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Etnomatemática, currículo
     e práticas sociais do “mundo
         da construção civil”


                     Claudia Glavam Duarte*




Title: Ethomathematics, curriculum and social practices in the
“world of civil constuction”


Resumo

          O presente artigo é o resultado de uma pesquisa rea-
   lizada no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Gradua-
   ção em Educação da UNISINOS, envolvendo um grupo
   de jovens e adultos trabalhadores, pertencentes ao “mundo
   da construção civil”, alunos de um curso de suplência no-
   turno. Tal pesquisa teve como objetivos examinar como
   eram produzidos saberes matemáticos em práticas sociais
   desenvolvidas nos canteiros de obra e analisar as possíveis
   implicações curriculares que podiam ser inferidas a partir 195
   destes modos de produção. Nesta análise, foram também
   incorporadas algumas dimensões presentes nesta esfera so-


* Mestre em Educação pelo PPGEDU da UNISINOS, especialista em
  Metodologia do Ensino da Matemática pela FAPA, professora do cen-
  tro universitário FEEVALE e da Faculdade Cenecista de Osório -
  FACOS. E-mail: c.glavamm@ig.com.br

     EDUCAÇÃO UNISINOS
         EDUCAÇÃO UNISINOS 5 Vol. Nº 9 Nº 15
                         Vol.     8            JUL/DEZ
                                                    JUL/DEZ   2004 2004195-215
                                                                     p.
cial. Tal inclusão foi realizada por entender ser relevante
         articular a Educação Matemática com a cultura do grupo
         com o qual estava trabalhando. Para discutir os dados pro-
         venientes do material empírico coletado, utilizei, como
         referenciais teóricos, a Etnomatemática e os estudos con-
         temporâneos do currículo em suas aproximações com os
         estudos culturais. Essa discussão torna-se fértil na medida
         em que possibilita uma reflexão sobre o compromisso so-
         cial, político e cultural dos educadores, principalmente
         aqueles envolvidos com a Educação Popular.

      Palavras chave: etnomatemática, estudos culturais, práticas soci-
      ais, mundo da construção civil.


      Abstract

                This article resulted from a master’s research done at
         Graduate Studies Program in Education that involved a group
         of young adult and adult construction workers who were also
         students of an Adult Education Course in the evenings. The
         research goals were to examine how mathematical knowledge
         was produced in social practices developed in construction
         sites and to analyze the possible curricular implications that
         could be inferred from these modes of production. The
         analysis also incorporated some dimensions present in this
         social sphere. This incorporation was based on the
         understanding of the relevance of linking Mathematics
         Education with the culture of the group that was the research
         subject. Theoretical references to Ethnomathematics and
196      current reflections relating the curriculum to cultural studies
         were used to discuss and analyze the empirical data. This
         discussion is fruitful when it leads to a reflection about the
         educators’ social, political and cultural commitment,
         particularly the educators involved in Popular Education.

               Key words: Ethnomathematics, Cultural Studies,
         Social Practices, Civil Construction.

             EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
Introdução

          “Etnomatemática, currículo e práticas sociais do ‘mun-
  do da construção civil’” reúne reflexões oriundas de uma pes-
  quisa de Mestrado em Educação, cuja parte empírica envol-
  veu um grupo de cinco pedreiros, dois mestres-de-obra, qua-
  tro serventes e dois engenheiros. A pesquisa buscou exami-
  nar como eram produzidos saberes matemáticos em práticas
  sociais desenvolvidas nos canteiros-de-obra e analisar as pos-
  síveis implicações curriculares que podiam ser inferidas a partir
  destes modos de produção. Do ponto de vista metodológico,
  a pesquisa foi realizada através de procedimentos etnográficos.
  O material coletado foi analisado tendo como referenciais
  teóricos a Etnomatemática e os estudos contemporâneos do
  Currículo, em suas aproximações com os Estudos Culturais.
          A pesquisa originou-se de meu encontro, como pro-
  fessora de Matemática, com um grupo de alunos de um curso
  de suplência noturno. A maioria dos estudantes que freqüen-
  tavam tal curso eram trabalhadores que, após um dia inteiro
  de trabalho, muitas vezes exaustivo, freqüentavam as aulas
  com o objetivo de conseguir o tão sonhado diploma de con-
  clusão do ensino médio. O início de minha atividade docen-
  te com este grupo foi marcado pelo fascínio e ansiedade pro-
  porcionados por esta experiência, totalmente diferente para
  mim, de lecionar em um curso noturno, supletivo, para jo-
  vens e adultos trabalhadores. Com o passar do tempo, sentia-
  me cada vez mais envolvida com os alunos, cujas vidas, aos
  poucos, fui conhecendo melhor. Em muitos momentos, falá-
  vamos sobre política, sobre receitas culinárias, sobre traba-
  lho e desemprego. Porém, eu estava permanentemente aten-
  ta para a lista de conteúdos matemáticos que deveriam ser 197
  ensinados, mesmo que estes, sob nenhum aspecto, se relacio-
  nassem a este mundo sobre o qual conversávamos. Tal situa-
  ção deixava-me desconcertada, pois indicava a desconexão
  existente entre o trabalho pedagógico que realizava e as situ-
  ações vividas por meus alunos. Sentia-me angustiada, pois a
  vida “lá fora” teimosamente insistia e reclamava um espaço
  dentro de minhas aulas.

       EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
Fui me dando conta de que, apesar de todos os meus
      esforços, os procedimentos didáticos que havia desenvolvido
      até então para ensinar os conteúdos não eram suficientes para
      garantir um trabalho pedagógico relevante do ponto de vista
      social. Mesmo sendo tais procedimentos facilitadores para a
      compreensão dos conteúdos desenvolvidos, havia algo que
      eles não contemplavam, e isso dizia respeito à incorporação
      da cultura do grupo com o qual estava trabalhando. Deseja-
      va, dessa forma, ir ao encontro proposto por Gelsa Knijnik
      (2000, p. 50):

            nosso desafio é enraizar a Educação Matemática na cultura,
            cultura aqui entendida como algo que as pessoas e os grupos
            sociais produzem, que não está de uma vez por todas fixo, de-
            terminado, fechado nos seus significados.

             Neste sentido, muitos foram os alunos que me “cha-
      mavam” a responder ao desafio proposto por Knijnik. Paulo
      Freire (1995, p. 13), a respeito desta questão, afirma:

            não é possível a educadoras e educadores pensar apenas os
            procedimentos didáticos e os conteúdos a serem ensinados aos
            grupos populares. Os próprios conteúdos a serem ensinados
            não podem ser totalmente estranhos àquela cotidianidade. O
            que acontece, no meio popular, nas periferias das cidades, nos
            campos – trabalhadores urbanos e rurais reunindo-se para re-
            zar ou para discutir seus direitos –, nada pode escapar à curio-
            sidade arguta dos educadores envolvidos na prática da Educa-
            ção popular.

             No entanto, havia a necessidade de um
      direcionamento, de optar por pesquisar uma determinada
198   “cotidianidade”. Minha convivência com os alunos do su-
      pletivo e minha experiência como professora de Matemática
      me levaram a analisar como eram produzidos saberes matemáti-
      cos em práticas sociais do “mundo da construção civil” e que im-
      plicações curriculares podiam ser inferidas a partir daqueles mo-
      dos de produção.
             No processo de compreender os sentidos que eram da-
      dos pelos trabalhadores ao “mundo da construção civil”, fui

          EDUCAÇÃO UNISINOS     Vol. 8   Nº 15      JUL/DEZ       2004
configurando algumas dimensões significativas que com-
  põem esta esfera social.


Dimensões do “mundo da construção civil”

          Com a finalidade de compreender de forma mais den-
  sa a produção de saberes matemáticos nos canteiros de obra,
  em sua articulação com a cultura dos trabalhadores, busquei
  analisar algumas dimensões significativas que compunham o
  “mundo da construção civil”.
          As dimensões que procurei discutir e problematizar
  estavam inseridas, obviamente, nas complexas relações que
  constituem o “mundo da construção civil”. Segundo estudo
  realizado pelo DIEESE (2001), intitulado Os trabalhadores e
  a reestruturação produtiva na construção civil brasileira, este se-
  tor tem sido considerado um dos mais importantes da eco-
  nomia nacional. Tem contribuído de maneira significativa
  para o aumento no número de ofertas de vagas de trabalho,
  sendo denominado o “grande empregador de mão-de-obra”.
  Apesar do crescente aumento no número de postos de tra-
  balho oferecidos, o emprego formal neste setor era, no referi-
  do período, pequeno: envolvia novecentas e cinqüenta e
  quatro mil pessoas, ou 20,2% dos trabalhadores, enquanto
  outros 30,9%, embora assalariados, não possuíam vínculo
  empregatício. Analisar aspectos da economia informal signi-
  fica compreender o “mundo do trabalho”, onde estão inseri-
  dos a maioria dos jovens e adultos pertencentes às classes
  sociais subordinadas de nossa sociedade. Significa compre-
  ender uma “cotidianidade” permeada, muitas vezes, por re-
  lações de exploração e de submissão. Algumas foram as di- 199
  mensões que examinei, em maiores detalhes, referentes a este
  mundo. A primeira delas dizia respeito ao ingresso prematu-
  ro nesta profissão. Segundo meus entrevistados, a maioria
  deles iniciou seus trabalhos nos canteiros de obra ainda mui-
  to cedo, em torno dos dez anos, encaminhados geralmente
  pelo pai ou algum parente próximo. Construir a própria casa
  ou acompanhar alguém de mais idade para ajudar no servi-

       EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
ço, havia sido a “escola” que todos freqüentaram. Segundo
      alguns depoimentos, uma das tradições da família era o en-
      caminhamento do filho homem para aprender a profissão do
      pai. Isso, porém, não constituía uma regra. Seu Nei, pedreiro
      há 22 anos, relatou que se aproximara dos ofícios da cons-
      trução civil a partir da dificuldade econômica de sua famí-
      lia. As brincadeiras da infância e a escola foram substituí-
      das pelo trabalho que tinha como finalidade ajudar finan-
      ceiramente sua mãe. Segundo seu depoimento, “[...] eu
      queria estudar, mas não dava tempo. A minha mãe traba-
      lhava e mandava a gente estudar, mas a gente ficava jun-
      tando ferro velho e vendendo. [...] Eu não me arrependo da
      minha infância, só me arrependo de não ter estudado. Tal-
      vez fosse meu destino ser pedreiro, porque se eu tivesse
      estudado talvez eu não seria pedreiro hoje [...]”. Para seu
      Nei, este “destino” havia sido traçado desde a infância,
      quando, mesmo sem possuir uma intencionalidade, apro-
      ximou-se dos canteiros de obra. Segundo ele, a escola po-
      deria levá-lo a um “desvio”, ocasionando a modificação de
      uma rota que parecia já estabelecida, impossibilitando, as-
      sim, que seu “destino” se cumprisse...
              Em grande parte dos relatos que foram feitos a res-
      peito do ingresso prematuro no mundo do trabalho, per-
      cebi um certo orgulho de meus informantes de terem co-
      meçado cedo na profissão, mesmo que isto implicasse se
      afastarem dos bancos escolares. Além de obter a autoriza-
      ção do pai para iniciar-se no canteiro de obra, o que im-
      plicava o reconhecimento de uma capacidade do jovem
      por parte de seu progenitor, parecia também haver um
      certo fascínio produzido pelo ambiente estritamente mas-
200   culino, onde a força física era testada constantemente.
      Segundo Paul Willis (1991, p. 100), o jovem, com o in-
      gresso no mundo do trabalho pertencente aos adultos, se
      torna

            [...] alguém do mesmo mundo: o mundo operário masculino
            de independência, de ênfase na força física e de intimidação
            simbólica – e de não se intimidar com as coisas. O garoto torna-
            se uma força a ser levada em conta nesse mundo.

          EDUCAÇÃO UNISINOS     Vol. 8   Nº 15      JUL/DEZ       2004
Ao longo de minhas observações, pude perceber
que o canteiro de obra era um local propício para a pro-
dução de um certo tipo de masculinidade, onde a força
física era exaltada como uma característica desejável e que
deveria ser conquistada. Constatei que existia um duplo
movimento, pois o local de trabalho, ao mesmo tempo,
produzia e era produzido por esta masculinidade. Muitos
de meus entrevistados afirmaram ser este um local específi-
co para o trabalho masculino.
       Durante as entrevistas, também fui constatando que
meus informantes eram provenientes do interior do Estado
do Rio Grande do Sul. Ao fazer um levantamento sobre os
municípios onde nasceram, verifiquei que nenhum havia
nascido na capital. Na tentativa de entender este fato que,
para mim, inicialmente, representava somente uma casuali-
dade ocorrida no trabalho de campo, questionei meus entre-
vistados sobre este tema. Obtive argumentos que me surpre-
enderam. Segundo eles, existiam várias explicações para este
fato. Seu Luís, mestre-de-obra há 38 anos, justificou que o
trabalho de pedreiro “não exige muito saber e paga melhor”,
referindo-se às dificuldades que tivera para estudar e traba-
lhar no interior do estado. Para seu Nei, existia uma outra
explicação para este fato. Segundo ele, “as empreiteiras pre-
ferem o trabalhador do interior. Os caras daqui estão muito
espertos. A pessoa do interior é mais pessoa, mais firme, mais
dedicada, é mais trabalhador. E, além disso, eles [ empreitei-
ros] podem pagar menos, pois eles [trabalhadores do interior]
não sabem o valor que têm”.
       Na justificativa de seu Nei, está presente uma das nar-
rativas construídas sobre as pessoas que vivem no interior,
uma narrativa marcada pelo essencialismo e uma fixidez que 201
caracterizariam o “ser do interior”. As características: “[...]
mais firme, mais pessoa, mais dedicada, mais trabalhador [...]”,
segundo ele, eram vistas como positivas pelos donos de
empreiteiras. Para Celso e Gilmar, serventes de obra, a expli-
cação para tal fato estava vinculada à falta de oportunidade
para estudar no interior e às condições financeiras da fa-
mília. De acordo com Gilmar, “a gente tinha que traba-

     EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
lhar. A gente vendia aipim, bergamota... Fazer o segundo
      grau era em outra cidade”.
             Estes depoimentos levaram-me a concluir que havia
      um conjunto de fatores que contribuíam para que meus in-
      formantes estivessem, naquele momento, trabalhando no setor
      da construção civil. Além de procurar entender os motivos
      que direcionaram estes trabalhadores a seus ofícios e seu in-
      gresso prematuro na profissão, também estive interessada em
      examinar uma segunda dimensão presente no “mundo da
      construção civil”: as hierarquias ali presentes. Para meus en-
      trevistados, uma obra de grande porte possui funções bem
      definidas para cada um dos integrantes que dela participa: o
      engenheiro, o mestre-de-obra ou mestre geral, o contrames-
      tre, o pedreiro, o ferreiro, o carpinteiro, o azulejista e o ser-
      vente, cada um é responsável pela tarefa que lhe cabe. Ob-
      servei que os trabalhadores, ao descreverem a função execu-
      tada pelo mestre-de-obra, pareciam utilizar-se de uma certa
      ironia, mostrando desconsideração pelo trabalho realizado
      por este profissional. Eles associavam as tarefas deste traba-
      lhador a uma atividade mais “leve”. Este posicionamento
      pode ser pensado como uma dicotomização que estabeleci-
      am entre trabalho manual e trabalho mental ou em termos
      de teoria e prática. Pude perceber que a “teoria” só era bem-
      vinda se pudesse contribuir com suas práticas. Quando dis-
      cuti com seu Aristóteles, mestre-de-obra de 49 anos, sobre a
      desvalorização do trabalho intelectual apontada por alguns
      de meus informantes, ele afirmou: “acontece o seguinte, va-
      mos dizer assim, o engenheiro, o arquiteto, é claro, eles cur-
      saram a faculdade. E a gente, como eu, tinha o primário,
      quer dizer, que eles têm a teoria e eu tenho a prática. A gente
202   mata eles pelo seguinte: porque eles acham que só tendo a
      teoria eles sabem mais do que a gente. Mas não é assim.
      Quem tem a prática sabe mais. Só que a gente sabe duma
      forma e eles sabem de outra forma. Assim, a gente se
      desencontra nesse ponto: ele [engenheiro ou arquiteto] vai
      pelas normas, certinho, e a gente vai na metragem da visão”.
             A fala de seu Aristóteles relaciona a dicotomia tra-
      balho intelectual/trabalho manual à dicotomia teoria/prática.

          EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
Por um lado, ele valorizava o saber prático, mas, ao mes-
mo tempo, apontava para a legitimação social que possui
o saber de ordem teórica, adjetivando o conhecimento
teórico como aquele que segue normas, que é “certinho”,
enquanto o seu saber, alicerçado na prática, na “metragem
da visão”, não era socialmente valorizado, pois não o havia
aprendido na “faculdade”. Tais depoimentos indicavam
uma nítida demarcação de fronteiras entre os saberes dos
pedreiros e aqueles de domínio dos engenheiros. Grande
parte dos diálogos que presenciei no trabalho de campo,
no início de minha pesquisa, apontavam para o
privilegiamento dos saberes dos engenheiros.
        Inferi, na fase inicial do trabalho de campo, que mi-
nha posição de professora de Matemática, de alguém que
“havia cursado a faculdade”, parecia indicar, para eles, a im-
portância de legitimar os saberes provenientes da universi-
dade, pois, validando tais saberes, estariam legitimando mi-
nha condição de professora. Porém, com o passar do tempo,
depois de várias idas a campo e frente a “provas” de meu
desconhecimento das práticas sociais do “mundo da constru-
ção civil”, eu parecia ter obtido “autorização” para ouvir ou-
tros argumentos. Pude perceber que as dicotomias estabelecidas
entre “alta cultura” e “baixa cultura” não eram, como de início
pensei, tão facilmente aceitas pelo grupo que pesquisava. Pa-
recia haver entre eles um “acordo”, que legitimava seus sabe-
res em relação àqueles provenientes da academia.
        Além das dimensões do “mundo da construção civil”
até aqui analisadas, uma terceira foi por mim estudada. Esta
dizia respeito ao exame das habilidades e do alto grau de
inventividade dos trabalhadores que observei na resolução
de situações-problema advindas ou da precarização dos ins- 203
trumentos de trabalho ou da ausência de saberes escolares.
        Em muitas ocasiões, pude presenciar a capacidade dos
trabalhadores para “inventar” soluções práticas. Improvisar a
máquina de cortar azulejos com um motor de cortador de
grama, emendar fios para construir extensões, utilizar madei-
ras como auxílio para o reboco e preparar cunhas com
sobras de madeira foram alternativas que pude observar

     EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
sendo praticadas nos canteiros de obra. Existia uma capa-
      cidade dos trabalhadores para responder, de maneira qua-
      se que instantânea, aos problemas que iam surgindo.
             Além da habilidade para construir materiais alter-
      nativos e, assim, superar as precariedades de instrumentos
      de trabalho, também observei habilidades que diziam res-
      peito à busca de estratégias para solucionar a ausência de
      conhecimentos escolares. Seu Luís, pedreiro que freqüen-
      tava a classe de alfabetização do Curso Supletivo, dizia
      ter grandes dificuldades em utilizar algoritmos para efetu-
      ar os cálculos que eram necessários nos canteiros de obra.
      Segundo ele: “é uma dificuldade, até no serviço. Até pra
      fazer uma conta teria que ser diferente [...]”. Interessei-me
      pelo que ele afirmava que “teria que ser diferente” e, de-
      pois de várias explicações, entendi que, por exemplo, para
      determinar a metade do comprimento de uma parede, seu
      Luís procedia da seguinte maneira: escolhia uma ripa de
      madeira que fosse visivelmente maior do que estimava
      ser a metade do comprimento da parede. A seguir,
      posicionava esta ripa em uma das extremidades da parede
      e fazia uma marca com giz no local onde se encontrava o
      final desta. Procedia de modo análogo com a outra extre-
      midade. No final do processo, havia determinado um in-
      tervalo representado pelas duas marcas de giz. A seguir, com a
      trena, ele determinava a metade deste intervalo, o que
      correspondia ao ponto médio do comprimento da parede que
      buscava encontrar. A vantagem de tal método, segundo ele,
      era que os números “ficam pequenos e dá pra calcular de cabe-
      ça”. Seu Luís criava alternativas para superar as dificuldades
      que possuía com os “números grandes” e os algoritmos. Ele
204   buscava, desse modo, superar a ausência de saberes escolares.
             Muitas foram as ocasiões em que presenciei a constru-
      ção de estratégias próprias e criativas, mas nem sempre
      otimizadas, para resolver situações-problema. O desconheci-
      mento de saberes escolares, em casos mais extremos, impe-
      diu a execução dos serviços, como no caso de seu Arthur,
      ferreiro que, por não saber lidar com frações de polegada,
      ficou o dia sem poder trabalhar.

          EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
As experiências de seu Luís e de seu Arthur refor-
çaram meu entendimento sobre a importância do acesso,
para os grupos dominados, ao saber acadêmico, articu-
lando-o com os saberes populares. Knijnik (2002a, p. 59)
aponta para a qualificação das inter-relações entre os sa-
beres populares e os acadêmicos, possibilitando que os
sujeitos que integram o processo educativo compreendam
“de modo mais aprofundado sua própria cultura” e tam-
bém tenham “acesso à produção científica e tecnológica
contemporânea”. Monteiro e Pompeu (2001, p.54) tam-
bém se referem à articulação entre os saberes provenien-
tes de diferentes culturas, ao afirmar que:

      [...] o processo educacional deve estar atento ao reconheci-
      mento e ao respeito do saber presente no cotidiano do grupo, e
      também deve ter o compromisso de possibilitar acesso a outros
      conhecimentos, permitindo ao grupo olhar através de outra
      perspectiva.

      Nesse exercício de experienciar o novo e novamente voltar o
      olhar pela sua perspectiva, examinado-os simultaneamente, a
      fim de conhecer as semelhanças, as diferenças e estabelecendo
      relações, o grupo apropria-se do novo, porém, pleno de opções
      e certamente com possibilidades de criar um outro saber que
      não pertence nem à sua cultura nem à cultura de quem o
      influenciou.

      As dimensões do “mundo da construção civil”,
que procurei tecer para compor a “cotidianidade” dos
trabalhadores do “mundo da construção civil” estuda-
do, possibilitaram-me entender, de forma mais
abrangente, este espaço social e assim adensar a com-
preensão dos significados das práticas sociais específi- 205
cas deste mundo e os saberes matemáticos que os com-
põem. Busquei, durante todo o trabalho de campo,
analisar a emergência de tais saberes em sua vinculação
com a cultura dos trabalhadores. Para o objetivo que
me proponho neste artigo, descreverei somente duas
práticas sociais das quatro que foram analisadas na Dis-
sertação de Mestrado.

     EDUCAÇÃO UNISINOS     Vol. 8   Nº 15     JUL/DEZ       2004
As práticas sociais do “mundo da construção civil”

              A prática social de “misturar a massa”

               Durante o trabalho de campo, com muita freqüên-
        cia, observei pedreiros e serventes empenhados na execu-
        ção da prática social de “misturar a massa”. Esta se referia a
        uma mistura de areia, cimento e água e que, dependendo
        dos fins a que se destinava, poderia ainda conter, além des-
        tes ingredientes, brita. A mistura era utilizada com diferen-
        tes finalidades, como, por exemplo, concretar vigas e colu-
        nas, fazer contrapisos, assentar tijolos e rebocar paredes. A
        relação estipulada para a quantidade dos ingredientes esta-
        va associada a cada uma de tais finalidades. No entanto,
        constatei que nem sempre havia consenso entre os pedrei-
        ros e serventes sobre tais quantidades. Seu Pedro, que exer-
        cia a função de pedreiro há 20 anos, afirmou: “[...] geral-
        mente eles [pedreiros] usam a mesma medida, mas tem uns
        que não usam. Usam mais ...Usam menos... Isso aí é que
        diferencia, né? Cada um tem um jeito de fazer, né... E tem
        outros que fazem a massa mais fraca...”
               Foi esta diversidade de fazeres que observei entre
        os trabalhadores nos canteiros de obra estudados, onde
        “cada um tem um jeito de fazer”. Como uma “alienígena”
        do “mundo da construção civil”, não entendia as justifi-
        cativas para que as relações não se mantivessem constan-
        tes: por que fazer uma massa mais fraca ou mais forte?
        Quais eram as variáveis que interferiam nesta diversidade
        de ações? Que conhecimentos entravam em jogo e sus-
        tentavam tal diversidade? Tais questões me levaram a
206     buscar compreender os conhecimentos que, na prática
        social de “misturar a massa”, geravam fazeres diferentes.
               Uma primeira compreensão me foi dada por seu Renan,
        pedreiro que observei trabalhando na construção de sua casa.
               Para ele, havia uma variável preponderante na hora
        de decidir sobre as quantidades que seriam utilizadas na pre-
        paração da massa. Ele afirmou: “tem massa pra ‘pobre’:
        quatro pra um, e massa pra ‘rico’: três pra um”. Seu Renan

            EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
fazia uma diferenciação entre massa para “pobres e ricos”,
e esta distinção implicava a execução de práticas diferen-
tes. Quatro pra um significava que ele usaria quatro baldes
de areia para um de cimento; na razão três pra um, utiliza-
ria três baldes de areia para um de cimento.
        Porém, esta questão era tratada de um modo diferente
por outros trabalhadores. Seu Pedro não aceitava a distinção
de massa para “pobres” e massa para “ricos”. Segundo ele:
“a gente é pobre, mas a gente tem que pensar grande”.
Ele, apesar de conhecer as condições financeiras a que o
“pobre” era submetido, não modificava a relação entre os
ingredientes avaliada por ele como correta.
        Além das alterações na relação entre os ingredientes
em função do “rico” e do “pobre”, outras variáveis interferi-
am na prática de preparar a mistura. Em certa ocasião, obser-
vei Celso preparando a massa para concretar uma coluna.
Ele utilizou, para compor a massa, a seguinte relação entre os
ingredientes: duas pás de areia para metade de uma pá de
cimento. Como ele já havia mencionado, em uma entrevista
anterior, que, para preparar o concreto, utilizava três pra um
(três pás de areia para uma de cimento), me dei conta de que
agora, diferentemente do que afirmara, a relação era quatro
pra um. Ao questioná-lo sobre isso, ele respondeu: “O certo é
três pra um, mas pra um pilar [coluna] não precisa. Ele tá
trabalhando menos. Se fosse viga, aí sim. Quando é no chão
é quatro pra um. Quando é no ar é três pra um. As medidas
[quantidades] mudam de acordo com o peso [massa]. Se é
coluna, vai menos peso [massa] que a viga.” Neste caso, a
variável que interferia na composição da mistura estava rela-
cionada à massa que iria sustentar.
        Todos os meus informantes, ao expressarem a relação 207
que, na Matemática escolar, é expressa por x para y, somente
levavam em consideração a areia e o cimento para estipular a
razão. Quando os questionei sobre a quantidade de água e
brita, que também fazia parte da mistura, constatei que todos
conheciam o que era denominado por eles de “ponto da mas-
sa”. Fui levada a pensar que a experiência no ofício lhes possi-
bilitava um “saber ver”. Seu Luís afirmava, com certo orgu-

     EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
lho: “[...] até pela cor eu sei se ela [a massa] tá fraca ou forte”.
      Compreendi que a colocação da brita e da água estava relaci-
      onada a um “saber ver” desenvolvido pelos trabalhadores du-
      rante os longos anos dedicados ao exercício profissional.
              Neste sentido, pude presenciar idéias matemáticas
      relativas à razão, proporção e equivalências entre unida-
      des de medida sendo produzidas na prática social de “mis-
      turar a massa”. Poderia inferir que tais idéias, diferente-
      mente das situações propostas em sala de aula, estavam,
      como afirma Alexandrina Monteiro (2002, p. 106), “re-
      cheadas de vida”.

             A prática social de “fazer o gabarito”

              A segunda prática, que passo de forma sintetizada a
      descrever, consistia em efetuar marcações no terreno a fim
      de garantir ângulos retos para a alvenaria que será construída
      posteriormente e sua realização ocorre na fase inicial da cons-
      trução. Esta prática tem como lógica subjacente a relação de
      Pitágoras. Para demarcar um ângulo reto, os trabalhadores
      utilizavam a terna 60, 80 e 100 centímetros. Porém, o modo
      de operar com este conhecimento era diferente daquele de-
      senvolvido no contexto escolar. Para garantir que os ângulos
      do quadrilátero de lados opostos congruentes fossem efetiva-
      mente retos, isto é, que o quadrilátero fosse um retângulo,
      observei um procedimento diferenciado. Este dizia respeito
      ao fato de ser suficiente produzir somente um ângulo reto no
      quadrilátero e assim garantir que os demais ângulos também
      tivessem 90 graus. Seu Aristóteles justificou-me tal procedi-
      mento, afirmando: “Quando fechar um esquadro [o ângulo
208   reto], tá tudo... [no esquadro].” Tal afirmativa, feita por este
      trabalhador, apóia-se na seguinte propriedade dos
      paralelogramos: em todo paralelogramo, dois ângulos opos-
      tos quaisquer são congruentes. Portanto, se um dos ângu-
      los do paralelogramo mede 90 graus, seu oposto também
      terá a mesma medida. Como a soma dos ângulos internos
      de um quadrilátero é 360 graus e os outros dois ângulos
      do polígono são congruentes, cada um deles deve, neces-

          EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ    2004
sariamente, medir 90 graus. Seu Aristóteles, mesmo sem
conhecer tal propriedade, fazia uso, em sua prática, de tal
conhecimento, o qual operava no “mundo da construção
civil”, produzindo resultados relevantes.
       Após verificarem o “esquadro”, realizavam um se-
gundo procedimento. Este se referia à medição das
diagonais do retângulo. Segundo Valmir, pedreiro há 13
anos: “se elas [diagonais] têm a mesma medida, então está
certo [o esquadro]”. Seu Aristóteles enfatizava: “a prova
dos nove é verificar o xis [as medidas das diagonais]”. Os
trabalhadores que observei utilizavam-se de uma outra re-
lação, que não a de Pitágoras, para se certificarem de que
o quadrilátero possuía, efetivamente, ângulos retos. As-
sim, a professora de Matemática encontrava na prática
social de “fazer o gabarito” mais uma utilização de saberes
da Geometria: todo paralelogramo que tem diagonais
congruentes é um retângulo.
       Ao finalizar esta pesquisa, pude inferir que o “mun-
do da construção civil” desenhado por meus informantes,
e que busquei apreender com a realização da parte empírica
da pesquisa, encontrava-se permeado por saberes mate-
máticos que, na maioria das vezes, são ignorados pela es-
cola. Compreendi que, diferentemente da sala de aula, a
Matemática por eles desenvolvida estava “encharcada de
realidade” (Chassot, 2001, p. 98). Olhar para a “vida lá
fora” também me permitiu refletir sobre as desarticula-
ções entre estes saberes e os que pertencem ao “mundo da
escola”. As situações-problema encontradas nos cantei-
ros de obra, diferentemente das que até então propunha
em minhas aulas como professora de Matemática do Cur-
so Supletivo, nada tinham de artificiais, estavam com seus 209
significados enraizados na cultura do canteiro de obra. A
respeito das diferenças entre resolver situações-problema
na “vida real” e realizar meros exercícios de cálculo, Valerie
Walkerdine (1995, p. 222) é enfática:

      quando as crianças, nas esquinas de qualquer cidade latino-
      americana (ou, mais recentemente nas sinaleiras das


     EDUCAÇÃO UNISINOS    Vol. 8   Nº 15    JUL/DEZ      2004
intersecções movimentadas de Londres), vendem coisas e cer-
            tamente fazem cálculos que os/as psicólogos/as ocidentais su-
            põem que são muito avançados e complexos para elas, elas estão
            se envolvendo em atividades nas quais aquele cálculo é crucial.
            A sobrevivência da família pode depender disto. Dar o troco
            errado, neste caso, não é apenas um engano, pode significar a
            diferença entre comer e passar fome. Este cálculo faz parte de
            todo um corpo de práticas de intersecções, nas quais o pensa-
            mento mesmo é produzido, incorporado, emocionalmente car-
            regado. Já nos discursos escolares, o cálculo é considerado como
            parte do verdadeiro seguimento de regras [...].

             Eu, como professora de Matemática, estive, muitas
      vezes, atenta somente a este “verdadeiro seguimento de re-
      gras”. Lembro-me especificamente de um problema que, du-
      rante vários anos, utilizei para ensinar o conteúdo Regra de
      Três: “uma obra é construída em noventa dias por doze
      operários. Em quanto tempo essa obra seria construída
      por quinze operários?” (Bianchini, 1996, p. 176). Este pro-
      blema, para ser resolvido “de verdade”, necessitaria, no
      mínimo, de um acréscimo de informações. Se os alunos
      fossem trabalhadores da construção civil, provavelmente
      perguntariam: que tipo de obra é esta? Haverá necessida-
      de de improvisar materiais como, por exemplo, andaimes?
      O material necessário para a construção estará à disposi-
      ção ou haverá a necessidade de esperar pela entrega? E se
      chover? Mas, em minhas aulas sobre Regra de Três, estas
      variáveis não faziam parte das discussões. Estava interes-
      sada somente no “verdadeiro seguimento de regras” que
      produziriam o resultado, mesmo que este representasse uma
      situação fictícia.
             Disponibilizar somente os dados que achamos relevan-
210   tes, fazer a única pergunta que consideramos pertinente e
      esperar a resposta de acordo com os dados que selecionamos
      é o que Silva (2001, p. 9) designou “pensamento prêt-à-porter”,
      ou seja, tudo vem pronto. Somente resta decodificar os
      dados, seguir o algoritmo e dar a resposta desejada pelo
      professor. Tais atitudes, segundo Jurjo Torres Santomé
      (1996, p. 63), acabam por transformar a escola “no reino
      da artificialidade”.
          EDUCAÇÃO UNISINOS     Vol. 8   Nº 15     JUL/DEZ        2004
Tais discussões se tornam férteis quando examina-
das no âmbito escolar, pois, como afirma Marisa Vorraber
Costa (1999, p. 38), as escolas e o currículo devem ser
pensados como

      [...] territórios de produção, circulação e consolidação de signifi-
      cados, como espaços privilegiados de concretização da política da
      identidade. Quem tem força nessa política impõe ao mundo suas
      representações, o universo simbólico de sua cultura particular.

       Nestes “territórios” circulam narrativas particulares que
estabelecem “qual conhecimento é legítimo e qual é ilegíti-
mo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o
que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o
que é bom e o que é mau [...]” (Silva, 1998, p. 195). Tais
narrativas nos constituem como sujeitos de um modo muito
particular. Sandra Corazza (2001, p. 15), em sua obra intitulada
O que quer um currículo, afirma que “um currículo costuma
responder que quer ‘um sujeito’, que lhe permita reconhecer-
se nele”. Pergunto, então, que sujeito quer o currículo de Ma-
temática presente em nossas escolas? Que conhecimentos en-
tram em jogo para sustentar a construção de tal sujeito?
       A Etnomatemática tem contribuído com suas
teorizações para responder a tais questões, destacando que
os conhecimentos matemáticos que compõem o currículo
são conhecimentos muito particulares, específicos de um
determinado grupo (branco, europeu, masculino e urbano),
o qual impõe aos demais suas formas de lidar matematica-
mente com o mundo. Nesta perspectiva, faz-se necessária
uma discussão sobre os mecanismos que estão ativamente
envolvidos na legitimação do que conta como próprio/im-
próprio, válido/não válido para compor o currículo, tam- 211
bém na área da Matemática.
       Ao refletirmos sobre as práticas que constituem a
Matemática hoje ensinada nas escolas, verificamos que
estas propiciam a marginalização e o silenciamento de
vozes das chamadas “minorias”, provocando o que
Boaventura de Souza Santos (1996) denominou
“epistemicídio”, ou seja, “o extermínio de formas subor-
 EDUCAÇÃO UNISINOS
     EDUCAÇÃO UNISINOS 5 Vol. Nº 9 Nº 15
                     Vol.     8              JUL/DEZ
                                                  JUL/DEZ   2004 2004233-237
                                                                   p.
dinadas de conhecer” (Silva, 1998, p. 196). Contrapor-se
      a este “epistemicídio” significa garantir espaço, no currí-
      culo escolar, para estas formas subordinadas de conhecer,
      de entender e de explicar o mundo.
             A inclusão, no currículo escolar, destas formas não
      hegemônicas de conhecimentos pode contribuir para a
      desconstrução das concepções de inevitabilidade e naturali-
      dade das narrativas curriculares dominantes, que constituem
      o currículo de uma forma muito particular. Angela McRobbie
      (1998, p. 53), a respeito desta desconstrução, afirma que “é
      importante prestar uma atenção crítica ao campo da cultura
      dominante e ao mundo da representação e mostrar como os
      significados são construídos, como eles não são nem inevitá-
      veis nem naturais ou dados por Deus”. Estes posicionamentos,
      quando pensados na especificidade do conhecimento mate-
      mático, nos levam a problematizar o que tem conformado a
      Matemática escolar.
             Michel Foucault, em sua aula inaugural no Collège de
      France, em 1970, argumentava sobre a existência de
      “exterioridades selvagens”, ou seja, a existência de saberes
      “fora”, às margens das disciplinas. Segundo ele:

            uma disciplina não é a soma de tudo que pode ser dito de verda-
            deiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo
            o que pode ser aceito, a propósito de um mesmo dado, em
            virtude de um princípio de coerência ou sistematicidade. A
            medicina não é constituída de tudo o que se pode dizer de
            verdadeiro sobre a doença; a botânica não pode ser definida pela
            soma de todas as verdades que concernem às plantas [...]
            (Foucault, 2000, p. 31).

             Seguindo Foucault, diria então que a disciplina Ma-
212   temática não é a soma de tudo que pode ser dito de verda-
      deiro sobre os modos de classificar, de contar, de calcular e
      de medir. Assim, poderia inferir que existem “exterioridades
      selvagens” matemáticas no mundo “lá fora”. A
      Etnomatemática buscaria, então, incorporar ao currículo
      escolar tais exterioridades, produzindo “práticas selvagens”
      que, segundo Behdad (in Knijnik, 2002b, p. 4), são práticas
      “de oposição ao sistema, contestatórias e antidisciplinares”.
          EDUCAÇÃO UNISINOS     Vol. 8   Nº 15      JUL/DEZ       2004
Finalizando...

         Nestas páginas, procurei apresentar algumas di-
  mensões pertencentes ao mundo da construção civil e,
  a partir delas, adensar meu olhar sobre práticas que com-
  punham esta esfera social. Busquei, desta forma, exa-
  minar como eram produzidos saberes matemáticos nos
  canteiros de obra e analisar as desarticulações entre tais
  saberes e os saberes presentes no “mundo da escola”.
  Busquei problematizar a construção de fronteiras que
  implicam marginalização dos grupos subordinados e
  evidenciar o papel desempenhado pelo currículo esco-
  lar de Matemática como legitimador de alguns saberes,
  como espaço de luta onde alguns grupos tentam esta-
  belecer o seu modo de contar, de calcular, de medir,
  enfim, de explicar o mundo, como única possibilidade,
  como algo “natural e inevitável”. É no espaço do currí-
  culo, pode-se inferir, que se define o que vale a pena
  ensinar, o que é “certo”, “errado”, qual cultura é legíti-
  ma e qual não é.
         Pude ainda examinar o quanto as situações, presen-
  tes nos canteiros de obras, que envolviam saberes mate-
  máticos estavam “recheadas de vida”. Tais saberes, dife-
  rentemente das atividades usualmente propostas pela es-
  cola, levavam em consideração as contingências, as even-
  tualidades da “vida lá fora”.
         Para finalizar, poderia dizer que meu encontro com
  o “mundo da construção civil” possibilitou-me compreen-
  der, de forma mais densa, o que têm insistentemente afir-
  mado pesquisadores como Jurjo Torres (1998, p. 165):
  “os currículos planejados e desenvolvidos nas salas de 213
  aula vêm pecando por uma grande parcialidade no
  momento de definir a cultura legítima, os conteúdos
  culturais que valem a pena”. Neste sentido, podemos
  conceber o currículo, segundo Silva (1998, p. 195),
  como um discurso que, ao corporificar narrativas parti-
  culares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui
  como sujeitos — e sujeitos também muito particulares.

