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— Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e
            pacientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras.
                   Por isso, na manhã seguinte, o rei Baltasar, tendo despido os
            seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e
            saiu sozinho do palácio para procurar o homem.
                   Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes
            avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das


Histórias   palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio.
            Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem
            que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar


 de
            cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam
            carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam
            grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos



Natal
            como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam.
            Viu os que estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos,
            interrogando, para além da voz rouca das ruas, o silêncio opaco,
            fitando em sua frente a estrada recta do silêncio. Viu os que
            pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os que tinham
            a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava com
            o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação
            sem margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a
            Pátria deserdada, o fundo do mar da cidade.
                  E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-lhes:
                  — Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as
            reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre
            os esfomeados e os pedintes.


                                                                               103
Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar.
       E voltaram passados três dias, e responderam:
      — Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e as
reservas dos teus armazéns não chegam para saciar os esfomeados.
Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade. Se
cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos
sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo é
contrário ao bem do reino.
       E o rei lhes respondeu:
       — Procuro outra lei e procuro outro reino.
       Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si:
       — Vemos que ele nos trai.
      Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os
deuses.
       E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar:
      Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o
domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses.
       Seguiu o rei para o segundo altar e leu:
      Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a
abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses.
       Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu:
         Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito
ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os
ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram.


104
E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os
sacerdotes:
     — Dizei-me onde está o altar do deus que protege os
humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore.
      Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam:
      — Desse deus nada sabemos.
       Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido
atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:
       — Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da
humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas
coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?
       A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O
seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da
terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse.
Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o
vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.
      E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de
outra maneira.
                                               Sophia de Mello Andresen
                                                        Contos exemplares
                                                Porto, Figueirinhas, 1997




                                                                     105
Histórias de Natal
Os Magos que não chegaram a Belém                                                             A boneca

      Há sempre os que conseguem e os outros. Os que ficam pelo                — Não leves sempre essa boneca suja contigo para a cama —
caminho. Com os magos aconteceu o mesmo. Só três – os reis              disse a mãe de Eva.
Baltasar, Melchior e Gaspar – chegaram a Belém e deixaram os seus            — A minha Anita não é nenhuma boneca suja. — respondeu
presentes, de ouro, incenso e mirra, aos pés do Menino. Mas os          Eva — A minha Anita é muito querida.
magos, sacerdotes que estudavam o céu e os seus astros, eram muitos.           — Mas está muito feia — continuou a mãe. — Olha só para a
E outros se puseram a caminho, seguindo aquela estrela, súbito,         cara e para os cabelos dela!
nascida no firmamento e mais brilhante do que todas as outras que             Quando se olha para a boneca Anita, assim, sem se gostar dela,
aqueciam a noite.                                                       tem de se admitir. Bonita, não é. As bochechas estão cinzentas e a
       Desses, três sacerdotes da Caldeia, adoradores do sol e da       esboroar-se de tantos beijos e tantas lavagens. Já não tem
natureza, porque dela se sentiam dependentes, decidiram também          propriamente um nariz, apenas uma saliência suja, e dos cabelos
partir juntos para melhor enfrentarem os perigos de uma viagem, sem     castanhos já só ficou um pequeno tufo de cabelos ralos.
estrada conhecida, na esperança de alcançarem a Luz que aquele sinal          Isto não incomodava Eva, mas a mãe dizia-lhe constantemente:
anunciava. Não eram reis, nem tinham coroa, nem sequer montada de
                                                                             — Não queres pedir uma boneca nova pelo Natal? —
camelo ou burrinho manso. Também não levavam presentes, apenas a
                                                                        perguntava-lhe.
ansiedade dos seus corações. E, confiantes, abandonaram as margens
verdes do Eufrates, o trilho conhecido das caravanas e, guiados pela          Eva apertava a Anita contra si e dizia:
estrela, puseram-se a seguir a liberdade dos caminhos, crentes de que         — Não!
a força da esperança e da fé (não conheciam ainda o Amor) lhes               — Tenho outra ideia — disse a mãe. — Vamos levar a Anita a
permitiria chegar. Onde? Não sabiam. Mas lá, junto daquela Luz que      um hospital de bonecas e lá põem-lhe cabelo novo e outro nariz.
havia de transformar o mundo, de águas transparentes, fulvos                  Eva defendia-se. Não queria entregar a Anita.
desertos varridos pelo vento e frescos oásis, que reflectiam o azul
                                                                              Mas, certo dia, Alex, o irmão mais velho, disse uma coisa feia,

                                                                   1                                                                     107
uma coisa muito má. Disse:                                            entre o verde nas palmeiras, no paraíso, aonde os homens ansiavam
      — A tua boneca é um careca tinhoso!                             regressar. E nessa esperança caminhavam. Não por carreiros
                                                                      atapetados pelo musgo dos presépios, que vieram séculos depois, e se
      Eva desatou a chorar. Depois, observou a sua Anita pela
                                                                      nos tornaram familiares, na infância, com seus trilhos fáceis de
primeira vez com olhos de ver. Era verdade! A cara da Anita estava
                                                                      serrim, lagos-espelhinhos onde nadavam patos, anacrónicas gentes
cheia de nódoas e a descamar-se, e quase totalmente careca.
                                                                      quotidianas: lavadeiras, vendedoras de castanhas e galinhas,
      Eva correu para a mãe.
                                                                      pastorzinhos de gado tresmalhado por veredas, cortadas por mudos
      — Achas — disse a soluçar — que no hospital das bonecas         riachos de papel prateado. Também não caminhavam por entre as
vão ser bons para a minha Anita?                                      sombras frondosas e frescas, com possibilidade de pousada em
      — Mas claro que sim! — sossegou-a a mãe.                        palácios e castelos, como quis a pintura e os seus mestres.
      — Então… Por mim, podes levá-la…                                Caminhavam pelo silêncio, com a sua fome e a sua sede, o calor do
      Logo na manhã seguinte, a mãe foi ao hospital das bonecas.      dia e o frio das noites, solitárias. Palmilhavam o oceano das dunas do
Era o único na cidade, pois já não havia muita gente que mandasse     deserto, à luz da lua, como se o fizessem pelo pó de todas as
consertar bonecas.                                                    clepsidras do tempo. E nem sequer dormiam num leito, irmanados
                                                                      pelo mesmo lençol de pedra, como o românico fixou os outros três,
      No hospital das bonecas, um homem examinou a Anita.
                                                                      mais conhecidos, com as suas coroazinhas na cabeça. Enrolavam-se
      — Tem pouco que se aproveite. Precisa de uma cabeça nova, e
                                                                      apenas no sono que os descansava do cansaço dos dias e lhes dava
os braços e as pernas também deviam ser substituídos.
                                                                      novas forças, que refaziam com a água e as tâmaras dos oásis, o pão e
     Apresentou à mãe diversas cabeças de bonecas, mas não havia      os figos secos que tinham trazido.
nenhuma que fosse igual à da Anita.
                                                                            Às vezes, quando o olho do sol se tornava ígneo ou paravam
      — Além disso — continuou o homem — a reparação custa            para uma refeição ou um descanso, discutiam a direcção que vinham a
mais do que uma boneca nova.                                          seguir.
      A mãe de Eva procurou em todas as lojas de brinquedos uma             — Não vos parece que a estrela aponta a Judeia? — perguntava
boneca que, pelo menos, fosse mais ou menos semelhante à antiga       um.
Anita. Acabou por comprar uma do mesmo tamanho e com os
                                                                           Os outros, incrédulos, pensavam secretamente se haveria
mesmos cabelos castanhos. No resto, a nova boneca era um pouco
                                                                      alguma coisa a esperar de um povo escravizado pelos romanos e
diferente, mas encantadora, e tinha uma cara que se podia lavar com

108                                                                   2
encolhiam os ombros.                                                       água.
       — A mim parece-me antes o Egipto o rumo indicado —                        Quando chegou a casa com as duas Anitas, a nova e a velha,
atrevia-se o mais novo. — E a vós?                                         Eva ainda estava no infantário. Mas Alex já tinha vindo da escola e
      — É ainda cedo para uma certeza, mas em breve o saberemos...         descobriu a caixa no cesto de compras da mãe.
      E retomavam a caminhada até pela noite dentro – a estrela                    — Aha! — disse. — Compras de Natal!
sempre adiante, lanterna que os não deixaria perder. Duas noites de              — Uma boneca nova para a Eva — respondeu a mãe. — Mas
névoa, porém, esconderam-na aos seus olhos, ansiosos. E então,             ela não pode saber. Tem de pensar que é a sua Anita.
desorientados, disputaram azedamente, perdidos e sem rumo.                         — Aha! — disse Alex. — Mentiras de Natal!
Todavia, na terceira noite, a estrela reapareceu, mais cheia de brilhos,           — Não sejas atrevido — disse a mãe. — É o melhor para a
como se no seu bojo houvesse mil reflexos de espelho. Quem,                Eva.
conhecendo a Luz, deseja continuar nas trevas? Nem sentiam o
                                                                                   — Deixa-a lá ficar com o careca tinhoso — disse Alex.
cansaço, a língua encortiçada pela sede, o olhar enceguecido pelas
tempestades de areia, o ventre cavado pela marcha e pelo magro                   A mãe arrumou a caixa com a nova boneca no armário da
alimento. A esperança, serpente de água, a esgueirar-se, fugidia, entre    roupa.
os juncos, tinha regressado aos seus corações.                                    — Estou contente por nos vermos finalmente livres daquela
      A noite do solstício aproximava-se e eles estavam certos de          coisa tão estragada.
que, se aquela Luz anunciava algum acontecimento, ele teria lugar na               Atirou a Alex o saco de plástico com a antiga boneca.
noite sagrada, pois o sol era a alegria e o pão da terra. E, ao mesmo            — Toma — disse. — Mete-a no contentor do lixo, mas lá
tempo, não podiam deixar de sentir uma certa inquietação em face           para o fundo.
daquela claridade que aumentava de brilho como a anunciar uma                      Alex pegou na boneca e saiu do quarto a assobiar baixinho.
Outra que apagaria a do próprio astro de que eram adoradores. Seria
                                                                                 Desde que a Anita desaparecera, Eva perguntava por ela todos
realmente aquela a Luz que tornaria o mundo de manhãs claras,
                                                                           os dias.
tardes ardentes e noites estreladas, mais perfeito, menos rasgado por
                                                                                 — A minha Anita ainda está no hospital? O homem é
ódios, guerras e injustiças? Quem podia ter a certeza? Do que parecia
                                                                           simpático com ela? Ela não tem saudades? Vou mesmo voltar a tê-la
não haver dúvidas era de que a estrela indicava a Judeia. Tinham de
                                                                           pelo Natal?
render-se à evidência. E nessa direcção seguiam agora, os pés já


                                                                      3                                                                         109
E a mãe respondia sempre:                                           feridos do caminho, cada vez mais áspero e pedregoso. Mas, mesmo
      — Sim, Eva. Com certeza, Eva. Não te preocupes, Eva.                forçando a marcha e lutando contra o tempo e o cansaço, a noite
                                                                          desejada encontrou-os à boca do Mar Morto e a estrela fazia jorrar a
      Para a noite de Natal, a mãe de Eva vestiu à nova boneca o
                                                                          sua cratera de brilhos mais para além, mais para o norte. Exaustos,
vestido da Anita e pô-la debaixo da árvore. Com o vestido vermelho,
                                                                          não podiam seguir adiante. Mas o cristal de miríades de luzeiros, que
achava a mãe, ficava mesmo parecida com a Anita.
                                                                          pareciam mais belos e mais luminosos no silêncio suspendido do ar
      Mas, quando estendeu a boneca a Eva e disse: — Ora vê como
                                                                          gelado, permitia-lhes procurarem uma gruta para se abrigarem e
ficou linda a tua Anita! — Eva não aceitou e cruzou as mãos atrás
                                                                          dormirem, antes de continuarem a jornada. E foi o que fizeram.
das costas.
                                                                                — Aqui! — gritou o mais jovem, que caminhava na dianteira.
      — Não! — gritou. — Essa não é a minha Anita!
                                                                                Os outros, mais trôpegos e cansados, juntaram-se-lhe.
      E olhava decepcionada para a nova boneca:
                                                                                Era uma caverna escurecida pelo fumo das fogueiras dos
      — Eu quero a minha Anita… a minha Anita! — e começou a
                                                                          pastores e que, embora vazia, parecia uma boca de forno, ainda
chorar baixinho sem parar.
                                                                          quente do bafo dos animais.
      A mãe não contara com isto e tentou consolar Eva. Mostrava-
                                                                                — Escutem! — disse um deles.
-lhe outras prendas, levava-a à árvore de Natal, mas Eva mantinha os
                                                                                 À medida que penetravam na gruta, ouviam vagidos, que
olhos baixos. Não queria ouvir nada nem ver prenda nenhuma.
                                                                          julgaram de animal ferido. Todavia, quando reacenderam o fogo,
      — Anita! — queixava-se a menina. — Onde puseram a minha
                                                                          deparou-se-lhes uma criança recém-nascida, nua e roxa, a chorar de
Anita?
                                                                          frio e fome.
      Disse então Alex:
                                                                                — Quem teria tido a coragem de a abandonar?! — indignou-se
       — Se ela não receber de volta a careca tinhosa, vai estragar-nos   o mais velho, que rasgou logo um pedaço de manto e a envolveu.
a festa de Natal.
                                                                                — Pobrezinha, como chora!
      — Mas… — balbuciou a mãe — tu deitaste…
                                                                                Os outros debruçaram-se também, carinhosos e solícitos, sobre
      — Achas? — perguntou Alex.                                          o pequeno fardo. Depois olharam-se, perplexos. Que fariam? Podiam
     Correu ao quarto e regressou com um saco de plástico que             aquecê-la, protegê-la – mas como alimentá-la?
meteu nas mãos de Eva.                                                          E foi então que ouviram, vindos do fundo da gruta, outros


110                                                                       4
vagidos.                                                                      — Anita! — gritou Eva, tirando do saco a velha boneca careca.
      — Ide ver! — pediu o mais idoso, que se tinha sentado perto             Alex sorria.
do lume, tentando aquecer a criança, enquanto a embalava,                     — E o que vais fazer agora à boneca nova?
desajeitadamente, nos seus braços, nodosos e velhos.
                                                                               — Esta? — perguntou Eva. — Vou dá-la a uma menina que
       Os outros juntaram uns gravetos secos e atearam-nos nos           eu não conheça.
tições, acesos, e com aquela débil claridade varreram as sombras. No           — A uma menina… — repetiu Alex. — Ah, claro. Ela não
fundo da gruta estava uma ovelha, de úberes cheios e dolorosos, que      pode ficar a saber que tens uma boneca careca fantástica!
lambia a sua cria morta. Era uma noite santa aquela. Ali estava a
                                                                                                                                 Tilde Michels
prova. E, contentes, arrastaram o animal até junto do companheiro e
da criança. Depois, com muito jeito e devagar, enquanto um segurava                                                          Anne Braun (org.)
o animal, o outro fazia pingar umas gotas de leite para a boquinha,                                                        Weihnachtsgeschichten
                                                                                                                  Würzburg, Arena Verlag, 1991
que em breve se tornou sôfrega. Pacientes, continuaram a tarefa e
viram-se recompensados. Aquecida e consolada, a criança aquietou-se.
O mago que a tinha nos braços, como um avô, e os outros
começaram a tratar da magra ceia e a assar, nas brasas, os figos secos
que lhes restavam.
      — Temos de regressar... — disse, então, o mais velho,
depondo a criança adormecida num recôncavo largo de rocha, não
longe do borralho.
      — Assim terá de ser — concordou logo outro.
      — Somos homens e sacerdotes e nunca seremos uma família
para a criança. Temos de nos apressar a entregá-la a uma mulher
piedosa que cuide dela e a eduque juntamente com os filhos.
      — Sim, ou a uma mulher estéril para quem seja a bênção
desejada — tornou o primeiro. — Mas isso resolveremos depois do
regresso. O urgente é regressarmos.

