprietários e possuidores de gado bovino, considerado de grande valor
entre os homens. Por isso Aukê aparece na figura de um fazendeiro criador, por
conhecerem bem apenas uma área restrita e estarem submetidos à influência
desses ricos proprietários rurais; isso reflete a explicação da origem dos brancos,
geralmente poderosos, o que constitui, portanto, uma visão circunscrita à reali-
dade em que vivem. A propósito, também convém observar que na explicação
mitológica feita pelos Timbira o conceito de “civilizado” é apresentado como
uma analogia feita aos não indígenas, ou seja, aos “brancos”.
O outro exemplo é retirado da cultura dos Kadiwéu, que habitam a região
do Estado de Mato Grosso do Sul; são remanescentes dos índios “Guaykuru”,
que domesticaram o cavalo e com ele dominaram toda a região, mantendo os
grupos indígenas de outras procedências étnicas em um sistema semelhante ao
da “vassalagem”, onde havia trocas de proteção por alimentos e mulheres. Con-
tam que até mesmo os espanhóis e portugueses foram aprisionados pelos
“Guaykuru”. Seus guerreiros, para se defenderem dos inimigos, costumavam
cavalgar dependurados na crina do cavalo, no sentido horizontal, para não se-
18. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 17
rem vistos. Quando corriam pelos campos, quem os via da posição contrária,
tinham a impressão de que eram apenas cavalos selvagens, correndo em dispa-
rada.
Bem, mas voltemos à explicação dos Kadiwéu sobre a origem do homem
branco. Conta a história, que os próprios Kadiwéu (e outros povos, como os
Terena, os Kinikinau, os Kaingang, os bolivianos, enfim, todos os homens) foram
tirados pelo herói “Go-noêno-hôdi” de dentro de um buraco. Enquanto outros
povos receberam do herói terras e outros dons, os Kadiwéu não receberam
nada, ficando somente com o privilégio de lutar contra os outros, tomando-lhes
os seus bens. O mito, portanto, explicava não somente a origem dos povos, mas
também os seus princípios de dominação e a relação com outros povos. Em uma
versão mais atualizada deste mito, os Kadiwéu não esperaram mais o herói “Go-
noêno-hôdi”, que fora buscar seus patrícios, ou seja, mais presentes para eles.
Saindo da letargia da espera, os Kadiwéu foram buscar alimentos, como frutas e
mel nas matas. Ao regressar, o herói disse para os Kadiwéu que eles poderiam
ficar como estavam, ou seja, livres pelos campos, lutando por sua subsistência;
quanto aos demais povos, deveriam fazer o seu próprio roçado, fixando-se em
algum lugar.
Ao prestar a atenção
aos dois mitos, tanto o SAIBA MAIS!
Timbira quanto o Kadi- Que a história dos índios guaicurus está ligada à inserção do cavalo em
wéu, observe que a pre- terras da América espanhola, em 1541. Chegando da Espanha, o novo
ocupação com a ori- Governador Nuñez Cabeza de Vaca, sabendo que o povoado de
gem do homem não-in- Buenos Aires encontrava-se abandonado, resolveu viajar por terra com
dígena estava ligada à seus soldados da Ilha de Santa Catarina, até Assunção do Paraguai, em
percepção da diferença lombo de cavalo. Chegando ao rio Paraná, encontrou os índios guaranis
de posses: o homem que, na troca de presentes, o auxiliou na construção de jangadas, ser-
branco marca a sua pre- vindo de transporte para navegarem rio abaixo até Assunção. Em terri-
sença – e sua existência tório brasileiro, os cavalos se reproduziram e foram caçados pelos
no mundo- como possui- guaicurus. Foram domados pelos índios e acabaram sendo utilizados
dor de coisas que os in- tanto nas caçadas, quanto nas guerras contra os inimigos. Os guaicurus
dígenas gostariam de ter, se tornaram tão exímios cavaleiros que ao se dependurarem na crina
na suposição de torna- do cavalo, tornavam-se “invisíveis” aos olhos do inimigo, pois ao cor-
rem a vida de todos mui- rerem de lado davam a impressão de que os cavalos estavam sozinhos
to mais fácil e agradável! (Trecho do texto retirado do livro de Acyr Vaz Guimarães: Quinhentas
Se as narrativas de- Léguas em Canoa de Araraitaguaba às Minas do Cuiabá: as monções
monstram que a imagem Paulistas, 2000).
do outro fica sempre
distorcida ou desfocada,
numa clara deficiência de compreensão, o que é necessário fazer para que não
ocorra tanto estranhamento entre ambas as partes? Na visão que um faz do
outro é preciso relativizar essa diferença, ou seja, na forma de uma cultura en-
tender a outra, a diferença não deveria se transformar em hierarquia, em supe-
19. 18 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
riores e inferiores, ou em bons e maus. O importante seria que se percebessem
mutuamente em sua dimensão maior: a riqueza por serem diferentes e o orgu-
lho de terem identidade cultural.
2.2 Literatura: Lições dos Mitos
Meus senhores e minhas senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do
Mutum! Juro que é o Pai do Mutum, minha gente, que está lá no campo vasto
do céu! (Mário de Andrade – Macunaíma)
Quem nunca ouviu falar do grande literário Mário de Andrade? Ele foi um
dos maiores escritores da literatura brasileira. A literatura contribuiu muito para
a formação de uma identidade cultural e para a construção de discursos; se lidos
de forma distorcida, esses discursos resultam em uma visão preconceituosa. Rei-
terando o que já foi mencionado, não é propósito fazer aqui uma critica à His-
tória nem tampouco à Literatura, mas mostrar como, por meio da História e da
Literatura, os discursos foram sendo historicamente construídos.
Retomando a epigrafe de Mário de Andrade, podemos dizer que não ouvi-
mos o choro de Macunaíma, tão longe que estava lá no fundo do Mato-Virgem.
