1) O documento discute a interpretação correta do pecado de Cam e da maldição sobre Canaã mencionados no Gênesis. 2) Muitos intérpretes erroneamente afirmam que o pecado foi homossexualidade e que a maldição foi sobre os negros, mas o texto indica que o pecado foi zombar da nudez do pai Noé e a maldição foi sobre os cananeus. 3) A bênção de Noé sobre Sem e Jafé significava que os semitas e povos europeus governariam sobre os cananeus.
1. A Maldição de Noé, a homossexualidade e a raça negra
Qual foi o pecado de Cam?
Muitas pessoas ignoram a correta interpretação da bênção e maldição de Noé sobre os
seus filhos. Na maioria das vezes por desconhecer as línguas originais e pelo fato de
usarem o texto bíblico sem refletir corretamente a respeito de seu significado. Muitas
distorções surgem dessa eisegese, que força o texto a dizer o que não diz para servir de
pretexto e prova para debates contemporâneos. O presente artigo pretende dar uma
resposta aos desvios de análise e interpretação dessa passagem, colocada no cenário
hodierno para justificar o debate em torno de certa polêmica.
Após as narrativas que estabelecem a aliança de Deus com Noé e seus filhos, segue-se
uma tragédia na família de Noé (Gn 9.20-29). Um resumo dos fatos sucedidos facilitará
a compreensão da narrativa: .
a) Noé se embriagou com o vinho da própria vinha (vs.20,21);
b) Embriagado, apareceu nu dentro de sua própria tenda (v.21);
c) Seu filho Cam e seu neto Canaã viram a nudez de seu pai e dele zombaram (v.22);
d) Sem e Jafé ao tomarem conhecimento do fato, cobrem seu pai Noé, sem
contemplar-lhe a nudez (v.23); .
e) Noé ao acordar profetiza bênçãos e maldições sobre os seus três filhos baseado nos
atos anteriores (vs.24-27) .
Tem-se discutido muito acerca do ato de Cam e de seu filho Canaã, algumas das
propostas de certos intérpretes vão desde o homossexualismo até a castração.
Certos autores afirmam, sem apresentar qualquer base exegética que sustente suas
afirmações, que o pecado pelo qual Canaã foi amaldiçoado foi o homossexualismo.
Outros intérpretes mencionam Levítico 18 acerca dos atos sexuais praticados na terra
de Canaã como uma referência de que os descendentes de Canaã continuaram a prática
iniciada por seu pai. Pura fantasia! Relações das quais são narradas em Levítico 18.6-
18, não era ato apenas dos cananitas e dos egípcios (descendentes de Cam – o Egito era
descendente de Mizraim e não de Canaã) quase todas as civilizações do Oriente
Próximo praticavam essas aberrações. A expressão “descobrir a nudez” (eufemismo
para relações sexuais incestuosas -Lv 18), não deve ser confundida com “ver a nudez”
(Gn 9.22), mesmo que, o texto de Gn 9.21, segundo Ellicott, traduz-se por (Noé)
“despiu-se a si mesmo”. A expressão pode ser traduzida em sentido passivo,
“descobriu-se” (a ação é praticada por Noé). A referência remota está no contexto de
Deuteronômio 27.16 e não Levítico 18.6-18 .
O termo nudez é usado nesse texto basicamente com o sentido de “estar exposto” e o
verbo “ver” deve ser tomado em seu sentido próprio. Assim, a expressão “vendo a
nudez do pai”, deve ser entendida em seu sentido óbvio e original, sem qualquer
2. indicação de que existe uma mensagem oculta nas entrelinhas do texto. Cam encontrou
seu pai desnudo na tenda, achou graça do episódio, e ridicularizou o pai na presença de
seus irmãos. .
O hebraico possui pelo menos três termos para nudez, procedente do verbo ‘ûr (estar
exposta à vista das pessoas; ser desnudado): ‘erôm (adjetivo, nu; substantivo, nudez);
‘ârôm (nu) e ma‘adrom (nu), qualquer um desses termos significa a mesma coisa,
exceto quando o uso é figurado para descrever a opressão (Jó 24.7, 10; Is 58.7), ou
mesmo a pobreza ou falta de recursos como em Jó 1.21. Um outro sentido é descrever a
nudez tanto espiritual quanto física (Gn 3.7, 10,11), e até mesmo de que o sheol está
desnudo diante de Deus (Jó 26.6; Sl 139.7), mas jamais o vocábulo é usado como
eufemismo para o ato homossexual. O sentido primário é a condição de estar exposto,
estar desnudo à vista das pessoas. Uma questão especial é o caso primevo de que Adão
e sua esposa estavam nus diante de Deus na condição tanto física quanto espiritual. No
sentido espiritual estavam conscientes de sua culpa e incapaz de escondê-la do Criador.
