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1
2
Aprender Antropologia
Fran¸ois Laplantine
c
2003
2
Conte´ do
u
I
Marcos Para Uma Hist´ria Do Pensamento Ano
tropol´gio
o
23
1 A Pr´-Hist´ria Da Antropologia:
e
o
25
1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado . . . . . . . 27
1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado . . . . . . . 32
2 O S´culo XVIII:
e

39

3 O Tempo Dos Pioneiros:

47

4 Os Pais Fundadores Da Etnografia:
57
4.1 BOAS (1858-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
4.2 MALINOWSKI (1884-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
5 Os Primeiros Te´ricos Da Antropologia:
o

67

II
As Principais Tendˆncias Do Pensamento Ane
tropol´gico Contemporˆneo
o
a
73
6 Introdu¸˜o:
ca
6.1 Campos De Investiga¸ao . . . . . . . . . . . . . . . . .
c˜
6.2 Determina¸˜es Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . .
co
6.3 Os Cinco P´los Te´ricos Do Pensamento Antropol´gico
o
o
o
temporˆneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
a

75
. . . . 75
. . . . 76
Con. . . . 80

7 A Antropologia Dos Sistemas Simb´licos
o

87

8 A Antropologia Social:

91

9 A Antropologia Cultural:

95
3
´
CONTEUDO

4
10 A Antropologia Estrutural E Sistˆmica:
e

103

11 A Antropologia Dinˆmica:
a

113

III

A Especificidade Da Pr´tica Antropol´gica
a
o

119

12 Uma Ruptura Metodol´gica:
o

121

13 Uma Invers˜o Tem´tica:
a
a

125

14 Uma Exigˆncia:
e

129

15 Uma Abordagem:

133

16 As Condi¸oes De Produ¸˜o Social Do Discurso Antropol´gico137
c˜
ca
o
17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo:

139

18 Antropologia E Literatura:

143

19 As Tens˜es Constitutivas Da Pr´tica Antropol´gica:
o
a
o
19.1 O Dentro E O Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
19.2 A Unidade E A Pluralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . .
19.3 O Concreto E O Abstrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
20 Sobre o autor:

149
. 149
. 152
. 157
163
´
CONTEUDO

5

Pref´cio
a
A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreens˜o do homem
a
Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma ´rea do conhea
cimento ´ tra¸ar-lhe a hist´ria, mostrando como foi variando o seu colorido
e
c
o
atrav´s dos tempos, como deitou ramifica¸˜es novas que alteraram seu tema
e
co
de base ampliando-o. Para tanto ´ requerida uma erudi¸˜o dificilmente ene
ca
contrada entre os especialistas, pois erudi¸˜o e especializa¸˜o constituem-se
ca
ca
em opostos: a erudi¸˜o abrindo- se na ˆnsia de dominar a maior quantidade
ca
a
poss´ de saber, a especializa¸˜o se fechando no pequeno espa¸o de um coıvel
ca
c
nhecimento minucioso.
O livro do antrop´logo francˆs Fran¸ois Laplantine, professor da Univero
e
c
sidade de Lyon II, autor de v´rias obras importantes e que hoje efetua pesa
quisas no Brasil, re´ne as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento
u
antropol´gico atrav´s da hist´ria e mostrando as diversas perspectivas atuais.
o
e
o
Em primeiro lugar, efetua a an´lise de seu desenvolvimento, que permite uma
a
compreens˜o melhor de suas caracter´sticas espec´ficas; em seguida, apresenta
a
ı
ı
as tendˆncias contemporˆneas e, finalmente, um panorama dos problemas coe
a
locados pela pr´tica e por suas possibilidades de aplica¸˜o.
a
ca
Trata-se de uma introdu¸˜o ` Antropologia que parece fabricada de encoca a
menda para estudantes brasileiros. A forma¸˜o nacional em Ciˆncias Sociais
ca
e
(e a Antropologia n˜o foge ` regra. . .) segue a via da especializa¸˜o, muito
a
a
ca
mais do que a da forma¸˜o geral. Os estudantes lˆem e discutem determica
e
nados autores, ou ent˜o os componentes de uma escola bem delimitada; o
a
conhecimento lhes ´ inculcado atrav´s do conhecimento de um problema ou
e
e
de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que suscitou, nas respostas e solu¸˜es que inspirou. A hist´ria da disciplina, assim
co
o
como da ´rea de conhecimentos a que pertence, o exame cr´tico de todas
a
ı
as proposi¸˜es tem´ticas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem
co
a
muitas vezes fora das cogita¸˜es do curso, como se fosse algo de somenos
co
importˆncia.
a
No Brasil o presente tem muita for¸a; nele se vive intensamente, ´ ele que se
c
e
busca compreender profundamente, na convic¸˜o de que nele est˜o as ra´zes
ca
a
ı
do futuro. Pa´s em constru¸˜o, seus habitantes em geral, seus estudiosos em
ı
ca
particular, tem consciˆncia n´tida de que est˜o criando algo, de que sua a¸˜o
e
ı
a
ca
´ de importˆncia capital como fator por excelˆncia do provir. E, para chegar
e
a
e
´
CONTEUDO

6

a ela escolhe-se uma unica via preferencial, a especializa¸˜o numa dire¸˜o,
´
ca
ca
como se fora dela n˜o existisse salva¸˜o.
a
ca
No entanto, com esta maneira de ser t˜o mercante, perdem-se de vista coma
ponentes fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por
outro lado a multipli-cidade de caminhos que tˆm sido tra¸ados para conse
c
tru´-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ciˆncias
ı
e
Sociais, ´ o refor¸o do conhecimento do passado de sua pr´pria disciplina e
e
c
o
da variedade de ramos que foi originando at´ a atualidade. Este livro, em
e
muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da Antropologia e seu lugar no ˆmbito do saber.
a
Constru´do dentro da tradi¸˜o francesa do pensamento anal´tico e da claı
ca
ı
reza de express˜o, esta introdu¸˜o ao conhecimento da Antropologia atinge,
a
ca
na verdade, um p´blico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e
u
especialistas de Ciˆncias Sociais. Sua difus˜o se far´ sem d´vida entre todos
e
a
a
u
aqueles atra´dos para os problemas do homem enquanto tal, que buscam coı
nhecer ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo ”outro”.
Maria Isaura Pereira de Queiroz

1

1

Maria Isaura Pereira de Queiroz ´ professora do Departamento de Sociologia e pese
quisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
´
CONTEUDO

7

Introdu¸˜o
ca
O Campo e a Abordagem Antropol´gicos
o
O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as sociedades existiram homens que observavam homens. Houve at´ alguns que eram
e
te´ricos e forjaram, como diz L´vi-Strauss, modelos elaborados ”em casa”.
o
e
A reflex˜o do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elabora¸ao de um
a
c˜
saber s˜o, portanto, t˜o antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na
a
a
´
´
Asia como na Africa, na Am´rica, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto
e
de fundar uma ciˆncia do homem - uma antropologia - ´, ao contr´rio, muito
e
e
a
recente. De fato, apenas no final do s´culo XVIII ´ que come¸a a se constituir
e
e
c
um saber cient´
ıfico (ou pretensamente cient´
ıfico) que toma o homem como
objeto de conhecimento, e n˜o mais a natureza; apenas nessa ´poca ´ que o
a
e
e
esp´
ırito cient´
ıfico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao pr´prio homem os
o
m´todos at´ ent˜o utilizados na area f´
e
e
a
´
ısica ou da biologia.
Isso constitui um evento consider´vel na hist´ria do pensamento do homem
a
o
sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje n˜o estejamos medindo
a
todas as conseq¨ˆncias. Esse pensamento tinha sido at´ ent˜o mitol´gico,
ue
e
a
o
art´
ıstico, teol´gico, filos´fico, mas nunca cient´
o
o
ıfico no que dizia respeito ao
homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ultimo do estatuto de
´
sujeito do conhecimento ao de objeto da ciˆncia. Finalmente, a antropoloe
gia, ou mais precisamente, o projeto antropol´gico que se esbo¸a nessa ´poca
o
c
e
muito tardia na Hist´ria - n˜o podia existir o conceito de homem enquanto
o
a
regi˜es da humanidade permaneciam inexploradas - surge * em uma regi˜o
o
a
muito pequena do mundo: a Europa.. Isso trar´, evidentemente, como verea
mos mais adiante, conseq¨ˆncias importantes.
ue
Para que esse projeto alcance suas primeiras realiza¸˜es, para que o novo
co
saber comece a adquirir um in´
ıcio de legitimidade entre outras disciplinas
cient´
ıficas, ser´ preciso esperar a segunda metade do s´culo XIX, durante o
a
e
qual a antropologia se atribui objetos emp´
ıricos autˆnomos: as sociedades
o
ent˜o ditas ”primitivas”, ou seja, exteriores as areas de civiliza¸ao europ´ias
a
` ´
c˜
e
ou norte-americanas. A ciˆncia, ao menos tal como ´ concebida na ´poca,
e
e
e
sup˜e uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que
o
a separa¸ao (sem a qual n˜o h´ experimenta¸ao poss´
c˜
a a
c˜
ıvel) entre o sujeito observante e o objeto observado ´ obtida na f´
e
ısica (como na biologia, botˆnica,
a
ou zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes,
na hist´ria, pela distˆncia no tempo que separa o historiador da sociedade
o
a
´
CONTEUDO

8

estudada, ela consistir´ na antropologia, nessa ´poca - e por muito tempo a
e
em uma distˆncia definitivamente geogr´fica. As sociedades estudadas pelos
a
a
primeiros antrop´logos s˜o sociedades long´
o
a
ınquas as quais s˜o atribu´
`
a
ıdas as
seguintes caracter´
ısticas: sociedades de dimens˜es restritas; que tiveram pouo
cos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia ´ pouco desenvolvida
e
em rela¸˜o a nossa; e nas quais h´ uma menor especializa¸ao das atividades
ca `
a
c˜
e fun¸oes sociais. S˜o tamb´m qualificadas de ”simples”; em conseq¨ˆncia,
c˜
a
e
ue
elas ir˜o permitir a compreens˜o, como numa situa¸ao de laborat´rio, da
a
a
c
o
organiza¸ao ”complexa”de nossas pr´prias sociedades.
c˜
o

***
A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe ´ pr´prio:
e o
o estudo das popula¸oes que n˜o pertencem ` civiliza¸˜o ocidental. Ser˜o nec˜
a
a
ca
a
cess´rias ainda algumas d´cadas para elaborar ferramentas de investiga¸ao
a
e
c˜
que permitam a coleta direta no campo das observa¸˜es e informa¸oes. Mas
co
c˜
logo ap´s ter firmado seus pr´prios m´todos de pesquisa - no in´ do s´culo
o
o
e
ıcio
e
XX - a antropologia percebe que o objeto emp´
ırico que tinha escolhido (as
sociedades ”primitivas”) est´ desaparecendo; pois o pr´prio Universo dos
a
o
”selvagens”n˜o ´ de forma alguma poupado pela evolu¸ao social. Ela se vˆ,
a e
c˜
e
portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma
quest˜o se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu
a
nascimento: o fim do ”selvagem”ou, como diz Paul Mercier (1966), ser´ que
a
a ”morte do primitivo”h´ de causar a morte daqueles que haviam se dado
a
como tarefa o seu estudo? A essa pergunta v´rios tipos de resposta puderam
a
e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em trˆs deles.
e
1) O antrop´logo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o ambito das
o
ˆ
outras ciˆncias humanas. Ele resolve a quest˜o da autonomia problem´tica
e
a
a
de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente
o que ´ chamado de ”sociologia comparada”.
e
2) Ele sai em busca de uma outra area de investiga¸ao: 0 camponˆs, este
´
c˜
e
selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, j´ que foi deixado de lado pelos outros ramos das ciˆncias do homem.
a
e
2
2

A pesquisa etnogr´fica cujo objeto pertence ` mesma sociedade que i) observador foi,
a
a
de in´
ıcio, qualificada pelo nome de folklore. Foi Van uenncp que elaborou os m´todos
¨
e
pr´prios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma
o
´
CONTEUDO

9

3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive n˜o exclui
a
o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especificidade de sua pr´tica, n˜o mais atrav´s de um objeto emp´
a
a
e
ırico constitu´
ıdo
(o selvagem, o camponˆs), mas atrav´s de uma abordagem epistemol´gica
e
e
o
constituinte. Essa ´ a terceira via que come¸aremos a esbo¸ar nas p´ginas
e
c
c
a
que se seguem, e que ser´ desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto
a
te´rico da antropologia n˜o est´ ligado, na perspectiva na qual come¸amos
o
a
a
c
a nos situar a partir de agora, a um espa¸o geogr´fico, cultural ou hist´rico
c
a
o
particular. Pois a antropologia n˜o ´ sen˜o um certo olhar, um certo enfoque
a e
a
que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em
todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em
todas as ´pocas.
e
O estudo do homem inteiro
S´ pode ser considerada como antropol´gica uma abordagem integrativa que
o
o
objetive levar em considera¸˜o as m´ltiplas dimens˜es do ser humano em soca
u
o
ciedade. Certa-mente, o ac´mulo dos dados colhidos a partir de observa¸oes
u
c˜
diretas, bem como o aperfei¸oamento das t´cnicas de investiga¸ao, conduzem
c
e
c˜
necessariamente a uma especializa¸ao do saber. Por´m, uma das voca¸˜es
c˜
e
co
maiores de nossa abordagem consiste em n˜o parcelar o homem mas, ao
a
contr´rio, em tentar relacionar campos de investiga¸˜o freq¨entemente sea
ca
u
parados. Ora, existem cinco areas principais da antropologia, que nenhum
´
pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas as quais ele deve
`
estar sensibilizado quando trabalha de forma profissional em algumas delas,
dado que essas cinco ´reas mant´m rela¸˜es estreitas entre si.
a
e
co
A antropologia biol´gica (designada antigamente sob o nome de antropologia
o
f´
ısica) consiste no estudo das varia¸˜es dos caracteres biol´gicos do homem
co
o
no espa¸o e no tempo. Sua problem´tica ´ a das rela¸oes entre o patrimˆnio
c
a
e
c˜
o
gen´tico e o meio (geogr´fico, ecol´gico, social), ela analisa as particularie
a
o
dades morfol´gicas e fisiol´gicas ligadas a um meio ambiente, bem como a
o
o
evolu¸˜o destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a
ca
este patrimˆnio, mas tamb´m, o que esse patrimˆnio (que se transforma)
o
e
o
deve a cultura? Assim, o antrop´logo biologista levar´ em considera¸ao os
`
o
a
c˜
fatores culturais que influenciam o crescimento e a matura¸ao do indiv´
c˜
ıduo.
forma magistral) as tradi¸˜es populares camponesas, a distˆncia social e cultural que
co
a
separa o objeto do sujeito, substituindo nesse caso a distˆncia geogr´fica da antropologia
a
a
”ex´tica”.
o
´
CONTEUDO

10

Ele se perguntar´, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da
a
crian¸a africana ´ mais adiantado do que o da crian¸a europ´ia? Essa parte
c
e
c
e
da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crˆnios,
a
mensura¸oes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada
c˜
as ra¸as c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela gen´tica
c
e
das popula¸˜es, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao adco
quirido, sendo que um e outro est˜o interagindo continuamente. Ela tem, a
a
meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que n˜o sejam
a
rompidas as rela¸˜es entre as pesquisas das ciˆncias da vida e as das ciˆncias
co
e
e
humanas.
A antropologia pr´-hist´rica ´ o estudo do homem atrav´s dos vest´
e
o
e
e
ıgios materiais enterrados no solo (ossadas, mas tamb´m quaisquer marcas da atividade
e
humana). Seu projeto, que se liga a arqueologia, visa reconstituir as socie`
dades desaparecidas, tanto em suas t´cnicas e organiza¸oes sociais, quanto
e
c˜
em suas produ¸˜es culturais e art´
co
ısticas. Notamos que esse ramo da antropologia trabalha com uma abordagem idˆntica as da antropologia hist´rica
e
`
o
e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O historiador ´ antes de tudo um histori´grafo, isto ´, um pesquisador que trabalha
e
o
e
a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pr´-hist´ria recoe
o
lhe, pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como
o realizado na antropologia social na qual se beneficia de depoimentos vivos.3
4 antropologia ling¨´
uıstica. A linguagem ´, com toda evidˆncia, parte do
e
e
´ atrav´s dela que os indiv´
patrimˆnio cultural de uma sociedade. E
o
e
ıduos
que comp˜em uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas
o
preocupa¸oes, seus pensamentos. Apenas o estudo da l´
c˜
ıngua permite compreender: o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto ´,
e
suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnoling´ ıstica); o como eles
ıi´
expressam o universo e o social (estudo da literatura, n˜o apenas escrita, mas
a
tamb´m de tradi¸˜o oral); o como, finalmente, eles interpretam seus pr´prios
e
ca
o
saber e saber-fazer (´rea das chamadas etnociˆncias).
a
e
A antropologia ling¨´
uıstica, que ´ uma disciplina que se situa no encontro
e
3

Foi notadamente gra¸as a pesquisadores como Paul Rivet e Andr´ Leroi-Gourhan
c
e
(1964) que a articula¸˜o entre as ´reas da antropologia f´
ca
a
ısica, biol´gica e s´cio-cultural
o
o
nunca foi rompida na Fran¸a. Mas continua sempre amea¸ada de ruptura devido a um
c
c
movimento de especializa¸˜o facilmente compreens´
ca
ıvel. Assim, colocando-se do ponto de
vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a ”desagrad´vel obriga¸˜o de
a
ca
fazer m´nage ` trois com os representantes da arqueologia pr´-hist´rica e da antropologia
e
a
e
o
f´
ısica”, comparando-a ` coabita¸˜o dos psic´logos e dos especialistas da observa¸˜o de
a
ca
o
ca
ratos em laborat´rio
o
´
CONTEUDO