Mas ele com certeza chorou como todos nós fazemos ao nascer. Esse indiozinho
preguiçoso, segundo o escritor Mário de Andrade, representa todos os brasilei-
ros e brasileiras que, como ele, querem exercer o seu direito de viver, crescer,
amar, trabalhar, se divertir... Por sinal, o folgado do Macunaíma, quando cres-
ceu, queria ter direito a tudo, menos ao trabalho; não que o índio não gostasse
de trabalhar, mas a forma como eles concebem as relações de trabalho é bem
diferente da forma que os não indígenas entendem. Os indígenas não trabalham
para acumular riquezas, eles trabalham para sobreviver; o tempo deles não é
para ficar em torno do relógio controlando o horário de entrar no serviço. Até
porque eles têm outras atividades que consideram tão importantes quanto tra-
balhar como, por exemplo: conversar com os filhos à beira da fogueira contan-
do-lhes a história de sua aldeia, de sua geração passada; ensinar os filhos a fazer
redes, cestos, trançados, cerâmicas; a dançar, rezar, nadar, pescar, correr pelas
matas - não podemos esquecer que alguns indígenas já não têm mais matas para
correr e nem rios para pescar-.
O entendimento do que significa trabalho e tempo dedicado a esta ativida-
de vai variar de acordo com cada cultura, com cada povo. Alguns povos indíge-
nas, por exemplo, dedicam apenas três a quatro horas por dia para a realização
de atividade de subsistência; para eles o trabalho exerce mais uma função social
do que capitalista1, o que será detalhado mais adiante. Interessa no momento
chamar a atenção para duas expressões; “preguiçoso” e “folgado”, que, sugeridas
por Mario de Andrade e disseminadas no senso comum, contribuíram para pro-
1
Sobre a questão do trabalho nas sociedades indígenas ler SAHLINS, Marshal. A Economia da
Idade da Pedra. 2a. Edição. Akal editor, 1977, 1983.
20. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 19
pagar a ideia de que o índio é preguiçoso e não gosta de trabalhar. Na realidade
é mais fácil incorporar tal proposição ao discurso, do que conhecer a forma de
organização social desses grupos para então entender as tão variadas formas e
concepções de trabalho. Para alguns grupos indígenas, o trabalho não tem o
nosso entendimento porque não precisam de dinheiro para a subsistência.
Atualmente, são poucos os povos indígenas que vivem da caça e da pesca;
há muitos povos que não têm matas para caçar e nem rios mais para pescar,
passando a viver nas cidades em busca de alternativas de vida, ainda que mise-
ráveis. Se perguntarem para alguns desses povos o que querem na vida, com
certeza gostariam de viver como antes: em matas ricas com abundância de caça
e frutos, rios férteis de peixe (como ainda ocorre no Xingu), espaço para as roças
coletivas, plantas nativas para o preparo de remédios e muita lenha para manter
a roda do fogo e a chama acesa de suas tradições.
E por falar em tradição, já voltando às lições dos mitos e fechando esta
discussão sobre a economia, vamos ver o que está dizendo o nosso herói,
Macunaíma, para as pessoas ao seu redor? Parece até um político fazendo dis-
curso em véspera de eleição... Bem, você que o viu nascer, lá no fundo do
Mato-Virgem, não deve ter se esquecido dele, não é mesmo? Como pode per-
ceber, ele já está falando e está todo cheio de sabença, corrigindo as ideias das
pessoas. Pois saiba que Macunaíma deixou a sua aldeia tapanhuma
e resolveu ir para São Paulo, em busca da muiraquitã, o seu
amuleto da sorte, como fazem muitos indígenas brasileiros, em
busca das grandes cidades. E essa é uma realidade ainda mal
conhecida, e cheia de preconceito por parte dos não indíge-
nas; é preciso conhecer melhor a vida desses indígenas que
vivem em contextos urbanos e como têm reorganizado suas vi-
das em um meio tão hostil; quais são as estratégias de inserção,
com pessoas indiferentes às suas dificuldades de adaptação2.
Voltemos ao nosso herói: bem no meio da cidade, ele corrige as pessoas,
dizendo que o Cruzeiro do Sul, na verdade, é uma grande ave de asas abertas,
o mutum, pai de todos os mutuns que povoam as nossas matas. O que é o mutum?
Ora, é uma ave negra, de grande porte, que lembra, mais ou menos, um peru;
para Macunaíma, esse mutum feito de estrelas é o pai de todos os mutuns da
terra. Bonito, não é mesmo? Pois é assim que muitos povos indígenas pensam a
respeito da origem das espécies e até do próprio homem; eles são muito inte-
ressados em saber sobre os seus antepassados: em seus mitos, ora afirmam que
são descendentes de grandes guerreiros da própria região; ora de navegantes
vindos de outros continentes, que aqui desembarcaram, espalhando-se por todo
canto; e há mitos, também, que sugerem a origem mágica de sua aldeia, fruto
2
Sobre a temática dos indígenas em contextos urbanos ver: Mussi, Vanderléia Paes Leite. As
estratégias de inserção dos índios Terena: da aldeia ao espaço urbano (1990-2005). Tese de dou-
torado. UNESP Campus de Assis - São Paulo, 2006. 332 f.
21. 20 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
da vontade de algum deus. É esse pensamento mítico dos indígenas que dá ao
nosso herói Macunaíma a certeza sobre a origem dos seres do mundo.
Nos dias de hoje, esse é o grande problema na relação entre culturas dife-
rentes, ou seja, há uma grande falta de sensibilidade com a visão de mundo de
pessoas que são de culturas diferentes da nossa. Afinal, nós temos de nos educar
a aceitar como verdadeiras, também, outras concepções da vida, diferentes da
nossa. Como vimos em relação à constelação apontada por Macunaíma, para
uns é o Cruzeiro do Sul, para outros, o Pai do Mutum; e indiferentes aos nomes
que recebem dos homens, as estrelas não deixam de ser o que são e continuam
a brilhar no campo vasto do céu, não é mesmo?
Neste ponto da conversa, seria importante deixarmos um pouco o nosso
herói e companheiro nessa longa viagem histórica e cultural de Macunaíma.