                                                                    5                                                                      111
— Regressar?! E a Luz que vínhamos a seguir? — protestou o
mais novo, para quem era doloroso, depois de tantos trabalhos e
canseiras, não levar a cabo o que se tinha proposto. — Desistimos
assim da Luz que nos guiou até aqui? Desistimos, agora, quando
estávamos já perto?
     — Compreendo o que sentes, irmão, também já fui novo...
Mas há a criança. Como poderemos abandoná-la?
      — Sim... há a criança — e também o mais novo, que tanto se
tinha esforçado por alimentá-la, se inclinou e sorriu para vê-la
dormir.
      — A Luz que vínhamos a seguir — ponderou ainda o mais
velho — não poderá ser ocultada e dela teremos notícia. Lembremo-
-nos de que a Luz ilumina e nem mesmo as trevas podem escondê-la
para sempre. O nosso caminho é o do regresso e será longo, pois
teremos de nos revezar com a criança nos braços, embora seja já uma
bênção termos a graça de um alimento que ainda sobrará para um
gole de sede nosso. Descansemos, agora, enquanto dorme.
      — Tens com certeza razão — concordou o mais novo, que
também não se sentia capaz de recusar a criança, presente da noite
santa e, quem sabe, daquela misteriosa Luz.
       O braseiro consumia-se, lento, perfumado pelo açúcar dos
figos assados nas brasas. A ovelha deitara-se junto da criança,
aninhando-a na sua lã, também ela apaziguada, como se tivesse
recuperado a sua cria. Uma paz despetalava-se no silêncio da noite e
caía sobre a gruta.
      Esta foi a história. Não adoraram o Messias, salvador, o que

6
devia chegar para que a paz e a justiça florissem até ao fim das luas, o
que teria compaixão do fraco e do pobre e havia de lançar a sua
bênção sobre todas as raças, povos e línguas. O anjo do Senhor não
lhes apareceu, nem foram envolvidos na sua claridade. Não ouviram                      O primeiro Natal do pardalito
cantar: «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa
vontade».                                                                         Aqui há coisa de três semanas, um pardal do Rossio, daqueles
      Mas tinham vivido o Amor, essência daquela doutrina que               que escolheram para poiso e morada os ramos das árvores que
ainda não tinha sido pregada e ninguém registara ainda. No mais             circundam a dita praça, começou assim a história que vamos contar:
íntimo dos seus corações tinham sentido aquela verdade: «O que                    — Companheiros pardais, pardalitos e pardalões, escutem
fizerdes ao mais pequeno e ao mais ínfimo a Mim o fareis». E                todos, a notícia é importante.
naquela noite, em que os animais falaram, as flores abriram o
                                                                                  Juntou-se a pardalada. Quem ali passe todas as tardes, à hora
esplendor das suas pétalas nas trevas como se as entregassem à luz do
                                                                            da saída dos empregos, não deve estranhar o arruído que vem das
meio-dia, e as pedras puderam deslocar-se para se dessedentarem nos
                                                                            árvores despidas de folha, mas cheias, cheiinhas de passarinhos
regatos mais próximos, adormeceram com a criança aconchegada
                                                                            tagarelas. As pessoas andam na sua vida muito apressadas, e nem
entre eles.
                                                                            sequer dão conta da chilreada doida dos pardais:
      Longe, a estrela fazia descer a sua cascata de fogo sobre Belém
                                                                                  “Chega-te para lá! Aí sou eu”
de Judá.
                                                                                  “Olha o pardalão a querer tomar-me o lugar...”.
                                                           Luísa Dacosta
                                                        Natal com Aleluia         “Ai que ainda te dou uma bicada...”.
                                                    Porto, Ed. ASA, 2002
                                                                                  “Não me provoques!”.
                                                                                  “Toma que é para saberes”.
                                                                                  “Deixa-me em paz”.
                                                                                  Mas voltemos à nossa história.
                                                                                  Oiçamos o que o pardal tem para dizer:
                                                                                 — Peço silêncio, se não calo-me — piava ele, tentando impor a
                                                                            ordem à assembleia.

                                                                       7                                                                   113
Demorou o seu tempo.
      Os pardais são uns espalhafatosos e uns gralhadores
incorrigíveis.
      — A notícia que vos trago importa a todos. Há bocadinho,
estava eu poisado num ramo baixo, e ouvi uma conversa entre um
cauteleiro e um engraxador. Sabem do que estavam a falar?
      — De futebol — arriscou um.
      — Nada disso. Estavam a falar da Lotaria do Natal, imaginem!
Portanto, o Natal está à porta, meus amigos.
      Espero que saibam o que isto significa...
      Os pardais mais jovens não sabiam, mas calcularam que devia
ser coisa grave, porque os pardais velhos, mesmo os mais gaiteiros e
risonhos, ficaram, subitamente, de bico caído. As expressões eram de
alarme e desalento:
      — Temos de mudar de vida.
      — Que desconforto!
      — Deviam ter-nos avisado.
      — O tempo não está para grandes voos.
      E cada qual debandou para o seu ramo.
       Neste ponto da história, parece-nos indispensável ouvir a fala
de um avô pardal para o seu neto que, tal como vocês, amigos
leitores, não percebera patavina do sucedido.
    — Na quadra do Natal, que é uma grande festa dos homens
— contava ele — multiplicam-se e crescem as luminárias por toda a


114
parte. Nesta praça, então nem queiras saber! Fica tudo cheio de luzes
                                                                     e luzinhas de muitas cores, amarelas, azuis, vermelhas, verdes, que
                                                                     nos põem tontos. Onde os homens encontram um sítio para
        “Não é possível!”, pensou o Pai Natal                        pendurar uma daquelas pêras de vidro que deita luz, penduram.
                                                                           — Deve ser bonito — observou o neto.
        Noite feliz! — cantava o Pai Natal.                                — Bonito talvez seja, mas não para nós. Aparecem fios por
      Atarefadamente, ia consultando listas de pedidos, embrulhava   toda a parte e, nos ramos das nossas árvores, estendem tantos, com as
brinquedos e punha as respectivas etiquetas.                         tais pêras penduradas, que ninguém se entende. Há dois anos,
                                                                     aproximei-me de uma dessas pêras, que se tinha partido, e apanhei
      De repente, interrompeu o trabalho e lançou um olhar ao
                                                                     um arrepio pelo corpo todo que julguei que me ficava de vez!
calendário.
                                                                          — Então para onde vão os pardais passar o Natal? —
      — Deus do céu! — exclamou. — Já é altura de ir para a Terra.
                                                                     perguntou o pardalito, atarantado.
A festa de Natal está próxima!
                                                                           — Saltinho aqui, saltinho acolá, alguns escondem-se numas
     Atou ainda um pequeno embrulho, compôs um laçarote e
                                                                     palmeiras, lá para cima, num sítio que os da cidade chamam Avenida.
encheu o grande saco.
                                                                     Outros conseguem chegar a um jardim, que me dizem ser muito
     — O dever chama! — murmurou. Pegou num gorro e pôs-se a
                                                                     tranquilo e saudável, um tal Jardim Botânico ou coisa parecida.
caminho da cidade.
                                                                           — E nós, avô?
      Tinha nevado e o mundo resplandecia. As árvores estavam
                                                                            — Nós ficamos. Podíamos ir para um telhado próximo, se não
envolvidas em mantas brancas, colchões de plumas estendiam-se
                                                                     andassem por lá os gatos que têm olhos mais perigosos do que todas
sobre os telhados e as ruas tinham-se coberto de algodão doce.
                                                                     as luminárias juntas. Olha, naturalmente, vamos para um sítio
       — Que beleza! — murmurou o Pai Natal a caminho da terra,
                                                                     sossegado que eu conheço, num buraco daquele edifício, ali, no cimo
ao passar por sobre os telhados, ofuscado pelo reflexo da neve.
                                                                     da praça. É um bocado desabrigado e pouco cómodo, mas vais poder
      Um raio de sol fez-lhe comichão no nariz. Soltou um grande     dizer, daqui em diante, que dormiste no Teatro Nacional...
espirro e aterrou de trambolhão no passeio.
                                                                            Assim que chegaram os electricistas com as escadas, os cabos e
        — Ai! — disse uma voz. — Não podes prestar atenção onde      os fios, a pardalada sumiu-se...
cais?

                                                                9                                                                     115
Numa destas noites, o pardalito deixou o avô a dormir com a                 O Pai Natal recompôs-se, esfregou os olhos. À sua frente
cabeça debaixo da asa, e foi dar uma voltinha pelos arredores do seu        estava alguém com roupas vermelhas, com uma barba branca e um
novo poiso. O Rossio silencioso e exuberantemente iluminado                 gorro comprido.
pareceu-lhe um jardim de sonho.                                                  — Desculpe — disse o Pai Natal. — Quem é o senhor? —
      — Tanta luz de tanta cor! — exclamou.                                 perguntou perplexo.
       Nesse momento, um avião sobrevoava a cidade, em direcção ao                 — Mas isso vê-se logo — respondeu o outro. — Eu sou um
aeroporto. No escuro do céu só se distinguia as luzes vermelhas da          Pai Natal. E tu estás no meu caminho. Aqui não há espaço para dois,
cauda.                                                                      por isso põe-te a andar.
      — Olha, lá vão duas luzes a fugir...                                         O Pai Natal meneava a cabeça. Não devia ter ouvido bem. Se
      E dispunha-se a voar atrás delas, se o avô não tivesse acordado,      calhar o tombo tinha sido muito grande.
entretanto.                                                                      — O que tem dentro do saco para as crianças, se posso
      — Para onde ias? — perguntou-lhe ele.                                 perguntar? — informou-se cautelosamente.
      O pardalito explicou. Comentário do velho pardal:                           — Vales para pequenas prendas — sorriu o outro
                                                                            ironicamente. — Para as pessoas irem ali à loja.
       — Que patetice! Ainda tens muito que aprender, pequeno, até
te transformares num pardalão sabido!                                             Apontou para uma montra onde se viam peluches, bonecas e
                                                                            brinquedos.
      É o que nós também achamos, ao cabo desta história.
                                                                                  Estendeu um papel a um rapazinho que passava e gritou:
                                                       António Torrado            — Venham, crianças, há aqui coisas para vocês!
                                                     www.historiadodia.pt
                                                                                  Mas a voz não soava alegre.
                                                                                 O sol passeava sobre os telhados. O Pai Natal continuou o seu
                                                                            caminho, passou por lojas de brinquedos e centros comerciais.
                                                                                 Da porta da igreja saía uma luz, e uma canção pairava no ar. O
                                                                            Pai Natal sentiu-se contente mas, ao erguer os olhos, lá estava outro.
                                                                            Tinha botas pesadas, uma argola no nariz e a fivela do cinto brilhava.
                                                                                  — É Natal, é Natal — cantava ele com voz rouca.

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— Desculpe, quem é o senhor? — perguntou o Pai Natal,
espantado.
      — Acha que sou o Coelhinho da Páscoa? — respondeu o
outro, com indignação.                                                                        Noite de Natal
      O Pai Natal assustou-se. Um segundo outro. Será que hoje
andaria a ver a dobrar?                                                        O amigo
     — E o que oferece às crianças? — perguntou delicadamente.
                                                                               Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à
     O outro bateu com o indicador na testa.
                                                                      volta.
     — Oferecer? Mas tu acreditas no Pai Natal? Eles já têm tudo!
                                                                             No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma
Ando a distribuir rebuçados da tosse para as pessoas provarem. E
                                                                      cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava.
comprarem. É assim que isto funciona. Queres um? — perguntou a
                                                                      Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao
uma menina que passava. — Tenho de continuar — disse depois, em
                                                                      grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se
tom apressado. — Ainda me faltam mais três ruas.
                                                                      existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e
     O Pai Natal meneou a cabeça.                                     mais complicada para o rei dos anões.
     — Incrível — disse.                                                     Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em
      O lusco-fusco empurrou o sol e deitou-se sobre a cidade. O      quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às
Pai Natal prosseguiu o seu caminho cantarolando. A neve rangia sob    vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e
os sapatos.                                                           que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas.
      De repente, deu de caras com um novo outro. Era pequeno e       Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu
franzino, e tremia de fazer dó.                                       jardim.
      — O que tem? — perguntou o Pai Natal atenciosamente. O               E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros
outro assoou o nariz.                                                 meninos. Só sabia estar sozinha.
      — Eu devia ser um Pai Natal — disse abatido — mas sou uma            Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de
rapariga e a minha voz é demasiado aguda.                             Outubro.
     — Isso é mau? — perguntou o Pai Natal.                                    Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um

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garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam            — As Raparigas Natais ainda não foram inventadas —
como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo   respondeu. Ergueu o casaco, puxou o gorro para as orelhas e
às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta.       desapareceu ao dobrar da esquina.
      — Ah! — disse ela. E pensou:                                            O Pai Natal franziu o sobrolho. Alguma coisa ali não estava
     «Parece um amigo. É exactamente igual a um amigo.» E do alto      certa. Foi para o jardim e sentou-se num banco. Um véu perpassou
do muro chamou-o:                                                      em frente da lua e começou a nevar. O Pai Natal apoiou a cabeça nas
                                                                       mãos, pensativo. Tantos Pais Natais! O que teria ali ainda a fazer?
      — Bom dia!
                                                                       Teria embrulhado as prendas erradas? Estariam os homens a precisar
      O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu:
                                                                       de outras prendas diferentes? Um pardal poisou-lhe no gorro. O Pai
      — Bom dia!                                                       Natal continuava a matutar e nem se deu conta.
      Ficaram os dois um momento calados.                                   — Descobri! — disse de repente. E fez-se novamente ao
      Depois Joana perguntou:                                          caminho.
      — Como é que te chamas?                                                Os flocos de neve dançavam no ar, as lanternas projectavam
      — Manuel — respondeu o garoto.                                   auréolas de luz sobre a rua, uma criança riu algures, uma bola de neve
      — Eu chamo-me Joana.                                             passou-lhe a sibilar rente à cara.

