"Na Casa de Paulo" é um projeto de intervenção urbana realizado pelo Coletivo Pi, grupo de pesquisa e criação em performance e intervenção, realizado ao longo de 2012 e que foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes - FUNARTE no edital PRÊMIO FUNARTE ARTES NA RUA (CIRCO, DANÇA E TEATRO)/ 2011.
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2. N
a Casa de Paulo é um projeto de intervenção
urbana que pretende intervir na dinâmica da
cidade com uma casa sem paredes, a céu
aberto, na qual as “moradoras” acolhem as pessoas e con-
vidam a habitar aquele lar, passeando pelas histórias do
bairro. Não se trata da recuperação de um registro histórico
formal, mas de um entrelaçamento de memórias, imagens,
lembranças dos bairros da cidade, dando voz àqueles que
moram, convivem nesses locais e com uma proposição ar-
tística pautada na interação e na transformação do espa-
ço cotidiano da rua em local de encontro, de partilha.
A nossa experiência enquanto artistas com a inter-
venção Narrativas de São Paulo (durante o ano de 2011)
confirmou aquilo que pensamos sobre o contato direto
entre arte e público. Realizar uma ação na rua em que a
participação dos passantes é fundamental para o desen-
volvimento da mesma é um grande exercício de como
conquistar o olhar, a atenção das pessoas para algo além
de sua rotina. E para este projeto escolhemos contrapor o
espaço íntimo (casa) com o espaço público (rua) como a
primeira forma de aproximação.
Pensamos que essa aproximação por meio da arte e
do próprio espaço da rua é muito interessante, na medida
em que potencializa a rua como espaço do encontro, do
diálogo, do aprendizado e não apenas local de passagem,
“terra de ninguém”.
Abrir as portas e permitir que as pessoas vejam, to-
quem, conversem, habitando a casa a céu aberto, é uma
maneira de superar a rua como local do medo, do outro,
do distante. Nesta revista, queremos mais uma vez partilhar
a experiência, formar redes de afetos, de lembranças. Afi-
nal a arte é o espaço das inventividades!
Pâmella Cruz
p
www.coletivopi.com | coletivopi@coletivopi.com
Performers e criadoras: Natalia Vianna, Pâmella Cruz, Priscilla Toscano [Coletivo Pi]
Assessoria de imprensa e comunicação: Talita Mochiutte
Fotografia: Eduardo Bernardino
Produção e realização geral: Coletivo Pi
Arte: Natalia Vianna | Gráfica: Pancrom
Coletivo Pi | 2012
Tiragem: 1000 exemplares | Distribuição gratuita
3. Intervenção urbana 05
O Coletivo Pi 08
Na Casa de Paulo 10
O início: Narrativas de São Paulo 10
Por que uma casa? 13
Paulicéia Desvairada 15
Na casa de Maria 17
Na casa de Ângela 18
Na casa de Santana 19
Na casa de Madalena 20
Na casa de Canindé 21
Na casa de Mariana 22
Na casa de Cecília 23
Na casa de Miguel 24
Quando a rua é habitada 25
Quem é o Coletivo Pi 32
Foto de Eduardo Bernardino.
4. O nosso projeto está nos entre-
meios entre performance e in-
tervenção urbana. Interferimos
na cidade tanto no espaço físi-
co como nas dinâmicas sociais,
e também somos performers na
medida em que nossa presença
é fundamental para ação. Assim,
vivemos transitoriamente na casa,
sem interpretações, sem persona-
gens, transformando a calçada, a
praça, o canteiro da avenida no
espaço da intimidade, da convi-
vência.
Entre Saltos. Coletivo Pi, 2011.
O Nascimento da Vênus. Intervenção urbana e fotográfica, 2011.
Projeto Museu na Rua (Coletivo Pi e Murilo Martinez). Foto de Murilo Martinez.
Qual o segredo da Victória?
Coletivo Pi, 2012.