Mas, por enquanto, vamos deixá-lo à vontade, lá na cidade de São Paulo, tentan-
do convencer as pessoas de que o Cruzeiro do Sul, nada mais é do que o Pai do
Mutum; pelo visto, a discussão ainda vai se alongar noite adentro e nós temos
um outro ponto também importante no entendimento da construção destes dis-
cursos. De momento, podemos retomar outras personagens da nossa literatura,
como Iracema e Martim, protagonistas do romance Iracema, do escritor José de
Alencar. Vamos acompanhar a conversa entre a virgem dos lábios de mel e o
guerreiro português, perdido nas matas densas dos índios tabajaras, no interior
do Ceará. E o guerreiro diz a Iracema:
_Quebras comigo a flecha da paz?
_Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Don-
de vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?
_Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos
já possuíram, e hoje têm os meus.
_Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldei-
as, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.
Como podemos depreender, Iracema e Martim estão selando um pacto de
amizade, em plena floresta. Só para satisfazer a sua curiosidade, saiba que Martim
chegou repentinamente ao lugar em que Iracema tomava banho de sol e, muito
assustada, o feriu com uma flechada, mas logo se arrependeu e cuidou do rapaz.
Para um bom leitor, já dá para perceber que a flecha que feriu Martim é a
própria flecha do Cupido, não é mesmo? É ler para conferir, pois o romance é
uma das obras-primas do Romantismo brasileiro, um verdadeiro hino de louvor
à nossa cultura e à nossa história.
Porém, o assunto que nos diz respeito é outro; observe como o escritor
cearense dá a sua versão poética a respeito dos primeiros contatos entre os
colonizadores portugueses – ou invasores?- e o então chamado gentio, isto é,
aquele que não era cristão. De forma figurada, o autor sugere que foi uma rela-
ção de amor, sem dúvida, mas marcada pelo sacrifício. E, apesar de ter sido
Martim o ferido, a história reverte a situação e marca o nativo pela dor da colo-
nização. Observe, também, que Martim está no interior do território cearense,
nas terras tabajaras, ainda invioláveis, vindo de outro território brasileiro, já con-
22. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 21
quistado. São terras que os indígenas já possuíram, mas agora estão nas mãos dos
portugueses que, aos poucos, vão tomando tudo o que a vista alcança. E que
vista gulosa tinha o colonizador português! Foram empurrando as fronteiras do
território, ainda desconhecido, até onde puderam, plantando fortificações, ar-
raiais e vilarejos ao longo de suas jornadas de conquista. Como terão sido os
contatos com os indígenas, para além da romanceada visão de José de Alencar?
Que concepções de homem e de mundo foram sendo construídas no contato
entre os europeus e os indígenas na visão do autor? Ora, pelo excerto acima já
é possível depreender que nesta relação do contato apresentada por José de
Alencar não houve resistência, não houve conflito, mas um grande pacto de
amizade que resultou em uma linda história de puro romance... E, mais uma vez
a se cria a ideia do indígena “passivo”, receptivo e incapaz de resistir a qualquer
ação contrária a sua concepção de mundo.
O autor Julio Cesar Melatti (2007) chama a atenção para o fato de que além
dos romancistas e poetas brasileiros José de Alencar e Gonçalves Dias, serem
divulgadores dessa “visão romântica do índio: altivo, cortês e corajoso”; tam-
bém foram propagadores de informações etnográficas errôneas. Segundo Melatti,
José Alencar faz a índia Iracema atirar flechas, quando, na realidade entre os
indígenas, somente os homens usam o arco e flecha. Já com relação a Gonçalves
Dias, que não incluímos aqui nesta reflexão, mas que também tem sua parcela
de contribuição na literatura brasileira, ao escrever Os Timbiras, por sua vez,
“atribui aos Timbira, que são índios da família lingüística Jê, costumes que per-
tenciam aos Tupinambá, tronco linguístico Tupi. Já em I-Juca-Pirama, aos Timbira
era atribuído o uso da antropofagia e do cauim (bebida feita através de fermen-
tação de milho e/ou mandioca); em Os Timbiras, eram atribuídos aos persona-
gens de nomes Tupi (Melat7i,2007, p. 175). O autor informa ainda que Gonçal-
ves Dias demonstrou conhecimento da época a respeito dos índios quando
escreveu Brasil e Oceania e que sua opção pecos Timbira como um dos princi-
pais objetos de seus poemas indigenistas tenha ocorrido pelo fato de que estes
indígenas eram provenientes do Maranhão, terra do poeta. A questão do equí-
voco se deu por ter atribuído costumes Tupinambá aos Timbira por não conhe-
cer nenhum costume dos Timbira; e também porque considerava os costumes
dos Tupinambá como sendo mais nobres e altivos.
Bem, mas ao falarmos de literatura brasileira temos de considerar as duas
visões literárias: os mitos indígenas a partir da cosmovisão dos indígenas bem
como a visão literária do não indígena a partir das concepções ocidentais, a
partir da realidade indígena. Para isso, vamos retomar o mito do Quarup escrito
por Antônio Callado:
Ninguém ia dormir cedo aquela noite no Posto Capitão Vasconcelos. Vilar
transformava o trabalho do quarup numa espécie de violento folguedo. (...)
Os jiraus do moquém afogueados pelos braseiros transbordaram do terreiro,
se espalhavam pelas cercanias. As tribos recém-chegadas davam sua mãozi-
nha aos anfitriões. Cuias de caxiri circularam. Mulheres puseram-se a dançar
em fila. E voltava Vilar segurando pela proa, acima da cabeça avermelhada
23. 22 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
pelo fogo, uma ubá com os últimos peixes (...). A ubá foi despejada no meio
do terreiro e até os curumins e cunhantãs às gargalhadas puseram-se a esca-
mar peixe, a limpar peixe, a botar peixe nos moquéns. (...)