       E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio.             Na praça principal, um violinista de rua enregelava, bem como
Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto         o seu violino. Tinha um som débil e ofegante, como se fosse morrer
disse:                                                                 asfixiado a qualquer momento. O Pai Natal agarrou no saco e
                                                                       ofereceu ao violinista um som encantador. Este rejubilou.
      — O teu jardim é muito bonito.
                                                                             Numa cozinha, um rapazinho estava sentado, às voltas com os
      — É, vem ver.
                                                                       trabalhos de casa de Matemática. O Pai Natal pensou um pouco e
      Joana desceu do muro e foi abrir o portão.
                                                                       passou ao rapaz uma ideia por debaixo da porta. Ele pegou no lápis e
       E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por    começou a escrever com satisfação.
uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos.
                                                                             — Ora aí está! — murmurou o Pai Natal, atravessando a
Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a horta. E chamou os cães para
                                                                       estrada.
ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa da lenha onde dormia um gato.


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Perto do cruzamento, estava um polícia. Tinha os pés frios e       E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as flores.
parecia encontrar-se de mau-humor.                                            — É lindo, é lindo — dizia o rapazinho gravemente. — Aqui
      O Pai Natal assobiou-lhe uma musiquinha.                           — disse Joana — é o cedro. É aqui que eu brinco. E sentaram-se sob
       Os carros passavam a apitar e pareciam empurrar-se uns aos        a sombra redonda do cedro.
outros. Os condutores vociferavam. A todos o Pai Natal deu um                  A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de
pouco de tempo e uma pitada de paciência. Os travões deixaram de         frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que
chiar e de salpicar com lama de neve.                                    dava voltas no ar.
      — Estão a ver? Assim também se consegue — disse o Pai                    Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a
Natal, satisfeito.                                                       construir a casa do rei dos anões.
      Na casa de espectáculos encontrou uma cantora com dores de               Brincaram assim durante muito tempo.
garganta, que rouquejava desanimada. O Pai Natal tirou saúde do                Até que ao longe apitou uma fábrica.
saco. Acrescentou-lhe alguns sons agudos. Bem ia precisar deles, e ela
                                                                               — Meio-dia — disse o garoto — tenho de me ir embora.
experimentou-os todos imediatamente.
                                                                               — Onde é que tu moras?
       Numa casa, viu uma menina deitada de bruços em cima da
                                                                               — Além nos pinhais.
cama. À sua frente tinha uma lista de prendas, mas não sabia o que
pedir. Roía a ponta do lápis e olhava com ar triste para o ar.                 — É lá a tua casa?

       Se calhar, ela já tem tudo — pensou o Pai Natal — mas ainda             — É, mas não é bem uma casa.
lhe falta alguma coisa.                                                        — Então?
      E a alegria de partilhar com os outros inundou o quarto.                 — O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A
       Em seguida, começou a cantar Cai neve, cai neve… porque ela       minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma
estava de facto a cair e encantava a cidade.                             casa.

      — É bom quando podemos ser úteis — concluiu o Pai Natal,                 — Mas à noite onde é que dormes?
esfregando as mãos.                                                           — O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem
       Viu como os outros faziam o seu trabalho mal-humorados,           uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali
distribuindo vales e oferecendo bombons, e a todos enviou boa            também.


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— E onde é que brincas?                                           disposição.
       — Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da                De regresso a casa, acendeu as luzes de uma árvore de Natal.
cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas       Pôs o seu gorro num boneco de neve, depois deu aos pássaros das
vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no    suas bolachinhas de Natal. O saco das prendas, tornou a levá-lo
pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as       consigo.
flores. Pode-se brincar em toda a parte.                                     — Noite feliz! Noite feliz! — cantarolava baixinho. — Talvez
      — Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para           venham a ser precisas no próximo ano!
brincar comigo.                                                               Então, brilhou no céu a Estrela de Natal.
      E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua.                                                                   Sigrid Laube
Joana esperava-o empoleirada em cima do muro.                                                                “Erstaunlich”, sagt der Weihnachtsmann
                                                                                                                 Wien, Annette Betz Verlag, 2003
      Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda                                                             Texto adaptado
do cedro.
      E foi assim que Joana encontrou um amigo.
      Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas
quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os
pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão
que Joana ia buscar à cozinha.

      A festa

     Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que
chegou o Natal.
      E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os
seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu
do quarto e desceu a escada.
      Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande;

120                                                                     14
eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que
                                                                           tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de
                                                                           jantar ver se já lá estavam os copos.
                             Bolo-rei                                             Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande
                                                                           armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse
      Todos os anos, quando os velhos Reis Magos acabam de                 armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma
atravessar a pequena estrada de areia que se esboça entre caminhos de      grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior
musgo e lagos feitos de bocados de espelho partido; quando a estrela       de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fechadas
de prata que se suspende entre os dois exemplares de “A Paleta e o         muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os
Mundo” de Mário Dionísio se recolhe para regressar à velha caixa de        dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas,
papelão, com trinta anos de viagens, cheia de bocados de jornal            cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de
amachucados que ainda guardam notícias de dias que já foram e onde         cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um
se embrulham os cordeirinhos, os pastores, as oferendas várias que o       grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.
Menino Jesus recebeu, apesar de já lhe faltar a mãozinha direita que              Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não
alguém partiu em excesso de limpeza; todos os anos, dizia, recordo a       tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse
história que o Fernando Midões me contou, certa tarde em que               espreitar entre as duas portas.
misturámos poemas com lágrimas.                                                   Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do
      De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus     armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes
e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das         tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a
senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista     tilintar era a música das festas.
engomada, cheias de silêncios e reverências.                                      Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam,
       Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje              tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma
conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar-           fonte de montanha do que do fundo de um armário. As velas estavam
-se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das              acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas
anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os   maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e
gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do            aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma


                                                                     15                                                                       121
festa. Era o Natal.                                                      rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à
      Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de      noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora.
Natal as estrelas são diferentes.                                               Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de
       Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio,    gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã
mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das     vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só
cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como           ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas
rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.                  travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em
                                                                         lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as
      E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e
                                                                         velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas,
redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras
                                                                         pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor
do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas
                                                                         ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o
coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas
                                                                         brilho dos copos de cristal.
no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.
                                                                                Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava
     Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava
                                                                         aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a
em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e
                                                                         propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e
luminoso, sem nenhuma sombra.
                                                                         felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de
      Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito
                                                                         renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e
tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a
                                                                         com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à
atravessar o corredor.
                                                                         distribuição nos pratinhos de sobremesa.
      — Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então
                                                                                — Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a
Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa
                                                                         fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem!
extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas
                                                                                E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto
facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo.
                                                                         ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado
Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.
                                                                         do paladar, se comeu a sobremesa.
      A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os
                                                                               A prenda calhou à criada.
dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos
                                                                               — Que sorte! Mostre lá!

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— Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade.           perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.
Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica.                            — Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.
         — E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo?               A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os
         — Come que está bom e fofinho!                                     perus.
      Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em                          — O que é? — perguntou ela.
negativas.                                                                           — Que presentes é que achas que eu vou ter?
      — Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras:                         — Não sei — disse Gertrudes —, não posso adivinhar.
queres mais um bocadinho de bolo?                                                  Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e
         — Ao menos acaba esse!                                             por isso continuou a fazer perguntas.
         — Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá.                                     — E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?
      Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia                  — Qual amigo? — disse a cozinheira.
adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe.                      — O Manuel.
Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para
                                                                                     — O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.
cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma
noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às                          — Não vai ter presentes nenhuns!?
senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando!                                         — Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.
      Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em                    — Mas porquê, Gertrudes?
bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão.                                          — Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
         — Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu?                              — Isso não pode ser, Gertrudes.
         — Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é?              — Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa
         Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada,          do forno.
ralha:                                                                            Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido
      — Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos               que era «assim mesmo».
como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma                  Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as
palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te           manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com

                                                                       17                                                                      123
a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era               tenho dado? Se o teu pai fosse vivo…
cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete         Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz,
da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se          a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a
passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de          boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez:
toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das                — É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens
pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os     dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele.
bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de
                                                                                 E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia,
legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e
                                                                           quente ainda, do esconderijo em que estivera.
os homens.
                                                                                  E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de
      Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma
                                                                           mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere
mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.
                                                                           viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo,
      De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:         sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que
      — Já chegaram os primos.                                             a mãe o aconchegou junto de si.
      Então Joana foi ter com os primos.                                         Sem palavras, mãe.
      Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram                    Sem palavras.
todos para a mesa.                                                                                                                 Maria Rosa Colaço
      Tinha começado a festa do Natal.                                                                            Viagem com Homem dentro (adaptação)
                                                                                                                      Leiria, Editorial Diferença, 1998
      Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da
mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as
pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom
Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E
vendo tudo isto Joana pensava:
       — Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma
festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com
certeza que ele também tem presentes.


124                                                                        18
E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão
                                                                        alegre como antes.
                                                                              O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.
               A manhã do dia de Natal                                        Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os
                                                                        perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os
       Rob tinha quinze anos e vivia numa quinta. Todas as              ananases.
madrugadas se arrastava para fora da cama para ajudar a mungir. Às            No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a
vezes, sentia que o esforço era demasiado.                              porta e entraram na sala.
     Rob gostava do pai. Não sabia até que ponto, quando um dia,              As luzes eléctricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do
um pouco antes do Natal, ouviu o pai a dizer à mãe:                     pinheiro.
      — Mary, custa-me muito chamar o Rob de manhã. Ele está a                Joana tinha nove anos e já tinha visto nove vezes a árvore do
crescer muito depressa e precisa de dormir. Gostava de conseguir        Natal. Mas era sempre como se fosse a primeira vez. Da árvore nascia
desembaraçar-me sozinho.                                                um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como
      — Mas não consegues, Adam.                                        se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o
      A voz da mãe era determinada.                                     Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se
                                                                        carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que,
      — Eu sei — disse o pai lentamente — mas a verdade é que me
                                                                        numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.
custa mesmo ter de o chamar.
                                                                               E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São
      Ao ouvir estas palavras, Rob sentiu algo a mexer dentro dele: o
                                                                        José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que
pai amava-o! Nunca antes pensara nisso. Passou a levantar-se mais
                                                                        jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se
depressa. O sono fazia-o tropeçar e vestia a roupa com os olhos bem
                                                                        ouvia.
fechados. Mas, mesmo assim, levantava-se.
                                                                              Joana olhava, olhava, olhava.
      Na véspera de Natal do ano em que fazia quinze anos, estava
deitado a olhar pela janela do sótão e a desejar ter um melhor                Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.
presente para o pai do que uma gravata de dez cêntimos comprada na            Um dos primos puxou-a por um braço.
loja.                                                                         — Joana, ali estão os teus presentes.


                                                                  19                                                                    125
Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a         Lá fora, as estrelas brilhavam, e havia uma em particular que
bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas.       lhe parecia ser a Estrela de Belém.
      À sua volta todos riam e conversavam.                                — Pai — perguntara uma vez — o que é um estábulo?
       Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham              — É apenas um celeiro como o nosso — respondera o pai.
tido, falando ao mesmo tempo.                                               Então Jesus nascera num celeiro, e fora para um celeiro que os
      E Joana pensava:                                               pastores e os reis magos se tinham dirigido, com os seus presentes de
      — Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.                     Natal.
      E a festa do Natal continuava.                                       Ficou siderado com a ideia. Por que não dar um presente
                                                                     especial ao pai? Podia levantar-se cedo, mais cedo do que as quatro
      As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a
                                                                     horas, e esgueirar-se para o celeiro para mungir. Faria tudo – mungir
conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar.
                                                                     e limpar – sozinho. Quando o pai chegasse, veria tudo já feito. E
      Até que alguém disse:
                                                                     saberia quem o fizera.
      — São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são
                                                                            Nessa noite, deve ter acordado umas vinte vezes. Às três menos
horas de as crianças se irem deitar.
                                                                     um quarto, levantou-se e vestiu-se. Desceu silenciosamente as
      Então as pessoas começaram a sair.                             escadas, tendo especial cuidado com as tábuas que rangiam, e saiu.
      O pai e a mãe de Joana também saíram.                          Uma grande estrela cor de ouro avermelhado pairava por cima do
      — Boa noite, minha querida. Bom Natal — disseram eles.         celeiro. As vacas olhavam-no, sonolentas e surpreendidas.
      E a porta fechou-se.                                                 Nunca antes mungira sozinho, mas parecia fácil. Não parava de
      Daí a um instante saíram as criadas.                           pensar na surpresa que o pai teria. Sorria e mungia com segurança,
                                                                     deitando para a selha dois fortes jactos, espumosos e perfumados. As
      A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa
                                                                     vacas estavam surpreendidas mas anuíam. Era a primeira vez que se
do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar
                                                                     portavam bem, como se soubessem que era Natal.
as panelas.
                                                                           A tarefa foi desempenhada com mais facilidade do que
      E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a
                                                                     habitualmente. Pela primeira vez, mungir não era penoso. Era algo de
Gertrudes.
                                                                     diferente: um presente para um pai que o amava.
      — Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.