11

de v´rias outras, 4 n˜o diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos
a
a
(dialetologia). Ela se interessa tamb´m pelas imensas areas abertas pelas noe
´
vas t´cnicas modernas de comunica¸ao (mass media e cultura do audiovisual).
e
c˜
A antropologia psicol´gica. Aos trˆs primeiros p´los de pesquisa que foram
o
e
o
mencionados, e que s˜o habitualmente os unicos considerados como constitua
´
tivos (com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do
campo global da antropologia, fazemos quest˜o pessoalmente de acrescentar
a
um quinto p´lo: o da antropologia psicol´gica, que consiste no estudo dos
o
o
processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antrop´logo ´
o
e
em primeira instˆncia confrontado n˜o a conjuntos sociais, e sim a indiv´
a
a
ıduos.
Ou seja, somente atrav´s dos comportamentos - conscientes e inconscientes e
dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual
´
n˜o ´ antropologia. E a raz˜o pela qual a dimens˜o psicol´gica (e tamb´m
a e
a
a
o
e
psicopatol´gica) ´ absolutamente indissoci´vel do campo do qual procuramos
o
e
a
aqui dar conta. Ela ´ parte integrante dele.
e
A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos deter´ por muito mais
a
tempo. Apenas nessa ´rea temos alguma competˆncia, e este livro traa
e
tar´ essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir
a
de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo
a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es`
quecer que ela ´ apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos
e
cuja abrangˆncia ´ consider´vel, j´ que diz respeito a tudo que constitui
e
e
a
a
uma sociedade: seus modos de produ¸˜o econˆmica, suas t´cnicas, sua orca
o
e
ganiza¸ao pol´
c˜
ıtica e jur´
ıdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de
conhecimento, suas cren¸as religiosas, sua l´
c
ıngua, sua psicologia, suas cria¸˜es
co
art´
ısticas.
Isso posto, esclare¸amos desde j´ que a antropologia consiste menos no levanc
a
tamento sistem´tico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular
a
com a qual est˜o relacionados entre si e atrav´s da qual aparece a especifia
e
´ precisamente esse ponto de vista da totalidade,
cidade de uma sociedade. E
e o fato de que o antrop´logo procura compreender, como diz L´vi-Strauss,
o
e
aquilo que os homens ”n˜o pensam habitualmente em fixar ria pedra ou no
a
papel”(nossos gestos, nossas trocas simb´licas, os menores detalhes dos noso
4

Foi o antrop´logo Edward Sapir (1967) quem, al´m de introduzir o estudo da lino
e
guagem entre os materiais antropol´gicos, come¸ou tamb´m a mostrar que um estudo
o
c
e
antropol´gico da l´
o
ıngua (a l´
ıngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura)
conduzia a um estudo ling¨´
uıstico da cultura (a l´
ıngua como modelo de conhecimento da
cultura).
´
CONTEUDO

12

sos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamentalmente diferente dos utilizados setorial- mente pelos ge´grafos, economistas,
o
juristas, soci´logos, psic´logos. . .
o
o
O estudo do homem em sua totalidade
A antropologia n˜o ´ apenas o estudo de tudo que com-p˜e uma sociedade.
a e
o
Ela ´ o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5 ), ou seja,
e
das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades hist´ricas
o
e geogr´ficas. Visando constituir os ”arquivos”da humanidade em suas dia
feren¸as significativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as ´reas de
c
a
civiliza¸ao exteriores a nossa. Mas a antropologia n˜o poderia ser definida
c˜
`
a
por um objeto emp´
ırico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao
qual ela a princ´ se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente).
ıpio
Se seu campo de observa¸˜o consistisse no estudo das sociedades preservadas
ca
do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como j´ comentamos,
a
sem objeto.
Ocorre, por´m, que se a especificidade da contribui¸˜o dos antrop´logos em
e
ca
o
rela¸ao aos outros pesquisadores em ciˆncias humanas n˜o pode ser conc˜
e
a
fundida com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades
extra-europ´ias), ela ´ a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhee
e
cimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observa¸ao
c˜
direta, por impregna¸ao lenta e cont´
c˜
ınua de grupos humanos min´sculos com
u
os quais mantemos uma rela¸ao pessoal.
c˜
Al´m disso, apenas a distˆncia em rela¸ao a nossa sociedade (mas uma
e
a
c˜
distˆncia que faz com que nos tornemos extremamente pr´ximos daquilo que
a
o
´ long´
e
ınquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tom´vamos por
a
natural em n´s mesmos ´, de fato, cultural; aquilo que era evidente ´ Infinitao
e
e
mente problem´tico. Disso decorre a necessidade, na forma¸ao antropol´gica,
a
c˜
o
daquilo que n˜o hesitarei em chamar de ”estranhamento”(depaysement), a
a
perplexidade provo- cada pelo encontro das culturas que s˜o para n´s as mais
a
o
distantes, e cujo encontro vai levar a uma modifica¸˜o do olhar que se tinha
ca
´
sobre si mesmo. De fato, presos a uma Unica cultura, somos n˜o apenas
a
cegos a dos outros, mas m´
`
ıopes quando se trata da nossa. A experiˆncia
e
5

Os antrop´logos come¸aram a se dedicar ao estudo das sociedades’ industriais
o
c
avan¸adas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas trataram primeiro, como
c
vimos, dos aspectos ”tradicionais”das sociedades ”n˜o tradicionais”(as comunidades cama
ponesas europ´ias), em seguida, dos grupos marginais, e finalmente, h´ alguns anos apenas
e
a
na Fran¸a, do setor urbano.
c
´
CONTEUDO

13

da alteridade (e a elabora¸ao dessa experiˆncia) leva-nos a ver aquilo que
c˜
e
nem ter´
ıamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa
aten¸ao no que nos ´ habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ”evic˜
e
dente”. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, m´
ımicas, posturas, rea¸˜es afetivas) n˜o tem realmente nada de ”natuco
a
ral”. Come¸amos, ent˜o, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a
c
a
n´s mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropol´gico) da nossa cultura
o
o
passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura poss´ entre tantas outras,
ıvel
mas n˜o a unica.
a
´
Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia, como j´ o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta quest˜o, ´ sua
a
a e
aptid˜o praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de orgaa
niza¸ao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina
c˜
permite notar, com a maior proximidade poss´
ıvel, que essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tom´vamos todos espontaneamente
a
por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar,
comemorar os eventos de nossa existˆncia. . .) s˜o, na realidade, o produto
e
a
de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos tˆm em comum
e
´ sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes,
e
l´
ınguas, modos de conhecimento, institui¸oes, jogos profundamente diversos;
c˜
pois se h´ algo natural nessa esp´cie particular que ´ a esp´cie humana, ´
a
e
e
e
e
sua aptid˜o a varia¸ao cultural
a `
c˜
O projeto antropol´gico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento,
o
juntamente com a compreens˜o de uma humanidade plural. Isso sup˜e ao
a
o
mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do
idˆntico, e com a exclus˜o num irredut´ ”alhures”. As sociedades mais die
a
ıvel
ferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas,
s˜o na realidade t˜o diferentes entre si quanto o s˜o da nossa. E, mais ainda,
a
a
a
elas s˜o para cada uma delas muito raramente homogˆneas (como seria de se
a
e
esperar) mas, pelo contr´rio, extremamente diversificadas, participando ao
a
mesmo tempo de uma comum humanidade.
A abordagem antropol´gica provoca, assim, uma verdadeira revolu¸ao episo
c˜
temol´gica, que come¸a por uma revolu¸˜o do olhar. Ela implica um deso
c
ca
centramento radical, uma ruptura com a id´ia de que existe um ”centro do
e
mundo”, e, correlativamente, uma amplia¸˜o do saber 6 e uma muta¸ao de
ca
c˜
6

Veremos que a antropologia sup˜e n˜o apenas esse desmembramento (´clatement)
o a
e
14

´
CONTEUDO

si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andr´ Gide:
e
”Eu sou mil poss´
ıveis em mim; mas n˜o posso me resignar a querer apenas
a
um deles”.
A descoberta da alteridade ´ a de uma rela¸ao que nos permite deixar de
e
c˜
identificar nossa pequena prov´
ıncia de humanidade com a humanidade, e
correlativamente deixar de rejeitar o presumido ”selvagem”fora de n´s meso
mos. Confrontados a multiplicidade, a priori enigm´tica, das culturas, somos
`
a
aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a
naturaliza¸ao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscric˜
tos em n´s desde o nascimento, e n˜o fossem adquiridos no contato com a
o
a
cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo cl´ssico
a
que tamb´m consiste na identifica¸ao do sujeito com ele mesmo, e da cultura
e
c˜
com a nossa cultura. De fato, a filosofia cl´ssica (antol´gica com S˜o Tom´s,
a
o
a
a
reflexiva com Descartes, criticista com Kant, hist´rica com Hegel), mesmo
o
sendo filosofia social, bem como as grandes religi˜es, nunca se deram como
o
objetivo o de pensar a diferen¸a (e muito menos, de pens´-la cientificamente),
c
a
e sim o de reduzi-la, freq¨entemente inclusive de uma forma igualit´ria e com
u
a
do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de L´ry) ou no ceticismo (de um
e
Montaigne), ligados ao questionamento da cultura ` qual se pertence, mas tamb´m uma
a
e
nova pesquisa e uma reconstitui¸˜o deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma quest˜o:
ca
a
ser´ que a Antropologia ´ o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade?
a
e
Evidentemente, o europeu n˜o foi o unico a interessar-se pelos h´bitos e pelas insa
´
a
titui¸˜es do n˜o-europeu. A rec´
co
a
ıproca tamb´m ´ verdadeira, como atestam notadamente
e e
os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade M´dia, por viajantes vindos
e
´
da Asia. E os ´
ındios Flathead de quem nos fala L´vi-Strauss eram t˜o curiosos do que
e
a
ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedi¸˜es a fim
co
de encontr´-los. Poder´
a
ıamos multiplicar os exemplos. Isso n˜o impede que a constitui¸˜o
a
ca
de um saber de voca¸˜o cient´
ca
ıfica sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido
a partir da cultura europ´ia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um
e
africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um ”europe´
ısmo”, que
´
´
teria se constitu´ como campo de saber te´rico a partir da Asia, da Africa ou da Oceania.
ıdo
o
Isso posto, as condi¸˜es de produ¸˜o hist´ricas, geogr´ficas, sociais e culturais da
co
ca
o
a
antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropol´gico perder
o
de vista, mas que n˜o devem ocultar a voca¸˜o (evidentemente problem´tica) de nossa
a
ca
a
disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como escreve L´vi-Strauss:
e
”N˜o se trata apenas de elevar-se acima dos valores pr´prios da sociedade ou do grupo
a
o
do observador, e sim de seus m´todos de pensamento; ´ preciso alcan¸ar formula¸˜o
e
e
c
ca
v´lida, n˜o apenas para um observador honesto mas para todos os observadores poss´
a
a
ıveis”.
Lembremos que a antropologia s´ come¸ou a ser ensinada nas universidades h´ alo
c
a
gumas d´cadas. Na Gr˜-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Fran¸a a
e
a
c
partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
´
CONTEUDO

15

as melhores inten¸oes do mundo.
c˜
O pensamento antropol´gico, por sua vez, considera que, assim como uma
o
civiliza¸ao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve
c˜
igualmente aceitar a diversidade das culturas, tamb´m adultas. Estamos,
e
evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade pˆde pero
manecer por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si
pr´pria e fazendo, de tudo que n˜o eram suas ideologias dominantes sucessio
a
vas, um objeto de exclus˜o. Desconfiemos por´m do pensamento - que seria
a
e
o c´mulo em se tratando de antropologia - de que estamos finalmente mais
u
”l´cidos”, mais ”conscientes”, mais ”livres”, mais ”adultos”, como acabau
mos de escrever, do que em uma ´poca da qual seria errˆneo pensar que est´
e
o
a
definitivamente encerrada. Pois essa transgress˜o de uma das tendˆncias doa
e
minantes de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas
formas econˆmicas, pol´
o
ıticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que
significa de forma alguma que o antrop´logo esteja destinado, seja levado por
o
alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a l´gica das outras socieo
dades e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contr´rio, mostrar nesse livro
a
que a d´vida e a cr´
u
ıtica de si mesmo s´ s˜o cientificamente fundamentadas
o a
se forem acompanhadas da interpela¸ao cr´
c˜
ıtica dos de outrem.
Dificuldades
Se os antrop´logos est˜o hoje convencidos de que uma das caracter´
o
a
ısticas
maiores de sua pr´tica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto ´,
a
e
convencidos do fato de que os fenˆmenos sociais que estudamos s˜o fenˆmenos
o
a
o
que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vi-vendo; se eles
s˜o tamb´m unˆnimes em pensar que h´ uni-dade da fam´ humana, a
a
e
a
a
ılia
fam´ dos antrop´logos ´, por sua vez, muito dividida, quando se trata de
ılia
o
e
dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e
de forma geral a todos aqueles que tˆm o direito de saber o que verdadeie
ramente fazem os antrop´logos) dessa unidade m´ltipla, desses materiais e
o
u
dessa experiˆncia.
e
1) A primeira dificuldade se manifesta, como sempre, ao n´
ıvel das palavras. Mas ela ´, tamb´m aqui, particularmente reveladora da juventude de
e
e
nossa disciplina,6 que n˜o sendo, como a f´
a
ısica, uma ciˆncia constitu´ cone
ıda,
tinua n˜o tendo ainda optado definitivamente pela sua pr´pria designa¸ao.
a
o
c˜
Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde a tradi¸˜o
`
ca
terminol´gica dos franceses), insiste- se sobre a pluraridade irredut´ das
o
ıvel
etnias, isto ´, das culturas. No segundo (que ´ mais usado nos pa´ angloe
e
ıses
´
CONTEUDO

16

saxˆnicos), sobre a unidade do gˆnero humano. E optando-se por antroo
e
pologia, deve-se falar (com os autores britˆnicos) em antropologia social a
cujo objeto privilegiado ´ o estudo das institui¸˜es - ou (com os autores
e
co
americanos) de antropologia cultural - que consiste mais no estudo dos comportamentos.7
2) A segunda dificuldade diz respeito ao grau de cientificidade que conv´m
e
atribuir a antropologia. O homem est´ em condi¸˜es de estudar cientifica`
a
co
mente o homem, isto ´, um objeto que ´ de mesma natureza que o sujeito?
e
e
E nossa pr´tica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com
a
Radcliffe-Brown (1968), que as sociedade s˜o sistemas naturais que devem
a
ser estudados segundo os m´todos comprovados pelas ciˆncias da natureza,8 e
e
e
os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que ´ preciso tratar as sociedae
des n˜o como sistemas orgˆnicos, mas como sistemas simb´licos. Para estes
a
a
o
ultimos, longe de ser uma ”ciˆncia natural da sociedade”(Radcliffe-Brown), a
´
e
antropologia deve antes ser considerada como uma ”arte”(Evans-Pritchard).
3) Uma terceira dificuldade prov´m da rela¸ao amb´
e
c˜
ıgua que a antropologia mant´m desde sua gˆnese com a Hist´ria. Estreitamente vinculadas nos
e
e
o
s´culos XVIII e XIX, as duas pr´ticas v˜o rapidamente se emancipar uma
e
a
a
da outra no s´culo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar perioe
dicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente a antrop´logos.
o
Evans-Pritchard: ”O conhecimento da hist´ria das sociedades n˜o ´ de neo
a e
7

Para que o leitor que n˜o tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa
a
localizar-se, vale a pena especificar bem o significado dessas palavras. Estabele¸amos,
c
como L´vi-Strauss, que a etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os trˆs moe
e
mentos de uma mesma abordagem. A etnografia ´ a coleta direta, e o mais minuciosa
e
poss´
ıvel, dos fenˆmenos que observamos, por uma impregna¸˜o duradoura e cont´
o
ca
ınua e
um processo que se realiza por aproxima¸˜es sucessivas. Esses fenˆmenos podem ser recoco
o
lhidos tomando-se notas, mas tamb´m por grava¸˜o sonora, fotogr´fica ou cinematogr´fica.
e
ca
a
a
A etnologia consiste em um primeiro n´ de abstra¸˜o: analisando os materiais colhidos,
ıvel
ca
fazer aparecer a l´gica espec´
o
ıfica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente,
consiste era um segundo n´ de inteligibilidade: construir modelos que permitam comıvel
parar as sociedades entre si. Como escreve L´vi-Strauss, ”seu objetivo ´ alcan¸ar, al´m da
e
e
c
e
imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um invent´rio
a
das possibilidades inconscientes, que n˜o existem em n´mero ilimitado”.
a
u
8
Ao modelo orgˆnico dos funcionalistas ingleses, L´vi-Strauss substituiu, como verea
e
mos, um modelo ling¨´
uıstico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza
(o inato) e da cultura (tudo o que n˜o ´ hereditariamente programado e deve ser invena e
tado pelos homens onde a natureza n˜o programou nada), a antropologia deve aspirar a
a
tornar-se uma ciˆncia natural: ”A antropologia pertence `s ciˆncias humanas, seu nome o
e
a e
proclama suficientemente; mas se se resigna em fazer seu purgat´rio entre as ciˆncias socio
e
ais, ´ porque n˜o desespera de despertar entre as ciˆncias naturais na hora do julgamento
e
a
e
final”(L´vi-Strauss, 1973)
e
´
CONTEUDO