Maivotsinim criou a raça humana fazendo quarups, com os quais criou os
homens, homens como Canato, Sariruá, Apucaiaca e o Anta, que agora fazi-
am quarups para criar Maivotsinim. (Quarup – Antônio Callado – Círculo do
Livro, p. 179 e 187)
O romance Quarup3, do escritor Antônio Callado, é uma das mais impor-
tantes obras da literatura brasileira contemporânea. É a história do padre Nando,
que deixa o mosteiro franciscano onde vivia, no Recife, e parte para o Xingu
com o objetivo de conhecer o mundo e os índios. O seu sonho era o de recons-
truir em plena Amazônia, uma sociedade harmoniosa e socialista, como fizeram
jesuítas e índios guarani, no século XVIII, no sul do País. Assim que chegou ao
Posto Capitão Vasconcelos, Padre Nando teve a rara oportunidade de acompa-
nhar a organização de uma das cerimônias indígenas mais importantes, o quarup.
Como você percebeu no excerto acima, Vilar, uma espécie de empreiteiro de
obras, está ajudando a trazer o peixe que será servido na cerimônia; é tanto
peixe que vem carregado em uma canoa, a ubá, para ser despejado no meio do
terreiro.
Você notou como tudo é feito com grande alegria? As mulheres dançam e
todos bebem o caxiri, uma bebida feita à base da fermentação da mandioca. Até
as crianças, curumins (meninos) e cunhantãs (meninas), ajudam os adultos no
preparo da comida, escamando o peixe e, com certeza, preparando o beiju,
para os convidados. Sim, observe que os convidados vão chegando e já entram
no clima da festa, também ajudando no preparo da comida. Se nos concentrar-
mos um pouco na história, dá até para sentir o cheiro do peixe sendo assado no
moquém. Sabe o que é um moquém? É onde o peixe é moqueado, isto é, assa-
do; para isso é feita uma armação de varas verdes, parecendo uma grelha, com
o fogo por baixo. Tudo muito bem feito, para não causar risco aos que preparam
e aos que comem.
Mas que festa é essa, tão importante, a ponto de dar nome a um romance
famoso da nossa literatura? Observe no excerto acima, que um tal de Maivotsinim
criou os homens, por meio de quarup... Pelo visto, esse criador de homens é
uma divindade indígena que merece todo respeito, porque, afinal, é o pai da
humanidade; mais interessante, ainda, é que esse pai, depois de ter criado o
homem, precisa ser constantemente recriado, pelos seus próprios filhos, na ce-
rimônia do quarup. O quarup, portanto, é uma festa ritualística em que os indí-
genas se reconciliam, se unem ao seu criador e reverenciam os seus mortos, de
uma forma alegre e cheia de prazeres: muita comida, muita música, muita dan-
ça, além da conversa descontraída com amigos e parentes... Mais uma bonita
3
Convém observar que no romance de Antonio Callado, Quarup é grafado com “Q”; já no
estudo de Pedro Agostinho o nome é grafado com “K”, obedecendo às normas padronizadas e
aspectos linguísticos estabelecidos pela Associação Brasileira de Antropologia para grafar nomes
Indígenas.
24. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 23
tradição, mais um mito indígena que nos mostra a sensibilidade deste povo com
seus antepassados míticos, que foi incluído na literatura brasileira.
2.3 Literatura:
versão dos mitos indígenas
– a explicação do Ritual do Kuarup
De acordo com os estudiosos, as cosmologias indígenas representam mo-
delos complexos, dos quais faz parte a sociedade humana. Os mitos são narrati-
vas que procuram responder sobre a origem da própria existência; são veículos
de informação sobre a concepção do Universo, ou seja, sobre a forma de cria-
ção do mundo, a origem do “homem branco”, os rituais da agricultura, as rela-
ções ecológicas entre animais, plantas e seres humanos; enfim, sobre a existên-
cia de todos os seres da face da terra. Essa palavra (mitho) é de origem grega e
significa exatamente isso: uma história, ou narrativa, por meio da qual os ho-
mens explicam os mistérios da vida e do mundo. Você já ouviu falar de um mito
grego que procura explicar a origem do eterno sofrimento humano, no esforço
interminável pela sobrevivência? Leia então a história (ou o mito) de Sísifo... é
muito interessante.
Falamos que as cosmologias indígenas representam modelos complexos,
mas afinal, o que isso significa? Não é tão difícil de entender e, para isso, nada
melhor do que uma explicação com exemplos: relata-nos uma estudiosa, Alcinda
Ramos (1995), que entre os povos indígenas Sanumá (Yanomami) que vivem no
norte de Roraima, quando uma criança nasce fisicamente normal, dias depois
do nascimento, seu pai vai caçar. O nome do animal que ele caçar será dado à
criança, isto é, se ele matar uma onça a criança será chamada de onça. Assim, o
pai literalmente sai para caçar o nome do(a) filho(a); por conta disso, a caçada
deve ser feita com muita atenção e cuidado, porque, além do nome, a criança
também receberá do animal morto um certo espírito que, ao morrer, se instala
em seu corpo.
Ao trazer o animal amarrado em um cipó para casa, o pai deve trazê-lo
com todo cuidado possível e, ao chegar em casa, os parentes de sua mulher
preparam a carne do animal caçado e a distribuem para todos da casa. Nem a
mãe e nem o pai da criança devem comer da carne, porque acreditam que, ao
comê-la, podem colocar em risco a vida da criança recém-nascida. Logo, so-
mente os parentes consanguíneos da mulher (mãe da criança) poderão comer e
dizer se a carne é de boa qualidade ou não. Se a carne for de boa qualidade,
eles acreditam que a criança viverá; caso contrário, eles acreditam que a crian-
ça morrerá.
Se fizermos uma interpretação desse “mito”, do ponto de vista material, ou
de um outro ponto de vista estranho à cosmologia dos sanumá, essa caçada
poderia significar apenas uma forma corriqueira e festiva de fornecer carne à
25. 24 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
aldeia. Portanto, os sanumá, quando vão caçar para o ritual de denominação de
um recém-nascido, têm bem clara a sua responsabilidade familiar e tribal; a
obrigação do pai não é só a de “caçar” um nome e um bom futuro para o seu
novo filho, ele também tem um sério compromisso com os seus antepassados,
que o ensinaram e continuam ensinando a ver o mundo, a entender o universo,
a criar os filhos e a entender a própria existência.