126                                                                  20
De volta ao quarto, só teve tempo de tirar a roupa no escuro e        — Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um
de saltar para a cama, porque já ouvia o pai a levantar-se. Cobriu a    momento. Depois perguntou:
cabeça com os lençóis para silenciar a respiração ofegante. A porta           — Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?
abriu-se.                                                                     — O que é que eu disse?
    — Rob! — chamou o pai. — Temos de nos levantar, filho,                    — Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque
mesmo sendo Natal.                                                      os pobres não têm presentes.
      — ‘Tá bem — disse com sono.                                             — Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve
      — Vou indo — disse o pai. — Vou pondo as coisas a andar.          presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas.
      A porta fechou-se e Rob ficou quieto, a rir com os seus botões.   Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.
Os minutos nunca mais passavam – dez, quinze, não sabia quantos –             — Mas então o Natal dele como foi?
até que ouviu de novo os passos do pai.                                       — Foi como nos outros dias.
      — Rob!
                                                                              — E como é nos outros dias?
      — Sim, Pai?
                                                                              — Uma sopa e um bocado de pão.
      O pai estava a rir, um riso esquisito, soluçante.
                                                                              — Gertrudes, isso é verdade?
      — Pensavas que me enganavas, não?
                                                                             — Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a
      — É por ser Natal, Pai!                                           menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.
      O pai sentou-se na cama e apertou-o contra si, num grande               — Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.
abraço. Estava escuro e não conseguiam ver os rostos um do outro.
                                                                              Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de
      — Agradeço-te, filho. Nunca ninguém fez coisa mais bonita…        Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E
      — Oh, Pai.                                                        pensava:
      Não sabia o que dizer. O seu coração transbordava de amor.              — Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal
      — Bom, parece que posso voltar para a cama — disse o pai,         e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas
volvido um momento. — Espera… estás a ouvir? Os pequeninos já           ao Manuel ninguém deu nada.
estão a acordar. Agora que penso nisso, nunca vos vi a olhar pela             E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se


                                                                   21                                                                       127
a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite    primeira vez para a árvore de Natal. Estava sempre no celeiro. Anda
de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de         daí!
animais.                                                                       Rob levantou-se, vestiu-se de novo e desceram para ver a árvore
      «Que frio lá deve estar!», pensava ela.                            de Natal. Depressa o Sol tomou o lugar da estrela. Oh, que Natal
      «Que escuro lá deve estar!», pensava ela.                          aquele, e como o seu coração quase rebentou de timidez e alegria
                                                                         quando o pai contou à mãe e aos mais novos que ele, Rob, se tinha
      «Que triste lá deve estar!», pensava.
                                                                         levantado sozinho.
       E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde
                                                                                — O melhor presente de Natal que alguma vez tive, e hei-de
Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma
                                                                         recordá-lo, meu filho, todos os anos na manhã de Natal, enquanto
vaca e de um burro.
                                                                         for vivo.
      — Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois
suspirou e pensou:                                                                                                                    Pearl S. Buck

      «Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»                                                M. Clark; E. Briggs; C. Passmore
      Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a                                                   Lighting candles in the dark
                                                                                                                         Philadelphia, FGC, 2001
rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã
seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.
      Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze
pancadas da meia-noite.
      «Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora,
esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»
      Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na
bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a
boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.
      Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por
um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as
panelas e não a ouviu.

128                                                                      22
Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana
                                                                       abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.
                                                                             Depois atravessou o jardim. O Alex e a Ghiribita ladraram.
                   A batalha de Natal                                        — Sou eu, sou eu — disse Joana.
                                                                             E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.
      — Só mais seis dias — constata Neli, tentando em seguida               Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.
assobiar Noite Feliz.
      — Ainda seis dias — repete a mãe pensativamente.                       A estrela
      A voz não soa alegre. Após uma curta pausa, prossegue,
                                                                             Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar
suspirando. — Se tudo tivesse já passado!
                                                                       para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas
      Com o assobio suspenso no ar, Neli olha para a mãe com ar        enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua
estupefacto.                                                           parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém.
      — Então não estás contente?                                      Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus
      — Sim, mas já estou pelos cabelos com esta agitação toda!        jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas,
      Como Neli não tem aulas à tarde, vai patinar com uma amiga e,    só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a
mais lá para a noite, dirige-se ao supermercado onde a mãe trabalha.   olhavam e a ouviam como pessoas.
Há tanto movimento que mais parece estar-se numa colmeia. A mãe              «Tenho medo», pensou ela.
encontra-se sentada numa cadeira giratória diante de uma das seis            Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.
caixas registadoras. Os produtos chegam-lhe num tapete rolante e,            Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um
enquanto a mão direita está pousada no teclado e marca os números,     atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos,
a mão esquerda roda os produtos de forma a poder ler os números, e,    planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-
em seguida, coloca-os, produto a produto, no carrinho de compras.      se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante.
Quando acaba de marcar tudo, a mão direita carrega na tecla do total
                                                                              O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-
e rasga o talão, enquanto a esquerda afasta o carro cheio e puxa o
                                                                       -se a massa escura dos pinhais.
próximo, vazio, para junto dela.
                                                                             «Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.

                                                                  23                                                                      129
Mas continuou a caminhar.                                              — Que bem que fazes isso — dissera-lhe Neli uma vez. — Eu
      Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no             faria tudo devagar, assim: tipp… tipp … … e, ainda por cima,
descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara      metade saía mal.
como uma faca.                                                              — Ora — dissera a mãe a rir. — É uma questão de treino.
      «Tenho frio», pensou Joana.                                     Quando comecei, também não era assim tão despachada. Não
                                                                      encontrava a etiqueta com o preço, e muitas vezes carregava nas teclas
      Mas continuou a caminhar.
                                                                      erradas e as pessoas resmungavam porque tinham de esperar. Mas
      À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando
                                                                      agora já quase consigo fazer isto automaticamente.
maior. Até que ficou enorme.
                                                                            — Como um robô! — Neli riu-se.
      Joana parou um instante no meio dos campos.
                                                                             Um robô como mãe? Nunca teria dor de cabeça, nem à noite
      «Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.
                                                                      estaria tão cansada. Mas um robô não tem coração. Por isso, Neli
      E olhava em todas as direcções à procura de um rasto.           prefere a mãe tal como é, mesmo quando certas noites quase nem
       Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia    consegue falar de tão cansada que está!
rasto e à sua frente não havia rasto.                                       Só mais quatro dias.
      «Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.             Só mais três.
      E levantou a cabeça.                                                  As filas nas caixas eram cada vez mais longas. As pessoas
      Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.        abasteciam-se de comida como se o Natal durasse meio ano. Com um
      «Esta estrela parece um amigo», pensou ela.                     ruído sibilante, as portas automáticas abriam-se e fechavam-se,
      E começou a seguir a estrela.                                   abriam-se e fechavam-se. A mãe sentia nas costas a corrente de ar e os
                                                                      cartões pendurados no tecto balançavam de um lado para o outro.
      Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras
fizeram uma roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e         Um sino de Natal, por cima da cabeça da mãe tinha escrito a
azuis, e dançavam com grandes gestos. E a brisa passava entre as      vermelho: PROMOÇÃO: Bombons, 250 gr, a preço especial.
agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar frases                        Próximo, balançava um anjo de papel com uma faixa nas mãos,
incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras      como nas igrejas, mas onde não estava escrito Paz na terra aos
Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para    homens de boa vontade, mas sim Fiambre para o Natal a 15,80/Kg.


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Os altifalantes pingavam música de Natal:                       além de todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a
     Noite feliz…                                                    estrela.
     Cabeça de anho                                                        Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.
     Noite feliz…                                                          «Será um lobo?», pensou.
     Café suave                                                           Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que
                                                                     viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha
     Papel higiénico de três folhas
                                                                     caminhando ao seu encontro.
     O Senhor …
                                                                           «Será um ladrão?», pensou.
     Lenços com monograma
                                                                           Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha
     Mostarda
                                                                     na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto
     Nasceu em Belém…                                                azul todo bordado de diamantes.
      A mãe gemia e, com um movimento rápido, limpava o suor do            — Boa noite — disse Joana.
lábio com as costas da mão. Os clientes, impacientes, esperavam,
                                                                           — Boa noite — disse o rei. — Como te chamas?
apoiando-se ora numa, ora na outra perna. De olhar ausente, nem
                                                                           — Eu, Joana — disse ela.
olhavam para a senhora da caixa, pensando no regresso com os sacos
pesados, o eléctrico cheio.                                                — Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou:
     Uff!                                                                  — Onde vais sozinha a esta hora da noite?
     Só mais três dias, e acaba tudo.                                      — Vou com a estrela — disse ela.
      — Vou fazer um jantar como o do ano passado — disse à                 — Também eu — disse o rei —, também eu vou com a
noite a mãe, virando-se para a Neli — Peru assado com a laranja e    estrela.
batatas assadas e, como sobremesa, rabanadas e bolo-rei.                   E juntos seguiram através do pinhal.
      No dia 24 de Dezembro, a loja só estava aberta até às quatro        E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as
horas da tarde. Em seguida, os empregados podiam comprar, com um     sombras da noite.
desconto de 15%, os produtos que sobravam. A mãe de Neli achava            Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros
que valia a pena, por isso tinha guardado as compras maiores para    caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e


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safiras.                                                                  essa altura: uma pasta escolar para a Neli, uma boneca, lápis de cor,
       — Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a              um anoraque para o pai, a comida para a ceia de Natal.
estrela.                                                                        Na sala do pessoal, havia um lanche para todos os empregados.
      — Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela                  — A batalha de Natal foi mais uma vez vencida — repetia o
e o meu nome é Gaspar.                                                    chefe do pessoal. Dizia, depois, mais umas palavras elogiosas e eram
      E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana         servidos pãezinhos com fiambre e um copo de vinho.
ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as                  Após o lanche, a mãe de Neli deixou ficar os gordos sacos de
sombras azuis e os pinheiros escuros.                                     compras esquecidos na sala do pessoal. Só reparou quando já estava
     Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía            na paragem do autocarro. “As minhas prendas! Todas aquelas coisas
um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta.            boas para a ceia!” — pensou assustada.
      — Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos                     Mas a loja já estava fechada e, antes do dia 27, não se voltava a
com a estrela.                                                            lá entrar. Foi de mãos vazias que chegou a casa.
     — Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o                       Nessa noite, apesar de tudo, festejaram o Natal. O pai acendeu
meu nome é Baltasar.                                                      as velas da árvore de Natal e Neli recitou um poema. Só se lembrou
                                                                          das duas primeiras estrofes e depois encravou, mas a mãe achou-o
       E juntos seguiram os quatro através da noite.
                                                                          muito bonito e o pai nem reparou que ainda continuava. O jantar foi
       No chão, os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa
                                                                          mais curto do que o planeado. Por sorte, a mãe já tinha comprado o
murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados dos três
                                                                          assado e havia batatas em casa, mas não houve entrada nem
reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis.
                                                                          sobremesa. Trincaram simplesmente nozes e comeram maçãs.
      Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E
                                                                                — Assim, não fico com o estômago tão pesado como no ano
sobre essa claridade a estrela parou.
                                                                          passado — disse o pai. — Comidas pesadas não me assentam bem.
       E continuaram a caminhar.
                                                                                Também não havia muito que desembrulhar.
       Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana
                                                                                Por isso, sobrou tempo. Muito tempo.
viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem
                                                                               Neli foi buscar o jogo Memory que recebera no Natal anterior.
tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos
                                                                          Durante o ano inteiro, esperara, em vão, todos os domingos, que
anjos o iluminava.

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alguém tivesse tempo para jogar com ela.                                          E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas
      Agora, os pais tinham tempo.                                         entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.
      O pai nunca tinha jogado Memory. Ao fim de algum tempo,                    Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo
Neli já tinha encontrado sete pares de cartas, a mãe três, e o pai, que    não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.
geralmente quer ganhar sempre, procurava constantemente no sítio                E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar.
errado.                                                                         Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.
      Tentava ajudar-se com truques, pondo, sem ninguém dar                     — Ah — disse Joana — aqui é como no presépio!
conta, migalhinhas de pão em cima das cartas que tinha decorado, ou             — Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio.
pousava as mãos na mesa, de tal forma que o polegar indicava a
                                                                                Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.
direcção em que estava uma determinada carta. Neli descobriu-lhe a
jogada. Jogaram mais duas ou três vezes e o pai não se zangava por                                               Sophia de Mello Breyner Andresen
perder sempre. Depois, ainda jogaram o jogo do assalto.                                                                           A Noite de Natal
                                                                                                                         Porto, Figueirinhas, 1989
      À meia-noite, o pai apagou a luz e ficaram a olhar pela janela. A
neve reflectia uma luz clara e ouviam-se os sinos a tocar.
       — A esta hora, há quase dois mil anos, nasceu Jesus — disse a
mãe, e Neli reparou como ela afinal sempre estava contente por ser
Natal.
      Ao ir para a cama, Neli disse:
      — Este foi um Natal muito bonito.
       — A sério? — perguntou a mãe admirada. — Mas não houve
ceia nem prendas quase nenhumas.
      — Mas houve muito tempo — respondeu Neli.
                                                      Jutta Modler (org)
                                                          Brücken Bauen
                                                     Wien, Herder, 1987



                                                                     27                                                                       133
Histórias de Natal
O Viajante                                                                  O bolo-rei

       Quando Eva entrou na Arca, apenas da estrela da tarde restava             O bolo-rei tomava-se muito a sério. Não havia discussão: ele
um pouco de luz. Havia muito já que os largos horizontes da planície      era o rei dos bolos.
se tinham diluído e uma noite imensa parecia anunciar o final dos               Como tal, quando lhe caiu uma passa da coroa, ordenou ao
tempos. Um cheiro sufocante e húmido inundava todo o espaço,              bolo-inglês:
enquanto, lentamente, o caminho se fazia, num rio sem margens que               — Traz-me essa passa de volta.
o assinalassem. Seres escuros, de rostos invisíveis, embrulhados nos
                                                                                O bolo-inglês fez-se desentendido e respondeu:
xailes de merino ou grossos capotes, dormitavam, as cabeças
                                                                                — Sorry! I don’t understand...
oscilando, uma das mãos segurando a asa das cestas donde emergia o
pescoço dos patos e perús que, daí a horas, seriam sacrificados no              O que queria dizer, na língua dele, que pedia desculpa, mas não
altar das tradições natalícias.                                           tinha entendido.