A posição exegética de que o pecado de Cam e Canaã tenha sido contemplar de modo
desrespeitoso a nudez do pai, encontra sua confirmação no versículo 25 que atesta que
Sem e Jafé, para não recair no mesmo erro: “tomaram uma capa, puseram-na sobre os
próprios ombros de ambos e, andando de costas, rostos desviados, cobriram a nudez do
pai, sem que a vissem”. O contexto de Deuteronômio 27.16 reforça simetricamente o
conceito expendido: “Maldito quem desonrar o seu pai ou a sua mãe”. Lembremos que
na antiga sociedade hebraica, ver a nudez de pai ou mãe era considerado uma
calamidade social grave, e um filho ou filha ver tal nudez propositadamente era um
lapso sério da moralidade entre pais e filhos. Portanto, Cam errou gravemente, de
acordo com os padrões de sua época. E não somente errou pessoalmente, mas também
correu até seus irmãos, fazendo do incidente um motivo de zombaria.
Ao contrário de Cam e Canaã, Sem e Jafé evitaram cuidadosamente de incidir no
mesmo equívoco de seu irmão e sobrinho (v.23). Ao despertar do sono e recuperar-se da
embriaguez, Noé toma conhecimento dos atos de seus filhos, e seguindo a tradição do
seu tempo pronuncia maldições e bênçãos segundo o agir de cada um deles.
a) A maldição sobre Canaã
Acredita-se que para que a maldição recaísse sobre Canaã, ele tenha participado de
alguma forma do desrespeitoso ato de seu pai Cam. Das 63 ocorrências do termo ārar
(maldição) no Antigo Testamento, o verbo ocorre por 12 vezes como antônimo do
verbo abençoar (bārak), e um desses casos é o versículo 25 do texto em apreço.
Seguindo os conceitos anteriores (Gn 3.14, 17; 4.11), o sentido primário é de que Canaã
e sua descendência estariam banidos, cercados de obstáculos e sem forças para
resistirem seus inimigos tornando-se escravos dos escravos (ebed ‘abādîm). Devemos
notar, contudo, que embora Cam tivesse outros filhos além de Canaã (Cuxe, Mizraim e
Pute – Gn 10.6), a maldição foi especificamente para Canaã e seus descendentes, isto é,
os cananeus da Palestina, e não Cuxe e Pute, que provavelmente se tornaram os
ancestrais dos etíopes e dos povos negros da África. O cumprimento dessa maldição
fez-se à época da vitória de Josué (1400 a.C.) e também na conquista da Fenícia e dos
demais povos cananeus pelos persas. Por fim, não se trata de uma maldição dirigida aos
negros africanos como costuma afirmar certos intérpretes. Os canaanitas foram
totalmente extintos segundo a posição de vários biblistas e historiadores.
3. b) A bênção sobre Sem
Particular atenção deve ser considerada aos textos que tratam da bênção sobre Sem e
seu irmão Jafé. O primeiro deles é que para Sem o nome divino usado é YaHWeH El
enquanto para Jafé é 'Elohîm. Os dois nomes são significativos dentro do contexto da
promessa messiânica a Sem. O texto não diz “Bendito seja Sem”, mas “Bendito seja
YaHWeH El de Sem”, isto é, “YaHWeH será tanto o Deus quanto a bênção de Sem”.
Canaã por sua vez não seria submisso apenas ao Deus de Sem, mas ao próprio irmão.
Aos descendentes de Sem seriam confiados a Aliança e o conhecimento do Senhor e
através dela sairia o Messias.
c) A bênção sobre Jafé
A bênção do Senhor sobre Jafé está subordinada a de Sem: “habite ele nas tendas de
Sem”, o que equivale a dizer que Jafé e Sem teriam relações diplomáticas amigáveis.
Todavia, ’Elohîm engrandeceria a Jafé de tal forma que Canaã lhe seria servo (v.27).
Além de Canaã receber a sua sentença imprecatória, esta foi reforçada em cada bênção
pronunciada a seus irmãos. Os cananitas seriam escravos tanto dos semitas (linhagem
judaica) quanto dos jafetitas (povos indo-europeus).
Assim, o pecado de Cam não foi a homossexualidade e a maldição sobre os seus
descendentes não foi a cor negra.