Intervenção Urbana
Por Pâmella Cruz
A intervenção urbana é uma técnicas e táticas são bastante
forma de arte, geralmente rea- diversificadas, o que não permi-
lizada em espaços públicos e te definir fronteiras rígidas e uma
áreas centrais das cidades. O categorização fixa. Os artistas
objetivo dessa arte é interagir que trabalham com interven-
de maneira criativa e poética ção querem se aproximar do
com o espaço cotidiano e as tecido social, da dinâmica dos
pessoas. Além disso, as interven- centros urbanos e da vida coti- Na faixa.
ções são capazes de reinventar, diana. Coletivo Pi, 2011.
ainda que momentaneamente,
novos sentidos ao espaço esco- As práticas intervencionistas po-
lhido e suscitar novas percep- dem ter caráter transitório, de
ções. interatividade, de ocupação
de espaços abandonados, in-
No campo das artes a interven- serções visuais na paisagem ur-
ção é empregada com múl- bana e se articulam com dife-
tiplos sentidos, as linguagens, rentes linguagens artísticas. 06
5. O Coletivo Pi
Formado pelas artistas Natalia cálculos, mais conhecido como
Vianna, Pâmella Cruz e Priscilla 3,141592..., que pertence aos nú-
Toscano desde 2009, o Coletivo meros irracionais.
Pi trabalha com performance e Está ligado a qualquer forma cir-
intervenção urbana. A pesquisa cular. É o valor da razão entre a
do grupo tem como base o diá- circunferência de qualquer cír-
logo entre o artista e o espaço, culo e seu diâmetro.
na construção de formas poéti-
É a mais pura abstração. Cada
cas que representem e transfor-
combinação possível de um
mem um espaço (físico ou imagi-
número encontra lugar em Pi,
nário), resgatando sua memória,
convertendo em vida cada
discutindo suas funções e pro-
lugar dessa sequência infinita de
pondo novas percepções.
dígitos. É o nome de cada pessoa
As integrantes do Coletivo Pi se que uma dia você poderá amar
conhecerem na UNESP em 2005 ou a data, o horário e a forma de
no curso de Licenciatura em Ar- sua morte, ou ainda, a resposta
te-Teatro e desde a graduação para todas as grandes questões
percebiam as afinidades quanto do universo.
às questões artísticas e o dese-
jo de trabalhar, principalmente, É um símbolo ligado a
com a arte e a cidade. Em 2009, circularidade, a qualquer
o grupo é fundado e durante simetria esférica. Elegemos
dois anos esteve em residência o círculo como a forma mais
artística na zona norte de São democrática de distribuição de
pessoas em um espaço – todos
Paulo.
possuem a mesma posição e
Mas por que Pi (π)? todos podem se ver.
Pi (π) é o símbolo grego utilizado Em suma, Pi é Performance e In-
pela Matemática em diversos tervenção!
08
6. Na casa de Paulo
Um dos objetivos do Coletivo Pi partilhamento de vídeos YouTube
é pensar e realizar intervenções e uma página na rede social Fa-
e performances em espaços pú- cebook.
blicos reafirmando a rua e locais Ao longo de 2012, o Coletivo Pi
utilizados cotidianamente pela realizou o projeto Na Casa de
população como espaços da ex- Paulo contemplado pelo Prêmio
O INÍCIO: Narrativas de São Paulo
periência e da criação. Por Priscilla Toscano
Artes Cênicas na Rua 2011 (dan-
Como forma de registro e refle- ça, circo, teatro) - FUNARTE/MINC,
xão sobre seu trabalho, o Coletivo
Pi mantém um blog com textos,
montando uma casa sem pare-
des em oito bairros de São Paulo E m novembro de 2010 cria-
mos a intervenção perfor-
mática Narrativas de Miguel
e em sua capa o título “Narra-
tivas de Miguel” e ao seu lado
um banquinho livre para que
imagens e informações sobre suas - um retrato vivo das memórias e
intervenções, demais atividades e histórias de cada bairro por onde para levar ao Festival do Livro qualquer pessoa interessada na
ações de outros grupos artísticos, a intervenção passou. e Literatura de São Miguel Pau- imagem pudesse se aproximar,
além de um canal no site de com- lista. Em um encontro em nossa sentar e conversar. O assunto?