      Eva sentou-se ao lado do timoneiro que tentava vislumbrar o             Então, o bolo-rei virou-se para um bolo de natas e deu a
rumo para lá dos grossos cordões de chuva ou, um só que fosse, dos        mesma ordem. Queria, outra vez, a passa a ornamentar-lhe a coroa.
antiquíssimos sinais que há anos lhe serviam de bússola e estrela do            O bolo de natas tinha uma fala atrapalhada, por causa do
norte: o perfil do monte da barra azul, o moinho sem velas, a oliveira    excesso de natas.
com uma cruz pintada a cal onde Justa se enforcara, a velha ponte               — Flá, plefe, pflu, pfló...
romana, a capelinha, se nesta viagem houvesse dados, referências e              Não se percebia nada.
aquela chuva diluviana não ocultasse tudo num manto de desolação.
                                                                               O bolo-rei, muito irritado, ordenou o mesmo ao bolo de
      Pelo espelho lateral, Eva tentava descobrir o rosto dos viajantes   amêndoa, que lhe respondeu:
mas, só as cabeças das aves saindo das cestas vermelhas, se agitavam
                                                                                — Também a mim me caiu uma amêndoa torrada e não me
em gritos intervalados. De repente, um chiar de travões sacudiu a
                                                                          queixo.
Arca e, na claridade difusa dos faróis, recortado de encontro ao vidro,

                                                                    29                                                                     135
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Histórias de Natal