17

nhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das institui¸oes”. Mais categ´rico ainda, Leach escreve: ”A gera¸˜o de antrop´logos
c˜
o
ca
o
a qual perten¸o tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Hist´ria
`
c
o
em considera¸˜o”. Conv´m tamb´m lembrar aqui a distin¸ao agora famosa
ca
e
e
c˜
de L´vi-Strauss opondo as ”sociedades frias”, isto ´, ”pr´ximas do grau zero
e
e
o
de temperatura hist´rica”, que s˜o menos ”sociedades sem hist´ria”, do que
o
a
o
”sociedades que n˜o querem ter est´rias”(´nicos objetos da antropologia
a
o
u
cl´ssica) a nossas pr´prias sociedades qualificadas de ”sociedades quentes”.
a
o
Essa preocupa¸˜o de separa¸ao entre as abordagens hist´rica e antropol´gica
ca
c˜
o
o
est´ longe, como veremos, de ser unˆnime, e a hist´ria recente da antropoa
a
o
logia testemunha tamb´m um desejo de coabita¸˜o entre as duas disciplinas.
e
ca
Aqui, no Nordeste do Brasil, onde come¸o a escrever este livro, desde 1933,
c
um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a forma¸˜o
ca
da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do
conhecimento hist´rico.
o
4) Uma quarta dificuldade prov´m do fato de que nossa pr´tica oscila sem
e
a
parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode qualificar de
fundamental e aquilo que ´ designado sob o termo de ”antropologia aplicada”.
e
Come¸aremos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e
c
que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim considerava que a sociologia n˜o valeria sequer uma hora de dedica¸ao se ela n˜o
a
c˜
a
pudesse ser util, e muitos antrop´logos compartilham sua opini˜o. Margaret
´
o
a
Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas
Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaura¸˜o de
ca
uma sociedade melhor, e, mais especificamente a aplica¸ao de uma pedagogia
c˜
menos frustrante ` sociedade americana. Hoje v´rios colegas nossos consia
a
deram que a antropologia deve colocar-se ”a servi¸o da revolu¸ao”(segundo
c
c˜
especialmente )ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ent˜o, um milia
tante, um ”antrop´logo revolucion´rio”, contribuindo na constru¸ao de uma
o
a
c˜
”antropologia da liberta¸ao”. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a
c˜
qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos programas de desenvolvimento e das decis˜es pol´
o
ıticas relacionadas ` elaborac˜o
a
a
desses programas. Quer´
ıamos simplesmente observai aqui que a ”antropolo´
gia aplicada”9 n˜o ´ uma grande novidade. E por ela que, com a coloniza¸ao,
a e
c˜
10
a antropologia teve inicio.
9
10

Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971
A maioria dos antrop´logos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a peo
18

´
CONTEUDO

Foi com ela, inclusive, que se deu o in´
ıcio da Antropologia, durante a coloniza¸ao. No extremo oposto das atitudes ”engajadas”das quais acabamos
c˜
de falar, encontramos a posi¸˜o determinada de um Claude L´vi-Strauss que,
ca
e
ap´s ter lembrado que o saber cient´
o
ıfico sobre o homem ainda se encontrava
num est´gio extremamente primitivo em rela¸ao ao saber sobre a natureza,
a
c˜
escreve:
”Supondo que nossas ciˆncias um dia possam ser colocadas a servi¸o da
e
c
a¸ao pr´tica, elas n˜o tˆm, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O
c˜
a
a e
verdadeiro meio de permitir sua existˆncia, ´ dar muito a elas, mas sobretudo
e
e
n˜o lhes pedir nada”.
a
As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia ”pura”ou a antropologia ”diluida”como diz ainda L´vi-Strauss encontram na realidade suas
e
primeiras formula¸˜es desde os prim´rdios da confronta¸˜o do europeu com
co
o
ca
o ”selvagem”. Desde o s´culo XVI, de fato, come¸a a se implantar aquilo o
e
c
que alguns chamariam de ”arqu´tipos”do discurso etnol´gico, que podem ser
e
o
ilustrados pelas posi¸oes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun.
c˜
Jean de Lery foi um huguenote* francˆs que permaneceu algum tempo no
e
Brasil entre os Tupinamb´s. Longe de procurar convencer seus h´spedes da
a
o
superioridade da cultura europ´ia e da religi˜o reformada, ele os interroga
e
a
e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns
anos mais tarde realizou uma verdadeira investiga¸ao no M´xico.
c˜
e
Perfeitamente a vontade entre os astecas, ele estava l´ enquanto mission´rio
`
a
a
a fim de converter a popula¸ao que estuda.11
c˜
O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a convers˜o
a
religiosa, a ”revolu¸˜o”, a ajuda ao ”Terceiro Mundo”, as estrat´gias daquilo
ca
e
que ´ hoje chamado ”desenvolvimento”ou ainda ”mudan¸a social”) n˜o ale
c
a
tera nada quanto ao amago do problema, que ´ o seguinte: 0 antrop´logo
ˆ
e
o
deve contribuir, enquanto antrop´logo, para B transforma¸ao das sociedades
o
c˜
que ele estuda 11
dido das administra¸˜es: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomendados pelo governo
co
britˆnico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Costa do Ouro. Nadei foi
a
conselheiro do governo do Sud˜o, etc
a
11
Essa dupla abordagem da rela¸˜o ao outro pode muito bem sei realizada por um unico
ca
´
pesquisador. Assim Malinowski chegando `s ilhas Trobriand (trad. franc., 1963) se deixa
a
literalmente levar pela cultura que descobre e que o encanta. Mas v´rios anos depois (trad.
a
franc., 1968) participa do que chama ”uma experiˆncia controlada”do desenvolvimento
e
´
CONTEUDO

19

Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abordagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos ´ mais
e
familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos)
e em tornar mais familiar aquilo que nos ´ estranho (os comportamentos, as
e
cren¸as, os costumes das sociedades que n˜o s˜o as nossas, mas nas quais poc
a a
der´
ıamos ter nascido), est´ diretamente confrontada hoje a um movimento de
a
homogeneiza¸˜o, ao meu ver, sem precedente’ na Hist´ria: o desenvolvimento
ca
o
de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento
que ´ a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias
e
sucessivas entre os Berberes do M´dio Atlas e entre os Baul´s da Costa do
e
e
Marfim, perceber realmente o fasc´
ınio que exerce este modelo, perturbando
completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de
se distrair, de se encontrar, de pensar 12 e levando a novos comportamentos
que n˜o decorrem de uma escolha)
a
A quest˜o que est´ hoje colocada para qualquer antrop´logo ´ a seguinte:
a
a
o
e
h´ uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindoa
lhe o acesso a um est´gio de sociedade industrial (ou p´s-industrial) sem
a
o
conflito dram´tico, sem risco de despersonaliza¸ao?
a
c˜
Minha convic¸˜o ´ de que o antrop´logo, para ajudar os atores sociais a
ca e
o
responder a essa quest˜o, n˜o deve, pelo menos enquanto antrop´logo, traa
a
o
balhar para a transforma¸ao das sociedades que estuda. Caso contr´rio, seria
c˜
a
conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agrˆnomo, m´dico,
o
e
pol´
ıtico, a n˜o ser que ele seja motivado por alguma concep¸ao messiˆnica
a
c˜
a
da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicita¸˜o para ela
ca
mesma de sua pr´pria diferen¸a ´ uma coisa; organizar pol´
o
c e
ıtica, econˆmica e
o
socialmente a evolu¸˜o dessa diferen¸a ´ uma outra coisa. Ou seja, a partica
c e
cipa¸ao do antrop´logo naquilo que ´ hoje a vanguarda do anticolonialismo
c˜
o
e
e da luta para os direitos humanos e das minorias ´tnicas ´, a meu ver, uma
e
e
conseq¨ˆncia de nossa profiss˜o, mas n˜o ´ a nossa profiss˜o propriamente
ue
a
a e
a
dita.
Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urgˆncia a
e
`
qual temos o dever de responder.
12

As muta¸˜es de comportamentos geradas por essa forma de civiliza¸˜o mundialista
co
ca
podem tamb´m evidentemente ser encontradas nas nossa; pr´prias culturas rurais e ure
o
banas. Em compensa¸˜o, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde
ca
come¸ou a redigir este livro
c
20

´
CONTEUDO

a) Urgˆncia de preserva¸ao dos patrimˆnios culturais locais amea¸ados (e
e
c˜
o
c
a respeito disso a etnologia est´ desde o seu nascimento lutando contra o
a
tempo para que a transcri¸˜o dos arquivos orais e visuais possa ser realizada
ca
a tempo, enquanto os ultimos deposit´rios das tradi¸˜es ainda est˜o vivos)
´
a
co
a
e, sobretudo, de restitui¸ao aos habitantes das diversas regi˜es nas quais trac˜
o
balhamos, de seu pr´prio saber e saber-fazer. Isso sup˜e uma ruptura com
o
o
a concep¸ao assim´trica da pesquisa, baseada na capta¸˜o de informa¸˜es.
c˜
e
ca
co
N˜o h´, de fato, antropologia sem troca, isto ´, sem itiner´rio no decora a
e
a
rer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da
necessidade de n˜o deixar se perder formas de pensamento e atividade unicas.
a
´
b) Urgˆncia de an´lise das muta¸oes culturais impostas pelo desenvolvimento
e
a
c˜
extremamente r´pido de todas as sociedades contemporˆneas, que n˜o s˜o
a
a
a a
mais ”sociedades tradicionais”, e sim sociedades que est˜o passando por um
a
desenvolvimento tecnol´gico absolutamente in´dito, por muta¸˜es de suas
o
e
co
rela¸oes sociais, por movimentos de migra¸˜o Interna, e por um processo de
c˜
ca
urbaniza¸ao acelerado. Atrav´s da especificidade de sua abordagem, nossa
c˜
e
disciplina deve, n˜o fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim fora
mular quest˜es com eles, elaborar com eles uma reflex˜o racional (e n˜o mais
o
a
a
m´gica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tamb´m uma
a
e
crise de identidade ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto ´, o encontro
e
de l´
ınguas, t´cnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropol´gica, que
e
o
n˜o ´ de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem
a e
nunca se substituir aos projetos e as decis˜es dos pr´prios atores sociais,
`
o
o
tem hoje como voca¸˜o maior a de propor n˜o solu¸˜es mas instrumentos
ca
a
co
de investiga¸˜o que poder˜o ser utilizados em especial para reagir ao choque
ca
a
da acultura¸ao, isto ´, ao risco de um desenvolvimento conflituoso levando `
c˜
e
a
violˆncia negadora das particularidades econˆmicas, sociais, culturais de um
e
o
povo.
5) Uma quinta dificuldade diz respeito, finalmente, ` natureza desta obra que
a
deve apresentar, em um n´mero de p´ginas reduzido, um campo de pesquisa
u
a
imenso, cujo desenvolvimento recente ´ extremamente especializado. No fie
nal do s´culo XIX, um unico pesquisador podia, no limite, dominar o campo
e
´
global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural,
ling¨´
uıstica, pr´-hist´rica, e tamb´m mais recentemente o caso de Ktoeber,
e
o
e
provavemente o ultimo antrop´logo que explorou: com sucesso uma area t˜o
´
o
´
a
extensa). N˜o ´, evidentemente, o caso hoje em dia. O antrop´logo considera
a e
o
agora – com raz˜o – que ´ competente apenas dentro de uma ´rea restrita 13
a
e
a
13

A antropologia das t´cnicas, a antropologia econˆmica, pol´
e
o
ıtica, a antropologia do
´
CONTEUDO

21

de sua pr´pria disciplina e para uma area geogr´fica delimitada.
o
´
a
Era-me portanto imposs´
ıvel, dentro de um texto de dimens˜es t˜o restrio
a
tas, dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos
campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar
um certo n´mero de referˆncias, definir alguns conceitos a partir dos quais o
u
e
leitor poder´, espero, interessar-se em ir mais adiante.
a
Ver-se-´ que este livro caminha em espiral. As preocupa¸oes que est˜o no
a
c˜
a
centro de qualquer abordagem antropol´gica e que acabam de ser mencioo
nadas ser˜o retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em
a
primeiro lugar quais foram as principais etapas da constitui¸ao de nossa disc˜
ciplina e como, atrav´s dessa hist´ria da antropologia, foram se colocando
e
o
progressivamente as quest˜es que continuam nos interessando at´ hoje. Em
o
e
seguida, esbo¸arei os p´los te´ricos - a meu ver cinco - em volta dos quais
c
o
o
oscilam o pensamento e a pr´tica antropol´gica. Teria sido, de fato, surpreena
o
dente, se, procurando dar conta da pluraridade, a antropologia permanecesse
monol´
ıtica. Ela ´ ao contr´rio claramente plural. Veremos no decorrer deste
e
a
livro que existem perspectivas complementares, mas tamb´m mutuamente
e
exclusivas, entre as quais ´ preciso escolher. E, em vez de fingir ter adoe
tado o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que
nas ciˆncias humanas ´ um engodo, esfor¸ando-me ao mesmo tempo para
e
e
c
apresentar com o m´ximo de objetividade o pensamento dos outros, n˜o
a
a
dissimularei as minhas pr´prias op¸˜es. Finalmente, em uma ultima parte,
o
co
´
os principais eixos anteriormente examinados ser˜o, em um movimento por
a
assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de definir aquilo que constitui, a meu ver, a especificidade da antropologia.
Eu queria finalmente acrescentar que este livro dirige-se o mais amplo
p´blico poss´
u
ıvel. N˜o aqueles que tˆm por profiss˜o a antropologia – dua `
e
a
vido que encontrem nele um grande interesse – mas a todos que, em algum
momento de sua vida (profissional, mas tamb´m pessoal), possam ser levados
e
a utilizar o modo de conhecimento t˜o caracter´
a
ıstico da antropologia. Esta
´ a raz˜o pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem t´cnica
e
a
e
e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente
pela segunda. Pois a antropologia, que ´ a ciˆncia do homem por excelˆncia,
e
e
e
pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos n´s.
o

parentesco, das organiza¸˜es sociais, a antropologia religiosa, art´
co
ıstica, a antropologia dos
sistemas de comunica¸˜es...
co
22

´
CONTEUDO
Parte I
Marcos Para Uma Hist´ria Do
o
Pensamento Antropol´gio
o

23
Cap´
ıtulo 1
A Pr´-Hist´ria Da
e
o
Antropologia:
a descoberta das diferen¸as pelos vic
ajantes do s´culo e a dupla resposta
e
ideol´gica dada daquela ´poca at´ noso
e
e
sos dias
A gˆnese da reflex˜o antropol´gica ´ contemporˆnea a descoberta do Novo
e
a
o
e
a
`
Mundo. O Renascimento explora espa¸os at´ ent˜o desconhecidos e come¸a
c
e
a
c
1
a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espa¸os. A
c
grande quest˜o que ´ ent˜o colocada, e que nasce desse primeiro confronto
a
e
a
visual com a alteridade, ´ a seguinte: aqueles que acabaram de serem descoe
bertos pertencem ` humanidade? O crit´rio essencial para saber se conv´m
a
e
e
atribuir-lhes um estatuto humano ´, nessa ´poca, religioso: O selvagem tem
e
e
uma alma? O pecado original tamb´m lhes diz respeito? –quest˜o capital
e
a
para os mission´rios, j´ que da resposta ir´ depender o fato de saber se ´
a
a
a
e
poss´ trazer-lhes a revela¸˜o. Notamos que se, no s´culo XIV, a quest˜o
ıvel
ca
e
a
1

As primeiras observa¸˜es e os primeiros discursos sobre os povos ”distantes”de que
co
dispomos provˆm de duas fontes: 1) as rea¸˜es dos primeiros viajantes, formando o que
e
co
habitualmente chamamos de ”literatura de viagem”. Dizem respeito em primeiro lugar `
a
P´rsia e ` Turquia, em seguida ` Am´rica, ` Asia e ` Africa. Em 1556, Andr´ Thevet
e
a
a
e
a ´
a ´
e
escreve As Singularidades da Fran¸a Ant´rtica, em 1558 Jean de Lery, A Hist´ria de Uma
c
a
o
Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tamb´m como exemplo, para um per´
e
ıodo
anterior (s´culo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um per´
e
ıodo posterior (s´culo
e
XVII) Y. d’Evreux (reed. 1985), bom como a coletˆnea de textos de J. P. Duviols (1978);
a
2) os relat´rios dos mission´rios e particularmente as ”Rela¸˜es”dos jesu´ (s´culo XVII)
o
a
co
ıtas e
ˆ
nc Canad´, no Jap˜o, na China, Cf., por exemplo, as Lettres Edifiantes et Curieuses de la
a
a
Chine par des Missionnaires J´suites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979.
e

25
´
´
CAP´
ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:

26

´ colocada, n˜o ´ de forma alguma solucionada. Ela ser´ definitivamente
e
a e
a
resolvida apenas dois s´culos mais tarde.
e
Nessa ´poca ´ que come¸am a se esbo¸ar as duas ideologias concorrentes,
e
e
c
c
mas das quais uma consiste no sim´trico invertido da outra: a recusa do ese
tranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corol´rio ´ a boa consciˆncia
a e
e
2
que se tem sobre si e sua sociedade; a fascina¸˜o pelo estranho cujo corol´rio
ca
a
´ a m´ consciˆncia que se tem sobre si e sua sociedade.
e
a
e
Ora, os pr´prios termos dessa dupla posi¸˜o est˜o colocados desde a meo
ca
a
tade do s´culo XIV: no debate, que se torna uma controv´rsia p´blica, que
e
e
u
durar´ v´rios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que op˜e o
a a
o
dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera.
Las Casas:
`
”Aqueles que pretendem que os ´ndios s˜o b´rbaros, responderemos que essas
ı
a a
pessoas tˆm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem pol´tica que,
e
ı
em alguns reinos, ´ melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou
e
at´ superavam muitas na¸˜es e uma ordem pol´tica que, em alguns reinos, ´
e
co
ı
e
melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou at´ superavam muitas
e
na¸˜es do mundo conhecidas como policiadas e razo´veis, e n˜o eram infeco
a
a
riores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e
at´, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tamb´m a
e
e
Inglaterra, a Fran¸a, e algumas de nossas regi˜es da Espanha. (...) Pois a
c
o
maioria dessas na¸˜es do mundo, sen˜o todas, foram muito mais pervertidas,
co
a
irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudˆncia e sagae
cidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. N´s
o
mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extens˜o
a
de nossa Espanha, pela barb´rie de nosso modo de vida e pela deprava¸˜o de
a
ca
nossos costumes”.
Sepulvera:
”Aqueles que superam os outros em prudˆncia e raz˜o, mesmo que n˜o see
a
a
jam superiores em for¸a f´sica, aqueles s˜o, por natureza, os senhores; ao
c ı
a
contr´rio, por´m, os pregui¸osos, os esp´ritos lentos, mesmo que tenham as
a
e
c
ı
for¸as f´sicas para cumprir todas as tarefas necess´rias, s˜o por natureza serc ı
a
a
2