Na sociedade não-indígena, quando uma criança nasce é fornecida a ela
um nome, sem necessariamente o pai ou a mãe saírem para o mato caçar; o
critério de escolha é bem diferente e cada família tem o seu jeito de escolher o
nome de seu filho(a). Se fizermos uma leitura do ritual sanumá do ponto de vista
economicista, ou até mesmo de forma apressada, a caçada não representaria
mais do que uma forma de fornecer carne à aldeia. Os sanumá quando vão
caçar, têm muito claros os seus compromissos míticos e tribais; sabem que têm
responsabilidades não só com o seu novo filho como também com os seus ante-
passados: foram eles que os ensinaram a ver o mundo, a entender o universo, a
criar os filhos, a entender a própria existência (Ramos, 1995, p. 24 e 25).
Mas retomemos outros rituais, aqui tratados, como o Kuarup. Na versão
escrita por estudiosos da área, é possível compreender melhor as nuanças so-
bre esse importante ritual, de forma menos romanceada e mais próxima da
realidade e destes povos. No estudo realizado por Pedro Agostinho, a festa do
Kuarup é realizada pelas aldeias indígenas do Alto Xingu que visam vivificar a
lembranças das origens do cosmos xinguano, que cria o mito de, Mavutsini, no
Murená – centro do mundo. Com esse mito de origem o cosmos foi estabele-
cido no universo xinguano e sua harmonia somente foi quebrada com a morte
da mulher mãe primordial, mulher fabricada por Mavutsini e mãe dos gêmeos
Kwat e Yaí. Nas palavras de Agostinho (1974, apud. Marchezan, 1990, p. 97) é
“a irrupção da morte, o afastamento do ideal estabelecido pela narrativa
paradigmática e mítica” (Agostinho, 1974, apud. Marchezan, 1990, p. 97).
Convém observar que nesta versão literária, não aparece a figura do Capitão
Vasconcelos nem a do Padre Nando, mas unicamente os membros da comuni-
dade indígena.
De acordo com o autor, a morte tem a função de reorganização social, pois
quando desorganiza o cosmos xinguano, se funda o caos. Neste sentido, quando
morre um membro da comunidade, todo o grupo precisa se reestruturar diante
de tal perda. Assim sendo, a celebração do Kuarup exerce esta função: a de
reorganizar de tudo, a fim de restabelecer a ordem social. O mito precisa ser
ritualizado para que não haja o sentimento de alguma desintegração da comuni-
dade tribal. Repondo a perda do mundo xinguano, “o mito é a expressão viva
dos tempos primordiais, ideais, quando tal perda não existia”.
O comportamento mítico-religioso e ritualístico dos indígenas do Xingu busca
esse ideal e acaba por atingi-lo simbolicamente no ritual do Kuarup. Acham-se,
assim, “reintegrados na mitologia xinguana, na sua comemoração. Sua cultura é
reativada, como foi a cosmovisão de seu grupo”.
26. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 25
Desta forma, fazendo-se um Kuarup, cria-se alguém, lembra-se um ente
querido e todas as demais aldeias vizinhas comparecem para participar do ritu-
al. “O Kuarup faz a passagem do indefinido (caos) para o estruturado, o cosmos,
mantendo viva a lembrança das origens, da criação dos primeiros seres huma-
nos, quando a morte não era conhecida”. Neste ritual o Kuarup apaga a presen-
ça da morte e acaba por repor a vida no mundo xinguano.
É por isso que no ritual do Kuarup é trazido um tronco de madeira e a madei-
ra que, segundo os xinguanos, é a própria substância de onde vieram. Esse tronco
é que repõe a perda, de acordo com o paradigma da narrativa mítica. Com isto, o
ciclo Kuarup, para Marchezan (1990, p. 197), “corresponde a um recriar simbóli-
co do cosmos xinguano, cujas características sociais básicas se expressam pela
própria estrutura e conteúdo mítico da festa, recriar esse em que as forças destrutivas
da morte e da desintegração social se vencem, e a partir do qual nova vida ressur-
ge, num estruturar de vitalidade” (Marchezan, 1990, p. 197). Logo, o Kuarup é
um ciclo de festas que começa em um ritual fúnebre em uma festa de luto. Esse
ritual tem seu ponto de partida em um grupo de indígenas de uma mesma aldeia,
os (enterradores) dirigindo-se aos enlutados (donos de um morto líder ou de linha-
gem dessa aldeia) que propõem o enterro pelo Kuarup.
A morte de um líder ou de uma linhagem do povo xinguano é perigosa para
a aldeia e parentes próximos. Com isto, torna-se necessária a “reparação do dano”,
ou seja, para que o funcionamento da aldeia ocorra e a reparação seja feita, é
realizada, por meio do ciclo do Kuarup, a organização social dessa festa, em que,
segundo comentários de Luiz Gonzaga Marchezan apoiando-se nos estudos de
Pedro Agostinho (1974), os indígenas do Xingu “mergulham no início dos inícios
de seus mitos de origem e reintegram o presente no passado, anulando assim o
tempo de conflito e dor em que os deixou o acontecimento de uma morte”.
RITUAL KUARUP
Fonte: http://silnunesprof.blogspot.com/2010/04/homenagem-aos-nossos-iraos-nativos.html
27. 26 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
Na concepção indígena, a vida está presa, portanto, a uma teia de relações
que podem ser conferidas na íntegra do estudo do autor:
VIDA
1 – Ao nascer um ser humano, a natureza contrai um crédito com a comuni-
dade (através do grupo familiar desse recém-nascido).
2 – A comunidade, com esse nascimento, contrai um débito com a natureza,
assumindo esse crédito com a família.
3 – E a família contrai um débito com a comunidade.
Após a morte de indivíduos importantes para a comunidade, essa relação
entre crédito e débito, esse contrato, precisa ser resolvido. A resolução vem
num outro contrato, num outro pacto, que dá origem ao ciclo do Kuarup, ao
ritual funerário do Kuarup, propriamente dito.