  • 1. — Encontrámos tantos homens esfarrapados, tristes e pacientes que não soubemos distinguir aquele que tu procuras. Por isso, na manhã seguinte, o rei Baltasar, tendo despido os seus vestidos de púrpura, envolveu-se num manto de estamenha e saiu sozinho do palácio para procurar o homem. Desceu pelas ruelas estreitas da encosta, e, longe das grandes avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das Histórias palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio. Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar de cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam carroças como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam grilhetas nos pés, viu os que deslizavam rente às paredes, silenciosos Natal como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam. Viu os que estavam sós, imóveis, encostados aos muros, atónitos, interrogando, para além da voz rouca das ruas, o silêncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta do silêncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas águas sujas do rio. Viu os que tinham a cara cor de trapo e as mãos feitas de cinza, cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paciência, o país da desolação sem margens, o império dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a Pátria deserdada, o fundo do mar da cidade. E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-lhes: — Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as reservas acumuladas nos armazéns e nos celeiros. E reparti tudo entre os esfomeados e os pedintes. 103
  • 2. Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar. E voltaram passados três dias, e responderam: — Os teus tesoiros não chegam para resgatar os escravos, e as reservas dos teus armazéns não chegam para saciar os esfomeados. Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade. Se cumpríssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo é contrário ao bem do reino. E o rei lhes respondeu: — Procuro outra lei e procuro outro reino. Então os ministros retiraram-se, murmurando entre si: — Vemos que ele nos trai. Na manhã seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os deuses. E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar: Eu sou o deus dos poderosos e àqueles que me imploram concedo a força e o domínio, eles nunca serão vencidos e serão temidos como deuses. Seguiu o rei para o segundo altar e leu: Eu sou a deusa da terra fértil e àqueles que me veneram concedo o vigor, a abundância e a fecundidade e eles serão belos e felizes como deuses. Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu: Eu sou o deus da sabedoria e àqueles que me veneram concedo o espírito ágil e subtil, a inteligência clara e a ciência dos números. Eles dominarão os ofícios e as artes, eles se orgulharão como deuses das obras que criaram. 104
  • 3. E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sacerdotes: — Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore. Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam: — Desse deus nada sabemos. Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse: — Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir? A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria. E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira. Sophia de Mello Andresen Contos exemplares Porto, Figueirinhas, 1997 105
  • 5. Os Magos que não chegaram a Belém A boneca Há sempre os que conseguem e os outros. Os que ficam pelo — Não leves sempre essa boneca suja contigo para a cama — caminho. Com os magos aconteceu o mesmo. Só três – os reis disse a mãe de Eva. Baltasar, Melchior e Gaspar – chegaram a Belém e deixaram os seus — A minha Anita não é nenhuma boneca suja. — respondeu presentes, de ouro, incenso e mirra, aos pés do Menino. Mas os Eva — A minha Anita é muito querida. magos, sacerdotes que estudavam o céu e os seus astros, eram muitos. — Mas está muito feia — continuou a mãe. — Olha só para a E outros se puseram a caminho, seguindo aquela estrela, súbito, cara e para os cabelos dela! nascida no firmamento e mais brilhante do que todas as outras que Quando se olha para a boneca Anita, assim, sem se gostar dela, aqueciam a noite. tem de se admitir. Bonita, não é. As bochechas estão cinzentas e a Desses, três sacerdotes da Caldeia, adoradores do sol e da esboroar-se de tantos beijos e tantas lavagens. Já não tem natureza, porque dela se sentiam dependentes, decidiram também propriamente um nariz, apenas uma saliência suja, e dos cabelos partir juntos para melhor enfrentarem os perigos de uma viagem, sem castanhos já só ficou um pequeno tufo de cabelos ralos. estrada conhecida, na esperança de alcançarem a Luz que aquele sinal Isto não incomodava Eva, mas a mãe dizia-lhe constantemente: anunciava. Não eram reis, nem tinham coroa, nem sequer montada de — Não queres pedir uma boneca nova pelo Natal? — camelo ou burrinho manso. Também não levavam presentes, apenas a perguntava-lhe. ansiedade dos seus corações. E, confiantes, abandonaram as margens verdes do Eufrates, o trilho conhecido das caravanas e, guiados pela Eva apertava a Anita contra si e dizia: estrela, puseram-se a seguir a liberdade dos caminhos, crentes de que — Não! a força da esperança e da fé (não conheciam ainda o Amor) lhes — Tenho outra ideia — disse a mãe. — Vamos levar a Anita a permitiria chegar. Onde? Não sabiam. Mas lá, junto daquela Luz que um hospital de bonecas e lá põem-lhe cabelo novo e outro nariz. havia de transformar o mundo, de águas transparentes, fulvos Eva defendia-se. Não queria entregar a Anita. desertos varridos pelo vento e frescos oásis, que reflectiam o azul Mas, certo dia, Alex, o irmão mais velho, disse uma coisa feia, 1 107
  • 6. uma coisa muito má. Disse: entre o verde nas palmeiras, no paraíso, aonde os homens ansiavam — A tua boneca é um careca tinhoso! regressar. E nessa esperança caminhavam. Não por carreiros atapetados pelo musgo dos presépios, que vieram séculos depois, e se Eva desatou a chorar. Depois, observou a sua Anita pela nos tornaram familiares, na infância, com seus trilhos fáceis de primeira vez com olhos de ver. Era verdade! A cara da Anita estava serrim, lagos-espelhinhos onde nadavam patos, anacrónicas gentes cheia de nódoas e a descamar-se, e quase totalmente careca. quotidianas: lavadeiras, vendedoras de castanhas e galinhas, Eva correu para a mãe. pastorzinhos de gado tresmalhado por veredas, cortadas por mudos — Achas — disse a soluçar — que no hospital das bonecas riachos de papel prateado. Também não caminhavam por entre as vão ser bons para a minha Anita? sombras frondosas e frescas, com possibilidade de pousada em — Mas claro que sim! — sossegou-a a mãe. palácios e castelos, como quis a pintura e os seus mestres. — Então… Por mim, podes levá-la… Caminhavam pelo silêncio, com a sua fome e a sua sede, o calor do Logo na manhã seguinte, a mãe foi ao hospital das bonecas. dia e o frio das noites, solitárias. Palmilhavam o oceano das dunas do Era o único na cidade, pois já não havia muita gente que mandasse deserto, à luz da lua, como se o fizessem pelo pó de todas as consertar bonecas. clepsidras do tempo. E nem sequer dormiam num leito, irmanados pelo mesmo lençol de pedra, como o românico fixou os outros três, No hospital das bonecas, um homem examinou a Anita. mais conhecidos, com as suas coroazinhas na cabeça. Enrolavam-se — Tem pouco que se aproveite. Precisa de uma cabeça nova, e apenas no sono que os descansava do cansaço dos dias e lhes dava os braços e as pernas também deviam ser substituídos. novas forças, que refaziam com a água e as tâmaras dos oásis, o pão e Apresentou à mãe diversas cabeças de bonecas, mas não havia os figos secos que tinham trazido. nenhuma que fosse igual à da Anita. Às vezes, quando o olho do sol se tornava ígneo ou paravam — Além disso — continuou o homem — a reparação custa para uma refeição ou um descanso, discutiam a direcção que vinham a mais do que uma boneca nova. seguir. A mãe de Eva procurou em todas as lojas de brinquedos uma — Não vos parece que a estrela aponta a Judeia? — perguntava boneca que, pelo menos, fosse mais ou menos semelhante à antiga um. Anita. Acabou por comprar uma do mesmo tamanho e com os Os outros, incrédulos, pensavam secretamente se haveria mesmos cabelos castanhos. No resto, a nova boneca era um pouco alguma coisa a esperar de um povo escravizado pelos romanos e diferente, mas encantadora, e tinha uma cara que se podia lavar com 108 2
  • 7. encolhiam os ombros. água. — A mim parece-me antes o Egipto o rumo indicado — Quando chegou a casa com as duas Anitas, a nova e a velha, atrevia-se o mais novo. — E a vós? Eva ainda estava no infantário. Mas Alex já tinha vindo da escola e — É ainda cedo para uma certeza, mas em breve o saberemos... descobriu a caixa no cesto de compras da mãe. E retomavam a caminhada até pela noite dentro – a estrela — Aha! — disse. — Compras de Natal! sempre adiante, lanterna que os não deixaria perder. Duas noites de — Uma boneca nova para a Eva — respondeu a mãe. — Mas névoa, porém, esconderam-na aos seus olhos, ansiosos. E então, ela não pode saber. Tem de pensar que é a sua Anita. desorientados, disputaram azedamente, perdidos e sem rumo. — Aha! — disse Alex. — Mentiras de Natal! Todavia, na terceira noite, a estrela reapareceu, mais cheia de brilhos, — Não sejas atrevido — disse a mãe. — É o melhor para a como se no seu bojo houvesse mil reflexos de espelho. Quem, Eva. conhecendo a Luz, deseja continuar nas trevas? Nem sentiam o — Deixa-a lá ficar com o careca tinhoso — disse Alex. cansaço, a língua encortiçada pela sede, o olhar enceguecido pelas tempestades de areia, o ventre cavado pela marcha e pelo magro A mãe arrumou a caixa com a nova boneca no armário da alimento. A esperança, serpente de água, a esgueirar-se, fugidia, entre roupa. os juncos, tinha regressado aos seus corações. — Estou contente por nos vermos finalmente livres daquela A noite do solstício aproximava-se e eles estavam certos de coisa tão estragada. que, se aquela Luz anunciava algum acontecimento, ele teria lugar na Atirou a Alex o saco de plástico com a antiga boneca. noite sagrada, pois o sol era a alegria e o pão da terra. E, ao mesmo — Toma — disse. — Mete-a no contentor do lixo, mas lá tempo, não podiam deixar de sentir uma certa inquietação em face para o fundo. daquela claridade que aumentava de brilho como a anunciar uma Alex pegou na boneca e saiu do quarto a assobiar baixinho. Outra que apagaria a do próprio astro de que eram adoradores. Seria Desde que a Anita desaparecera, Eva perguntava por ela todos realmente aquela a Luz que tornaria o mundo de manhãs claras, os dias. tardes ardentes e noites estreladas, mais perfeito, menos rasgado por — A minha Anita ainda está no hospital? O homem é ódios, guerras e injustiças? Quem podia ter a certeza? Do que parecia simpático com ela? Ela não tem saudades? Vou mesmo voltar a tê-la não haver dúvidas era de que a estrela indicava a Judeia. Tinham de pelo Natal? render-se à evidência. E nessa direcção seguiam agora, os pés já 3 109
  • 8. E a mãe respondia sempre: feridos do caminho, cada vez mais áspero e pedregoso. Mas, mesmo — Sim, Eva. Com certeza, Eva. Não te preocupes, Eva. forçando a marcha e lutando contra o tempo e o cansaço, a noite desejada encontrou-os à boca do Mar Morto e a estrela fazia jorrar a Para a noite de Natal, a mãe de Eva vestiu à nova boneca o sua cratera de brilhos mais para além, mais para o norte. Exaustos, vestido da Anita e pô-la debaixo da árvore. Com o vestido vermelho, não podiam seguir adiante. Mas o cristal de miríades de luzeiros, que achava a mãe, ficava mesmo parecida com a Anita. pareciam mais belos e mais luminosos no silêncio suspendido do ar Mas, quando estendeu a boneca a Eva e disse: — Ora vê como gelado, permitia-lhes procurarem uma gruta para se abrigarem e ficou linda a tua Anita! — Eva não aceitou e cruzou as mãos atrás dormirem, antes de continuarem a jornada. E foi o que fizeram. das costas. — Aqui! — gritou o mais jovem, que caminhava na dianteira. — Não! — gritou. — Essa não é a minha Anita! Os outros, mais trôpegos e cansados, juntaram-se-lhe. E olhava decepcionada para a nova boneca: Era uma caverna escurecida pelo fumo das fogueiras dos — Eu quero a minha Anita… a minha Anita! — e começou a pastores e que, embora vazia, parecia uma boca de forno, ainda chorar baixinho sem parar. quente do bafo dos animais. A mãe não contara com isto e tentou consolar Eva. Mostrava- — Escutem! — disse um deles. -lhe outras prendas, levava-a à árvore de Natal, mas Eva mantinha os À medida que penetravam na gruta, ouviam vagidos, que olhos baixos. Não queria ouvir nada nem ver prenda nenhuma. julgaram de animal ferido. Todavia, quando reacenderam o fogo, — Anita! — queixava-se a menina. — Onde puseram a minha deparou-se-lhes uma criança recém-nascida, nua e roxa, a chorar de Anita? frio e fome. Disse então Alex: — Quem teria tido a coragem de a abandonar?! — indignou-se — Se ela não receber de volta a careca tinhosa, vai estragar-nos o mais velho, que rasgou logo um pedaço de manto e a envolveu. a festa de Natal. — Pobrezinha, como chora! — Mas… — balbuciou a mãe — tu deitaste… Os outros debruçaram-se também, carinhosos e solícitos, sobre — Achas? — perguntou Alex. o pequeno fardo. Depois olharam-se, perplexos. Que fariam? Podiam Correu ao quarto e regressou com um saco de plástico que aquecê-la, protegê-la – mas como alimentá-la? meteu nas mãos de Eva. E foi então que ouviram, vindos do fundo da gruta, outros 110 4
  • 9. vagidos. — Anita! — gritou Eva, tirando do saco a velha boneca careca. — Ide ver! — pediu o mais idoso, que se tinha sentado perto Alex sorria. do lume, tentando aquecer a criança, enquanto a embalava, — E o que vais fazer agora à boneca nova? desajeitadamente, nos seus braços, nodosos e velhos. — Esta? — perguntou Eva. — Vou dá-la a uma menina que Os outros juntaram uns gravetos secos e atearam-nos nos eu não conheça. tições, acesos, e com aquela débil claridade varreram as sombras. No — A uma menina… — repetiu Alex. — Ah, claro. Ela não fundo da gruta estava uma ovelha, de úberes cheios e dolorosos, que pode ficar a saber que tens uma boneca careca fantástica! lambia a sua cria morta. Era uma noite santa aquela. Ali estava a Tilde Michels prova. E, contentes, arrastaram o animal até junto do companheiro e da criança. Depois, com muito jeito e devagar, enquanto um segurava Anne Braun (org.) o animal, o outro fazia pingar umas gotas de leite para a boquinha, Weihnachtsgeschichten Würzburg, Arena Verlag, 1991 que em breve se tornou sôfrega. Pacientes, continuaram a tarefa e viram-se recompensados. Aquecida e consolada, a criança aquietou-se. O mago que a tinha nos braços, como um avô, e os outros começaram a tratar da magra ceia e a assar, nas brasas, os figos secos que lhes restavam. — Temos de regressar... — disse, então, o mais velho, depondo a criança adormecida num recôncavo largo de rocha, não longe do borralho. — Assim terá de ser — concordou logo outro. — Somos homens e sacerdotes e nunca seremos uma família para a criança. Temos de nos apressar a entregá-la a uma mulher piedosa que cuide dela e a eduque juntamente com os filhos. — Sim, ou a uma mulher estéril para quem seja a bênção desejada — tornou o primeiro. — Mas isso resolveremos depois do regresso. O urgente é regressarmos. 5 111
  • 10. — Regressar?! E a Luz que vínhamos a seguir? — protestou o mais novo, para quem era doloroso, depois de tantos trabalhos e canseiras, não levar a cabo o que se tinha proposto. — Desistimos assim da Luz que nos guiou até aqui? Desistimos, agora, quando estávamos já perto? — Compreendo o que sentes, irmão, também já fui novo... Mas há a criança. Como poderemos abandoná-la? — Sim... há a criança — e também o mais novo, que tanto se tinha esforçado por alimentá-la, se inclinou e sorriu para vê-la dormir. — A Luz que vínhamos a seguir — ponderou ainda o mais velho — não poderá ser ocultada e dela teremos notícia. Lembremo- -nos de que a Luz ilumina e nem mesmo as trevas podem escondê-la para sempre. O nosso caminho é o do regresso e será longo, pois teremos de nos revezar com a criança nos braços, embora seja já uma bênção termos a graça de um alimento que ainda sobrará para um gole de sede nosso. Descansemos, agora, enquanto dorme. — Tens com certeza razão — concordou o mais novo, que também não se sentia capaz de recusar a criança, presente da noite santa e, quem sabe, daquela misteriosa Luz. O braseiro consumia-se, lento, perfumado pelo açúcar dos figos assados nas brasas. A ovelha deitara-se junto da criança, aninhando-a na sua lã, também ela apaziguada, como se tivesse recuperado a sua cria. Uma paz despetalava-se no silêncio da noite e caía sobre a gruta. Esta foi a história. Não adoraram o Messias, salvador, o que 6
  • 11. devia chegar para que a paz e a justiça florissem até ao fim das luas, o que teria compaixão do fraco e do pobre e havia de lançar a sua bênção sobre todas as raças, povos e línguas. O anjo do Senhor não lhes apareceu, nem foram envolvidos na sua claridade. Não ouviram O primeiro Natal do pardalito cantar: «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade». Aqui há coisa de três semanas, um pardal do Rossio, daqueles Mas tinham vivido o Amor, essência daquela doutrina que que escolheram para poiso e morada os ramos das árvores que ainda não tinha sido pregada e ninguém registara ainda. No mais circundam a dita praça, começou assim a história que vamos contar: íntimo dos seus corações tinham sentido aquela verdade: «O que — Companheiros pardais, pardalitos e pardalões, escutem fizerdes ao mais pequeno e ao mais ínfimo a Mim o fareis». E todos, a notícia é importante. naquela noite, em que os animais falaram, as flores abriram o Juntou-se a pardalada. Quem ali passe todas as tardes, à hora esplendor das suas pétalas nas trevas como se as entregassem à luz do da saída dos empregos, não deve estranhar o arruído que vem das meio-dia, e as pedras puderam deslocar-se para se dessedentarem nos árvores despidas de folha, mas cheias, cheiinhas de passarinhos regatos mais próximos, adormeceram com a criança aconchegada tagarelas. As pessoas andam na sua vida muito apressadas, e nem entre eles. sequer dão conta da chilreada doida dos pardais: Longe, a estrela fazia descer a sua cascata de fogo sobre Belém “Chega-te para lá! Aí sou eu” de Judá. “Olha o pardalão a querer tomar-me o lugar...”. Luísa Dacosta Natal com Aleluia “Ai que ainda te dou uma bicada...”. Porto, Ed. ASA, 2002 “Não me provoques!”. “Toma que é para saberes”. “Deixa-me em paz”. Mas voltemos à nossa história. Oiçamos o que o pardal tem para dizer: — Peço silêncio, se não calo-me — piava ele, tentando impor a ordem à assembleia. 7 113
  • 12. Demorou o seu tempo. Os pardais são uns espalhafatosos e uns gralhadores incorrigíveis. — A notícia que vos trago importa a todos. Há bocadinho, estava eu poisado num ramo baixo, e ouvi uma conversa entre um cauteleiro e um engraxador. Sabem do que estavam a falar? — De futebol — arriscou um. — Nada disso. Estavam a falar da Lotaria do Natal, imaginem! Portanto, o Natal está à porta, meus amigos. Espero que saibam o que isto significa... Os pardais mais jovens não sabiam, mas calcularam que devia ser coisa grave, porque os pardais velhos, mesmo os mais gaiteiros e risonhos, ficaram, subitamente, de bico caído. As expressões eram de alarme e desalento: — Temos de mudar de vida. — Que desconforto! — Deviam ter-nos avisado. — O tempo não está para grandes voos. E cada qual debandou para o seu ramo. Neste ponto da história, parece-nos indispensável ouvir a fala de um avô pardal para o seu neto que, tal como vocês, amigos leitores, não percebera patavina do sucedido. — Na quadra do Natal, que é uma grande festa dos homens — contava ele — multiplicam-se e crescem as luminárias por toda a 114