antiga sede comentei com a O livro em branco nas mãos da
Pâmella a vontade de colocar performer, esperando por nar-
na rua um pedaço de uma rativas que pudessem preen-
casa. Seguindo o principio de chê-lo. O que cada pessoa que
recorte e colagem me pareceu parasse para sentar nessa pe-
muito interessante levar para a quena sala teria a contar sobre
rua movimentada a imagem de São Miguel Paulista?
uma mulher em trajes confortá-
veis sentada em uma poltrona
lendo um livro. Pensando nessa
imagem percebemos a potên-
cia que ela poderia ter enquan-
to quebra/ruptura do tempo da
rua e de quem passa por lá.
A partir dessa instalação come-
çamos a pensar em como torná-
-la performática. Decidimos co- Durante o festival passamos um
locar na mão dessa mulher um dia realizando Narrativas de Mi-
livro com as páginas em branco guel. Pâmella, Natália e eu nos
O que você carrega na sua mala? Coletivo Pi, 2011/2012.
09 10
7. revezamos na função da poltro- res, é que possuíssem nome de havíamos realizado em São Mi- latos sobre o cotidiano dos bair-
na. Ocupamos três locais dife- gente. Uma brincadeira que su- guel Paulista batizamos de Narra- ros, revelando fatos, memórias e
rentes: a saída da estação de gere a personificação do bair- tivas de São Paulo. Durante o ano desejos daquele local. Termina-
trem de São Miguel, a calçada ro como protagonista da ação de 2011 realizamos o projeto sem mos 2011 tendo em mãos oito re-
em frente ao mercado muni- performática e que traz a ideia nenhum tipo de incentivo públi- gistros: Narrativas de Miguel, Nar-
cipal e um ponto de ônibus da do espaço publico não mais co ou privado. De bairro em bair- rativas de Ângela, Narrativas de
Avenida Marechal Tito. Nosso como lugar estranho e sim como ro levamos o cenário composto Canindé, Narrativas de Cecília,
banquinho esteve na maior par- se fosse alguém que tem nome por poltrona, banquinho, tape- Narrativas de Madalena, Narrati-
te do tempo ocupado. Pessoas e história. Selecionamos os se- te, mesinha, abajur e livros, para vas de Maria, Narrativas de Ma-
de todos os tipos, de crianças guintes bairros: abrigar uma de nós com um livro riana e Narrativas de Santana. E
a idosos, sentaram ali e falaram em branco nas mãos. Em todos com isso uma nova inquietação:
- Jardim Ângela: ponto de ôni-
um pouco do bairro. Ouvimos esses locais ouvimos centenas de o que fazer com esses relatos?
bus da Avenida M’Boi Mirim
diversos relatos sobre São Miguel histórias que por nós registradas Como performá-los na rua? E as-
Paulista: o bairro no passado, - Canindé: Praça Ilo Ottani, em geraram livros com pequenos re- sim surgiu Na Casa de Paulo.
os lugares importantes, histórias frente a biblioteca municipal
pessoais que tiveram como ce- Adelpha Figueiredo
nário estes locais, a opinião dos
- Santa Cecília: Largo do Santa
moradores sobre os espaços pú-
Cecília
blicos, a impressão dos trabalha-
dores de São Miguel, etc. - Vila Madalena: trecho da cal-
çada da Rua Marechal Deodo-
Ao final da intervenção no fes-
ro
tival, percebemos a força e ao
mesmo tempo a delicadeza - Vila Maria: uma das esquinas
dessa ação. Decidimos que da- da praça Santo Eduardo, na
ríamos continuidade em outros Avenida Guilherme Cotching
bairros de São Paulo.
- Vila Mariana: em frente ao me-
No início de 2011 selecionamos trô Vila Mariana
alguns bairros que tínhamos von-
tade de levar esta intervenção. - Santana: trecho da calçada
Um dos critérios que adotamos da Avenida Voluntários da Pá-
para escolher esses bairros, além tria.
de serem diversificados em sua O conjunto de ações realizadas
localização e perfil de morado- nesses bairros somado ao que já
Narrativas de Miguel. Coletivo Pi, São Miguel Paulista, 2010.