A morte prende-se a outro tipo de reações:
MORTE
1 – A família (o grupo familiar, dono do morto) precisa pagar o débito (da
vida de um de seus elementos) com a comunidade (que contraiu por ela um
débito com a natureza, com o nascimento dessa criatura. O grupo familiar
(dono do morto) precisa entregar o morto à comunidade (representada pelos
enterradores).
2 – A comunidade (enterradores) paga o débito à natureza enterrando, en-
tregando a ela o morto.
O grupo familiar, dono do morto, está pagando seu débito junto à comunida-
de quando deixa entrar em seu espaço privado o cortejo de pessoas alheias
a esse espaço (os enterradores) e deixa levar o morto do espaço familiar,
íntimo, ao seu espaço de retorno à natureza- a sepultura, no centro da aldeia.
Nesse ato o contrato tribal é cumprido. Contrato, de acordo com a etimologia
da própria palavra, significa pacto, pacto para o começo de um novo assunto;
é a ação de inicio desse novo assunto:
CONTRATO
1 – A família paga seu débito à comunidade (recebendo da natureza alguém
vivo e entregando-lhe morto).
2 – A comunidade paga seu débito à Natureza (devolvendo morto alguém que
havia recebido vivo, através de uma família sua); substituindo a morte pela
vida, através do Kuarup, a figura de madeira que é a essência da vida xinguana.
Após enterro, enlutados e enterradores renovam sua pintura; esse fazer sem-
pre se repete nas etapas do ciclo do Kuarup depois dos ritos funerários. Em
continuidade ao percurso da festa, estabelece-se um novo entendimento
entre os enlutados e os enterradores: estes pedem autorização para a cons-
trução do “apenap” – uma “cerquinha baixa e feita de troncos que rodeia
temporariamente as sepulturas (Pedro Agostinho, 1974, p. 56; apud.
Marchezan, 1990). Novamente fica instaurada a relação entre enterradores
e donos dos mortos.
28. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 27
Renasce a idéia da Vida
A prestação de serviços, pela troca é, portanto, feita entre os indígenas,
relacionando os mundos da natureza e da cultura. Da mesma forma o im-
plante do Kuarup não deixa de refletir relacionamento idêntico entre aque-
les dois mundos. O Kuarup reproduz a idéia de reposição na cultura xinguana
(já dissemos que a madeira é tida como a essência do xinguano): ele repõe
alguém à Mãe Terra, saldando o débito da comunidade junto à Natureza,
para que esta continue contribuindo com comida, com vida. Por isso é fre-
qüente a troca de serviços por comida em todo o ciclo do Kuarup; ela apare-
ce em várias etapas que vão conquistando a vida nas constantes relações,
envolvidas nas trocas, entre o mundo da natureza e o mundo da cultura, que
levantam o luto da comunidade tribal, até um banho simbólico realizando
que marca afinal do luto.
O Kuarup é plantado numa procissão idêntica à do enterro. As flautas uruá
previamente anunciam essa etapa. Segundo Pedro Agostinho, o alto de im-
plante do Kuarup rememora, através dos marakaip (cantores) que cantam
ao seu redor, o acontecimento mítico do ato criador.
O tronco da árvore é tra- O tronco (ou troncos) de
Zido da mata, na horizon- árvore é colocado no
Tal, oculto, indefinido, meio do terreiro, na ver-
“morto”. O tronco vem da tical, definido Kuarup
Natureza. É um crédito “tal”, “vivo”. A comunida-
Que a natureza dá à co- de, com o crédito obtido
Munidade para que ela junto à natureza, substi-
Promova outra vida. Tui uma morte, pagando
Seu débito com a nature
Za. Normaliza sua vida
Tribal.
MORTE X VIDA
Luta: um ritual intertribal pela vida
A luta (huka-huka) é o clímax do Kuarup, inaugurando uma nova etapa de
vida numa comunidade xinguano, uma vez que a perda ocorrida nessa tribo
xinguana já está, nesse momento, reposta dentro do espaço comunitário. O
pacto tribal já está novamente firmado.
A luta representa então um pacto intertribal, geral, após a reposição de uma
vida, cujo resgate pela tribo dá à comunidade um novo crédito. Esse novo
crédito está representado no substituto da vida, na figura de madeira, no
Kuarup; mai especificamente, o crédito está simbolizado no cinto do Kuarup,
um adorno que passa a ser o prêmio da comunidade na disputa intertribal,
que se resume numa luta.
Com essa prática instaura-se novamente entre a comunidade xinguana a
adversidade tribal e completa-se, assim, o resgate da vida suspensa durante
o luto. A comunidade, que é credora da reposição de uma vida, doa, através
do cinto do Kuarup, esse crédito, reatando os compromissos intertribais com
a vida.
29. 28 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
O pequi: o mito que instaura a idéia da vida.
Após a luta há a distribuição da castanha do pequi: os nativos esperam que
ela amadureça e caia da árvore. Uma vez caída, madura, ela é colocada em
cima da sepultura, cobrindo-a.
Quando, depois da luta, a castanha passa a ser distribuída, sua distribuição
é feita pela moça púbere, que até esse momento estava reclusa e que, agora,
libertada no ciclo do Kuarup, já pode procriar.
O pequi é objeto de troca entre as tribos xinguanas participantes do Kuarup.
Segundo a história da criação dos cosmos xinguano, ele veio das cinzas do
jacaré, e este, por sua vez, é tido como conquistador das mulheres. O Kuarup
reúne uma comunidade intertribal. Assim, quando a tribo promotora da
festa oferece o pequi aos visitantes, no encerramento dos festejos, por meio
de suas púberes libertadas para a procriação da vida, também oferece aquela
fruta em troca da liberdade das mulheres da aldeia, para que procriem
somente com os homens da própria aldeia. Os visitantes homens são poten-
ciais conquistadores de mulheres, são jacarés (inclusive, a própria tribo reco-
nhece que seu morto festejado foi um jacaré, pois o pequi oferecido fica
depositado em sua sepultura até a hora da distribuição, no final da festa).