       EDUCAÇÃO UNISINOS   Vol. 8   Nº 15   JUL/DEZ   2004
Referências

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      ção. 2ª ed., Ijuí, UNIJUÍ.
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      DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTUDOS E ESTATÍSTICAS
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                                                                                    215




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Etnomatemática, currículo e práticas sociais do mundo...

  • 1. Etnomatemática, currículo e práticas sociais do “mundo da construção civil” Claudia Glavam Duarte* Title: Ethomathematics, curriculum and social practices in the “world of civil constuction” Resumo O presente artigo é o resultado de uma pesquisa rea- lizada no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Gradua- ção em Educação da UNISINOS, envolvendo um grupo de jovens e adultos trabalhadores, pertencentes ao “mundo da construção civil”, alunos de um curso de suplência no- turno. Tal pesquisa teve como objetivos examinar como eram produzidos saberes matemáticos em práticas sociais desenvolvidas nos canteiros de obra e analisar as possíveis implicações curriculares que podiam ser inferidas a partir 195 destes modos de produção. Nesta análise, foram também incorporadas algumas dimensões presentes nesta esfera so- * Mestre em Educação pelo PPGEDU da UNISINOS, especialista em Metodologia do Ensino da Matemática pela FAPA, professora do cen- tro universitário FEEVALE e da Faculdade Cenecista de Osório - FACOS. E-mail: c.glavamm@ig.com.br EDUCAÇÃO UNISINOS EDUCAÇÃO UNISINOS 5 Vol. Nº 9 Nº 15 Vol. 8 JUL/DEZ JUL/DEZ 2004 2004195-215 p.
  • 2. cial. Tal inclusão foi realizada por entender ser relevante articular a Educação Matemática com a cultura do grupo com o qual estava trabalhando. Para discutir os dados pro- venientes do material empírico coletado, utilizei, como referenciais teóricos, a Etnomatemática e os estudos con- temporâneos do currículo em suas aproximações com os estudos culturais. Essa discussão torna-se fértil na medida em que possibilita uma reflexão sobre o compromisso so- cial, político e cultural dos educadores, principalmente aqueles envolvidos com a Educação Popular. Palavras chave: etnomatemática, estudos culturais, práticas soci- ais, mundo da construção civil. Abstract This article resulted from a master’s research done at Graduate Studies Program in Education that involved a group of young adult and adult construction workers who were also students of an Adult Education Course in the evenings. The research goals were to examine how mathematical knowledge was produced in social practices developed in construction sites and to analyze the possible curricular implications that could be inferred from these modes of production. The analysis also incorporated some dimensions present in this social sphere. This incorporation was based on the understanding of the relevance of linking Mathematics Education with the culture of the group that was the research subject. Theoretical references to Ethnomathematics and 196 current reflections relating the curriculum to cultural studies were used to discuss and analyze the empirical data. This discussion is fruitful when it leads to a reflection about the educators’ social, political and cultural commitment, particularly the educators involved in Popular Education. Key words: Ethnomathematics, Cultural Studies, Social Practices, Civil Construction. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 3. Introdução “Etnomatemática, currículo e práticas sociais do ‘mun- do da construção civil’” reúne reflexões oriundas de uma pes- quisa de Mestrado em Educação, cuja parte empírica envol- veu um grupo de cinco pedreiros, dois mestres-de-obra, qua- tro serventes e dois engenheiros. A pesquisa buscou exami- nar como eram produzidos saberes matemáticos em práticas sociais desenvolvidas nos canteiros-de-obra e analisar as pos- síveis implicações curriculares que podiam ser inferidas a partir destes modos de produção. Do ponto de vista metodológico, a pesquisa foi realizada através de procedimentos etnográficos. O material coletado foi analisado tendo como referenciais teóricos a Etnomatemática e os estudos contemporâneos do Currículo, em suas aproximações com os Estudos Culturais. A pesquisa originou-se de meu encontro, como pro- fessora de Matemática, com um grupo de alunos de um curso de suplência noturno. A maioria dos estudantes que freqüen- tavam tal curso eram trabalhadores que, após um dia inteiro de trabalho, muitas vezes exaustivo, freqüentavam as aulas com o objetivo de conseguir o tão sonhado diploma de con- clusão do ensino médio. O início de minha atividade docen- te com este grupo foi marcado pelo fascínio e ansiedade pro- porcionados por esta experiência, totalmente diferente para mim, de lecionar em um curso noturno, supletivo, para jo- vens e adultos trabalhadores. Com o passar do tempo, sentia- me cada vez mais envolvida com os alunos, cujas vidas, aos poucos, fui conhecendo melhor. Em muitos momentos, falá- vamos sobre política, sobre receitas culinárias, sobre traba- lho e desemprego. Porém, eu estava permanentemente aten- ta para a lista de conteúdos matemáticos que deveriam ser 197 ensinados, mesmo que estes, sob nenhum aspecto, se relacio- nassem a este mundo sobre o qual conversávamos. Tal situa- ção deixava-me desconcertada, pois indicava a desconexão existente entre o trabalho pedagógico que realizava e as situ- ações vividas por meus alunos. Sentia-me angustiada, pois a vida “lá fora” teimosamente insistia e reclamava um espaço dentro de minhas aulas. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 4. Fui me dando conta de que, apesar de todos os meus esforços, os procedimentos didáticos que havia desenvolvido até então para ensinar os conteúdos não eram suficientes para garantir um trabalho pedagógico relevante do ponto de vista social. Mesmo sendo tais procedimentos facilitadores para a compreensão dos conteúdos desenvolvidos, havia algo que eles não contemplavam, e isso dizia respeito à incorporação da cultura do grupo com o qual estava trabalhando. Deseja- va, dessa forma, ir ao encontro proposto por Gelsa Knijnik (2000, p. 50): nosso desafio é enraizar a Educação Matemática na cultura, cultura aqui entendida como algo que as pessoas e os grupos sociais produzem, que não está de uma vez por todas fixo, de- terminado, fechado nos seus significados. Neste sentido, muitos foram os alunos que me “cha- mavam” a responder ao desafio proposto por Knijnik. Paulo Freire (1995, p. 13), a respeito desta questão, afirma: não é possível a educadoras e educadores pensar apenas os procedimentos didáticos e os conteúdos a serem ensinados aos grupos populares. Os próprios conteúdos a serem ensinados não podem ser totalmente estranhos àquela cotidianidade. O que acontece, no meio popular, nas periferias das cidades, nos campos – trabalhadores urbanos e rurais reunindo-se para re- zar ou para discutir seus direitos –, nada pode escapar à curio- sidade arguta dos educadores envolvidos na prática da Educa- ção popular. No entanto, havia a necessidade de um direcionamento, de optar por pesquisar uma determinada 198 “cotidianidade”. Minha convivência com os alunos do su- pletivo e minha experiência como professora de Matemática me levaram a analisar como eram produzidos saberes matemáti- cos em práticas sociais do “mundo da construção civil” e que im- plicações curriculares podiam ser inferidas a partir daqueles mo- dos de produção. No processo de compreender os sentidos que eram da- dos pelos trabalhadores ao “mundo da construção civil”, fui EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 5. configurando algumas dimensões significativas que com- põem esta esfera social. Dimensões do “mundo da construção civil” Com a finalidade de compreender de forma mais den- sa a produção de saberes matemáticos nos canteiros de obra, em sua articulação com a cultura dos trabalhadores, busquei analisar algumas dimensões significativas que compunham o “mundo da construção civil”. As dimensões que procurei discutir e problematizar estavam inseridas, obviamente, nas complexas relações que constituem o “mundo da construção civil”. Segundo estudo realizado pelo DIEESE (2001), intitulado Os trabalhadores e a reestruturação produtiva na construção civil brasileira, este se- tor tem sido considerado um dos mais importantes da eco- nomia nacional. Tem contribuído de maneira significativa para o aumento no número de ofertas de vagas de trabalho, sendo denominado o “grande empregador de mão-de-obra”. Apesar do crescente aumento no número de postos de tra- balho oferecidos, o emprego formal neste setor era, no referi- do período, pequeno: envolvia novecentas e cinqüenta e quatro mil pessoas, ou 20,2% dos trabalhadores, enquanto outros 30,9%, embora assalariados, não possuíam vínculo empregatício. Analisar aspectos da economia informal signi- fica compreender o “mundo do trabalho”, onde estão inseri- dos a maioria dos jovens e adultos pertencentes às classes sociais subordinadas de nossa sociedade. Significa compre- ender uma “cotidianidade” permeada, muitas vezes, por re- lações de exploração e de submissão. Algumas foram as di- 199 mensões que examinei, em maiores detalhes, referentes a este mundo. A primeira delas dizia respeito ao ingresso prematu- ro nesta profissão. Segundo meus entrevistados, a maioria deles iniciou seus trabalhos nos canteiros de obra ainda mui- to cedo, em torno dos dez anos, encaminhados geralmente pelo pai ou algum parente próximo. Construir a própria casa ou acompanhar alguém de mais idade para ajudar no servi- EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 6. ço, havia sido a “escola” que todos freqüentaram. Segundo alguns depoimentos, uma das tradições da família era o en- caminhamento do filho homem para aprender a profissão do pai. Isso, porém, não constituía uma regra. Seu Nei, pedreiro há 22 anos, relatou que se aproximara dos ofícios da cons- trução civil a partir da dificuldade econômica de sua famí- lia. As brincadeiras da infância e a escola foram substituí- das pelo trabalho que tinha como finalidade ajudar finan- ceiramente sua mãe. Segundo seu depoimento, “[...] eu queria estudar, mas não dava tempo. A minha mãe traba- lhava e mandava a gente estudar, mas a gente ficava jun- tando ferro velho e vendendo. [...] Eu não me arrependo da minha infância, só me arrependo de não ter estudado. Tal- vez fosse meu destino ser pedreiro, porque se eu tivesse estudado talvez eu não seria pedreiro hoje [...]”