12
8. tes Cênicas na Rua/2011 da blico é acima de tudo uma pro-
Funarte e contempladas inicia- vocação pois nossa instalação é
mos os trabalhos de pesquisa e um retrato vivo de cada história
produção em abril deste ano. ouvida sobre aquele bairro que
Foram algumas visitas a cada é casa/moradia de centenas
bairro à procura de um lugar a de pessoas. Cada instalação foi
ser ocupado, somado as inú- montada com o intuito de tradu-
meras idas a casas de material zir os relatos que ouvimos no ano
de construção, artigos de de- anterior. A nossa opção de ha-
coração, gráfica e visitas ao bitar a casa não foi uma tentati-
marceneiro. Ainda nessa fase va midiática de fazer ou lembrar
o enfrentamento à burocracia um reality show, mas de criar
de cada subprefeitura no difícil uma situação inusitada na qual
processo de receber autoriza- as pessoas se sentissem convi-
ção para colocar no espaço dadas a pensar o espaço públi-
Por que uma casa? publico uma instalação artísti-
ca. Em junho conseguimos rea-
co, visitando essas habitações
que mostram em sua pequena
existência marcas de
Por Natália Vianna, Pâmella Cruz e Priscilla Toscano uma casa maior que
Fotos de Eduardo Bernardino.
é aquele bairro e que
O projeto Na Casa de Paulo Maria, Casa de Ângela, etc) e é parte de nossa cida-
surgiu da vontade de voltar- teria móveis e objetos marca- de. Batizar cada casa/
mos a cada um desses bairros dos com frases dos relatos re- instalação como Casa
com o intuito de compartilhar colhidos em Narrativas de São da Mariana, da Cecí-
com seus moradores/trabalha- Paulo. Decidimos também que lia, da Ângela, foi uma
dores os relatos que ouvimos. duas de nós passaria o dia ha- maneira de resgatar o
Escolhemos fazer isso de ma- bitando essa instalação para sentimento de que o
neira que pudéssemos chamar receber os transeuntes que se bairro onde moramos
atenção para rua como lugar sentissem curiosos e a vontade está vivo e é nosso, extensão de
lizar a primeira ação: Na Casa
onde se habita. Por isso de- para entrar na casa, e nessa vi- nossos lares, morada coletiva.
de Maria e assim seguimos com
cidimos criar uma casa com- sita poder tomar um chá e ou- Cada bairro é um pedacinho,
as demais.
pleta, com portas, mas sem vir de nós as histórias que outro- um cômodo de uma casa maior
paredes que fosse possível de ra foram coletadas. Para nós, do Coletivo Pi, colo- chamada São Paulo.
ser montada em qualquer es- car uma casa no espaço pú-
Para viabilizar o projeto deci-
paço público. A cada bairro
dimos inscrevê-lo no Edital Ar-
ela teria um nome (Casa de 14
9. Paulicéia O que esperar de uma casa sem paredes
que ocupa a calçada?
Desvairada
São Paulo é a cidade dos múltiplos, dos contrastes, das contradi-
ções. A riqueza da cidade está na convivência de diversas cultu-
ras, de tantas caras. Mas, permanecem os rastros da política da
desigualdade, da noção que a rua é hoje o espaço do medo, da
desgraça, dos marginais. E dentro dessa trama nos aventuramos a
descobrir que grande casa é essa que habitamos chamada São
Paulo e outros lares que compõe esta cidade. Assim, ocupamos
alguns bairros e lá permanecemos com nossa casa a céu aberto.