Sendo, as duas variantes dessa figura: 1) a condescendˆncia e a prote¸˜o, paternalista
e
ca
do outro: 2) sua exclus˜o
a
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO

27

vos. E ´ justo e util que sejam servos, e vemos isso sancionado pela pr´pria
e
´
o
lei divina. Tais s˜o as na¸˜es b´rbaras e desumanas, estranhas ` vida civil
a
co
a
a
e aos costumes pac´ficos. E ser´ sempre justo e conforme o direito natural
ı
a
que essas pessoas estejam submetidas ao imp´rio de pr´ncipes e de na¸˜es
e
ı
co
mais cultas e humanas, de modo que, gra¸as ` virtude destas e ` prudˆncia
c a
a
e
de suas leis, eles abandonem a barb´rie e se conformem a uma vida mais
a
humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imp´rio, pode-se
e
impˆ-lo pelo meio das armas e essa guerra ser´ justa, bem como o declara
o
a
o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos
dominem aqueles que n˜o tˆm essas virtudes”.
a e
Ora, as ideologias que est˜o por tr´s desse duplo discurso, mesmo que n˜o se
a
a
a
expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro s´culos
e
ap´s a polˆmicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como s˜o estere´tipos
o
e
a
o
que envenenam essa antropologia espontˆnea de que temos ainda hoje tanta
a
dificuldade para nos livrarmos, conv´m nos determos sobre eles.
e

1.1

A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom
Civilizado

A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos homens como um fato, e sim como uma aberra¸˜o exigindo uma justifica¸ao.
ca
c˜
A antig¨idade grega designava sob o nome de b´rbaro tudo o que n˜o paru
a
a
ticipava da helenidade (em referˆncia a inarticula¸ao do canto dos p´ssaros
e
`
c˜
a
oposto a significa¸˜o da linguagem humana), o Renascimento, os s´culos
`
ca
e
XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto ´, seres da floresta),
e
opondo assim a animalidade a humanidade. O termo primitivos ´ que triun`
e
far´ no s´culo XIX, enquanto optamos preferencialmente na ´poca atual pelo
a
e
e
de subdesenvolvidos.
Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto ´, para a natureza toe
dos aqueles que n˜o participam da faixa de humanidade ` qual pertencemos
a
a
e com a qual nos identificamos, ´, como lembra L´vi-Strauss, a mais comum
e
e
3

Essa oscila¸˜o entre dois p´los concorrentes, mas ligados entre si por um movimento
ca
o
de pˆndulo ininterrupto, pode ser encontrada n˜o apenas em uma mesma ´poca, mas em
e
a
e
um mesmo autor. Cf., por exemplo, L´ry (1972) ou Buffon (1984).
e
´
´
CAP´
ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:

28

a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracter´
ıstica dos ”selvagens”.4
Entre os crit´rios utilizados a partir do s´culo XIV pelos europeus para julgar
e
e
se conv´m conferir aos ´
e
ındios um estatuto humano, al´m do crit´rio religioso
e
e
do qual j´ falamos, e que pede, na configura¸ao na qual nos situamos, uma
a
c˜
resposta negativa (”sem religi˜o nenhuma”, s˜o ”mais diabos”), citaremos:
a
a
• a aparˆncia f´
e
ısica: eles est˜o nus ou ”vestidos de peles de animais”;
a
• os comportamentos alimentares: eles ”comem carne crua”, e ´ todo o
e
imagin´rio do canibalismo que ir´ aqui se elaborar;5
a
a
• a inteligˆncia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles
e
falam ”uma l´
ıngua inintelig´
ıvel”.
Assim, n˜o acreditando em Deus, n˜o tendo alma, n˜o tendo acesso `
a
a
a
a
linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal,
o selvagem ´ apreendido nos modos de um besti´rio. E esse discurso soe
a
bre a alteridade, que recorre constantemente a met´fora zool´gica, abre o
`
a
o
grande leque das ausˆncias: sem moral, sem religi˜o, sem lei, sem escrita,
e
a
sem Estado, sem consciˆncia, sem raz˜o, sem objetivo, sem arte, sem pase
a
sado, sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentar´ at´, no s´culo XVIII:
a e
e
”sem barba”, ”sem sobrancelhas”, ”sem pˆlos”, ”sem esp´
e
ıritosem ardor para
com sua fˆmea”.
e
´
”E a grande gl´ria e a honra de nossos reis e dos espanh´is, escreve Goo
o
mara em sua Hist´ria Geral dos ´ndios, ter feito aceitar aos ´ndios um unico
o
ı
ı
´
Deus, uma unica f´ e um unico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa´
e
´
crif´cios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus
ı
pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos
deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais;
4

”Assim”, escreve L´vi-Strauss (1961), ”Ocorrem curiosas situa¸˜es onde dois interloe
co
cutores d˜o-s´ cruelmente a r´plica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos ap´s a descoberta
a e
e
o
da Am´rica, enquanto os espanh´is enviavam comiss˜es de inqu´rito para pesquisar se os
e
o
o
e
ind´
ıgenas possu´
ıam ou n˜o uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisioa
neiros a fim de verificar, por uma observa¸˜o demorada, se seus cad´veres eram ou n˜o
ca
a
a
sujeitos ` putrefa¸˜o”
a
ca
5
Cf. especialmente Hans Staden, V´ritable Histoire et Descriptiou d’un Pays Habit´
e
e
par des Hommes Sauvages, Nus. F´roces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M.
e
JVl´taili´, 1979.
e
e
6
Essa falta pode ser apreendida atrav´s de duas variantes: I) n˜o tˆm, irremediavele
a e
mente, futuro e n˜o temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) ´ poss´
a
e
ıvel fazˆ-los
e
evoluir. Pela a¸˜o mission´ria (a partir s´culo XVI). Assim como pela a¸˜o administrativa
ca
a
e
ca
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO

29

mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens s˜o como animais e o uso do
a
ferro que ´ t˜o necess´rio ao homem. Tamb´m lhes mostramos v´rios bons
e a
a
e
a
h´bitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso – e
a
at´ cada uma dessas coisas – vale mais que as penas, as p´rolas, o ouro que
e
e
tomamos deles, ainda mais porque n˜o utilizavam esses metais como moeda”.
a
”As pessoas desse pa´s, por sua natureza, s˜o t˜o ociosas, viciosas, de pouco
ı
a a
trabalho, melanc´licas, covardes, sujas, de m´ condi¸˜o, mentirosas, de mole
o
a
ca
constˆncia e firmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, aboa
min´veis pecados dessas pessoas selvagens, r´sticas e bestiais, que fossem
a
u
atirados e banidos da superf´cie da Terra”. escreve na mesma ´poca (1555)
ı
e
Oviedo em sua Hist´ria das ´ndias.
o
ı
Opini˜es desse tipo s˜o inumer´veis, e passaram tranq¨ilamente para nossa
o
a
a
u
´poca. No s´culo XIX, Stanley, em seu livro dedicado a pesquisa de Lie
e
`
vingstone, compara os africanos aos ”macacos de um jardim zool´gico”, e
o
convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que
foi o discurso colonial dos franceses na Arg´lia.
e
Mais dois textos ir˜o deter mais demoradamente nossa aten¸ao, por nos paa
c˜
recerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso
do civilizado. S˜o as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes
a
para servir a Hist´ria da Esp´cie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado
`
o
e
em 1774, e a famosa Introdu¸˜o a Filosofia da Hist´ria, de Hegel.
ca `
o
1) De Pauw nos prop˜e suas reflex˜es sobre os ´
o
o
ındios da Am´rica do Norte.
e
Sua convic¸ao ´ a de que sobre estes l´
c˜ e
ıllimos a influˆncia da natureza ´ total,
e
e
ou mais precisamente negativa. Se essa ra¸a inferior n˜o tem hist´ria e est´
c
a
o
a
pura sempre condenada, por seu estado ”degenerado”, a permanecer fora do
movimento da Hist´ria, a raz˜o deve ser atribu´ ao clima de uma extrema
o
a
ıda
umidade:
”Deve existir, na organiza¸˜o dos americanos, uma causa qualquer que emca
brutece sua sensibilidade e seu esp´rito. A qualidade do clima, a grosseria
ı
de seus humores, o v´cio radical do sangue, a constitui¸˜o de seu temperaı
ca
mento excessivamente fleum´tico podem ter diminu´do o tom e o saracoteio
a
ı
dos nervos desses homens embrutecidos”.
Eles tˆm, prossegue Pauw, um ”temperamento t˜o umido quanto o ar e
e
a ´
a terra onde vegetam”e que explica que eles n˜o tenham nenhum desejo sea
xual. Em suma, s˜o ”infelizes que suportam todo o peso da vida agreste
a
´
´
CAP´
ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:

30

na escurid˜o das florestas, parecem mais animais do que vegetais”. Ap´s a
a
o
degenerescˆncia ligada a um ”v´ de constitui¸˜o f´
e
ıcio
ca ısica”, Pauw chega a de`
´
grada¸ao moral. E a quinta parte do livro, cuja primeira se¸ao ´ intitulada:
c˜
c˜ e
”O gˆnio embrutecido dos Americanos”.
e
”A insensibilidade, escreve nosso autor, ´ neles um v´cio de sua constitui¸˜o
e
ı
ca
alterada; eles s˜o de uma pregui¸a imperdo´vel, n˜o inventam nada, n˜o ema
c
a
a
a
preendem nada, e n˜o estendem a esfera de sua concep¸˜o al´m do que vˆem
a
ca
e
e
pusilˆnimes, covardes, irritados, sem nobreza de esp´rito, o desˆnimo e a
a
ı
a
falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam in´teis para
u
si mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam mais do que
vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma.
Essa separa¸˜o entre um estado de natureza concebido por Pauw como irca
remediavelmente imut´vel, e o estado de civiliza¸˜o, pode ser visualizado
a
ca
num mapa m´ndi. No s´culo XVIII, a enciclop´dia efetua dois tra¸ados: um
u
e
e
c
longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa,
´
´
a Africa e a Asia, de outro a Am´rica, e um latitudinal dividindo o que se
e
encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buffon, a proximidade ou o afastamento da linha equatorial s˜o explicativos n˜o apenas da
a
a
constitui¸ao f´
c˜ ısica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filos´ficas
o
sobre os Americanos escolhe claramente o crit´rio latitudinal, fundamento
e
aos seus olhos da distribui¸˜o da popula¸˜o mundial, distribui¸ao essa n˜o
ca
ca
c˜
a
cultural e sim natural da civiliza¸ao e da barb´rie: ”A natureza tirou tudo
c˜
a
de um hemisf´rio deste globo para d´-lo ao outro”. ”A diferen¸a entre um
e
a
c
hemisf´rio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) ´ total, t˜o grande quanto
e
e
a
poderia ser e quanto podemos imagin´-la”: de um lado, a humanidade, e de
a
outro, a ”estupidez na qual vegetam”esses seres indiferenciados:
”Igualmente b´rbaros, vivendo igualmente da ca¸a e da pesca, em pa´ses
a
c
ı
frios, est´reis, cobertos de florestas, que despropor¸˜o se queria imaginar
e
ca
entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de satisfazˆ-los s˜o os mesmos, onde as influˆncias do ar s˜o t˜o semelhantes, ´
e
a
e
a a
e
poss´vel haver contradi¸˜o nos costumes ou varia¸˜es nas id´ias?”
ı
ca
co
e
Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os ind´
ıgenas americanos vivem em um ”estado de embrutecimento”geral. T˜o degenerados uns
a
quanto os outros, seria em v˜o procurar entre eles variedades distintivas daa
quilo que se pareceria com uma cultura e com uma hist´ria.7
o
7

Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO

31

2) Os julgamentos que acabamos de relatar – que est˜o, notamos, em ruptura
a
com a ideologia dominante do s´culo XVIII, da qual falaremos mais adiante,
e
e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado
vinte anos antes – por excessivos que sejam, apenas radicalizam id´ias come
partilhadas por muitas pessoas nessa ´poca. Id´ias que ser˜o retomadas e
e
e
a
expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introdu¸˜o
ca
a Filosofia da Hist´ria, nos exp˜e o horror que ele ressente frente ao es`
o
o
tado de natureza, que ´ o desses povos que jamais-ascender˜o ` ”hist´ria”e
e
a a
o
a ”consciˆncia de si”.
`
e
Na leitura dessa Introdu¸ao, a Am´rica do Sul parece mais est´pida ainda
c˜
e
u
´
do que a do Norte. A Asia aparentemente n˜o est´ muito melhor. Mas ´
a
a
e
´
´
a Africa, e, em especial, a Africa profunda do interior, onde a civiliza¸ao
c˜
nessa ´poca ainda n˜o penetrou, que representa para o fil´sofo a forma mais
e
a
o
nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade:
´
”E o pa´ do ouro, fechado sobre si mesmo, o pa´s da infˆncia, que, al´m
ıs
ı
a
e
do dia e da hist´ria consciente, est´ envolto na cor negra da noite”.
o
a
´
Tudo, na Africa, ´ nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os ”nee
gros”n˜o respeitam nada, nem mesmo eles pr´prios, j´ que comem carne
a
o
a
humana e fazem com´rcio da ”carne”de seus pr´ximos. Vivendo em uma
e
o
ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado
bruto, eles n˜o tˆm moral, nem institui¸˜es sociais, religi˜o ou Estado.8 Pea e
co
a
trificados em uma desordem inexor´vel, nada, nem mesmo as for¸as da coloa
c
niza¸ao, poder´ nunca preencher o fosso que os separa da Hist´ria universal
c˜
a
o
da humanidade.
Na descri¸ao dessa africanidade estagnante da qual n˜o h´ absolutamente
c˜
a a
nada a esperar – e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado a
`
indianidade em Pauw – , o autor da Fenomenologia do Esp´
ırito vai, vale a
pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filos´ficas sobre os Amerio
canos. O ”negro”nem mesmo se vˆ atribuir o estatuto de vegetal. ”Ele cai”,
e
escreve Hegel, ”para o n´ de uma coisa, de um objeto sem valor”.
ıvel

8

”O fato de devorar homens corresponde ao princ´
ıpio africano.”Ou ainda: ”S˜o os
a
seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante ´ para eles apenas uma carne
e
como qualquer outra, suas guerras s˜o feroze: e sua religi˜o pura supersti¸˜o”.
a
a
ca
32

1.2

´
´
CAP´
ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:

A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau
Civilizado

A figura de uma natureza m´ na qual vegeta um selvagem embrutecido ´ emia
e
nentemente suscet´ de se transformar em seu oposto: a da boa natureza
ıvel
dispensando suas benfeitorias a um selvagem feliz. Os termos da atribui¸˜o
`
ca
permanecem, como veremos, rigorosamente idˆnticos, da mesma forma que
e
o par constitu´ pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natuıdo
ral). Mas efetua-se dessa vez a invers˜o daquilo que era apreendido como um
a
vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como
um menos que se torna um mais. O car´ter privativo dessas sociedades sem
a
escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religi˜o organizada, sem clero,
a
sem sacerdotes, sem pol´
ıcia, sem leis, sem Estado –acrescentar-se-´ no s´culo
a
e
´
XX sem Complexo de Edipo – n˜o constitui uma desvantagem. O selvagem
a
n˜o ´ quem pensamos.
a e
Evidentemente, essa representa¸ao concorrente (mas que consiste apenas
c˜
em inverter a atribui¸ao de significa¸oes e valores dentro de uma estrutura
c˜
c˜
idˆntica) permanece ainda bastante r´
e
ıgida na ´poca na qual o Ocidente descoe
bre povos ainda desconhecidos. A figura do bom selvagem s´ encontrar´ sua
o
a
formula¸˜o mais sistem´tica e mais radical dois s´culos ap´s o Renascimento:
ca
a
e
o
no rousseau´
ısmo do s´culo XVIII, e, em s´guida, no Romantismo. N˜o deixa
e
e
a
por´m de estar presente, pelo menos em estado embrion´rio, na percep¸˜o
e
a
ca
que tˆm os primeiros viajantes. Am´rico Vesp´cio descobre a Am´rica:
e
e
u
e
”As pessoas est˜o nuas, s˜o bonitas, de pele escura, de corpo elegante. .
a
a
. Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo ´ colocado em comum.
e
E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua
m˜e, sua irm˜, ou sua amiga, entre as quais eles n˜o fazem diferen¸a. . .
a
a
a
c
Eles vivem cinq¨enta anos. E n˜o tˆm governo”.
u
a e
Crist´v˜o Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tamb´m o para´
o a
e
ıso;
”Eles s˜o muito mansos e ignorantes do que ´ o mal, eles n˜o sabem se
a
e
a
matar uns aos outros (...) Eu n˜o penso que haja no mundo homens melhoa
res, como tamb´m n˜o h´ terra melhor”.
e
a a
Toda a reflex˜o de L´ry e de Montaigne no s´culo XVI sobre os ”naturais”baseiaa
e
e
se sobre o tema da no¸ao de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela
c˜
primeira vez, instaura-se uma cr´
ıtica da civiliza¸ao e um elogio da ”ingenuic˜
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO

33

dade original”do estado de natureza. L´ry, entre os Tupinamb´s, interroga-se
e
a
sobre o que se passa ”aqu´m”, isto ´, na Europa. Ele escreve, a respeito de
e
e
”nossos grandes usur´rios”: ”Eles s˜o mais cru´is do que os selvagens dos
a
a
e
quais estou falando”. E Montaigne, sobre esses ultimos: ”Podemos portanto
´
de fato cham´-los de b´rbaros quanto as regras da raz˜o, mas n˜o quanto
a
a
`
a
a
a n´s mesmos que os superamos em toda sorte de barb´rie”. Para o autor
o
a
dos Ensaios, esse estado paradis´
ıaco que teria sido o nosso outrora, talvez
esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei at´ o
e
encontrou.
Esse fasc´
ınio exercido pelo ind´
ıgena americano, e em especial por le Hu9
ron, protegido da civiliza¸ao e que nos convida a reencontrar o universo cac˜
loroso da natureza, triunfa nos s´culos XVII e XVIII. Nas primeiras Rela¸oes
e
c˜
dos jesu´ que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler:
ıtas
”Eles s˜o af´veis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que
a
a
freq¨entaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente
u
entre eles do que entre n´s”. Seu ideal: ”viver em comum sem processo,
o
contentar-se de pouco sem avareza, ser ass´duo no trabalho”.
ı
Do lado dos livres-pensadores, ´ o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan:
e
”Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris˜es e sem torturas passam a
o
vida na do¸ura, na tranq¨ilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida
c
u
dos franceses”.
Essa admira¸ao n˜o ´ compartilhada apenas pelos navegadores estupefac˜
a e
10
tos.
O selvagem ingressa progressivamente na filosofia – os pensadores
9

Um dos primeiros textos sobre os Hurons ´ publicado em 1632: Le Grand Vayage
e
au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux
Voyages du Baron de La Hontan o¨ ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1’Auteur et
u
un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Am´ricains, de Lafitau; em 1767, Vlng´nu, de
e
e
Vol-taire..
Notemos que de cada popula¸˜o encontrada nasce um estere´tipo. Se o discurso euroca
o
peu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, referˆncia ` crueldade, o
e
a
discurso sobre os Esquim´s a sua hospitalidade, estes ultimos n˜o hesitando em oferecer
o
´
a
suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente ´ sem d´vida predominante
e
u
em grande parte na literatura sobre os ´
ındios.
10
No s´culo XVIII, um marinheiro francˆs escreve em seu di´rio de viagem: ”A inocˆncia
e
e
a
e
e a tranq¨ilidade est´ entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n˜o trocariam essa
u
a
a
vida e seu pa´ por qualquer coisa no mundo”(coment´rios relatados por ). P. Duviols,
ıs
a
1978).
34

´
´
CAP´
ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:

das Lumi`resu 11 – , mas tamb´m nos sal˜es liter´rios e nos teatros parisiene
e
o
a
ses. Em 1721, ´ montado um espet´culo intitulado O Arlequim Selvagem. 0
e
a
personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco:
”Vocˆs s˜o loucos, pois procuram com muito empenho uma infinidade de
e a
coisas in´teis; vocˆs s˜o pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez
u
e a
de simplesmente gozar da cria¸˜o, como n´s, que n˜o queremos nada a fim
ca
o
a
de desfrutar mais livremente de tudo”.
´ e
E a ´poca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau acabou de escrever, a ´poca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens.
e
Manifesta¸oes essas que constituem uma verdadeira acusa¸ao contra a civic˜
c˜
liza¸ao. Depois, o fasc´
c˜
ınio pelos ´
ındios ser´ substitu´ progressivamente, a
a
ıdo
partir do fim do s´culo XVIII, pelo charme e prazer id´
e
ılico que provoca o
encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquip´lagos
e
polin´sios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de P´scoa, e soe
a
bretudo o Taiti. Aqui est´, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua
a
Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980):
”Seja dia ou noite, as casas est˜o abertas. Cada um colhe as frutas na
a
primeira ´rvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ´cio
a
o
´ compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar ´ sua mais preciosa
e
e
ocupa¸˜o. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres
ca
pareciam n˜o querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada
a
instante as do¸uras do amor, tudo incita ao abandono”.
c
Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exaltam a do¸ura das sociedades ”selvagens”, e, correlativamente fustigam tudo
c
que pertence ao Ocidente ainda s˜o atuais. Se n˜o o fossem, n˜o nos seriam
a
a
a
diretamente acess´
ıveis, n˜o nos tocariam mais nada. Ora, ´ precisamente a
a
e
esse imagin´rio da viagem, a esse desejo de fazer existir em um ”alhures”uma
a
sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas
virtudes se estendam a magnificˆncia da fauna e da flora (Chateau-briand,
`
e
Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu
sucesso com o p´blico.
u
O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar
11

Condillac escreve: ”N´s que nos consideramos instru´
o
ıdos, precisar´
ıamos ir entre os
povos mais ignorantes, para aprender destes o come¸o de nossas descobertas: pois ´ soc
e
bretudo desse come¸o que precisar´
c
ıamos: ignoramo-lo porque deixamos h´ tempo de ser
a
os disc´
ıpulos da natureza”
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO

35

ao Ocidente mort´
ıfero li¸oes de grandeza, como acabamos de ver, n˜o ´ novic˜
a e
dade. Mas grande parte do p´blico est´ infinitamente mais dispon´ agora
u
a
ıvel
do que antes para se deixar persuadir que as sociedades constrangedoras da
`
abstra¸ao, do c´lculo e da impessoalidade das rela¸˜es humanas, op˜em-se
c˜
a
co
o
sociedades de solidariedade comunit´ria, abrigadas na suntuosidade de uma
a
natureza generosa. A decep¸˜o ligada aos ”benef´
ca
ıcios”do progresso (nos quais
muitos entre n´s acreditam cada vez menos) bem como a solid˜o e o anoo
a
nimato do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos
s´ aspirem a se projetar nesses para´ (perdido) dos tr´picos ou dos mares
o
ıso
o
do Sul, que o Ocidente teria substitu´ pelo inferno da sociedade tecnol´gica.
ıdo
o
Mas conv´m, a meu ver, ir mais longe. O etn´logo, como o militar, ´ recrue
o
e
tado no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a
´
sua, as mesmas insatisfa¸oes,-ang´stias, desejos. Se essa busca do Ultimo dos
c˜
u
Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo ”vento dos coqueiros”(que ´ na
e
realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa
disciplina, ela est´ presente nas motiva¸oes dos pr´prios etn´logos. Malia
c˜
o
o
nowski ter´ a franqueza de escrever e ser´ muito criticado por isso:
a
a
”Um dos ref´gios fora dessa pris˜o mecˆnica da cultura ´ o estudo das foru
a
a
e
mas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades
long´
ınquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga
romˆntica para longe de nossa cultura uniformizada”.
a
Ora, essa ”nostalgia do neol´
ıtico”, de que fala Alfred M´traux e que ese
teve na origem de sua pr´pria voca¸ao de Ctn´logo, ´ encontrada em muitos
o
c˜
o
e
autores, especialmente nas descri¸˜es de popula¸˜es preservadas do contato
co
co
corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transparˆncia.
e
O qualificativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que
s˜o caracterizadas pela riqueza das trocas simb´licas, foi certamente o de
a
o
”autˆntico”(oposto ` aliena¸ao das sociedades industriais adiantadas), termo
e
a
c˜
proposto por Sapir em 1925, e que ´ erroneamente atribu´ a L´vi-Strauss.
e
ıdo
e

***
A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si
mesmo) n˜o parou, portanto, de oscilar entre os p´los de um verdadeiro
a
o
movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem:
• era um monstro, um ”animal com figura humana”(L´ry), a meio camie
nho entre a animalidade e a humanidade mas tamb´m que os monstros
e
36

´
´
CAP´
ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:
´ramos n´s, sendo que ele tinha li¸oes de humanidade a nos dar;
e
o
c˜
• levava uma existˆncia infeliz e miser´vel, ou, pelo contr´rio, vivia num
e
a
a
estado de beatitude, adquirindo sem esfor¸os os produtos maravilhosos
c
da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a
assumir as duras tarefas da ind´stria;
u
• era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre gui¸oso;
c
• n˜o tinha alma e n˜o acreditava em nenhum deus, ou era profundaa
a
mente religioso;
• vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na
harmonia
• era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um
comunista decidido a tudo compartilhar, at´ e inclusive suas pr´prias
e
o
mulheres;
• era admiravelmente bonito, ou feio;
• era movido por uma impulsividade criminalmente congˆnita quando era
e
leg´
ıtimo temer, ou devia ser considerado como uma crian¸a precisando
c
de prote¸ao;
c˜
• era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassid˜o
a
permanente, ou, pelo contr´rio, um ser preso, obedecendo estritamente
a
aos tabus e as proibi¸˜es de seu grupo;
`
co
• era atrasado, est´pido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente
u
virtuoso e eminentemente complexo;
• era um animal, um ”vegetal”(de Pauw), uma ”coisa”, um ”objeto sem
valor”(Hegel), ou participava, pelo contr´rio, de uma humanidade da
a
qual tinha tudo como aprender.

Tais s˜o as diferentes constru¸˜es em presen¸a (nas quais a repuls˜o se transa
co
c
a
forma rapidamente em fasc´
ınio) dessa alteridade fantasm´tica que n˜o tem
a
a
muita rela¸˜o com a realidade. O outro – o ´
ca
ındio, o taitiano, mas recentemente o basco ou o bret˜o– ´ simplesmente utilizado como suporte de um
a e
imagin´rio cujo lugar de referˆncia nunca ´ a Am´rica, Taiti, o Pa´ Basco
a
e
e
e
ıs
ou a Bretanha. S˜o objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com
a
vistas a explora¸˜o econˆmica, quanto ao militarismo pol´
`
ca
o
ıtico, ` convers˜o
a
a
religiosa ou a emo¸ao est´tica. Mas, em todos os casos, o outro n˜o ´ consi`
c˜
e
a e
derado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO

37

Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em v˜o, tala
vez anacrˆnico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento
o
etnol´gico, t˜o problem´tico, como acabamos de observar, ainda no final do
o
a
a
s´culo XX. N˜o basta viajar e surpreender-se com o que se vˆ para tornar-se
e
a
e
etn´logo (n˜o basta mesmo ter numerosos anos de ”campo”, como se diz
o
a
hoje). Por´m, numerosos viajantes nessa ´poca colocam problemas (o que
e
e
n˜o significa uma problem´tica) aos quais ser´ necessariamente confrontado
a
a
a
qualquer antrop´logo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ir´
o
a
se tornar a etnologia. Jean de L´ry, entre os ind´
e
ıgenas brasileiros, perguntase: ´ preciso rejeit´-los fora da humanidade? Consider´-los como virtualidae
a
a
des de crist˜os? Ou questionar a vis˜o que temos da pr´pria humanidade,
a
a
o
isto ´, reconhecer que a cultura ´ plural? Atrav´s de muitas contradi¸oes (a
e
e
e
c˜
oscila¸ao permanente entre a convers˜o e o olhar, os objetivos teol´gicos e os
c˜
a
o
que poder´
ıamos chamar de etnogr´ficos, o ponto de vista normativo e o ponto
a
de vista narrativo), o autor da Viagem n˜o tem resposta. Mas as quest˜es
a
o
(e para o que nos interessa aqui, mas especificamente a ultima) est˜o no en´
a
tanto implicitamente colocadas. Montaigne (hoje as vezes criticado), mesmo
`
se o que o preocupa ´ menos a humanidade dos ´
e
ındios do que a inumanidade
dos europeus, seguindo nisso L´ry que transporta para o ”Novo Mundo”os
e
conflitos do antigo, come¸a a introduzir a d´vida no edif´ do pensamento
c
u
ıcio
europeu. Ele testemunha o desmoronamento poss´ deste pensamento, meıvel
nos inclusive ao pronunciar a condena¸ao da civiliza¸ao do que ao considerar
c˜
c˜
que a ”selvageria”n˜o ´ nem inferior nem superior, e sim diferente.
a e
Assim, essa ´poca, muito timidamente, ´ verdade, e por alguns apenas de
e
e
seus esp´
ıritos os menos ortodoxos, a partir da observa¸ao direta de um obc˜
jeto distante (L´ry) e da reflex˜o a distˆncia sobre este objeto (Montaigne),
e
a
a
permite a constitui¸ao progressiva, n˜o de um saber antropol´gico, muito mec˜
a
o
nos de uma ciˆncia antropol´gica, mas sim de um saber pr´-antropol´gico.
e
o
e
o
38

´
´
CAP´
ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:
Cap´
ıtulo 2
O S´culo XVIII:
e
a inven¸˜o do conceito de homem
ca
Se durante o Renascimento esbo¸ou-se, com a explora¸ao geogr´fica de contic
c˜
a
nentes desconhecidos, a primeira interroga¸ao sobre a existˆncia m´ltipla do
c˜
e
u
homem, essa interroga¸˜o fechou-se muito rapidamente no s´culo seguinte,
ca
e
no qual a evidˆncia do cogito, fundador da ordem do pensamento cl´ssico,
e
a
exclui da raz˜o o louco, a crian¸a, o selvagem, enquanto figuras da anormaa
c
lidade.
Ser´ preciso esperar o s´culo XVIII para que se constitua o projeto de funa
e
dar uma ciˆncia do homem, isto ´, de um saber n˜o mais exclusivamente
e
e
a
especulaivo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no s´culo
e
XVI elementos que permitem compreender a pr´-hist´ria da antropologia, ene
o
quanto o s´culo XVII (cujos discursos n˜o nos s˜o mais diretamente acess´
e
a
a
ıveis
hoje) interrompe nitidamente essa evolu¸ao, apenas no s´culo XVIII ´ que
c˜
e
e
entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na modernidade. Apenas nessa ´poca, e n˜o antes, ´ que se pode apreender as
e
a
e
condi¸oes hist´ricas, culturais e epistemol´gicas de possibilidade daquilo que
c˜
o
o
vai se tornar a antropologia.
”Antes do final do s´culo XVIII”, escreve Fou-cauilt, ”o homem n˜o existia.
e
a
Como tamb´m o poder du vida, a fecundidade do trabalho ou a densidade
e
´
hist´rica da linguagem. E uma criatura muito recente que o demiurgo do sao
ber fabricou com suas pr´prias m˜os, h´ menos de duzentos anos (...) Uma
o
a
a
coisa em todo caso ´ certa, o homem n˜o ´ o mais antigo problema, nem o
e
a e
mais constante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem ´ uma
e
inven¸˜o e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto ´ recente.
ca
e
E”, acrescenta Foucault no final de As Palavras e as Coisas, ”qu˜o pr´ximo
a
o
39
40

´
CAP´
ITULO 2. O SECULO XVIII:

talvez seja o seu fim”.
O projeto antropol´gico (e n˜o a realiza¸ao da antropologia como a enteno
a
c˜
demos hoje) sup˜e:
o
1) a constru¸ao de um certo n´mero de conceitos, come¸ando pelo pr´prio
c˜
u
c
o
conceito de homem, n˜o apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do
a
saber; abordagem totalmente in´dita, j´ que consiste em introduzir dualidade
e
a
caracter´
ıstica das ciˆncias exatas (o sujeito observante e o objeto observado)
e
no cora¸ao do pr´prio homem;
c˜
o
2) a constitui¸˜o de um saber que n˜o seja apenas de reflex˜o, e sim de
ca
a
a
observa¸˜o, isto ´, de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser
ca
e
considerado em sua existˆncia concreta, envolvida nas determina¸˜es de seu
e
co
organismo, de suas rela¸oes de produ¸ao, de sua linguagem, de suas instic˜
c˜
tui¸oes, de seus comportamentos. Assim come¸a a constitui¸˜o dessa posic˜
c
ca
tividade de um saber emp´
ırico (e n˜o mais transcendental) sobre o homem
a
enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e
fala (ling¨´
uıstica). . . Montesquieu, em O Esp´
ırito das Leis (1748), ao mostrar a rela¸ao de interdependˆncia que ´ a dos fenˆmenos sociais, abriu o
c˜
e
e
o
caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no s´culo seguinte) a falar
e
em uma ”ciˆncia da sociedade”. Da mesma forma, antes dessa ´poca, a line
e
guagem, quando tomada em considera¸ao, era objeto de filosofia ou exegese.
c˜
Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, Rousseau) o objeto espec´
ıfico de
um saber cient´
ıfico (ou, pelo menos, de voca¸˜o cient´
ca
ıfica);
3) uma problem´tica essencial: a da diferen¸a. Rompendo com a convic¸ao
a
c
c˜
de uma transparˆncia imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no
e
s´culo XVIII a quest˜o da rela¸ao ao impensado, bem como a dos poss´
e
a
c˜
ıveis
processos de reapropria¸˜o dos nossos condicionamentos fisiol´gicos, das nosca
o
sas rela¸oes de produ¸˜o, dos nossos sistema de organiza¸ao social. Assim,
c˜
ca
c˜
inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constitui¸ao da id´ia
c˜
e
de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais
reflex˜es sobre os limites do saber, assim como sobre as rela¸oes de sentido
o
c˜
e poder (que anunciam o fim da metaf´
ısica) eram inimagin´veis antes. A
a
sociedade do s´culo XVIII vive uma crise da identidade do humanismo e da
e
consciˆncia europ´ia. Parte de suas elites busca suas referˆncias em um cone
e
e
fronto com o distante.
Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Comparados aos Costumes dos Primeiros Tempos, Lafitau se d´ por objetivo o de
a
41
fundar uma ”ciˆncia dos costumes e h´bitos”, que, al´m da contingˆncia dos
e
a
e
e
fatos particulares, poder´ servir de compara¸ao entre v´rias formas de hua
c˜
a
manidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Educa¸ao do Jovem Selvagem
c˜
do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade ` qual pertencem
a
o homem da civiliza¸˜o em que nos transportamos e o homem da natureza,
ca
a crian¸a-lobo.1 Mas foi Rousseau quem tra¸ou, em seu Discurso sobre a
c
c
Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornar´ o da
a
etnologia cl´ssica, no seu campo tem´tico2 tanto quanto na sua abordagem:
a
a
a indu¸ao de que falaremos agora;
c˜
4) um m´todo de observa¸˜o e an´lise: o m´todo indutivo. Os grupos sociais
e
ca
a
e
(que come¸am a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados
c
como sistemas ”naturais”que devem ser estudados empiricamente, a partir du
observa¸˜o de fatos, a fim de extrair princ´
ca
ıpios gerais, que hoje chamar´
ıamos
de leis.
Esse naturalismo, que consiste numa emancipa¸ao definitiva em rela¸ao ao
c˜
c˜
3
pensamento teol´gico, imp˜e-se em especial na Inglaterra, com Adam Smith
o
o
e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza
Humana, cujo t´
ıtulo completo ´: ”Tratado sobre a natureza Humana: tentae
tiva de introdu¸˜o de um m´todo experimental de racioc´
ca
e
ınio para o estudo
de assuntos de moral”. Os fil´sofos ingleses colocam as premissas de todas
o
as pesquisas que procurar˜o fundar, no s´culo XVIII, uma moral natural”,
a
e
um ”direito natural”, ou ainda uma ”religi˜o natural”.
a