  • 13. parte. Nesta praça, então nem queiras saber! Fica tudo cheio de luzes e luzinhas de muitas cores, amarelas, azuis, vermelhas, verdes, que nos põem tontos. Onde os homens encontram um sítio para “Não é possível!”, pensou o Pai Natal pendurar uma daquelas pêras de vidro que deita luz, penduram. — Deve ser bonito — observou o neto. Noite feliz! — cantava o Pai Natal. — Bonito talvez seja, mas não para nós. Aparecem fios por Atarefadamente, ia consultando listas de pedidos, embrulhava toda a parte e, nos ramos das nossas árvores, estendem tantos, com as brinquedos e punha as respectivas etiquetas. tais pêras penduradas, que ninguém se entende. Há dois anos, aproximei-me de uma dessas pêras, que se tinha partido, e apanhei De repente, interrompeu o trabalho e lançou um olhar ao um arrepio pelo corpo todo que julguei que me ficava de vez! calendário. — Então para onde vão os pardais passar o Natal? — — Deus do céu! — exclamou. — Já é altura de ir para a Terra. perguntou o pardalito, atarantado. A festa de Natal está próxima! — Saltinho aqui, saltinho acolá, alguns escondem-se numas Atou ainda um pequeno embrulho, compôs um laçarote e palmeiras, lá para cima, num sítio que os da cidade chamam Avenida. encheu o grande saco. Outros conseguem chegar a um jardim, que me dizem ser muito — O dever chama! — murmurou. Pegou num gorro e pôs-se a tranquilo e saudável, um tal Jardim Botânico ou coisa parecida. caminho da cidade. — E nós, avô? Tinha nevado e o mundo resplandecia. As árvores estavam — Nós ficamos. Podíamos ir para um telhado próximo, se não envolvidas em mantas brancas, colchões de plumas estendiam-se andassem por lá os gatos que têm olhos mais perigosos do que todas sobre os telhados e as ruas tinham-se coberto de algodão doce. as luminárias juntas. Olha, naturalmente, vamos para um sítio — Que beleza! — murmurou o Pai Natal a caminho da terra, sossegado que eu conheço, num buraco daquele edifício, ali, no cimo ao passar por sobre os telhados, ofuscado pelo reflexo da neve. da praça. É um bocado desabrigado e pouco cómodo, mas vais poder Um raio de sol fez-lhe comichão no nariz. Soltou um grande dizer, daqui em diante, que dormiste no Teatro Nacional... espirro e aterrou de trambolhão no passeio. Assim que chegaram os electricistas com as escadas, os cabos e — Ai! — disse uma voz. — Não podes prestar atenção onde os fios, a pardalada sumiu-se... cais? 9 115
  • 14. Numa destas noites, o pardalito deixou o avô a dormir com a O Pai Natal recompôs-se, esfregou os olhos. À sua frente cabeça debaixo da asa, e foi dar uma voltinha pelos arredores do seu estava alguém com roupas vermelhas, com uma barba branca e um novo poiso. O Rossio silencioso e exuberantemente iluminado gorro comprido. pareceu-lhe um jardim de sonho. — Desculpe — disse o Pai Natal. — Quem é o senhor? — — Tanta luz de tanta cor! — exclamou. perguntou perplexo. Nesse momento, um avião sobrevoava a cidade, em direcção ao — Mas isso vê-se logo — respondeu o outro. — Eu sou um aeroporto. No escuro do céu só se distinguia as luzes vermelhas da Pai Natal. E tu estás no meu caminho. Aqui não há espaço para dois, cauda. por isso põe-te a andar. — Olha, lá vão duas luzes a fugir... O Pai Natal meneava a cabeça. Não devia ter ouvido bem. Se E dispunha-se a voar atrás delas, se o avô não tivesse acordado, calhar o tombo tinha sido muito grande. entretanto. — O que tem dentro do saco para as crianças, se posso — Para onde ias? — perguntou-lhe ele. perguntar? — informou-se cautelosamente. O pardalito explicou. Comentário do velho pardal: — Vales para pequenas prendas — sorriu o outro ironicamente. — Para as pessoas irem ali à loja. — Que patetice! Ainda tens muito que aprender, pequeno, até te transformares num pardalão sabido! Apontou para uma montra onde se viam peluches, bonecas e brinquedos. É o que nós também achamos, ao cabo desta história. Estendeu um papel a um rapazinho que passava e gritou: António Torrado — Venham, crianças, há aqui coisas para vocês! www.historiadodia.pt Mas a voz não soava alegre. O sol passeava sobre os telhados. O Pai Natal continuou o seu caminho, passou por lojas de brinquedos e centros comerciais. Da porta da igreja saía uma luz, e uma canção pairava no ar. O Pai Natal sentiu-se contente mas, ao erguer os olhos, lá estava outro. Tinha botas pesadas, uma argola no nariz e a fivela do cinto brilhava. — É Natal, é Natal — cantava ele com voz rouca. 116 10
  • 15. — Desculpe, quem é o senhor? — perguntou o Pai Natal, espantado. — Acha que sou o Coelhinho da Páscoa? — respondeu o outro, com indignação. Noite de Natal O Pai Natal assustou-se. Um segundo outro. Será que hoje andaria a ver a dobrar? O amigo — E o que oferece às crianças? — perguntou delicadamente. Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à O outro bateu com o indicador na testa. volta. — Oferecer? Mas tu acreditas no Pai Natal? Eles já têm tudo! No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma Ando a distribuir rebuçados da tosse para as pessoas provarem. E cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava. comprarem. É assim que isto funciona. Queres um? — perguntou a Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao uma menina que passava. — Tenho de continuar — disse depois, em grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se tom apressado. — Ainda me faltam mais três ruas. existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e O Pai Natal meneou a cabeça. mais complicada para o rei dos anões. — Incrível — disse. Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em O lusco-fusco empurrou o sol e deitou-se sobre a cidade. O quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às Pai Natal prosseguiu o seu caminho cantarolando. A neve rangia sob vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e os sapatos. que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. De repente, deu de caras com um novo outro. Era pequeno e Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu franzino, e tremia de fazer dó. jardim. — O que tem? — perguntou o Pai Natal atenciosamente. O E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros outro assoou o nariz. meninos. Só sabia estar sozinha. — Eu devia ser um Pai Natal — disse abatido — mas sou uma Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de rapariga e a minha voz é demasiado aguda. Outubro. — Isso é mau? — perguntou o Pai Natal. Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um 11 117
  • 16. garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam — As Raparigas Natais ainda não foram inventadas — como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo respondeu. Ergueu o casaco, puxou o gorro para as orelhas e às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta. desapareceu ao dobrar da esquina. — Ah! — disse ela. E pensou: O Pai Natal franziu o sobrolho. Alguma coisa ali não estava «Parece um amigo. É exactamente igual a um amigo.» E do alto certa. Foi para o jardim e sentou-se num banco. Um véu perpassou do muro chamou-o: em frente da lua e começou a nevar. O Pai Natal apoiou a cabeça nas mãos, pensativo. Tantos Pais Natais! O que teria ali ainda a fazer? — Bom dia! Teria embrulhado as prendas erradas? Estariam os homens a precisar O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu: de outras prendas diferentes? Um pardal poisou-lhe no gorro. O Pai — Bom dia! Natal continuava a matutar e nem se deu conta. Ficaram os dois um momento calados. — Descobri! — disse de repente. E fez-se novamente ao Depois Joana perguntou: caminho. — Como é que te chamas? Os flocos de neve dançavam no ar, as lanternas projectavam — Manuel — respondeu o garoto. auréolas de luz sobre a rua, uma criança riu algures, uma bola de neve — Eu chamo-me Joana. passou-lhe a sibilar rente à cara. E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Na praça principal, um violinista de rua enregelava, bem como Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto o seu violino. Tinha um som débil e ofegante, como se fosse morrer disse: asfixiado a qualquer momento. O Pai Natal agarrou no saco e ofereceu ao violinista um som encantador. Este rejubilou. — O teu jardim é muito bonito. Numa cozinha, um rapazinho estava sentado, às voltas com os — É, vem ver. trabalhos de casa de Matemática. O Pai Natal pensou um pouco e Joana desceu do muro e foi abrir o portão. passou ao rapaz uma ideia por debaixo da porta. Ele pegou no lápis e E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por começou a escrever com satisfação. uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos. — Ora aí está! — murmurou o Pai Natal, atravessando a Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a horta. E chamou os cães para estrada. ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa da lenha onde dormia um gato. 118 12
  • 17. Perto do cruzamento, estava um polícia. Tinha os pés frios e E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as flores. parecia encontrar-se de mau-humor. — É lindo, é lindo — dizia o rapazinho gravemente. — Aqui O Pai Natal assobiou-lhe uma musiquinha. — disse Joana — é o cedro. É aqui que eu brinco. E sentaram-se sob Os carros passavam a apitar e pareciam empurrar-se uns aos a sombra redonda do cedro. outros. Os condutores vociferavam. A todos o Pai Natal deu um A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de pouco de tempo e uma pitada de paciência. Os travões deixaram de frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que chiar e de salpicar com lama de neve. dava voltas no ar. — Estão a ver? Assim também se consegue — disse o Pai Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a Natal, satisfeito. construir a casa do rei dos anões. Na casa de espectáculos encontrou uma cantora com dores de Brincaram assim durante muito tempo. garganta, que rouquejava desanimada. O Pai Natal tirou saúde do Até que ao longe apitou uma fábrica. saco. Acrescentou-lhe alguns sons agudos. Bem ia precisar deles, e ela — Meio-dia — disse o garoto — tenho de me ir embora. experimentou-os todos imediatamente. — Onde é que tu moras? Numa casa, viu uma menina deitada de bruços em cima da — Além nos pinhais. cama. À sua frente tinha uma lista de prendas, mas não sabia o que pedir. Roía a ponta do lápis e olhava com ar triste para o ar. — É lá a tua casa? Se calhar, ela já tem tudo — pensou o Pai Natal — mas ainda — É, mas não é bem uma casa. lhe falta alguma coisa. — Então? E a alegria de partilhar com os outros inundou o quarto. — O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A Em seguida, começou a cantar Cai neve, cai neve… porque ela minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma estava de facto a cair e encantava a cidade. casa. — É bom quando podemos ser úteis — concluiu o Pai Natal, — Mas à noite onde é que dormes? esfregando as mãos. — O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem Viu como os outros faziam o seu trabalho mal-humorados, uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali distribuindo vales e oferecendo bombons, e a todos enviou boa também. 13 119
  • 18. — E onde é que brincas? disposição. — Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da De regresso a casa, acendeu as luzes de uma árvore de Natal. cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas Pôs o seu gorro num boneco de neve, depois deu aos pássaros das vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no suas bolachinhas de Natal. O saco das prendas, tornou a levá-lo pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as consigo. flores. Pode-se brincar em toda a parte. — Noite feliz! Noite feliz! — cantarolava baixinho. — Talvez — Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para venham a ser precisas no próximo ano! brincar comigo. Então, brilhou no céu a Estrela de Natal. E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Sigrid Laube Joana esperava-o empoleirada em cima do muro. “Erstaunlich”, sagt der Weihnachtsmann Wien, Annette Betz Verlag, 2003 Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda Texto adaptado do cedro. E foi assim que Joana encontrou um amigo. Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha. A festa Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal. E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada. Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; 120 14
  • 19. eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos. Bolo-rei Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse Todos os anos, quando os velhos Reis Magos acabam de armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma atravessar a pequena estrada de areia que se esboça entre caminhos de grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior musgo e lagos feitos de bocados de espelho partido; quando a estrela de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fechadas de prata que se suspende entre os dois exemplares de “A Paleta e o muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os Mundo” de Mário Dionísio se recolhe para regressar à velha caixa de dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, papelão, com trinta anos de viagens, cheia de bocados de jornal cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de amachucados que ainda guardam notícias de dias que já foram e onde cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um se embrulham os cordeirinhos, os pastores, as oferendas várias que o grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas. Menino Jesus recebeu, apesar de já lhe faltar a mãozinha direita que Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não alguém partiu em excesso de limpeza; todos os anos, dizia, recordo a tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse história que o Fernando Midões me contou, certa tarde em que espreitar entre as duas portas. misturámos poemas com lágrimas. Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do De calças à golfe, lacinho à Baptista Bastos, fato de ver a Deus armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes e celebrar o Dia de Reis, Fernando foi com a mãe jantar a casa das tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a senhoras, gente de talher de prata, criadas de avental branco e crista tilintar era a música das festas. engomada, cheias de silêncios e reverências. Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, Com olhos de amora madura, esse sorriso que ainda hoje tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma conserva, sempre molhado de uma melancolia que tem de adivinhar- fonte de montanha do que do fundo de um armário. As velas estavam -se mais do que ver-se, Fernando entrou na sala de jantar das acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas anfitriãs, cujas portas só o espírito natalício abria, raros que eram os maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e gestos de caridade e partilha. Assim se explicava a presença do aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma 15 121
  • 20. festa. Era o Natal. rapazinho e sua mãe, viúva recente e que ali trabalhava de manhã à Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de noite, para que a vida se assemelhasse ao que já fora. Natal as estrelas são diferentes. Servidos os manjares da época: a canja onde as bolhas de Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio, gordura lembravam pequenos sóis fumegantes, o leitão de maçã mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das vermelha na boca que olhava Fernando em gritos de sufoco que só cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como ele, poeta em germinação, conseguia ouvir; os fritos vários que nas rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos. travessas exibiam a abastança, chegou finalmente e foi colocado em lugar de honra, no centro da mesa, ladeado por dois castiçais onde as E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e velas vermelhas ardiam, o bolo-rei, roda magnífica de cores, frutas, redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras pinhões, bocados de açúcar que lembravam neve e cujo esplendor do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas ofuscava o dourado das filhós, os reflexos das garrafas de licor, o coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas brilho dos copos de cristal. no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas. Fernando, pequenino, queixo tocando a toalha de renda, olhava Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava aqueles mistérios de cor e perfume e falava, falava, dizia coisas tão a em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e propósito que as senhoras, enlevadas, não se cansavam de sorrir e luminoso, sem nenhuma sombra. felicitar a mãe que tal filho tinha. Então, a mais velha, cabeção de Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito renda e camafeu de marfim a fechar as golas, pega na faca de prata e tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a com solenidade, meticulosamente, parte o bolo. A criada ajuda à atravessar o corredor. distribuição nos pratinhos de sobremesa. — Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então — Agora, não se esqueçam: aquele ou aquela a quem calhar a Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa fava terá de pagar o bolo-rei no ano que vem! extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas E entre comentários de enlevo, gula, elogios à tessitura e ponto facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. ideal do levedo da massa, à abundância das frutas, à maciez e agrado Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia. do paladar, se comeu a sobremesa. A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os A prenda calhou à criada. dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos — Que sorte! Mostre lá! 122 16
  • 21. — Olhe que medalha tão bonita! Parece uma libra de verdade. perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada. Até pode usar no fio que ninguém diz que não é autêntica. — Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana. — E tu, Fernandinho, não acabas de comer a tua fatia de bolo? A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os — Come que está bom e fofinho! perus. Fernando, subitamente silencioso, abanava a cabeça em — O que é? — perguntou ela. negativas. — Que presentes é que achas que eu vou ter? — Então, filho! Não sabes falar? Responde às senhoras: — Não sei — disse Gertrudes —, não posso adivinhar. queres mais um bocadinho de bolo? Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e — Ao menos acaba esse! por isso continuou a fazer perguntas. — Está cansado, coitadinho! Deixe-o lá. — E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes? Fernando baixava a cabeça, cabelos lisos na testa. A noite ia — Qual amigo? — disse a cozinheira. adiantada. A Miguel Bombarda, onde moravam, ainda ficava longe. — O Manuel. Sim, minha senhora, amanhã às oito cá estarei, se Deus quiser, para — O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns. cortar o vestido novo e pôr em prova a saia do “tailleur”. Foi uma noite muito bonita. Muito obrigada! Fernando dá um beijo às — Não vai ter presentes nenhuns!? senhoras e agradece. Diz obrigado, Fernando! — Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça. Fernando deu o beijo às senhoras, esticou a cara, pôs-se em — Mas porquê, Gertrudes? bicos dos pés, encheu os olhos de gratidão. — Porque é pobre. Os pobres não têm presentes. — Diz obrigado, filho! Mas o que te aconteceu? — Isso não pode ser, Gertrudes. — Deixe-o lá, coitadinho, perdeu a língua. É o sono, não é? — Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa Descem o elevador, abrem a porta da rua. A mãe, agastada, do forno. ralha: Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido — Mas que vergonha! Umas senhoras tão boas, recebem-nos que era «assim mesmo». como família, estavas a portar-te tão bem e agora isto, nem uma Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as palavra de agradecimento, nem boa noite, é esta a educação que te manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com 17 123
  • 22. a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era tenho dado? Se o teu pai fosse vivo… cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete Então, já na rua, o frio de Janeiro a gelar-lhe as mãos e o nariz, da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se a névoa a transfigurar a rua e as pessoas, Fernando, finalmente, abre a passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de boca e lá do fundo deixa voar o mistério da sua inesperada mudez: toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das — É que me calhou a fava, mãezinha. Eu sei que tu não tens pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os dinheiro para, no ano que vem, comprares um bolo-rei igual àquele. bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de E, na palma da mão pequenina, cuspiu a fava que ali nascia, legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e quente ainda, do esconderijo em que estivera. os homens. E ainda hoje, nas horas mais dolorosas, quando se esquece de Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mastigar a comida que arrefece no tabuleiro da cantina e prefere mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha. viajar no país da infância, Fernando Midões, meu irmão mais antigo, De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse: sente a ternura solidária do abraço e o húmido das lágrimas com que — Já chegaram os primos. a mãe o aconchegou junto de si. Então Joana foi ter com os primos. Sem palavras, mãe. Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram Sem palavras. todos para a mesa. Maria Rosa Colaço Tinha começado a festa do Natal. Viagem com Homem dentro (adaptação) Leiria, Editorial Diferença, 1998 Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana pensava: — Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes. 124 18