Pâmella Cruz
Fotos de Eduardo Bernardino
10. Na Casa de Ângela
“Moro aqui há 20 anos. Vi muita gente indo embora por causa do
medo. Agora as coisas são diferentes. O bairro está mais tranqui-
lo. A mudança foi trabalho de formiguinha: comunidade, polícia e
prefeitura. O bairro está mais asfaltado, mais iluminado, tem banco,
mercado hospital.” (Neide)
“Jardim Ângela mesmo é um bairro jovem, antes era tudo uma coi-
sa só. Os terrenos foram ocupados e construídos daquele jeito, no
improviso. Aqui é muito conhecido pela violência, assassinatos. Mas
muita coisa mudou e pra melhor! Tem mais gente trabalhadora, dig-
na, solidária do que bandido. Gente ‘desviada’ tem da favela até o
senado, não é mesmo. O importante é manter a cabeça em paz.”
(Márcio)
Na Casa de Maria “Aqui você encontra pessoas alegres, com bondade no coração, a
bagunça do churrasquinho no quintal, criança brincando na rua.”
“Aqui tem muitas famílias de imigrantes portugueses. Eles vinham (João)
pra cá tentar a vida e acabaram fundando nosso bairro, o comér-
cio. Eles fundaram a Sociedade Paulista do Trote onde aconteciam
os páreos. E hoje é o Parque do Trote.” (Maria)
“São Paulo é uma cidade de muita oportunidade, mas a violência
é por conta da impunidade, as leis no país não contribuem (...) Eu
trabalho para sobreviver, porque nós temos que trabalhar, eu faço
meu trabalho direito, mas queria uma vida mais tranquila.” (Carlos)
“A Vila Maria é um bairro conhecido de São Paulo. A nossa Esco-
la de Samba anima, alegra os moradores. E emprega muita gente
na época da preparação para o carnaval, muita costureira, gente
com energia, que gosta de trabalhar, dá um dinheirinho. E ouvir o
som da bateria é muito bom, faz tremer o coração!” (Márcio)
17
11. Na Casa de Santana Na Casa de Madalena
“Posso dizer que este é um bairro que transborda de vida cultural, tem
muitas ações artísticas, artistas que moram na região. O Centro Cultu-
ral Rio Verde é muito gostoso, costumo ir às rodas de samba e no que
acontece por lá.” (Felipe)
“A Vila Madalena é um bairro muito antigo, eu moro aqui desde quan-
do eu nasci em 1962. Tem muitas histórias e é um bairro que deve ser
preservado. Eu já participei por muito tempo da Pérola Negra e ajuda
muita a comunidade, por exemplo, com trabalhos de reciclagem. Mas
o bairro sofreu muitas transformações com o progresso, houve desapro-
priações.” (Nelson)
“Eu comparo a Vila Madalena com a Vila Maria. Essa ideia de manter
a comunidade, de conversar, ocupar a praça... Acho que é esse ar de
interior, é muito gostoso passear num lugar assim de sábado. Analisan-
do, muito rápido, estes bairros têm pessoas com idade mais avançada
e que ajudam a preservar a memória do bairro, a fortalecer a ideia de
comunidade, um processo que não aconteceu em outros bairros. São
“Nós usávamos terno e gravata e quando andávamos de maria-fuma- Paulo tem as suas ‘cidadezinhas’.” (Michele)
ça, soltava fagulhas e sujava nossa roupa. À noite, na Rua Voluntários ou
na Avenida Tucuruvi, os jovens ficavam na paquera, os rapazes parados
e as moças andando como se fosse um desfile. Era divertido, eram os
namorinhos... Onde hoje é antiga casa de detenção, tinha uma lagoa
enorme e campo de futebol. Aos domingos os amigos se encontravam
lá e era o jogo, piquenique, natação. E era um lago grande, que foi
aterrado. E o Rio Tietê tinha as regatas, a competição de natação. A
cidade se transformou demais e as pessoas se transformaram também.”