***
Esse projeto de um conhecimento positivo do homem – isto ´, de um estudo
e
de sua existˆncia emp´
e
ırica considerada por sua vez como objeto do saber –
constitui um evento consider´vel na hist´ria da humanidade. Um evento que
a
o
se deu no Ocidente no s´culo XVIII, que, evidentemente, n˜o ocorreu da noite
e
a
para o dia, mas que terminou impondo-se j´ que se tornou definitivamente
a
1

Cf. o filme de Fran¸ois Truffaut, VEnfant Sauvage (1970), e o livro de Lucien Malson
c
que the serviu de base.
2
Rousseau estabelece a lista das regi˜es devedoras de viagens ”filos´ficas”: o mundo
o
o
inteiro menos a Europa ocidental.
3
A precocidade e preeminˆncia, no pensamento inglˆs, do empirismo em rela¸˜o ao
e
e
ca
pensamento francˆs, caracterizado antes pelo racionalismo (e idealismo), podem a meu
e
ver explicar em parte o crescimento r´pido (no come¸o do s´culo XX) da antropologia
a
c
e
britˆnica e o atraso da antropologia francesa.
a
´
CAP´
ITULO 2. O SECULO XVIII:

42

constitutivo da modernidade na qual, a partir dessa ´poca, entramos. A fim
e
de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revolu¸ao do pensamento –
c˜
que instaura uma ruptura tanto com o ”humanismo”do Renascimento como
com o ”racionalismo”do s´culo cl´ssico –, examinemos de mais perto o que
e
a
mudou radicalmente desde o s´culo XVI.
e
1)Trata-se em primeiro lugar da natureza dos objetos observados. Os relatos
dos viajantes dos s´culos XVI e XVII eram mais uma busca cosmogr´fica do
e
a
que uma pesquisa etnogr´fica. Afora algumas incurs˜es t´
a
o ımidas para area das
´
4
”inclina¸oes”e dos ”costumes”, o objeto de observa¸ao, nessa ´poca era mais
c˜
c˜
e
o c´u, a terra, a fauna e a flora, do que o homem em si, e, quando se tratava
e
deste, era essencialmente o homem f´
ısico que era tomado em considera¸˜o.
ca
Ora, o s´culo XVIII tra¸a o primeiro esbo¸o daquilo que se tornar´ uma
e
c
c
a
antropologia social e cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo,
tomando como modelo a antropologia f´
ısica, e instaurando uma ruptura do
monop´lio desta (especialmente na Fran¸a).
o
c
2) Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo
para a atividade epistemol´gica, que se torna cada vez mais organizada. Os
o
viajantes dos s´culos XVI e XVII coletavam ”curiosidades”. Esp´
e
ıritos curiosos reuniam cole¸oes que iam formar os famosos ”gabinetes de curiosidades”,
c˜
ancestrais dos nossos museus contemporˆneos. No s´culo XVIII, a quest˜o
a
e
a
´: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a
e
Hist´ria Geral das Viagens, do padre Pr´vost (1746), passa-se da coleta dos
o
e
materiais para a cole¸˜o das coletas. N˜o basta mais observar, ´ preciso proca
a
e
cessar a observa¸ao. N˜o basta mais interpretar o que ´ observado, ´ preciso
c˜
a
e
e
5
interpretar interpreta¸oes. E ´ desse desdobramento, isto ´, desse discurso,
c˜
e
e
que vai justamente brotar uma atividade de organiza¸ao e elabora¸˜o. Em
c˜
ca
1789, Chavane, o primeiro, dar´ a essa atividade um nome. Ele a chamar´:
a
a
a etnologia.

***
Finalmente, ´ no s´culo XVIII que se forma o par do viajante e do fil´sofo:
e
e
o
o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La P´rouse. .
e
realizando o que ´ chamado na ´poca de ”viagens filos´ficas”, precursoras das
e
e
o
4

Cf. em especial UHistoire Naturetle et Morale des Indes, de Acosta (1591), ou o
question´rio que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informa¸˜es sobre
a
co
o estado das mentalidades populares no reino.
5
Cf sobre isso G. Leclerc. 1979
43
nossas miss˜es cient´
o
ıficas contemporˆneas; o fil´sofo Buffon, Voltaire, Rousa
o
seau, Diderot (cf. em especial o seu Suplemento a Viagem de Bougainville)
`
”esclarecendo”com suas reflex˜es as observa¸oes trazidas pelo viajante.
o
c˜
Mas esse par n˜o tem realmente nada de id´
a
ılico. Que pena, pensa Rousseau, que os viajantes n˜o sejam fil´sofos! Bougainville retruca (em 1771
a
o
em sua Viagem ao Redor do Mundo): que pena que os fil´sofos n˜o sejam
o
a
viajantes!6 Para o primeiro, bem como para todos os fil´sofos naturalistas do
o
s´culo das luzes, se ´ essencial observar, ´ preciso ainda que a observa¸˜o seja
e
e
e
ca
esclarecida. Uma prioridade ´ portanto conferida ao observador, sujeito que,
e
para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo n´mero de
u
qualidades. E ´ assim que se constitui, na passagem do s´culo XVIII para o
e
e
s´culo XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada
e
pelos ent˜o chamados ”ide´logos”, que s˜o moralistas, fil´sofos, naturalistas,
a
o
a
o
m´dicos que definem muito claramente o que deve ser o campo da nova ´rea
e
a
de saber (o homem nos seus aspectos f´
ısicos, ps´
ıquicos, sociais, culturais) e
quais devem ser suas exigˆncias epistemol´gicas.
e
o
As Considera¸oes sobre os Diversos M´todos a Seguir na Observa¸ao dos
c˜
e
c˜
Povos Selvagens, de De Gerando (1800) s˜o, quanto a isso, exemplares. Pria
meira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma miss˜o
a
nas ”Terras Austrais”, esse texto ´ uma cr´
e
ıtica da observa¸ao selvagem do
c˜
selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista
deve ser ele pr´prio testemunha ocular do que observa, pois a nova ciˆncia
o
e
– qualificada de ”ciˆncia do homem”ou ”ciˆncia natural-- ´ uma ”ciˆncia de
e
e
e
e
observa¸˜o”, devendo o observador participar da pr´pria existˆncia dos gruca
o
e
pos sociais observados.7
6

Rousseau: ”Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um d’Alembert,
um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para instruir seus compatriotas,
observando como sabem fazˆ-lo a Turquia, o Egito, a Barbaria. . . Suponhamos que
e
esses novos H´rcules, de volta de suas andan¸as memor´veis, fizessem a seguir a hist´ria
e
c
a
o
natural, moral e pol´
ıtica do que teriam visto, ver´
ıamos nascer de seus escritos um mundo
novo, e aprender´
ıamos assim a conhecer o nosso.
Bougainville: ”Sou viajante e marinheiro, isto ´, um mentiroso e um imbecil aos olhos
e
dessa classe de escritores pregui¸osos e soberbos que, na sombra de seu gabinete, filosofam
c
sem fim sobre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas
imagina¸˜es. Modos bastante singulares e inconceb´
co
ıveis da parte de pessoas que, n˜o
a
tendo observado nada por si pr´prias, s´ escrevem e dogmatizam a partir de observa¸˜es
o
o
co
tomadas desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar”.
7
Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas palavras de ”um homem
simples e rude”, um huguenote que esteve no Brasil, a respeito dos ´
ındios entre os quais
esteve.
´
CAP´
ITULO 2. O SECULO XVIII:

44

Por´m, o projeto de De Gerando n˜o foi aplicado por aqueles a que se dese
a
tinava diretamente, e n˜o ser´, por muito tempo ainda, levado em conta.8
a
a
Se esse programa que consiste em ligar uma reflex˜o organizada a uma oba
serva¸˜o sistem´tica, n˜o apenas do homem f´
ca
a
a
ısico, mas tamb´m do homem
e
social e cultural, n˜o pˆde ser realizado, ´ porque a ´poca ainda n˜o o pera o
e
e
a
mitia. O final do s´culo XVIII teve um papel essencial na elabora¸ao dos
e
c˜
fundamentos de uma ”ciˆncia humana”. N˜o podia ir mais longe, e n˜o poe
a
a
der´
ıamos credit´-lo aquilo que s´ ser´ poss´ um s´culo depois.
a
o
a
ıvel
e
Mais especificamente, o obst´culo maior ao advento de uma antropologia
a
cient´
ıfica, no sentido no qual a entendemos hoje, est´ ligado, ao meu ver, a
a
dois motivos essenciais.
1) A distin¸ao entre o saber cient´
c˜
ıfico e o saber filos´fico, mesmo sendo
o
abordada, n˜o ´ de forma alguma realizada. Evidentemente, o conceito da
a e
unidade e universalidade do homem, que ´ pela primeira vez claramente afire
mado, coloca as condi¸oes de produ¸ao de um novo saber sobre o homem.
c˜
c˜
Mas n˜o leva ipso facto a constitui¸ao de um saber positivo. No final do
a
`
c˜
s´culo XVIII, o homem interroga-se: sobre a natureza, mas n˜o h´ biologia
e
a a
ainda (ser´ preciso esperar Cuvier); sobre a produ¸ao e reparti-ti¸˜o das ria
c˜
ca
quezas, mas ainda n˜o se trata de economia (Ricardo); sobre seu discurso
a
mas isso n˜o basta para elaborar uma filosofia (Bopp), muito menos uma
a
ling¨´
uıstica.9
8

Os cientistas da expedi¸˜o conduzida por Bodin n˜o eram de forma alguma etn´grafos,
ca
a
o
e sim m´dicos, zo´logos, miner´logos, e os objetos etnogr´ficos que recolheram n˜o foram
e
o
a
a
a
sequer depositados no Museu de Hist´ria Natural de Paris, e sim dispersados em cole¸˜es
o
co
particulares. O pr´prio Gerando, ”observador dos povos selvagens”em 1800, torna-se
o
”visitante dos pobres”em 1824. O que mostra a prontid˜o de uma passagem poss´ entre
a
ıvel
o estudo dos ind´
ıgenas e a ajuda aos indigentes, mas sobretudo, nessa ´poca, uma certa
e
ausˆncia de distin¸˜o entre a antropologia principiante e a ”filantropia”.
e
ca
Notemos finalmente que, publicado em 1800, o m´moire de Gerando s´ foi reeditado- na
e
o
Fran¸a em 1883. E o primeiro museu etnogr´fico da Kran¸a foi fundado apenas cinco anos
c
a
c
antes (em Paris, no Trocadero). sendo depois substitu´ pelo atual Museu do Homem.
ıdo
9
A antropologia contemporˆnea me parece, pessoalmente, dividida entre uma homenaa
gem a esses pais fundadores que s˜o os fil´sofos do s´culo XVIII (L´vi-Strauss, por exemplo,
a
o
e
e
considera que o Discours sur l’Origine de l’In´galit´ de Rousseau ´ ”o primeiro tratado de
e
e
e
etnologia geral”) e um assass´
ınio ritual consistindo na reatualiza¸˜o de uma ruptura com
ca
um projeto que permanece filos´fico, enquanto que a ciˆncia exige a constitui¸˜o de um
o
e
ca
saber positivo e especializado. Mas neste segundo caso, a positividade, n˜o mais do saber,
a
e sim dc saberes que, muito rapidamente (a partir do s´culo XIX), se rompem se parcee
lam, formando o que Foucault chama de ”ontologias regionais”constituindo-se em torno
dos territ´rios da vida (biologia), do trabalho (economia), da linguagem (ling¨´
o
uıstica), ´
e
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Aprender antropologia (françois laplantine)