Nessa fase dos festejos, com o luto suspenso, o curso da vida na aldeia que
promoveu o Kuarup voltou a sua plenitude, incluindo todas as suas adversi-
dades diante das tribos visitantes. O pequi, em mais esse ato de troca,
substitui, isto é, dilui a potencial pretensão dos homens das outras aldeias em
conquistar as mulheres da aldeia promotora da festa. Com isso o pequi
ganha também um sentido de ordenador da procriação da vida para os
xinguanos, o que é confirmado pelas origens dessa castanha na sua mitologia.
O Pequi, segundo essa mitologia, “nasceu com quatro diferentes cores, con-
forme a direção dos ramos (norte, azul; sul, verde: leste, branco; oeste,
vermelho)” (Agostinho, 1974, p. 188; apud. Marchezan, 1990).
A festa é encerrada com muita comida. A comida, como vimos, é um paga-
mento freqüente feito como troca de serviços realizados desde os preparati-
vos do ciclo de Kuarup (paga-se com ele prestações de serviços pelo inicio do
processo de levantamento do luto da aldeia), até o seu encerramento na
confraternização entre as comunidades das várias tribos participantes da
festa. A comida representa sempre a vida nessa festa. Assim, ela inicia o ciclo
Kuarup e encerra esse mesmo ciclo, que relembra a história da origem da
vida da comunidade xinguana, no tempo e no espaço de uma das aldeias
(Marchezan, 1990, p. 99 a 102 ).
Assim sendo, é possível depreender, a partir dessa discussão, que as socie-
dades indígenas não são desprovidas de história, de alma, de Lei, de direitos, de
estruturas complexas de organização, cujos discursos, muitas vezes equivocados
e vazios, não dão conta de “traduzir”. Entretanto, também não podemos des-
prezar as revelações da poesia, certo? Nem tampouco descartar todos os livros
de história. Às vezes, um poema nos toca de tal forma a sensibilidade, a intuição
fica tão aguçada, que ficamos sabendo dos mistérios do mundo sem o recurso da
lógica e da filosofia. E esse toque de magia na forma de conhecer o mundo, é
muito cultivado entre os povos indígenas, constituindo-se também em uma he-
rança que deles recebemos. Afinal, se os europeus e asiáticos engendraram o
30. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 29
raciocínio lógico, a especulação filosófica, nós desenvolvemos a intuição, a adi-
vinhação, como disse outro poeta modernista, o Oswald de Andrade. No seu
sarcástico Manifesto Antropófago – o manifesto do homem brasileiro que devo-
ra as culturas estrangeiras - esse poeta imita ironicamente o poeta Shakespeare,
explicando qual é o grande dilema do brasileiro: “Tupi our not tupi; that is the
question”, ou seja, ser ou não ser índio eis a questão! Mas apesar de toda força
da intuição e da magia, apesar de sabermos que temos em nossa alma a memó-
ria tatuada de nossos antepassados indígenas, apesar de tudo isso, vamos nos
ater a aspectos mais concretos dessa herança cultural indígena, de modo que a
fantasia possa colaborar com a razão.
Neste sentido, se a fantasia pode colaborar com a razão, convém saber
dosar a fantasia, de modo que não se transforme tudo em senso comum. O que
permanece no senso comum é, na verdade, muitas ideias equivocadas que ain-
da continuam sendo veiculadas por meio dos livros didáticos, ou pela escola, ou
ainda pela mídia a respeito destes povos. Vejam algumas delas:
“São todos iguais”: desconhece-se e nega-se a grande diversidade sociocultural
e linguística que há entre os povos indígenas;
“São do passado”: primeiro, nega-se a presença dos povos indígenas como
parte da população brasileira e como integrante do futuro do país; segundo,
considera-se o índio como representante da “infância” da humanidade, como
remanescente de um estágio civilizatório há muito ultrapassado pelos “civili-
zados”;
“Os índios não têm história”: decorrente da noção anterior, esta baseia-se
na falsa certeza de que os povos indígenas “pararam no tempo”, “não evoluí-
ram”, vivem como na “nossa” pré-história. Como consequência, imagina-se
erroneamente que as sociedades e culturas indígenas não se transformam,
não se desenvolvem, e que suas tradições são absolutamente imutáveis;
“São seres primitivos”: “atrasados”, que precisam ser “civilizados”: nega-se
aos povos indígenas o direito à autodeterminação e à autonomia de suas
escolhas e desqualifica-se seu patrimônio histórico e cultural. Isto impede
que se admita e reconheça a existência de ciências e de teorias sociais indíge-
nas, de uma arte e religião próprias; enfim, de um saber indígena;
“São aculturados”: não são mais índios; imagina-se que quando os povos
indígenas alteram alguns aspectos no seu modo de viver, tornam-se
“aculturados”, deixam de ser “autênticos” e não podem mais reivindicar ter-
ras ou outros direitos relativos à condição de índios. (Texto retirado na ínte-
gra do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas MEC/SECAD,
2005).
31. 30 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
32. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 31
CAPÍTULO III
Imaginário do
Índio Amazônico
O imaginário do índio da Amazônia não é um fato novo na história, pois
remonta a algumas décadas, a começar pela lendária passagem em busca do
eldorado1, que tinha o poder de aguçar o imaginário das pessoas sobre a origem
dos homens e sua transformação em divindades, deuses. Sem a intenção de
fazer uma longa digressão, mas seguindo nesta proposição, não do imaginário,
mas da representação do real, podemos dizer em relação à origem do homem
americano que ainda há muitas hipóteses a serem comprovadas. Se sua origem
tem a marca de nascimento aqui mesmo, ou se foi criado pela divina ação dos
deuses. Outros, entretanto, podem afirmar que o homem americano é descen-
dente de algum povo navegante que atravessou o oceano e veio chegar em
algum ponto do nosso continente, dispersando-se, depois, por todo o território
americano.
Assim, a presença do homem no continente americano ainda continua sendo
tema de pesquisa, no sentido de compreender a evolução do processo de che-
gada e adaptação neste continente. Há inúmeras versões sobre seu surgimento.