. Para seu Nei, este “destino” havia sido traçado desde a infância, quando, mesmo sem possuir uma intencionalidade, apro- ximou-se dos canteiros de obra. Segundo ele, a escola po- deria levá-lo a um “desvio”, ocasionando a modificação de uma rota que parecia já estabelecida, impossibilitando, as- sim, que seu “destino” se cumprisse... Em grande parte dos relatos que foram feitos a res- peito do ingresso prematuro no mundo do trabalho, per- cebi um certo orgulho de meus informantes de terem co- meçado cedo na profissão, mesmo que isto implicasse se afastarem dos bancos escolares. Além de obter a autoriza- ção do pai para iniciar-se no canteiro de obra, o que im- plicava o reconhecimento de uma capacidade do jovem por parte de seu progenitor, parecia também haver um certo fascínio produzido pelo ambiente estritamente mas- 200 culino, onde a força física era testada constantemente. Segundo Paul Willis (1991, p. 100), o jovem, com o in- gresso no mundo do trabalho pertencente aos adultos, se torna [...] alguém do mesmo mundo: o mundo operário masculino de independência, de ênfase na força física e de intimidação simbólica – e de não se intimidar com as coisas. O garoto torna- se uma força a ser levada em conta nesse mundo. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 7. Ao longo de minhas observações, pude perceber que o canteiro de obra era um local propício para a pro- dução de um certo tipo de masculinidade, onde a força física era exaltada como uma característica desejável e que deveria ser conquistada. Constatei que existia um duplo movimento, pois o local de trabalho, ao mesmo tempo, produzia e era produzido por esta masculinidade. Muitos de meus entrevistados afirmaram ser este um local específi- co para o trabalho masculino. Durante as entrevistas, também fui constatando que meus informantes eram provenientes do interior do Estado do Rio Grande do Sul. Ao fazer um levantamento sobre os municípios onde nasceram, verifiquei que nenhum havia nascido na capital. Na tentativa de entender este fato que, para mim, inicialmente, representava somente uma casuali- dade ocorrida no trabalho de campo, questionei meus entre- vistados sobre este tema. Obtive argumentos que me surpre- enderam. Segundo eles, existiam várias explicações para este fato. Seu Luís, mestre-de-obra há 38 anos, justificou que o trabalho de pedreiro “não exige muito saber e paga melhor”, referindo-se às dificuldades que tivera para estudar e traba- lhar no interior do estado. Para seu Nei, existia uma outra explicação para este fato. Segundo ele, “as empreiteiras pre- ferem o trabalhador do interior. Os caras daqui estão muito espertos. A pessoa do interior é mais pessoa, mais firme, mais dedicada, é mais trabalhador. E, além disso, eles [ empreitei- ros] podem pagar menos, pois eles [trabalhadores do interior] não sabem o valor que têm”. Na justificativa de seu Nei, está presente uma das nar- rativas construídas sobre as pessoas que vivem no interior, uma narrativa marcada pelo essencialismo e uma fixidez que 201 caracterizariam o “ser do interior”. As características: “[...] mais firme, mais pessoa, mais dedicada, mais trabalhador [...]”, segundo ele, eram vistas como positivas pelos donos de empreiteiras. Para Celso e Gilmar, serventes de obra, a expli- cação para tal fato estava vinculada à falta de oportunidade para estudar no interior e às condições financeiras da fa- mília. De acordo com Gilmar, “a gente tinha que traba- EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 8. lhar. A gente vendia aipim, bergamota... Fazer o segundo grau era em outra cidade”. Estes depoimentos levaram-me a concluir que havia um conjunto de fatores que contribuíam para que meus in- formantes estivessem, naquele momento, trabalhando no setor da construção civil. Além de procurar entender os motivos que direcionaram estes trabalhadores a seus ofícios e seu in- gresso prematuro na profissão, também estive interessada em examinar uma segunda dimensão presente no “mundo da construção civil”: as hierarquias ali presentes. Para meus en- trevistados, uma obra de grande porte possui funções bem definidas para cada um dos integrantes que dela participa: o engenheiro, o mestre-de-obra ou mestre geral, o contrames- tre, o pedreiro, o ferreiro, o carpinteiro, o azulejista e o ser- vente, cada um é responsável pela tarefa que lhe cabe. Ob- servei que os trabalhadores, ao descreverem a função execu- tada pelo mestre-de-obra, pareciam utilizar-se de uma certa ironia, mostrando desconsideração pelo trabalho realizado por este profissional. Eles associavam as tarefas deste traba- lhador a uma atividade mais “leve”. Este posicionamento pode ser pensado como uma dicotomização que estabeleci- am entre trabalho manual e trabalho mental ou em termos de teoria e prática. Pude perceber que a “teoria” só era bem- vinda se pudesse contribuir com suas práticas. Quando dis- cuti com seu Aristóteles, mestre-de-obra de 49 anos, sobre a desvalorização do trabalho intelectual apontada por alguns de meus informantes, ele afirmou: “acontece o seguinte, va- mos dizer assim, o engenheiro, o arquiteto, é claro, eles cur- saram a faculdade. E a gente, como eu, tinha o primário, quer dizer, que eles têm a teoria e eu tenho a prática. A gente 202 mata eles pelo seguinte: porque eles acham que só tendo a teoria eles sabem mais do que a gente. Mas não é assim. Quem tem a prática sabe mais. Só que a gente sabe duma forma e eles sabem de outra forma. Assim, a gente se desencontra nesse ponto: ele [engenheiro ou arquiteto] vai pelas normas, certinho, e a gente vai na metragem da visão”. A fala de seu Aristóteles relaciona a dicotomia tra- balho intelectual/trabalho manual à dicotomia teoria/prática. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 9. Por um lado, ele valorizava o saber prático, mas, ao mes- mo tempo, apontava para a legitimação social que possui o saber de ordem teórica, adjetivando o conhecimento teórico como aquele que segue normas, que é “certinho”, enquanto o seu saber, alicerçado na prática, na “metragem da visão”, não era socialmente valorizado, pois não o havia aprendido na “faculdade”. Tais depoimentos indicavam uma nítida demarcação de fronteiras entre os saberes dos pedreiros e aqueles de domínio dos engenheiros. Grande parte dos diálogos que presenciei no trabalho de campo, no início de minha pesquisa, apontavam para o privilegiamento dos saberes dos engenheiros. Inferi, na fase inicial do trabalho de campo, que mi- nha posição de professora de Matemática, de alguém que “havia cursado a faculdade”, parecia indicar, para eles, a im- portância de legitimar os saberes provenientes da universi- dade, pois, validando tais saberes, estariam legitimando mi- nha condição de professora. Porém, com o passar do tempo, depois de várias idas a campo e frente a “provas” de meu desconhecimento das práticas sociais do “mundo da constru- ção civil”, eu parecia ter obtido “autorização” para ouvir ou- tros argumentos. Pude perceber que as dicotomias estabelecidas entre “alta cultura” e “baixa cultura” não eram, como de início pensei, tão facilmente aceitas pelo grupo que pesquisava. Pa- recia haver entre eles um “acordo”, que legitimava seus sabe- res em relação àqueles provenientes da academia. Além das dimensões do “mundo da construção civil” até aqui analisadas, uma terceira foi por mim estudada. Esta dizia respeito ao exame das habilidades e do alto grau de inventividade dos trabalhadores que observei na resolução de situações-problema advindas ou da precarização dos ins- 203 trumentos de trabalho ou da ausência de saberes escolares. Em muitas ocasiões, pude presenciar a capacidade dos trabalhadores para “inventar” soluções práticas. Improvisar a máquina de cortar azulejos com um motor de cortador de grama, emendar fios para construir extensões, utilizar madei- ras como auxílio para o reboco e preparar cunhas com sobras de madeira foram alternativas que pude observar EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 10. sendo praticadas nos canteiros de obra. Existia uma capa- cidade dos trabalhadores para responder, de maneira qua- se que instantânea, aos problemas que iam surgindo. Além da habilidade para construir materiais alter- nativos e, assim, superar as precariedades de instrumentos de trabalho, também observei habilidades que diziam res- peito à busca de estratégias para solucionar a ausência de conhecimentos escolares. Seu Luís, pedreiro que freqüen- tava a classe de alfabetização do Curso Supletivo, dizia ter grandes dificuldades em utilizar algoritmos para efetu- ar os cálculos que eram necessários nos canteiros de obra. Segundo ele: “é uma dificuldade, até no serviço. Até pra fazer uma conta teria que ser diferente [...]”. Interessei-me pelo que ele afirmava que “teria que ser diferente” e, de- pois de várias explicações, entendi que, por exemplo, para determinar a metade do comprimento de uma parede, seu Luís procedia da seguinte maneira: escolhia uma ripa de madeira que fosse visivelmente maior do que estimava ser a metade do comprimento da parede. A seguir, posicionava esta ripa em uma das extremidades da parede e fazia uma marca com giz no local onde se encontrava o final desta. Procedia de modo análogo com a outra extre- midade. No final do processo, havia determinado um in- tervalo representado pelas duas marcas de giz. A seguir, com a trena, ele determinava a metade deste intervalo, o que correspondia ao ponto médio do comprimento da parede que buscava encontrar. A vantagem de tal método, segundo ele, era que os números “ficam pequenos e dá pra calcular de cabe- ça”. Seu Luís criava alternativas para superar as dificuldades que possuía com os “números grandes” e os algoritmos. Ele 204 buscava, desse modo, superar a ausência de saberes escolares. Muitas foram as ocasiões em que presenciei a constru- ção de estratégias próprias e criativas, mas nem sempre otimizadas, para resolver situações-problema. O desconheci- mento de saberes escolares, em casos mais extremos, impe- diu a execução dos serviços, como no caso de seu Arthur, ferreiro que, por não saber lidar com frações de polegada, ficou o dia sem poder trabalhar. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 11. As experiências de seu Luís e de seu Arthur refor- çaram meu entendimento sobre a importância do acesso, para os grupos dominados, ao saber acadêmico, articu- lando-o com os saberes populares. Knijnik (2002a, p. 59) aponta para a qualificação das inter-relações entre os sa- beres populares e os acadêmicos, possibilitando que os sujeitos que integram o processo educativo compreendam “de modo mais aprofundado sua própria cultura” e tam- bém tenham “acesso à produção científica e tecnológica contemporânea”. Monteiro e Pompeu (2001, p.54) tam- bém se referem à articulação entre os saberes provenien- tes de diferentes culturas, ao afirmar que: [...] o processo educacional deve estar atento ao reconheci- mento e ao respeito do saber presente no cotidiano do grupo, e também deve ter o compromisso de possibilitar acesso a outros conhecimentos, permitindo ao grupo olhar através de outra perspectiva. Nesse exercício de experienciar o novo e novamente voltar o olhar pela sua perspectiva, examinado-os simultaneamente, a fim de conhecer as semelhanças, as diferenças e estabelecendo relações, o grupo apropria-se do novo, porém, pleno de opções e certamente com possibilidades de criar um outro saber que não pertence nem à sua cultura nem à cultura de quem o influenciou. As dimensões do “mundo da construção civil”, que procurei tecer para compor a “cotidianidade” dos trabalhadores do “mundo da construção civil” estuda- do, possibilitaram-me entender, de forma mais abrangente, este espaço social e assim adensar a com- preensão dos significados das práticas sociais específi- 205 cas deste mundo e os saberes matemáticos que os com- põem. Busquei, durante todo o trabalho de campo, analisar a emergência de tais saberes em sua vinculação com a cultura dos trabalhadores. Para o objetivo que me proponho neste artigo, descreverei somente duas práticas sociais das quatro que foram analisadas na Dis- sertação de Mestrado. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 12. As práticas sociais do “mundo da construção civil” A prática social de “misturar a massa” Durante o trabalho de campo, com muita freqüên- cia, observei pedreiros e serventes empenhados na execu- ção da prática social de “misturar a massa”. Esta se referia a uma mistura de areia, cimento e água e que, dependendo dos fins a que se destinava, poderia ainda conter, além des- tes ingredientes, brita. A mistura era utilizada com diferen- tes finalidades, como, por exemplo, concretar vigas e colu- nas, fazer contrapisos, assentar tijolos e rebocar paredes. A relação estipulada para a quantidade dos ingredientes esta- va associada a cada uma de tais finalidades. No entanto, constatei que nem sempre havia consenso entre os pedrei- ros e serventes sobre tais quantidades. Seu Pedro, que exer- cia a função de pedreiro há 20 anos, afirmou: “[...] geral- mente eles [pedreiros] usam a mesma medida, mas tem uns que não usam. Usam mais ...Usam menos... Isso aí é que diferencia, né? Cada um tem um jeito de fazer, né... E tem outros que fazem a massa mais fraca...” Foi esta diversidade de fazeres que observei entre os trabalhadores nos canteiros de obra estudados, onde “cada um tem um jeito de fazer”. Como uma “alienígena” do “mundo da construção civil”, não entendia as justifi- cativas para que as relações não se mantivessem constan- tes: por que fazer uma massa mais fraca ou mais forte? Quais eram as variáveis que interferiam nesta diversidade de ações? Que conhecimentos entravam em jogo e sus- tentavam tal diversidade? Tais questões me levaram a 206 buscar compreender os conhecimentos que, na prática social de “misturar a massa”, geravam fazeres diferentes. Uma primeira compreensão me foi dada por seu Renan, pedreiro que observei trabalhando na construção de sua casa. Para ele, havia uma variável preponderante na hora de decidir sobre as quantidades que seriam utilizadas na pre- paração da massa. Ele afirmou: “tem massa pra ‘pobre’: quatro pra um, e massa pra ‘rico’: três pra um”. Seu Renan EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 13. fazia uma diferenciação entre massa para “pobres e ricos”, e esta distinção implicava a execução de práticas diferen- tes. Quatro pra um significava que ele usaria quatro baldes de areia para um de cimento; na razão três pra um, utiliza- ria três baldes de areia para um de cimento. Porém, esta questão era tratada de um modo diferente por outros trabalhadores. Seu Pedro não aceitava a distinção de massa para “pobres” e massa para “ricos”. Segundo ele: “a gente é pobre, mas a gente tem que pensar grande”. Ele, apesar de conhecer as condições financeiras a que o “pobre” era submetido, não modificava a relação entre os ingredientes avaliada por ele como correta. Além das alterações na relação entre os ingredientes em função do “rico” e do “pobre”, outras variáveis interferi- am na prática de preparar a mistura. Em certa ocasião, obser- vei Celso preparando a massa para concretar uma coluna. Ele utilizou, para compor a massa, a seguinte relação entre os ingredientes: duas pás de areia para metade de uma pá de cimento. Como ele já havia mencionado, em uma entrevista anterior, que, para preparar o concreto, utilizava três pra um (três pás de areia para uma de cimento), me dei conta de que agora, diferentemente do que afirmara, a relação era quatro pra um. Ao questioná-lo sobre isso, ele respondeu: “O certo é três pra um, mas pra um pilar [coluna] não precisa. Ele tá trabalhando menos. Se fosse viga, aí sim. Quando é no chão é quatro pra um. Quando é no ar é três pra um. As medidas [quantidades] mudam de acordo com o peso [massa]. Se é coluna, vai menos peso [massa] que a viga.” Neste caso, a variável que interferia na composição da mistura estava rela- cionada à massa que iria sustentar. Todos os meus informantes, ao expressarem a relação 207 que, na Matemática escolar, é expressa por x para y, somente levavam em consideração a areia e o cimento para estipular a razão. Quando os questionei sobre a quantidade de água e brita, que também fazia parte da mistura, constatei que todos conheciam o que era denominado por eles de “ponto da mas- sa”. Fui levada a pensar que a experiência no ofício lhes possi- bilitava um “saber ver”. Seu Luís afirmava, com certo orgu- EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 14. lho: “[...] até pela cor eu sei se ela [a massa] tá fraca ou forte”. Compreendi que a colocação da brita e da água estava relaci- onada a um “saber ver” desenvolvido pelos trabalhadores du- rante os longos anos dedicados ao exercício profissional. Neste sentido, pude presenciar idéias matemáticas relativas à razão, proporção e equivalências entre unida- des de medida sendo produzidas na prática social de “mis- turar a massa”. Poderia inferir que tais idéias, diferente- mente das situações propostas em sala de aula, estavam, como afirma Alexandrina Monteiro (2002, p. 106), “re- cheadas de vida”. A prática social de “fazer o gabarito” A segunda prática, que passo de forma sintetizada a descrever, consistia em efetuar marcações no terreno a fim de garantir ângulos retos para a alvenaria que será construída posteriormente e sua realização ocorre na fase inicial da cons- trução. Esta prática tem como lógica subjacente a relação de Pitágoras. Para demarcar um ângulo reto, os trabalhadores utilizavam a terna 60, 80 e 100 centímetros. Porém, o modo de operar com este conhecimento era diferente daquele de- senvolvido no contexto escolar. Para garantir que os ângulos do quadrilátero de lados opostos congruentes fossem efetiva- mente retos, isto é, que o quadrilátero fosse um retângulo, observei um procedimento diferenciado. Este dizia respeito ao fato de ser suficiente produzir somente um ângulo reto no quadrilátero e assim garantir que os demais ângulos também tivessem 90 graus. Seu Aristóteles justificou-me tal procedi- mento, afirmando: “Quando fechar um esquadro [o ângulo 208 reto], tá tudo... [no esquadro].” Tal afirmativa, feita por este trabalhador, apóia-se na seguinte propriedade dos paralelogramos: em todo paralelogramo, dois ângulos opos- tos quaisquer são congruentes. Portanto, se um dos ângu- los do paralelogramo mede 90 graus, seu oposto também terá a mesma medida. Como a soma dos ângulos internos de um quadrilátero é 360 graus e os outros dois ângulos do polígono são congruentes, cada um deles deve, neces- EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 15. sariamente, medir 90 graus. Seu Aristóteles, mesmo sem conhecer tal propriedade, fazia uso, em sua prática, de tal conhecimento, o qual operava no “mundo da construção civil”, produzindo resultados relevantes. Após verificarem o “esquadro”, realizavam um se- gundo procedimento. Este se referia à medição das diagonais do retângulo. Segundo Valmir, pedreiro há 13 anos: “se elas [diagonais] têm a mesma medida, então está certo [o esquadro]”. Seu Aristóteles enfatizava: “a prova dos nove é verificar o xis [as medidas das diagonais]”. Os trabalhadores que observei utilizavam-se de uma outra re- lação, que não a de Pitágoras, para se certificarem de que o quadrilátero possuía, efetivamente, ângulos retos. As- sim, a professora de Matemática encontrava na prática social de “fazer o gabarito” mais uma utilização de saberes da Geometria: todo paralelogramo que tem diagonais congruentes é um retângulo. Ao finalizar esta pesquisa, pude inferir que o “mun- do da construção civil” desenhado por meus informantes, e que busquei apreender com a realização da parte empírica da pesquisa, encontrava-se permeado por saberes mate- máticos que, na maioria das vezes, são ignorados pela es- cola. Compreendi que, diferentemente da sala de aula, a Matemática por eles desenvolvida estava “encharcada de realidade” (Chassot, 2001, p. 98). Olhar para a “vida lá fora” também me permitiu refletir sobre as desarticula- ções entre estes saberes e os que pertencem ao “mundo da escola”. As situações-problema encontradas nos cantei- ros de obra, diferentemente das que até então propunha em minhas aulas como professora de Matemática do Cur- so Supletivo, nada tinham de artificiais, estavam com seus 209 significados enraizados na cultura do canteiro de obra. A respeito das diferenças entre resolver situações-problema na “vida real” e realizar meros exercícios de cálculo, Valerie Walkerdine (1995, p. 222) é enfática: quando as crianças, nas esquinas de qualquer cidade latino- americana (ou, mais recentemente nas sinaleiras das EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 16. intersecções movimentadas de Londres), vendem coisas e cer- tamente fazem cálculos que os/as psicólogos/as ocidentais su- põem que são muito avançados e complexos para elas, elas estão se envolvendo em atividades nas quais aquele cálculo é crucial. A sobrevivência da família pode depender disto. Dar o troco errado, neste caso, não é apenas um engano, pode significar a diferença entre comer e passar fome. Este cálculo faz parte de todo um corpo de práticas de intersecções, nas quais o pensa- mento mesmo é produzido, incorporado, emocionalmente car- regado. Já nos discursos escolares, o cálculo é considerado como parte do verdadeiro seguimento de regras [...]