  • 1. 1
  • 2. 2
  • 4. 2
  • 5. Conte´ do u I Marcos Para Uma Hist´ria Do Pensamento Ano tropol´gio o 23 1 A Pr´-Hist´ria Da Antropologia: e o 25 1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado . . . . . . . 27 1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado . . . . . . . 32 2 O S´culo XVIII: e 39 3 O Tempo Dos Pioneiros: 47 4 Os Pais Fundadores Da Etnografia: 57 4.1 BOAS (1858-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 4.2 MALINOWSKI (1884-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 5 Os Primeiros Te´ricos Da Antropologia: o 67 II As Principais Tendˆncias Do Pensamento Ane tropol´gico Contemporˆneo o a 73 6 Introdu¸˜o: ca 6.1 Campos De Investiga¸ao . . . . . . . . . . . . . . . . . c˜ 6.2 Determina¸˜es Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . co 6.3 Os Cinco P´los Te´ricos Do Pensamento Antropol´gico o o o temporˆneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a 75 . . . . 75 . . . . 76 Con. . . . 80 7 A Antropologia Dos Sistemas Simb´licos o 87 8 A Antropologia Social: 91 9 A Antropologia Cultural: 95 3
  • 6. ´ CONTEUDO 4 10 A Antropologia Estrutural E Sistˆmica: e 103 11 A Antropologia Dinˆmica: a 113 III A Especificidade Da Pr´tica Antropol´gica a o 119 12 Uma Ruptura Metodol´gica: o 121 13 Uma Invers˜o Tem´tica: a a 125 14 Uma Exigˆncia: e 129 15 Uma Abordagem: 133 16 As Condi¸oes De Produ¸˜o Social Do Discurso Antropol´gico137 c˜ ca o 17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo: 139 18 Antropologia E Literatura: 143 19 As Tens˜es Constitutivas Da Pr´tica Antropol´gica: o a o 19.1 O Dentro E O Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19.2 A Unidade E A Pluralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19.3 O Concreto E O Abstrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 Sobre o autor: 149 . 149 . 152 . 157 163
  • 7. ´ CONTEUDO 5 Pref´cio a A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreens˜o do homem a Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma ´rea do conhea cimento ´ tra¸ar-lhe a hist´ria, mostrando como foi variando o seu colorido e c o atrav´s dos tempos, como deitou ramifica¸˜es novas que alteraram seu tema e co de base ampliando-o. Para tanto ´ requerida uma erudi¸˜o dificilmente ene ca contrada entre os especialistas, pois erudi¸˜o e especializa¸˜o constituem-se ca ca em opostos: a erudi¸˜o abrindo- se na ˆnsia de dominar a maior quantidade ca a poss´ de saber, a especializa¸˜o se fechando no pequeno espa¸o de um coıvel ca c nhecimento minucioso. O livro do antrop´logo francˆs Fran¸ois Laplantine, professor da Univero e c sidade de Lyon II, autor de v´rias obras importantes e que hoje efetua pesa quisas no Brasil, re´ne as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento u antropol´gico atrav´s da hist´ria e mostrando as diversas perspectivas atuais. o e o Em primeiro lugar, efetua a an´lise de seu desenvolvimento, que permite uma a compreens˜o melhor de suas caracter´sticas espec´ficas; em seguida, apresenta a ı ı as tendˆncias contemporˆneas e, finalmente, um panorama dos problemas coe a locados pela pr´tica e por suas possibilidades de aplica¸˜o. a ca Trata-se de uma introdu¸˜o ` Antropologia que parece fabricada de encoca a menda para estudantes brasileiros. A forma¸˜o nacional em Ciˆncias Sociais ca e (e a Antropologia n˜o foge ` regra. . .) segue a via da especializa¸˜o, muito a a ca mais do que a da forma¸˜o geral. Os estudantes lˆem e discutem determica e nados autores, ou ent˜o os componentes de uma escola bem delimitada; o a conhecimento lhes ´ inculcado atrav´s do conhecimento de um problema ou e e de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que suscitou, nas respostas e solu¸˜es que inspirou. A hist´ria da disciplina, assim co o como da ´rea de conhecimentos a que pertence, o exame cr´tico de todas a ı as proposi¸˜es tem´ticas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem co a muitas vezes fora das cogita¸˜es do curso, como se fosse algo de somenos co importˆncia. a No Brasil o presente tem muita for¸a; nele se vive intensamente, ´ ele que se c e busca compreender profundamente, na convic¸˜o de que nele est˜o as ra´zes ca a ı do futuro. Pa´s em constru¸˜o, seus habitantes em geral, seus estudiosos em ı ca particular, tem consciˆncia n´tida de que est˜o criando algo, de que sua a¸˜o e ı a ca ´ de importˆncia capital como fator por excelˆncia do provir. E, para chegar e a e
  • 8. ´ CONTEUDO 6 a ela escolhe-se uma unica via preferencial, a especializa¸˜o numa dire¸˜o, ´ ca ca como se fora dela n˜o existisse salva¸˜o. a ca No entanto, com esta maneira de ser t˜o mercante, perdem-se de vista coma ponentes fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por outro lado a multipli-cidade de caminhos que tˆm sido tra¸ados para conse c tru´-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ciˆncias ı e Sociais, ´ o refor¸o do conhecimento do passado de sua pr´pria disciplina e e c o da variedade de ramos que foi originando at´ a atualidade. Este livro, em e muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da Antropologia e seu lugar no ˆmbito do saber. a Constru´do dentro da tradi¸˜o francesa do pensamento anal´tico e da claı ca ı reza de express˜o, esta introdu¸˜o ao conhecimento da Antropologia atinge, a ca na verdade, um p´blico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e u especialistas de Ciˆncias Sociais. Sua difus˜o se far´ sem d´vida entre todos e a a u aqueles atra´dos para os problemas do homem enquanto tal, que buscam coı nhecer ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo ”outro”. Maria Isaura Pereira de Queiroz 1 1 Maria Isaura Pereira de Queiroz ´ professora do Departamento de Sociologia e pese quisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
  • 9. ´ CONTEUDO 7 Introdu¸˜o ca O Campo e a Abordagem Antropol´gicos o O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as sociedades existiram homens que observavam homens. Houve at´ alguns que eram e te´ricos e forjaram, como diz L´vi-Strauss, modelos elaborados ”em casa”. o e A reflex˜o do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elabora¸ao de um a c˜ saber s˜o, portanto, t˜o antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na a a ´ ´ Asia como na Africa, na Am´rica, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto e de fundar uma ciˆncia do homem - uma antropologia - ´, ao contr´rio, muito e e a recente. De fato, apenas no final do s´culo XVIII ´ que come¸a a se constituir e e c um saber cient´ ıfico (ou pretensamente cient´ ıfico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e n˜o mais a natureza; apenas nessa ´poca ´ que o a e e esp´ ırito cient´ ıfico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao pr´prio homem os o m´todos at´ ent˜o utilizados na area f´ e e a ´ ısica ou da biologia. Isso constitui um evento consider´vel na hist´ria do pensamento do homem a o sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje n˜o estejamos medindo a todas as conseq¨ˆncias. Esse pensamento tinha sido at´ ent˜o mitol´gico, ue e a o art´ ıstico, teol´gico, filos´fico, mas nunca cient´ o o ıfico no que dizia respeito ao homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ultimo do estatuto de ´ sujeito do conhecimento ao de objeto da ciˆncia. Finalmente, a antropoloe gia, ou mais precisamente, o projeto antropol´gico que se esbo¸a nessa ´poca o c e muito tardia na Hist´ria - n˜o podia existir o conceito de homem enquanto o a regi˜es da humanidade permaneciam inexploradas - surge * em uma regi˜o o a muito pequena do mundo: a Europa.. Isso trar´, evidentemente, como verea mos mais adiante, conseq¨ˆncias importantes. ue Para que esse projeto alcance suas primeiras realiza¸˜es, para que o novo co saber comece a adquirir um in´ ıcio de legitimidade entre outras disciplinas cient´ ıficas, ser´ preciso esperar a segunda metade do s´culo XIX, durante o a e qual a antropologia se atribui objetos emp´ ıricos autˆnomos: as sociedades o ent˜o ditas ”primitivas”, ou seja, exteriores as areas de civiliza¸ao europ´ias a ` ´ c˜ e ou norte-americanas. A ciˆncia, ao menos tal como ´ concebida na ´poca, e e e sup˜e uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que o a separa¸ao (sem a qual n˜o h´ experimenta¸ao poss´ c˜ a a c˜ ıvel) entre o sujeito observante e o objeto observado ´ obtida na f´ e ısica (como na biologia, botˆnica, a ou zoologia) pela natureza suficientemente diversa dos dois termos presentes, na hist´ria, pela distˆncia no tempo que separa o historiador da sociedade o a
  • 10. ´ CONTEUDO 8 estudada, ela consistir´ na antropologia, nessa ´poca - e por muito tempo a e em uma distˆncia definitivamente geogr´fica. As sociedades estudadas pelos a a primeiros antrop´logos s˜o sociedades long´ o a ınquas as quais s˜o atribu´ ` a ıdas as seguintes caracter´ ısticas: sociedades de dimens˜es restritas; que tiveram pouo cos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia ´ pouco desenvolvida e em rela¸˜o a nossa; e nas quais h´ uma menor especializa¸ao das atividades ca ` a c˜ e fun¸oes sociais. S˜o tamb´m qualificadas de ”simples”; em conseq¨ˆncia, c˜ a e ue elas ir˜o permitir a compreens˜o, como numa situa¸ao de laborat´rio, da a a c o organiza¸ao ”complexa”de nossas pr´prias sociedades. c˜ o *** A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe ´ pr´prio: e o o estudo das popula¸oes que n˜o pertencem ` civiliza¸˜o ocidental. Ser˜o nec˜ a a ca a cess´rias ainda algumas d´cadas para elaborar ferramentas de investiga¸ao a e c˜ que permitam a coleta direta no campo das observa¸˜es e informa¸oes. Mas co c˜ logo ap´s ter firmado seus pr´prios m´todos de pesquisa - no in´ do s´culo o o e ıcio e XX - a antropologia percebe que o objeto emp´ ırico que tinha escolhido (as sociedades ”primitivas”) est´ desaparecendo; pois o pr´prio Universo dos a o ”selvagens”n˜o ´ de forma alguma poupado pela evolu¸ao social. Ela se vˆ, a e c˜ e portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma quest˜o se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu a nascimento: o fim do ”selvagem”ou, como diz Paul Mercier (1966), ser´ que a a ”morte do primitivo”h´ de causar a morte daqueles que haviam se dado a como tarefa o seu estudo? A essa pergunta v´rios tipos de resposta puderam a e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em trˆs deles. e 1) O antrop´logo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o ambito das o ˆ outras ciˆncias humanas. Ele resolve a quest˜o da autonomia problem´tica e a a de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente o que ´ chamado de ”sociologia comparada”. e 2) Ele sai em busca de uma outra area de investiga¸ao: 0 camponˆs, este ´ c˜ e selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, j´ que foi deixado de lado pelos outros ramos das ciˆncias do homem. a e 2 2 A pesquisa etnogr´fica cujo objeto pertence ` mesma sociedade que i) observador foi, a a de in´ ıcio, qualificada pelo nome de folklore. Foi Van uenncp que elaborou os m´todos ¨ e pr´prios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma o
  • 11. ´ CONTEUDO 9 3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive n˜o exclui a o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especificidade de sua pr´tica, n˜o mais atrav´s de um objeto emp´ a a e ırico constitu´ ıdo (o selvagem, o camponˆs), mas atrav´s de uma abordagem epistemol´gica e e o constituinte. Essa ´ a terceira via que come¸aremos a esbo¸ar nas p´ginas e c c a que se seguem, e que ser´ desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto a te´rico da antropologia n˜o est´ ligado, na perspectiva na qual come¸amos o a a c a nos situar a partir de agora, a um espa¸o geogr´fico, cultural ou hist´rico c a o particular. Pois a antropologia n˜o ´ sen˜o um certo olhar, um certo enfoque a e a que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as ´pocas. e O estudo do homem inteiro S´ pode ser considerada como antropol´gica uma abordagem integrativa que o o objetive levar em considera¸˜o as m´ltiplas dimens˜es do ser humano em soca u o ciedade. Certa-mente, o ac´mulo dos dados colhidos a partir de observa¸oes u c˜ diretas, bem como o aperfei¸oamento das t´cnicas de investiga¸ao, conduzem c e c˜ necessariamente a uma especializa¸ao do saber. Por´m, uma das voca¸˜es c˜ e co maiores de nossa abordagem consiste em n˜o parcelar o homem mas, ao a contr´rio, em tentar relacionar campos de investiga¸˜o freq¨entemente sea ca u parados. Ora, existem cinco areas principais da antropologia, que nenhum ´ pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas as quais ele deve ` estar sensibilizado quando trabalha de forma profissional em algumas delas, dado que essas cinco ´reas mant´m rela¸˜es estreitas entre si. a e co A antropologia biol´gica (designada antigamente sob o nome de antropologia o f´ ısica) consiste no estudo das varia¸˜es dos caracteres biol´gicos do homem co o no espa¸o e no tempo. Sua problem´tica ´ a das rela¸oes entre o patrimˆnio c a e c˜ o gen´tico e o meio (geogr´fico, ecol´gico, social), ela analisa as particularie a o dades morfol´gicas e fisiol´gicas ligadas a um meio ambiente, bem como a o o evolu¸˜o destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a ca este patrimˆnio, mas tamb´m, o que esse patrimˆnio (que se transforma) o e o deve a cultura? Assim, o antrop´logo biologista levar´ em considera¸ao os ` o a c˜ fatores culturais que influenciam o crescimento e a matura¸ao do indiv´ c˜ ıduo. forma magistral) as tradi¸˜es populares camponesas, a distˆncia social e cultural que co a separa o objeto do sujeito, substituindo nesse caso a distˆncia geogr´fica da antropologia a a ”ex´tica”. o
  • 12. ´ CONTEUDO 10 Ele se perguntar´, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da a crian¸a africana ´ mais adiantado do que o da crian¸a europ´ia? Essa parte c e c e da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crˆnios, a mensura¸oes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada c˜ as ra¸as c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela gen´tica c e das popula¸˜es, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao adco quirido, sendo que um e outro est˜o interagindo continuamente. Ela tem, a a meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que n˜o sejam a rompidas as rela¸˜es entre as pesquisas das ciˆncias da vida e as das ciˆncias co e e humanas. A antropologia pr´-hist´rica ´ o estudo do homem atrav´s dos vest´ e o e e ıgios materiais enterrados no solo (ossadas, mas tamb´m quaisquer marcas da atividade e humana). Seu projeto, que se liga a arqueologia, visa reconstituir as socie` dades desaparecidas, tanto em suas t´cnicas e organiza¸oes sociais, quanto e c˜ em suas produ¸˜es culturais e art´ co ısticas. Notamos que esse ramo da antropologia trabalha com uma abordagem idˆntica as da antropologia hist´rica e ` o e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O historiador ´ antes de tudo um histori´grafo, isto ´, um pesquisador que trabalha e o e a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pr´-hist´ria recoe o lhe, pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na antropologia social na qual se beneficia de depoimentos vivos.3 4 antropologia ling¨´ uıstica. A linguagem ´, com toda evidˆncia, parte do e e ´ atrav´s dela que os indiv´ patrimˆnio cultural de uma sociedade. E o e ıduos que comp˜em uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas o preocupa¸oes, seus pensamentos. Apenas o estudo da l´ c˜ ıngua permite compreender: o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto ´, e suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnoling´ ıstica); o como eles ıi´ expressam o universo e o social (estudo da literatura, n˜o apenas escrita, mas a tamb´m de tradi¸˜o oral); o como, finalmente, eles interpretam seus pr´prios e ca o saber e saber-fazer (´rea das chamadas etnociˆncias). a e A antropologia ling¨´ uıstica, que ´ uma disciplina que se situa no encontro e 3 Foi notadamente gra¸as a pesquisadores como Paul Rivet e Andr´ Leroi-Gourhan c e (1964) que a articula¸˜o entre as ´reas da antropologia f´ ca a ısica, biol´gica e s´cio-cultural o o nunca foi rompida na Fran¸a. Mas continua sempre amea¸ada de ruptura devido a um c c movimento de especializa¸˜o facilmente compreens´ ca ıvel. Assim, colocando-se do ponto de vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a ”desagrad´vel obriga¸˜o de a ca fazer m´nage ` trois com os representantes da arqueologia pr´-hist´rica e da antropologia e a e o f´ ısica”, comparando-a ` coabita¸˜o dos psic´logos e dos especialistas da observa¸˜o de a ca o ca ratos em laborat´rio o
  • 13. ´ CONTEUDO 11 de v´rias outras, 4 n˜o diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos a a (dialetologia). Ela se interessa tamb´m pelas imensas areas abertas pelas noe ´ vas t´cnicas modernas de comunica¸ao (mass media e cultura do audiovisual). e c˜ A antropologia psicol´gica. Aos trˆs primeiros p´los de pesquisa que foram o e o mencionados, e que s˜o habitualmente os unicos considerados como constitua ´ tivos (com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do campo global da antropologia, fazemos quest˜o pessoalmente de acrescentar a um quinto p´lo: o da antropologia psicol´gica, que consiste no estudo dos o o processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antrop´logo ´ o e em primeira instˆncia confrontado n˜o a conjuntos sociais, e sim a indiv´ a a ıduos. Ou seja, somente atrav´s dos comportamentos - conscientes e inconscientes e dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual ´ n˜o ´ antropologia. E a raz˜o pela qual a dimens˜o psicol´gica (e tamb´m a e a a o e psicopatol´gica) ´ absolutamente indissoci´vel do campo do qual procuramos o e a aqui dar conta. Ela ´ parte integrante dele. e A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos deter´ por muito mais a tempo. Apenas nessa ´rea temos alguma competˆncia, e este livro traa e tar´ essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir a de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es` quecer que ela ´ apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos e cuja abrangˆncia ´ consider´vel, j´ que diz respeito a tudo que constitui e e a a uma sociedade: seus modos de produ¸˜o econˆmica, suas t´cnicas, sua orca o e ganiza¸ao pol´ c˜ ıtica e jur´ ıdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas cren¸as religiosas, sua l´ c ıngua, sua psicologia, suas cria¸˜es co art´ ısticas. Isso posto, esclare¸amos desde j´ que a antropologia consiste menos no levanc a tamento sistem´tico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular a com a qual est˜o relacionados entre si e atrav´s da qual aparece a especifia e ´ precisamente esse ponto de vista da totalidade, cidade de uma sociedade. E e o fato de que o antrop´logo procura compreender, como diz L´vi-Strauss, o e aquilo que os homens ”n˜o pensam habitualmente em fixar ria pedra ou no a papel”(nossos gestos, nossas trocas simb´licas, os menores detalhes dos noso 4 Foi o antrop´logo Edward Sapir (1967) quem, al´m de introduzir o estudo da lino e guagem entre os materiais antropol´gicos, come¸ou tamb´m a mostrar que um estudo o c e antropol´gico da l´ o ıngua (a l´ ıngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura) conduzia a um estudo ling¨´ uıstico da cultura (a l´ ıngua como modelo de conhecimento da cultura).