Para uns esses povos vieram da África e se dispersaram em busca de novos con-
tinentes, novas regiões de climas e recursos naturais variados. É preciso dizer,
portanto, que há muitas lacunas na história, sobre a origem do homem america-
no; ou seja, há muitas perguntas sem respostas a respeito do povoamento da
América. Atualmente, quem se dedica aos estudos sobre a origem do homem
americano são os antropólogos físicos e sociais, os arqueólogos, os etnólogos,
linguistas, biólogos e geólogos que procuram conhecer não só a origem, as ca-
racterísticas, mas também quando e como a nossa espécie chegou à América.
Uma das hipóteses mais aceita pelos estudiosos é a de que os nossos ante-
passados teriam chegado ao continente americano atravessando a região do
Estreito de Bering, no extremo norte da América, no Alasca. Essa parte do con-
1
O “Eldorado” é um mito espanhol que fala da existência de uma cidade toda em ouro. Assim,
muitos conquistadores, sendo um deles o próprio Irala, em jornada ao Peru, em 1542, saíam em
busca desse ouro interrogando os índios, com o intuito de obter alguma informação para que
pudesse chegar a essa terra encantada. De acordo com os relatos de Métraux, as terras chaquenhas,
em si, não constituíam um fator importante, mas o seu papel histórico se tornou decisivo à medida
em que se tornou uma espécie de “portão de passagem para as fabulosas terras do oeste, das quais
os Guarani receberam objetos de prata e ouro vistos pelos espanhóis da boca do rio da Prata ao
Paraguai”. (MÉTRAUX, 1963)
33. 32 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS
tinente americano ainda estava ligada ao continente asiático, por uma estreita
faixa de terra. Isto significa que o Alasca era ligado à Sibéria, o que permitia
então a passagem de animais e homens, de um continente para o outro, por
terra firme.
Ao chegar à América do Sul, mais especificamente ao norte desse conti-
nente, encontra-se uma densa e úmida floresta chamada amazônica; e, mais
para o sul, estendem-se as planícies de cerrados. Em vista dessa diversidade
ecológica, é natural que houvesse tantas diferenças culturais e sócio-políticas
entre os povos que ali habitavam. E mais ainda é possível dizer: as diferenças
históricas do processo de formação desses povos pioneiros são perceptíveis nas
diferentes formas de adaptação e de organização de suas sociedades; tais pecu-
liaridades apresentam inúmeras formas de cultura, rica na diversidade de mani-
festações religiosas, artísticas, políticas e, até econômicas.
Até há pouco tempo, era aceita a ideia de que a América do Sul apresenta-
va uma distinção fundamental e contrastante entre os povos do altiplano andino,
tidos como detentores de uma alta civilização, e os povos da floresta tropical,
socialmente toscos e atrasados, sem qualquer complexidade cultural ou política.
Entretanto, investigações recentes (ver Carlos Fausto: Os Índios Antes do Brasil,
Zahar, 2000) já demonstram o quanto é variada e rica a cultura desses povos
que se desenvolveram à sombra da cordilheira dos Andes, seja, por exemplo, os
povos das várzeas amazonenses, como o marajoara, seja os que, mais ao sul,
circundavam o Chaco.
O homem, ao se deslocar, foi se adaptando a este novo sistema e criando
formas próprias de organização social, econômica, política e cultural, bem como
se protegendo das adversidades causadas pela natureza. Assim, cada sociedade
que se desenvolveu na América do Sul, percorreu caminhos culturais próprios.
Sobre os caminhos buscados pelos povos que habitavam o Brasil, os que sempre
estiveram mais em evidência, sobretudo nas últimas décadas, foram os povos da
Amazônia, pois além de possuírem uma densidade populacional maior, cerca
de 60%, entre dos demais povos indígenas de outras regiões do País também
apresentam em sua dinâmica de organização social uma influência menor na
relação de contato, visto que são povos que vivem mais distante das cidades, em
grandes áreas preservadas pelas matas e rios. Outro aspecto significativo que
também merece registro é que ainda há alguns grupos na região amazônica que
ainda não foram contatados pela sociedade não indígena.
A propósito, conviria observar que é difícil definir o que seja um determi-
nado povo, pois há muitas variantes em torno das línguas faladas. Geralmente,
quando nos referimos a um determinado grupo é mais por indicação da forma
como eles eram conhecidos no período do contato, ou como ficaram conheci-
dos por seus grupos vizinhos, do que por meio de informações diretas fornecidas
por eles.
Embora tenha ocorrido um crescimento significativo da população indíge-
na no Brasil, há grupos considerados “extintos” e grupos que ainda não permiti-
34. CULTURAS E HISTÓRIA DOS POVOS INDÍGENAS • Módulo III 33
ram um contato mais direto e permanente com a cultura ocidental: são conhe-
cidos como “índios isolados”.
Dessa forma, é na Amazônia que se encontra uma das maiores organiza-
ções indígena no Brasil, a COIAB2. Tal organização possui cerca de 75 organiza-
ções membros dos nove Estados da Amazônia Brasileira, sendo: Amazonas, Acre,
Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. São or-
ganizadas por meio de associações locais, federações regionais, com
especificdades de atuação via organização de mulheres, professores e estudan-
tes indígenas. Assim sendo, juntas, essas comunidades somam aproximadamen-
te 430 mil pessoas, o que representa cerca de 60% da população indígena bra-
sileira. Por isso, o imáginário de que só há povos indígenas na Amazônia, devido
muita vezes às suas pinturas corporais, rituais e vestimentas, é tão evidente e
disseminados no senso comum que acaba por causar prejuízo aos demais povos
indígenas do Brasil, originando exclusão e preconceitos. Quando a grande im-
prensa fala de indígena, logo apresentam a imagem de algum grupo amazônico.
2
Há por todas as regiões do Brasil, fora da região amazônica, a criação de diversas organizações
indígenas no sentido de reivindicar uma atenção por parte do Governo para estabelecer políticas
públicas de reconhecimento e atendimento a estes povos. De acordo com estas organizações
deve-se reconhecer a dinâmica de organização social e política de cada etnia do País, sem que
haja parâmetros de comparação entre eles (grupos fora da Amazônia) com os povos da Amazô-
nia.
35. 34 COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA • UFMS