. Eu, como professora de Matemática, estive, muitas vezes, atenta somente a este “verdadeiro seguimento de re- gras”. Lembro-me especificamente de um problema que, du- rante vários anos, utilizei para ensinar o conteúdo Regra de Três: “uma obra é construída em noventa dias por doze operários. Em quanto tempo essa obra seria construída por quinze operários?” (Bianchini, 1996, p. 176). Este pro- blema, para ser resolvido “de verdade”, necessitaria, no mínimo, de um acréscimo de informações. Se os alunos fossem trabalhadores da construção civil, provavelmente perguntariam: que tipo de obra é esta? Haverá necessida- de de improvisar materiais como, por exemplo, andaimes? O material necessário para a construção estará à disposi- ção ou haverá a necessidade de esperar pela entrega? E se chover? Mas, em minhas aulas sobre Regra de Três, estas variáveis não faziam parte das discussões. Estava interes- sada somente no “verdadeiro seguimento de regras” que produziriam o resultado, mesmo que este representasse uma situação fictícia. Disponibilizar somente os dados que achamos relevan- 210 tes, fazer a única pergunta que consideramos pertinente e esperar a resposta de acordo com os dados que selecionamos é o que Silva (2001, p. 9) designou “pensamento prêt-à-porter”, ou seja, tudo vem pronto. Somente resta decodificar os dados, seguir o algoritmo e dar a resposta desejada pelo professor. Tais atitudes, segundo Jurjo Torres Santomé (1996, p. 63), acabam por transformar a escola “no reino da artificialidade”. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 17. Tais discussões se tornam férteis quando examina- das no âmbito escolar, pois, como afirma Marisa Vorraber Costa (1999, p. 38), as escolas e o currículo devem ser pensados como [...] territórios de produção, circulação e consolidação de signifi- cados, como espaços privilegiados de concretização da política da identidade. Quem tem força nessa política impõe ao mundo suas representações, o universo simbólico de sua cultura particular. Nestes “territórios” circulam narrativas particulares que estabelecem “qual conhecimento é legítimo e qual é ilegíti- mo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau [...]” (Silva, 1998, p. 195). Tais narrativas nos constituem como sujeitos de um modo muito particular. Sandra Corazza (2001, p. 15), em sua obra intitulada O que quer um currículo, afirma que “um currículo costuma responder que quer ‘um sujeito’, que lhe permita reconhecer- se nele”. Pergunto, então, que sujeito quer o currículo de Ma- temática presente em nossas escolas? Que conhecimentos en- tram em jogo para sustentar a construção de tal sujeito? A Etnomatemática tem contribuído com suas teorizações para responder a tais questões, destacando que os conhecimentos matemáticos que compõem o currículo são conhecimentos muito particulares, específicos de um determinado grupo (branco, europeu, masculino e urbano), o qual impõe aos demais suas formas de lidar matematica- mente com o mundo. Nesta perspectiva, faz-se necessária uma discussão sobre os mecanismos que estão ativamente envolvidos na legitimação do que conta como próprio/im- próprio, válido/não válido para compor o currículo, tam- 211 bém na área da Matemática. Ao refletirmos sobre as práticas que constituem a Matemática hoje ensinada nas escolas, verificamos que estas propiciam a marginalização e o silenciamento de vozes das chamadas “minorias”, provocando o que Boaventura de Souza Santos (1996) denominou “epistemicídio”, ou seja, “o extermínio de formas subor- EDUCAÇÃO UNISINOS EDUCAÇÃO UNISINOS 5 Vol. Nº 9 Nº 15 Vol. 8 JUL/DEZ JUL/DEZ 2004 2004233-237 p.
  • 18. dinadas de conhecer” (Silva, 1998, p. 196). Contrapor-se a este “epistemicídio” significa garantir espaço, no currí- culo escolar, para estas formas subordinadas de conhecer, de entender e de explicar o mundo. A inclusão, no currículo escolar, destas formas não hegemônicas de conhecimentos pode contribuir para a desconstrução das concepções de inevitabilidade e naturali- dade das narrativas curriculares dominantes, que constituem o currículo de uma forma muito particular. Angela McRobbie (1998, p. 53), a respeito desta desconstrução, afirma que “é importante prestar uma atenção crítica ao campo da cultura dominante e ao mundo da representação e mostrar como os significados são construídos, como eles não são nem inevitá- veis nem naturais ou dados por Deus”. Estes posicionamentos, quando pensados na especificidade do conhecimento mate- mático, nos levam a problematizar o que tem conformado a Matemática escolar. Michel Foucault, em sua aula inaugural no Collège de France, em 1970, argumentava sobre a existência de “exterioridades selvagens”, ou seja, a existência de saberes “fora”, às margens das disciplinas. Segundo ele: uma disciplina não é a soma de tudo que pode ser dito de verda- deiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou sistematicidade. A medicina não é constituída de tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre a doença; a botânica não pode ser definida pela soma de todas as verdades que concernem às plantas [...] (Foucault, 2000, p. 31). Seguindo Foucault, diria então que a disciplina Ma- 212 temática não é a soma de tudo que pode ser dito de verda- deiro sobre os modos de classificar, de contar, de calcular e de medir. Assim, poderia inferir que existem “exterioridades selvagens” matemáticas no mundo “lá fora”. A Etnomatemática buscaria, então, incorporar ao currículo escolar tais exterioridades, produzindo “práticas selvagens” que, segundo Behdad (in Knijnik, 2002b, p. 4), são práticas “de oposição ao sistema, contestatórias e antidisciplinares”. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 19. Finalizando... Nestas páginas, procurei apresentar algumas di- mensões pertencentes ao mundo da construção civil e, a partir delas, adensar meu olhar sobre práticas que com- punham esta esfera social. Busquei, desta forma, exa- minar como eram produzidos saberes matemáticos nos canteiros de obra e analisar as desarticulações entre tais saberes e os saberes presentes no “mundo da escola”. Busquei problematizar a construção de fronteiras que implicam marginalização dos grupos subordinados e evidenciar o papel desempenhado pelo currículo esco- lar de Matemática como legitimador de alguns saberes, como espaço de luta onde alguns grupos tentam esta- belecer o seu modo de contar, de calcular, de medir, enfim, de explicar o mundo, como única possibilidade, como algo “natural e inevitável”. É no espaço do currí- culo, pode-se inferir, que se define o que vale a pena ensinar, o que é “certo”, “errado”, qual cultura é legíti- ma e qual não é. Pude ainda examinar o quanto as situações, presen- tes nos canteiros de obras, que envolviam saberes mate- máticos estavam “recheadas de vida”. Tais saberes, dife- rentemente das atividades usualmente propostas pela es- cola, levavam em consideração as contingências, as even- tualidades da “vida lá fora”. Para finalizar, poderia dizer que meu encontro com o “mundo da construção civil” possibilitou-me compreen- der, de forma mais densa, o que têm insistentemente afir- mado pesquisadores como Jurjo Torres (1998, p. 165): “os currículos planejados e desenvolvidos nas salas de 213 aula vêm pecando por uma grande parcialidade no momento de definir a cultura legítima, os conteúdos culturais que valem a pena”. Neste sentido, podemos conceber o currículo, segundo Silva (1998, p. 195), como um discurso que, ao corporificar narrativas parti- culares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui como sujeitos — e sujeitos também muito particulares. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 20. Referências BIANCHINI, E. 1996. Matemática. 4ª ed., São Paulo, Moderna. CHASSOT, A. 2001. Alfabetização científica – questões e desafios para a educa- ção. 2ª ed., Ijuí, UNIJUÍ. CORAZZA, S. 2001. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educa- ção. Petrópolis, Vozes. COSTA, M.V. 1999. Currículo e Política cultural. In: M.V. COSTA (org.), O currículo nos limiares do contemporâneo. 2ª ed., Rio de Janeiro, DP&A, p. 37-68. DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTUDOS E ESTATÍSTICAS SÓCIO-ECONÔMICO – DIEESE. 2001. Os trabalhadores e a reestruturação pro- dutiva na Construção civil brasileira. São Paulo, DIEESE, (Estudos setoriais, 12). FREIRE, P. 1995. Educação de adultos, algumas reflexões. In: M. GADOTTI e J. ROMÃO, Educação de jovens e adultos: teoria, prática e proposta. São Paulo, Cortez, 163 p. FOUCAULT, M. 2000. A ordem do discurso. 6ª ed., São Paulo, Loyola. KNIJNIK, G. 2000. O político, o social e o cultural no ato de educar matemáticamente as novas gerações. In: J.F. MATOS e E. FERNANDES (eds.), Actas do PROFMAT 2000. Lisboa, Associação de Professores de Portugal, p. 48-60. KNIJNIK, G. 2002. Currículo, etnomatemática e educação popular: um estudo em um assentamento do Movimento Sem-Terra. Reflexão e Ação, 10(1): 47-64. KNIJNIK, G. 2002a. Um outro mundo é possível, também no campo educativo. Revista Quadrante, Lisboa, (no prelo). MCROBBIE, A. 1998. Pós-marxismo e estudos culturais. In: T.T. SILVA (org.), Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 2ª ed., Rio de Janeiro, Vozes, p. 39-60. MONTEIRO, A. 2002. A etnomatemática em cenários de escolarização: alguns elementos de reflexão. Reflexão e Ação, 10(1): 93-108. MONTEIRO, A. e POMPEU Jr., G. 2001. A matemática e os temas transversais. São Paulo, Moderna. 214 SANTOMÉ, J.T. 1996. A instituição escolar e a compreensão da realidade: o currículo integrado. In: L.H. SILVA; J.C. AZEVEDO e E.S. SANTOS (orgs.), Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre, Sulina, p. 58-74. SANTOMÉ, J.T. 1998. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: T.T. SILVA (org.), Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 2ª ed., Rio de Janeiro, Vozes, p. 159-177. SANTOS, B.S. 1996. Para uma pedagogia do conflito. In: L.H. SILVA; J.C. EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004
  • 21. AZEVEDO e E.S. SANTOS (orgs.), Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre, Sulina, p. 15-33. SILVA, T.T. 1998. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: T.T. SILVA (org.), Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos cultu- rais em educação. 2ª ed., Rio de Janeiro, Vozes, p. 190-207. SILVA, T.T. 2001. O currículo como fetiche. Belo Horizonte, Autêntica. WALKERDINE, V. 1995. O raciocínio em tempos pós-modernos. Educação e Realidade, 20(2):207-226. WILLIS, P. 1991. Aprendendo a ser trabalhador. Porto Alegre, Artes Médicas. 215 EDUCAÇÃO UNISINOS Vol. 8 Nº 15 JUL/DEZ 2004