  • 23. E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes. O jantar do Natal era igual ao de todos os anos. A manhã do dia de Natal Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os Rob tinha quinze anos e vivia numa quinta. Todas as ananases. madrugadas se arrastava para fora da cama para ajudar a mungir. Às No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a vezes, sentia que o esforço era demasiado. porta e entraram na sala. Rob gostava do pai. Não sabia até que ponto, quando um dia, As luzes eléctricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do um pouco antes do Natal, ouviu o pai a dizer à mãe: pinheiro. — Mary, custa-me muito chamar o Rob de manhã. Ele está a Joana tinha nove anos e já tinha visto nove vezes a árvore do crescer muito depressa e precisa de dormir. Gostava de conseguir Natal. Mas era sempre como se fosse a primeira vez. Da árvore nascia desembaraçar-me sozinho. um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como — Mas não consegues, Adam. se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o A voz da mãe era determinada. Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que, — Eu sei — disse o pai lentamente — mas a verdade é que me numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra. custa mesmo ter de o chamar. E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São Ao ouvir estas palavras, Rob sentiu algo a mexer dentro dele: o José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que pai amava-o! Nunca antes pensara nisso. Passou a levantar-se mais jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se depressa. O sono fazia-o tropeçar e vestia a roupa com os olhos bem ouvia. fechados. Mas, mesmo assim, levantava-se. Joana olhava, olhava, olhava. Na véspera de Natal do ano em que fazia quinze anos, estava deitado a olhar pela janela do sótão e a desejar ter um melhor Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel. presente para o pai do que uma gravata de dez cêntimos comprada na Um dos primos puxou-a por um braço. loja. — Joana, ali estão os teus presentes. 19 125
  • 24. Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a Lá fora, as estrelas brilhavam, e havia uma em particular que bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas. lhe parecia ser a Estrela de Belém. À sua volta todos riam e conversavam. — Pai — perguntara uma vez — o que é um estábulo? Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham — É apenas um celeiro como o nosso — respondera o pai. tido, falando ao mesmo tempo. Então Jesus nascera num celeiro, e fora para um celeiro que os E Joana pensava: pastores e os reis magos se tinham dirigido, com os seus presentes de — Talvez o Manuel tenha tido um automóvel. Natal. E a festa do Natal continuava. Ficou siderado com a ideia. Por que não dar um presente especial ao pai? Podia levantar-se cedo, mais cedo do que as quatro As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a horas, e esgueirar-se para o celeiro para mungir. Faria tudo – mungir conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar. e limpar – sozinho. Quando o pai chegasse, veria tudo já feito. E Até que alguém disse: saberia quem o fizera. — São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são Nessa noite, deve ter acordado umas vinte vezes. Às três menos horas de as crianças se irem deitar. um quarto, levantou-se e vestiu-se. Desceu silenciosamente as Então as pessoas começaram a sair. escadas, tendo especial cuidado com as tábuas que rangiam, e saiu. O pai e a mãe de Joana também saíram. Uma grande estrela cor de ouro avermelhado pairava por cima do — Boa noite, minha querida. Bom Natal — disseram eles. celeiro. As vacas olhavam-no, sonolentas e surpreendidas. E a porta fechou-se. Nunca antes mungira sozinho, mas parecia fácil. Não parava de Daí a um instante saíram as criadas. pensar na surpresa que o pai teria. Sorria e mungia com segurança, deitando para a selha dois fortes jactos, espumosos e perfumados. As A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa vacas estavam surpreendidas mas anuíam. Era a primeira vez que se do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar portavam bem, como se soubessem que era Natal. as panelas. A tarefa foi desempenhada com mais facilidade do que E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a habitualmente. Pela primeira vez, mungir não era penoso. Era algo de Gertrudes. diferente: um presente para um pai que o amava. — Bom Natal, Gertrudes — disse Joana. 126 20
  • 25. De volta ao quarto, só teve tempo de tirar a roupa no escuro e — Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um de saltar para a cama, porque já ouvia o pai a levantar-se. Cobriu a momento. Depois perguntou: cabeça com os lençóis para silenciar a respiração ofegante. A porta — Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade? abriu-se. — O que é que eu disse? — Rob! — chamou o pai. — Temos de nos levantar, filho, — Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque mesmo sendo Natal. os pobres não têm presentes. — ‘Tá bem — disse com sono. — Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve — Vou indo — disse o pai. — Vou pondo as coisas a andar. presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. A porta fechou-se e Rob ficou quieto, a rir com os seus botões. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza. Os minutos nunca mais passavam – dez, quinze, não sabia quantos – — Mas então o Natal dele como foi? até que ouviu de novo os passos do pai. — Foi como nos outros dias. — Rob! — E como é nos outros dias? — Sim, Pai? — Uma sopa e um bocado de pão. O pai estava a rir, um riso esquisito, soluçante. — Gertrudes, isso é verdade? — Pensavas que me enganavas, não? — Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a — É por ser Natal, Pai! menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite. O pai sentou-se na cama e apertou-o contra si, num grande — Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha. abraço. Estava escuro e não conseguiam ver os rostos um do outro. Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de — Agradeço-te, filho. Nunca ninguém fez coisa mais bonita… Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E — Oh, Pai. pensava: Não sabia o que dizer. O seu coração transbordava de amor. — Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal — Bom, parece que posso voltar para a cama — disse o pai, e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas volvido um momento. — Espera… estás a ouvir? Os pequeninos já ao Manuel ninguém deu nada. estão a acordar. Agora que penso nisso, nunca vos vi a olhar pela E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se 21 127
  • 26. a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite primeira vez para a árvore de Natal. Estava sempre no celeiro. Anda de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de daí! animais. Rob levantou-se, vestiu-se de novo e desceram para ver a árvore «Que frio lá deve estar!», pensava ela. de Natal. Depressa o Sol tomou o lugar da estrela. Oh, que Natal «Que escuro lá deve estar!», pensava ela. aquele, e como o seu coração quase rebentou de timidez e alegria quando o pai contou à mãe e aos mais novos que ele, Rob, se tinha «Que triste lá deve estar!», pensava. levantado sozinho. E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde — O melhor presente de Natal que alguma vez tive, e hei-de Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma recordá-lo, meu filho, todos os anos na manhã de Natal, enquanto vaca e de um burro. for vivo. — Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois suspirou e pensou: Pearl S. Buck «Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.» M. Clark; E. Briggs; C. Passmore Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a Lighting candles in the dark Philadelphia, FGC, 2001 rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal. Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite. «Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.» Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas. Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu. 128 22
  • 27. Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco. Depois atravessou o jardim. O Alex e a Ghiribita ladraram. A batalha de Natal — Sou eu, sou eu — disse Joana. E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se. — Só mais seis dias — constata Neli, tentando em seguida Então Joana abriu a porta do jardim e saiu. assobiar Noite Feliz. — Ainda seis dias — repete a mãe pensativamente. A estrela A voz não soa alegre. Após uma curta pausa, prossegue, Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar suspirando. — Se tudo tivesse já passado! para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas Com o assobio suspenso no ar, Neli olha para a mãe com ar enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua estupefacto. parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém. — Então não estás contente? Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus — Sim, mas já estou pelos cabelos com esta agitação toda! jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, Como Neli não tem aulas à tarde, vai patinar com uma amiga e, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a mais lá para a noite, dirige-se ao supermercado onde a mãe trabalha. olhavam e a ouviam como pessoas. Há tanto movimento que mais parece estar-se numa colmeia. A mãe «Tenho medo», pensou ela. encontra-se sentada numa cadeira giratória diante de uma das seis Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada. caixas registadoras. Os produtos chegam-lhe num tapete rolante e, Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um enquanto a mão direita está pousada no teclado e marca os números, atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos, a mão esquerda roda os produtos de forma a poder ler os números, e, planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via- em seguida, coloca-os, produto a produto, no carrinho de compras. se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante. Quando acaba de marcar tudo, a mão direita carrega na tecla do total O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via- e rasga o talão, enquanto a esquerda afasta o carro cheio e puxa o -se a massa escura dos pinhais. próximo, vazio, para junto dela. «Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana. 23 129
  • 28. Mas continuou a caminhar. — Que bem que fazes isso — dissera-lhe Neli uma vez. — Eu Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no faria tudo devagar, assim: tipp… tipp … … e, ainda por cima, descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara metade saía mal. como uma faca. — Ora — dissera a mãe a rir. — É uma questão de treino. «Tenho frio», pensou Joana. Quando comecei, também não era assim tão despachada. Não encontrava a etiqueta com o preço, e muitas vezes carregava nas teclas Mas continuou a caminhar. erradas e as pessoas resmungavam porque tinham de esperar. Mas À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando agora já quase consigo fazer isto automaticamente. maior. Até que ficou enorme. — Como um robô! — Neli riu-se. Joana parou um instante no meio dos campos. Um robô como mãe? Nunca teria dor de cabeça, nem à noite «Para que lado ficará a cabana?», pensou ela. estaria tão cansada. Mas um robô não tem coração. Por isso, Neli E olhava em todas as direcções à procura de um rasto. prefere a mãe tal como é, mesmo quando certas noites quase nem Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia consegue falar de tão cansada que está! rasto e à sua frente não havia rasto. Só mais quatro dias. «Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela. Só mais três. E levantou a cabeça. As filas nas caixas eram cada vez mais longas. As pessoas Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava. abasteciam-se de comida como se o Natal durasse meio ano. Com um «Esta estrela parece um amigo», pensou ela. ruído sibilante, as portas automáticas abriam-se e fechavam-se, E começou a seguir a estrela. abriam-se e fechavam-se. A mãe sentia nas costas a corrente de ar e os cartões pendurados no tecto balançavam de um lado para o outro. Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram uma roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e Um sino de Natal, por cima da cabeça da mãe tinha escrito a azuis, e dançavam com grandes gestos. E a brisa passava entre as vermelho: PROMOÇÃO: Bombons, 250 gr, a preço especial. agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar frases Próximo, balançava um anjo de papel com uma faixa nas mãos, incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras como nas igrejas, mas onde não estava escrito Paz na terra aos Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para homens de boa vontade, mas sim Fiambre para o Natal a 15,80/Kg. 130 24
  • 29. Os altifalantes pingavam música de Natal: além de todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a Noite feliz… estrela. Cabeça de anho Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos. Noite feliz… «Será um lobo?», pensou. Café suave Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha Papel higiénico de três folhas caminhando ao seu encontro. O Senhor … «Será um ladrão?», pensou. Lenços com monograma Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha Mostarda na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto Nasceu em Belém… azul todo bordado de diamantes. A mãe gemia e, com um movimento rápido, limpava o suor do — Boa noite — disse Joana. lábio com as costas da mão. Os clientes, impacientes, esperavam, — Boa noite — disse o rei. — Como te chamas? apoiando-se ora numa, ora na outra perna. De olhar ausente, nem — Eu, Joana — disse ela. olhavam para a senhora da caixa, pensando no regresso com os sacos pesados, o eléctrico cheio. — Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou: Uff! — Onde vais sozinha a esta hora da noite? Só mais três dias, e acaba tudo. — Vou com a estrela — disse ela. — Vou fazer um jantar como o do ano passado — disse à — Também eu — disse o rei —, também eu vou com a noite a mãe, virando-se para a Neli — Peru assado com a laranja e estrela. batatas assadas e, como sobremesa, rabanadas e bolo-rei. E juntos seguiram através do pinhal. No dia 24 de Dezembro, a loja só estava aberta até às quatro E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as horas da tarde. Em seguida, os empregados podiam comprar, com um sombras da noite. desconto de 15%, os produtos que sobravam. A mãe de Neli achava Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros que valia a pena, por isso tinha guardado as compras maiores para caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e 25 131
  • 30. safiras. essa altura: uma pasta escolar para a Neli, uma boneca, lápis de cor, — Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a um anoraque para o pai, a comida para a ceia de Natal. estrela. Na sala do pessoal, havia um lanche para todos os empregados. — Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela — A batalha de Natal foi mais uma vez vencida — repetia o e o meu nome é Gaspar. chefe do pessoal. Dizia, depois, mais umas palavras elogiosas e eram E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana servidos pãezinhos com fiambre e um copo de vinho. ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as Após o lanche, a mãe de Neli deixou ficar os gordos sacos de sombras azuis e os pinheiros escuros. compras esquecidos na sala do pessoal. Só reparou quando já estava Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía na paragem do autocarro. “As minhas prendas! Todas aquelas coisas um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta. boas para a ceia!” — pensou assustada. — Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos Mas a loja já estava fechada e, antes do dia 27, não se voltava a com a estrela. lá entrar. Foi de mãos vazias que chegou a casa. — Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o Nessa noite, apesar de tudo, festejaram o Natal. O pai acendeu meu nome é Baltasar. as velas da árvore de Natal e Neli recitou um poema. Só se lembrou das duas primeiras estrofes e depois encravou, mas a mãe achou-o E juntos seguiram os quatro através da noite. muito bonito e o pai nem reparou que ainda continuava. O jantar foi No chão, os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa mais curto do que o planeado. Por sorte, a mãe já tinha comprado o murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados dos três assado e havia batatas em casa, mas não houve entrada nem reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis. sobremesa. Trincaram simplesmente nozes e comeram maçãs. Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E — Assim, não fico com o estômago tão pesado como no ano sobre essa claridade a estrela parou. passado — disse o pai. — Comidas pesadas não me assentam bem. E continuaram a caminhar. Também não havia muito que desembrulhar. Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana Por isso, sobrou tempo. Muito tempo. viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem Neli foi buscar o jogo Memory que recebera no Natal anterior. tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos Durante o ano inteiro, esperara, em vão, todos os domingos, que anjos o iluminava. 132 26
  • 31. alguém tivesse tempo para jogar com ela. E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas Agora, os pais tinham tempo. entre a vaca e o burro e dormia sorrindo. O pai nunca tinha jogado Memory. Ao fim de algum tempo, Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo Neli já tinha encontrado sete pares de cartas, a mãe três, e o pai, que não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra. geralmente quer ganhar sempre, procurava constantemente no sítio E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar. errado. Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel. Tentava ajudar-se com truques, pondo, sem ninguém dar — Ah — disse Joana — aqui é como no presépio! conta, migalhinhas de pão em cima das cartas que tinha decorado, ou — Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio. pousava as mãos na mesa, de tal forma que o polegar indicava a Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes. direcção em que estava uma determinada carta. Neli descobriu-lhe a jogada. Jogaram mais duas ou três vezes e o pai não se zangava por Sophia de Mello Breyner Andresen perder sempre. Depois, ainda jogaram o jogo do assalto. A Noite de Natal Porto, Figueirinhas, 1989 À meia-noite, o pai apagou a luz e ficaram a olhar pela janela. A neve reflectia uma luz clara e ouviam-se os sinos a tocar. — A esta hora, há quase dois mil anos, nasceu Jesus — disse a mãe, e Neli reparou como ela afinal sempre estava contente por ser Natal. Ao ir para a cama, Neli disse: — Este foi um Natal muito bonito. — A sério? — perguntou a mãe admirada. — Mas não houve ceia nem prendas quase nenhumas. — Mas houve muito tempo — respondeu Neli. Jutta Modler (org) Brücken Bauen Wien, Herder, 1987 27 133
  • 33. O Viajante O bolo-rei Quando Eva entrou na Arca, apenas da estrela da tarde restava O bolo-rei tomava-se muito a sério. Não havia discussão: ele um pouco de luz. Havia muito já que os largos horizontes da planície era o rei dos bolos. se tinham diluído e uma noite imensa parecia anunciar o final dos Como tal, quando lhe caiu uma passa da coroa, ordenou ao tempos. Um cheiro sufocante e húmido inundava todo o espaço, bolo-inglês: enquanto, lentamente, o caminho se fazia, num rio sem margens que — Traz-me essa passa de volta. o assinalassem. Seres escuros, de rostos invisíveis, embrulhados nos O bolo-inglês fez-se desentendido e respondeu: xailes de merino ou grossos capotes, dormitavam, as cabeças — Sorry! I don’t understand... oscilando, uma das mãos segurando a asa das cestas donde emergia o pescoço dos patos e perús que, daí a horas, seriam sacrificados no O que queria dizer, na língua dele, que pedia desculpa, mas não altar das tradições natalícias. tinha entendido. Eva sentou-se ao lado do timoneiro que tentava vislumbrar o Então, o bolo-rei virou-se para um bolo de natas e deu a rumo para lá dos grossos cordões de chuva ou, um só que fosse, dos mesma ordem. Queria, outra vez, a passa a ornamentar-lhe a coroa. antiquíssimos sinais que há anos lhe serviam de bússola e estrela do O bolo de natas tinha uma fala atrapalhada, por causa do norte: o perfil do monte da barra azul, o moinho sem velas, a oliveira excesso de natas. com uma cruz pintada a cal onde Justa se enforcara, a velha ponte — Flá, plefe, pflu, pfló... romana, a capelinha, se nesta viagem houvesse dados, referências e Não se percebia nada. aquela chuva diluviana não ocultasse tudo num manto de desolação. O bolo-rei, muito irritado, ordenou o mesmo ao bolo de Pelo espelho lateral, Eva tentava descobrir o rosto dos viajantes amêndoa, que lhe respondeu: mas, só as cabeças das aves saindo das cestas vermelhas, se agitavam — Também a mim me caiu uma amêndoa torrada e não me em gritos intervalados. De repente, um chiar de travões sacudiu a queixo. Arca e, na claridade difusa dos faróis, recortado de encontro ao vidro, 29 135