(Roberto, 70 anos)
“Eu pegava o bonde para ir ao centro de São Paulo. As mulheres usa-
vam vestido e chapéu, e os homens todos alinhados. Eu conheci meu
grande amor no bonde, mas minha família não autorizou o namoro. Nós
nos encontrávamos escondidos, mas um dia meu pai descobriu, e o hu-
milhou. Nunca mais o vi, gostaria de saber como ele está...” (Beatriz)
19
12. Na Casa de Canindé
“Nós estudamos na escola pública aqui perto do Estado. Nós gosta-
mos do lugar, é legal viver aqui! E tem a biblioteca, nós frequentamos
para fazer os trabalhos das escolas e porque tem livros variados como
poesias, ficção, narrativas.” (estudantes da Escola Estadual Frei Paulo
Luig)
“Estudo aqui e moro aqui, eu nasci na Bolívia e vim quando pequeno
com minha família. Gosto de viver aqui. Eu quero estudar e ser médi-
co.” (André)
“Eu moro há 35 anos no bairro e sempre trabalhei aqui, agora traba-
lho como acompanhante de idoso. Meu objetivo é estimular as se-
nhoras e senhores a saírem de casa, terem atividades e não apenas
ir ao médico, falar de doença. Criamos vínculos afetivos! Eu me sinto
realizada.” (Maria Antônia) Na Casa de Mariana
“O bairro possui muitos centros de estudo, pesquisa, espaços de cul-
tura e esporte. E ainda uni o tradicional com o moderno. Temos as
casas, as vilas e também as construções mais luxuosas, o processo
de verticalização.” (Noemi)
“Aqui é um bairro que não tem muito a questão de vizinhança, pro-
ximidade. Cada um cuida de sua casa e tarefas, mas respeitando o
espaço comum.” (Mateus)
“O que ajudou no processo de povoamento do bairro foi a instala-
ção do Matadouro Municipal, hoje transformado na Cinemateca.”
(Tânia)
22
13. Na Casa de Miguel
“Eu e meu amigos olhamos para o céu... a gente costuma passar
as tardes olhando para o céu, pois o céu costuma dizer muitas
coisas.” (Ademir)
“Cheguei aqui na época do Mazzaropi. A cidade era beleza pura,
não tinha violência. Não tinha mercado, era parque-circo.” (Er-
nestino)
“Meu avô sempre dizia que em São Miguel Paulista as estrelas
caem do céu. Tem gente que acha que é E.T, mas não é não, é
Na Casa de Cecília estrela. E isso só acontece aqui em São Miguel Paulista.” (Nair)
“Eu não tenho casa, moro num albergue. Fui pegar comida e to
indo pegar uma roupa num lugar aqui perto também. Não moro
aqui, não tenho histórias. Mas vou te contar uma coisa que me
aconteceu: um dia saí pra pegar comida onde eu sempre pego e
encontrei um sofá e você aí sentada.” (Ricardo)
“Eu estou vindo de um velório na Santa Casa... Acho muito impor-
tante as ações da Igrja de Santa Cecília por aqui. Mas você precisa
conversar com a Dona Bertha. É uma alemã de 80 anos que mora
aqui há muito tempo. Ela sim tem muitas histórias pra contar.” (Inês)
“Moro aqui há 28 anos. Em vez de te contar qualquer coisa sobre
mim ou sobre o bairro, vou te dar este poema, que eu mesmo escre-
vi.” (Círio)
23
14. Quando a rua é habitada
Fotos de Eduardo Bernardino
15. TEATRO E RESISTÊNCIA
Quando decidimos trabalhar na rua, interferindo no cotidiano foi (OU RUA, ESPAÇO DE TROCAS)1
preciso criar estratégias para ocupar estes lugares. Afinal na cida-
Profª Drª Carminda Mendes André²
de de São Paulo há um decreto1 que regulamenta o uso do espaço
público para fins artísticos e culturais. Estar na rua e fazer dela um
local coletivo, de arte, de partilha perpassa estabelecer meios de O artista de rua tende a com- publico, embaralha o ritmo
existir no espaço “público”. preender aquilo que acon- dos transeuntes, questiona
tece na rua como alegoria as identidades. Quando algo
Pâmella Cruz de um discurso de poder e, acontece, inverte-se o discur-
muitas vezes, acaba por es- so.
cancarar as arbitrariedades,
Se a rua permanece como um
entre significante e significa-
campo de guerra, é transfor-
do, do discurso que está na
mada em gênero masculino
rua (leis de usos dos espaços
patriarcal e o que temos é a
públicos, machismo, homofo-
violência, a segregação, as
bia, modelos de urbanização
fronteiras. Porém, quando a
e outros racismos). Desafia as
rua é tornada um espaço de
definições fixadas pelo sen-
intimidade, transformada em
so comum. Por exemplo, ao
gênero feminino, a violência
aproximar-se de mendigos ou
é desmontada; busca-se a
prostitutas, ao fazer aparecer
aproximação com a vida nua,
sua humana condição, fura a
apagam-se fronteiras. Ao se
cerca imaginária, criada pelo
negar habitar um lugar fecha-
biopoder, em volta dessas
do (galerias, teatros, casas de
pessoas. A presença da arte
show, espaços alternativos fe-
na rua revela o potencial dis-
chados), a artista da rua torna-
curso que pode transformar
se uma despossuída e, com
a rua em campo de concen-
isso, afirma um modo de vida
tração. A arte, porém, por seu
nômade. A nômade passa a
apelo estético, ao humanizar
não mais reconhecer, como
essas presenças humanas si-
valor ético, noções tais como:
lenciadas, desordena o lugar
1 DECRETO Nº 52.504, DE 19 DE JULHO DE 2011 Disciplina a utilização de vias
e logradouros públicos da Cidade de São Paulo para a apresentação de artistas
1 ANDRÉ, Carminda Mendes . Arte e Resistência. 2011. (Apresentação
de rua.
de Trabalho/Comunicação) em XXVI Simpósio Nacional da ANPUH.
2 Professora do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes
da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP.
28
16. nacionalidade, origem étnica, me fizerem experimentar dian-
Se a rua permanece como um
sexo, periculosidade, proprieda- te de seus “objetos artísticos”.
campo de guerra, é transfor-
de
mada em gênero masculino Por fim, trago aqui mais uma
privada, paternidade. A mulher patriarcal e o que temos é a intervenção urbana elabora-
nômade – símbolo raro na Histo- violência, a segregação, as da e realizada por mulheres do
ria das culturas – é aquela que
fronteiras. Porém,quando a
Coletivo PI. Trata-se da inter-
rua é tornada um espaço de
se lança a experiências afetivas venção intitulada Narrativas
intimidade, transformada em
fora das identidades sexistas, de São Paulo: cidade, memó-
gênero feminino, a violência
fora dos lugares instituídos para ria e poesia (Artistas: Pamella
é desmontada; busca-se a apro-
as artes, fora da subjetividade Cruz, Priscila Toscano, Natalia
ximação com a vida nua, apa-
feminina ligada à maternida- a sensibilidade não é ignorada gam-se fronteiras. Vianna). Do material disponi-
de dentro de casamentos con- na construção do conhecimen- bilizado pelo coletivo, temos
tratuais, enfim, fora do modelo to, sou tentada a pensar que a descrição da ação: A ideia é um livro e tomando seu café. Ao
burguês de vida feminina. O sím- minhas escolhas e, portanto, o colocar no espaço público (cal- lado do sofá há uma cadeira va-
bolo de maior senso comum da discurso feminino que depreen- çada, praça, ponto de ônibus zia. Queremos com a contraposi-
mulher nômade é o da cigana. do delas, pode se referir, parte e outros) uma sala de estar, ou ção da cena e o espaço público
Tais mulheres são maltratadas à produção da arte contempo- seja, o espaço privado da intimi- provocar um olhar curioso que
pelo discurso moral do ocidente rânea, mas também, pode ser dade. As pessoas que circulam estimule a aproximação entre as
europeu cristão. Tanto lá, como uma narrativa pessoal. Trago por estes espaços públicos verão pessoas da rua e a performer. O
cá, as ciganas, nômades, são aqui um discurso pacifista. Não uma mulher em trajes confortá- convite para uma conversa será
colocadas entre a escória da sei o quanto esse posiciona- veis sentada em seu sofá, lendo feito pela performer aos curiosos
humanidade. mento é o discurso que defendo
para a arte na atualidade, e o
A força da arte na rua termina
quanto tal posicionamento está
quando a arte é incorporada
nas ações poéticas que aqui
aos códigos de segurança do
trago. Escolhi, para mostrar aqui,
sistema, quando vira marca co-
intervenções urbanas que me
mercial, quando é usada como
levam a pensá-las como práti-
marcheting para vender sabo-
cas para o cuidado de si e dos
nete.
outros. Cuidados com o corpo,
Ao entender que as mulheres com as relações afetivas, com
tem um modo diferente de fa- as memórias, com o espaço pú-
zer ciência, modos esses em que blico. É isso o que essas mulheres
30
17. que se aproximarem. e. Durante Aqui, explicitamente, as artistas
o diálogo ela fala sobre sua lei- instalam um espaço privado – a Quem é o Coletivo Pi
tura, lê trechos do livro e pede sala – em um espaço público
auxilio na escrita de seu livro para trocar memórias que são
que tem as páginas em branco,
apenas com um título. A pro-
registradas para a escritura de li-
vros de cada bairro. Dois fatores
P âmella Cruz é atriz, performer, arte educadora, fundadora do
Coletivo Pi com Priscilla Toscano. Graduada em Licenciatura em
Arte-Teatro pela UNESP em 2008, fez diversos cursos na área cênica
posta é que as pessoas façam chamam a minha atenção nes-
com nomes como João Miguel, Juliana Jardim, Teatro da Vertigem
pequenos relatos sobre o coti- sa ação: o modo como apro-
e Dr. Marcos Bulhões em Práticas Performativas. Atualmente é pro-
diano do bairro revelando fatos, ximam do morador do bairro e
fessora de arte e teatro da Secretaria Municipal de Educação de
memórias e desejos desse local. ideia de historia como memórias
São Paulo e integrante do Coletivo Pi.
Nessa intervenção não há um de cidadãos comuns. A aproxi-
roteiro de perguntas para ser se- mação não é espetaculosa, a
N
guido pela performer e também performer não chama a aten- atalia Vianna é atriz, performer, arte educadora e integrante do
não trabalhamos com a ideia ção do transeunte. É justamente Coletivo Pi desde 2010. Graduada em Arte-Teatro pela UNESP,
de representar uma persona- seu silêncio que aproxima. Por também estudou na Universidade de Santiago de Compostela (USC
gem. Queremos que as pessoas outro lado, ao invés de pergun- – Espanha), no curso de História da Arte. Em 2010, participou do es-
se aproximem e que a relação tar sobre grandes acontecimen- petáculo Cielo Arte, do grupo catalão La Fura dels Baus. Atualmente
que se estabeleça entre artista tos ali ocorridos, instiga o mora- é professora de Arte na Prefeitura Municipal de Diadema, integrante
e participante da ação seja fei- dor do bairro a aproximar-se de do Desvio Coletivo, rede de criadores da cena performativa dirigido
ta e desfeita no próprio momen- suas memórias pessoais sobre por Marcos Bulhões, e do Coletivo Pi.
to do acontecimento. aquele lugar.
P riscilla Toscano é atriz, performer, arte educadora e fundadora
do Coletivo Pi com Pâmella Cruz. Licenciada em Arte-Teatro pela
UNESP, cursou parte da graduação na Universidade de Santiago de
Compostela (USC – Espanha). Atualmente é professora de Arte da
SME de São Paulo, professora de Teatro da Oficina Corpo e Arte,
integrante do Desvio Coletivo, rede de criadores da cena performa-
tiva dirigido por Marcos Bulhões, e do Coletivo Pi.
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18. AGRADECIMENTOS: Laurinda Tomaz dos Santos | Antônio Osvaldo da Cruz |
Douglas Torelli Leite | Pancrom Gráfica e Editora Ltda.
Agradecemos também a todos que passaram pelas casas de Paulo, com-
partilhando memórias e histórias em cada bairro.
19. Apoio:
Este projeto foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes -
FUNARTE no edital PRÊMIO FUNARTE ARTES NA RUA (CIRCO,
DANÇA E TEATRO)/ 2011.