  • 14. ´ CONTEUDO 12 sos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamentalmente diferente dos utilizados setorial- mente pelos ge´grafos, economistas, o juristas, soci´logos, psic´logos. . . o o O estudo do homem em sua totalidade A antropologia n˜o ´ apenas o estudo de tudo que com-p˜e uma sociedade. a e o Ela ´ o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5 ), ou seja, e das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades hist´ricas o e geogr´ficas. Visando constituir os ”arquivos”da humanidade em suas dia feren¸as significativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as ´reas de c a civiliza¸ao exteriores a nossa. Mas a antropologia n˜o poderia ser definida c˜ ` a por um objeto emp´ ırico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao qual ela a princ´ se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente). ıpio Se seu campo de observa¸˜o consistisse no estudo das sociedades preservadas ca do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como j´ comentamos, a sem objeto. Ocorre, por´m, que se a especificidade da contribui¸˜o dos antrop´logos em e ca o rela¸ao aos outros pesquisadores em ciˆncias humanas n˜o pode ser conc˜ e a fundida com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades extra-europ´ias), ela ´ a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhee e cimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observa¸ao c˜ direta, por impregna¸ao lenta e cont´ c˜ ınua de grupos humanos min´sculos com u os quais mantemos uma rela¸ao pessoal. c˜ Al´m disso, apenas a distˆncia em rela¸ao a nossa sociedade (mas uma e a c˜ distˆncia que faz com que nos tornemos extremamente pr´ximos daquilo que a o ´ long´ e ınquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tom´vamos por a natural em n´s mesmos ´, de fato, cultural; aquilo que era evidente ´ Infinitao e e mente problem´tico. Disso decorre a necessidade, na forma¸ao antropol´gica, a c˜ o daquilo que n˜o hesitarei em chamar de ”estranhamento”(depaysement), a a perplexidade provo- cada pelo encontro das culturas que s˜o para n´s as mais a o distantes, e cujo encontro vai levar a uma modifica¸˜o do olhar que se tinha ca ´ sobre si mesmo. De fato, presos a uma Unica cultura, somos n˜o apenas a cegos a dos outros, mas m´ ` ıopes quando se trata da nossa. A experiˆncia e 5 Os antrop´logos come¸aram a se dedicar ao estudo das sociedades’ industriais o c avan¸adas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas trataram primeiro, como c vimos, dos aspectos ”tradicionais”das sociedades ”n˜o tradicionais”(as comunidades cama ponesas europ´ias), em seguida, dos grupos marginais, e finalmente, h´ alguns anos apenas e a na Fran¸a, do setor urbano. c
  • 15. ´ CONTEUDO 13 da alteridade (e a elabora¸ao dessa experiˆncia) leva-nos a ver aquilo que c˜ e nem ter´ ıamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa aten¸ao no que nos ´ habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ”evic˜ e dente”. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, m´ ımicas, posturas, rea¸˜es afetivas) n˜o tem realmente nada de ”natuco a ral”. Come¸amos, ent˜o, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a c a n´s mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropol´gico) da nossa cultura o o passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura poss´ entre tantas outras, ıvel mas n˜o a unica. a ´ Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia, como j´ o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta quest˜o, ´ sua a a e aptid˜o praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de orgaa niza¸ao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina c˜ permite notar, com a maior proximidade poss´ ıvel, que essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tom´vamos todos espontaneamente a por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existˆncia. . .) s˜o, na realidade, o produto e a de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos tˆm em comum e ´ sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, e l´ ınguas, modos de conhecimento, institui¸oes, jogos profundamente diversos; c˜ pois se h´ algo natural nessa esp´cie particular que ´ a esp´cie humana, ´ a e e e e sua aptid˜o a varia¸ao cultural a ` c˜ O projeto antropol´gico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento, o juntamente com a compreens˜o de uma humanidade plural. Isso sup˜e ao a o mesmo tempo a ruptura com a figura da monotonia do duplo, do igual, do idˆntico, e com a exclus˜o num irredut´ ”alhures”. As sociedades mais die a ıvel ferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas, s˜o na realidade t˜o diferentes entre si quanto o s˜o da nossa. E, mais ainda, a a a elas s˜o para cada uma delas muito raramente homogˆneas (como seria de se a e esperar) mas, pelo contr´rio, extremamente diversificadas, participando ao a mesmo tempo de uma comum humanidade. A abordagem antropol´gica provoca, assim, uma verdadeira revolu¸ao episo c˜ temol´gica, que come¸a por uma revolu¸˜o do olhar. Ela implica um deso c ca centramento radical, uma ruptura com a id´ia de que existe um ”centro do e mundo”, e, correlativamente, uma amplia¸˜o do saber 6 e uma muta¸ao de ca c˜ 6 Veremos que a antropologia sup˜e n˜o apenas esse desmembramento (´clatement) o a e
  • 16. 14 ´ CONTEUDO si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andr´ Gide: e ”Eu sou mil poss´ ıveis em mim; mas n˜o posso me resignar a querer apenas a um deles”. A descoberta da alteridade ´ a de uma rela¸ao que nos permite deixar de e c˜ identificar nossa pequena prov´ ıncia de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido ”selvagem”fora de n´s meso mos. Confrontados a multiplicidade, a priori enigm´tica, das culturas, somos ` a aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturaliza¸ao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscric˜ tos em n´s desde o nascimento, e n˜o fossem adquiridos no contato com a o a cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo cl´ssico a que tamb´m consiste na identifica¸ao do sujeito com ele mesmo, e da cultura e c˜ com a nossa cultura. De fato, a filosofia cl´ssica (antol´gica com S˜o Tom´s, a o a a reflexiva com Descartes, criticista com Kant, hist´rica com Hegel), mesmo o sendo filosofia social, bem como as grandes religi˜es, nunca se deram como o objetivo o de pensar a diferen¸a (e muito menos, de pens´-la cientificamente), c a e sim o de reduzi-la, freq¨entemente inclusive de uma forma igualit´ria e com u a do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de L´ry) ou no ceticismo (de um e Montaigne), ligados ao questionamento da cultura ` qual se pertence, mas tamb´m uma a e nova pesquisa e uma reconstitui¸˜o deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma quest˜o: ca a ser´ que a Antropologia ´ o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade? a e Evidentemente, o europeu n˜o foi o unico a interessar-se pelos h´bitos e pelas insa ´ a titui¸˜es do n˜o-europeu. A rec´ co a ıproca tamb´m ´ verdadeira, como atestam notadamente e e os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade M´dia, por viajantes vindos e ´ da Asia. E os ´ ındios Flathead de quem nos fala L´vi-Strauss eram t˜o curiosos do que e a ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedi¸˜es a fim co de encontr´-los. Poder´ a ıamos multiplicar os exemplos. Isso n˜o impede que a constitui¸˜o a ca de um saber de voca¸˜o cient´ ca ıfica sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido a partir da cultura europ´ia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um e africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um ”europe´ ısmo”, que ´ ´ teria se constitu´ como campo de saber te´rico a partir da Asia, da Africa ou da Oceania. ıdo o Isso posto, as condi¸˜es de produ¸˜o hist´ricas, geogr´ficas, sociais e culturais da co ca o a antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropol´gico perder o de vista, mas que n˜o devem ocultar a voca¸˜o (evidentemente problem´tica) de nossa a ca a disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como escreve L´vi-Strauss: e ”N˜o se trata apenas de elevar-se acima dos valores pr´prios da sociedade ou do grupo a o do observador, e sim de seus m´todos de pensamento; ´ preciso alcan¸ar formula¸˜o e e c ca v´lida, n˜o apenas para um observador honesto mas para todos os observadores poss´ a a ıveis”. Lembremos que a antropologia s´ come¸ou a ser ensinada nas universidades h´ alo c a gumas d´cadas. Na Gr˜-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Fran¸a a e a c partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
  • 17. ´ CONTEUDO 15 as melhores inten¸oes do mundo. c˜ O pensamento antropol´gico, por sua vez, considera que, assim como uma o civiliza¸ao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve c˜ igualmente aceitar a diversidade das culturas, tamb´m adultas. Estamos, e evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade pˆde pero manecer por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si pr´pria e fazendo, de tudo que n˜o eram suas ideologias dominantes sucessio a vas, um objeto de exclus˜o. Desconfiemos por´m do pensamento - que seria a e o c´mulo em se tratando de antropologia - de que estamos finalmente mais u ”l´cidos”, mais ”conscientes”, mais ”livres”, mais ”adultos”, como acabau mos de escrever, do que em uma ´poca da qual seria errˆneo pensar que est´ e o a definitivamente encerrada. Pois essa transgress˜o de uma das tendˆncias doa e minantes de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas formas econˆmicas, pol´ o ıticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que significa de forma alguma que o antrop´logo esteja destinado, seja levado por o alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a l´gica das outras socieo dades e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contr´rio, mostrar nesse livro a que a d´vida e a cr´ u ıtica de si mesmo s´ s˜o cientificamente fundamentadas o a se forem acompanhadas da interpela¸ao cr´ c˜ ıtica dos de outrem. Dificuldades Se os antrop´logos est˜o hoje convencidos de que uma das caracter´ o a ısticas maiores de sua pr´tica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto ´, a e convencidos do fato de que os fenˆmenos sociais que estudamos s˜o fenˆmenos o a o que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vi-vendo; se eles s˜o tamb´m unˆnimes em pensar que h´ uni-dade da fam´ humana, a a e a a ılia fam´ dos antrop´logos ´, por sua vez, muito dividida, quando se trata de ılia o e dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e de forma geral a todos aqueles que tˆm o direito de saber o que verdadeie ramente fazem os antrop´logos) dessa unidade m´ltipla, desses materiais e o u dessa experiˆncia. e 1) A primeira dificuldade se manifesta, como sempre, ao n´ ıvel das palavras. Mas ela ´, tamb´m aqui, particularmente reveladora da juventude de e e nossa disciplina,6 que n˜o sendo, como a f´ a ısica, uma ciˆncia constitu´ cone ıda, tinua n˜o tendo ainda optado definitivamente pela sua pr´pria designa¸ao. a o c˜ Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde a tradi¸˜o ` ca terminol´gica dos franceses), insiste- se sobre a pluraridade irredut´ das o ıvel etnias, isto ´, das culturas. No segundo (que ´ mais usado nos pa´ angloe e ıses
  • 18. ´ CONTEUDO 16 saxˆnicos), sobre a unidade do gˆnero humano. E optando-se por antroo e pologia, deve-se falar (com os autores britˆnicos) em antropologia social a cujo objeto privilegiado ´ o estudo das institui¸˜es - ou (com os autores e co americanos) de antropologia cultural - que consiste mais no estudo dos comportamentos.7 2) A segunda dificuldade diz respeito ao grau de cientificidade que conv´m e atribuir a antropologia. O homem est´ em condi¸˜es de estudar cientifica` a co mente o homem, isto ´, um objeto que ´ de mesma natureza que o sujeito? e e E nossa pr´tica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com a Radcliffe-Brown (1968), que as sociedade s˜o sistemas naturais que devem a ser estudados segundo os m´todos comprovados pelas ciˆncias da natureza,8 e e e os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que ´ preciso tratar as sociedae des n˜o como sistemas orgˆnicos, mas como sistemas simb´licos. Para estes a a o ultimos, longe de ser uma ”ciˆncia natural da sociedade”(Radcliffe-Brown), a ´ e antropologia deve antes ser considerada como uma ”arte”(Evans-Pritchard). 3) Uma terceira dificuldade prov´m da rela¸ao amb´ e c˜ ıgua que a antropologia mant´m desde sua gˆnese com a Hist´ria. Estreitamente vinculadas nos e e o s´culos XVIII e XIX, as duas pr´ticas v˜o rapidamente se emancipar uma e a a da outra no s´culo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar perioe dicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente a antrop´logos. o Evans-Pritchard: ”O conhecimento da hist´ria das sociedades n˜o ´ de neo a e 7 Para que o leitor que n˜o tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa a localizar-se, vale a pena especificar bem o significado dessas palavras. Estabele¸amos, c como L´vi-Strauss, que a etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os trˆs moe e mentos de uma mesma abordagem. A etnografia ´ a coleta direta, e o mais minuciosa e poss´ ıvel, dos fenˆmenos que observamos, por uma impregna¸˜o duradoura e cont´ o ca ınua e um processo que se realiza por aproxima¸˜es sucessivas. Esses fenˆmenos podem ser recoco o lhidos tomando-se notas, mas tamb´m por grava¸˜o sonora, fotogr´fica ou cinematogr´fica. e ca a a A etnologia consiste em um primeiro n´ de abstra¸˜o: analisando os materiais colhidos, ıvel ca fazer aparecer a l´gica espec´ o ıfica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste era um segundo n´ de inteligibilidade: construir modelos que permitam comıvel parar as sociedades entre si. Como escreve L´vi-Strauss, ”seu objetivo ´ alcan¸ar, al´m da e e c e imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um invent´rio a das possibilidades inconscientes, que n˜o existem em n´mero ilimitado”. a u 8 Ao modelo orgˆnico dos funcionalistas ingleses, L´vi-Strauss substituiu, como verea e mos, um modelo ling¨´ uıstico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza (o inato) e da cultura (tudo o que n˜o ´ hereditariamente programado e deve ser invena e tado pelos homens onde a natureza n˜o programou nada), a antropologia deve aspirar a a tornar-se uma ciˆncia natural: ”A antropologia pertence `s ciˆncias humanas, seu nome o e a e proclama suficientemente; mas se se resigna em fazer seu purgat´rio entre as ciˆncias socio e ais, ´ porque n˜o desespera de despertar entre as ciˆncias naturais na hora do julgamento e a e final”(L´vi-Strauss, 1973) e
  • 19. ´ CONTEUDO 17 nhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das institui¸oes”. Mais categ´rico ainda, Leach escreve: ”A gera¸˜o de antrop´logos c˜ o ca o a qual perten¸o tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Hist´ria ` c o em considera¸˜o”. Conv´m tamb´m lembrar aqui a distin¸ao agora famosa ca e e c˜ de L´vi-Strauss opondo as ”sociedades frias”, isto ´, ”pr´ximas do grau zero e e o de temperatura hist´rica”, que s˜o menos ”sociedades sem hist´ria”, do que o a o ”sociedades que n˜o querem ter est´rias”(´nicos objetos da antropologia a o u cl´ssica) a nossas pr´prias sociedades qualificadas de ”sociedades quentes”. a o Essa preocupa¸˜o de separa¸ao entre as abordagens hist´rica e antropol´gica ca c˜ o o est´ longe, como veremos, de ser unˆnime, e a hist´ria recente da antropoa a o logia testemunha tamb´m um desejo de coabita¸˜o entre as duas disciplinas. e ca Aqui, no Nordeste do Brasil, onde come¸o a escrever este livro, desde 1933, c um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a forma¸˜o ca da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do conhecimento hist´rico. o 4) Uma quarta dificuldade prov´m do fato de que nossa pr´tica oscila sem e a parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode qualificar de fundamental e aquilo que ´ designado sob o termo de ”antropologia aplicada”. e Come¸aremos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e c que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim considerava que a sociologia n˜o valeria sequer uma hora de dedica¸ao se ela n˜o a c˜ a pudesse ser util, e muitos antrop´logos compartilham sua opini˜o. Margaret ´ o a Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaura¸˜o de ca uma sociedade melhor, e, mais especificamente a aplica¸ao de uma pedagogia c˜ menos frustrante ` sociedade americana. Hoje v´rios colegas nossos consia a deram que a antropologia deve colocar-se ”a servi¸o da revolu¸ao”(segundo c c˜ especialmente )ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ent˜o, um milia tante, um ”antrop´logo revolucion´rio”, contribuindo na constru¸ao de uma o a c˜ ”antropologia da liberta¸ao”. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a c˜ qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos programas de desenvolvimento e das decis˜es pol´ o ıticas relacionadas ` elaborac˜o a a desses programas. Quer´ ıamos simplesmente observai aqui que a ”antropolo´ gia aplicada”9 n˜o ´ uma grande novidade. E por ela que, com a coloniza¸ao, a e c˜ 10 a antropologia teve inicio. 9 10 Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971 A maioria dos antrop´logos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a peo
  • 20. 18 ´ CONTEUDO Foi com ela, inclusive, que se deu o in´ ıcio da Antropologia, durante a coloniza¸ao. No extremo oposto das atitudes ”engajadas”das quais acabamos c˜ de falar, encontramos a posi¸˜o determinada de um Claude L´vi-Strauss que, ca e ap´s ter lembrado que o saber cient´ o ıfico sobre o homem ainda se encontrava num est´gio extremamente primitivo em rela¸ao ao saber sobre a natureza, a c˜ escreve: ”Supondo que nossas ciˆncias um dia possam ser colocadas a servi¸o da e c a¸ao pr´tica, elas n˜o tˆm, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O c˜ a a e verdadeiro meio de permitir sua existˆncia, ´ dar muito a elas, mas sobretudo e e n˜o lhes pedir nada”. a As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia ”pura”ou a antropologia ”diluida”como diz ainda L´vi-Strauss encontram na realidade suas e primeiras formula¸˜es desde os prim´rdios da confronta¸˜o do europeu com co o ca o ”selvagem”. Desde o s´culo XVI, de fato, come¸a a se implantar aquilo o e c que alguns chamariam de ”arqu´tipos”do discurso etnol´gico, que podem ser e o ilustrados pelas posi¸oes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun. c˜ Jean de Lery foi um huguenote* francˆs que permaneceu algum tempo no e Brasil entre os Tupinamb´s. Longe de procurar convencer seus h´spedes da a o superioridade da cultura europ´ia e da religi˜o reformada, ele os interroga e a e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns anos mais tarde realizou uma verdadeira investiga¸ao no M´xico. c˜ e Perfeitamente a vontade entre os astecas, ele estava l´ enquanto mission´rio ` a a a fim de converter a popula¸ao que estuda.11 c˜ O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a convers˜o a religiosa, a ”revolu¸˜o”, a ajuda ao ”Terceiro Mundo”, as estrat´gias daquilo ca e que ´ hoje chamado ”desenvolvimento”ou ainda ”mudan¸a social”) n˜o ale c a tera nada quanto ao amago do problema, que ´ o seguinte: 0 antrop´logo ˆ e o deve contribuir, enquanto antrop´logo, para B transforma¸ao das sociedades o c˜ que ele estuda 11 dido das administra¸˜es: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomendados pelo governo co britˆnico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Costa do Ouro. Nadei foi a conselheiro do governo do Sud˜o, etc a 11 Essa dupla abordagem da rela¸˜o ao outro pode muito bem sei realizada por um unico ca ´ pesquisador. Assim Malinowski chegando `s ilhas Trobriand (trad. franc., 1963) se deixa a literalmente levar pela cultura que descobre e que o encanta. Mas v´rios anos depois (trad. a franc., 1968) participa do que chama ”uma experiˆncia controlada”do desenvolvimento e
  • 21. ´ CONTEUDO 19 Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abordagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos ´ mais e familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos) e em tornar mais familiar aquilo que nos ´ estranho (os comportamentos, as e cren¸as, os costumes das sociedades que n˜o s˜o as nossas, mas nas quais poc a a der´ ıamos ter nascido), est´ diretamente confrontada hoje a um movimento de a homogeneiza¸˜o, ao meu ver, sem precedente’ na Hist´ria: o desenvolvimento ca o de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento que ´ a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias e sucessivas entre os Berberes do M´dio Atlas e entre os Baul´s da Costa do e e Marfim, perceber realmente o fasc´ ınio que exerce este modelo, perturbando completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de se distrair, de se encontrar, de pensar 12 e levando a novos comportamentos que n˜o decorrem de uma escolha) a A quest˜o que est´ hoje colocada para qualquer antrop´logo ´ a seguinte: a a o e h´ uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindoa lhe o acesso a um est´gio de sociedade industrial (ou p´s-industrial) sem a o conflito dram´tico, sem risco de despersonaliza¸ao? a c˜ Minha convic¸˜o ´ de que o antrop´logo, para ajudar os atores sociais a ca e o responder a essa quest˜o, n˜o deve, pelo menos enquanto antrop´logo, traa a o balhar para a transforma¸ao das sociedades que estuda. Caso contr´rio, seria c˜ a conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agrˆnomo, m´dico, o e pol´ ıtico, a n˜o ser que ele seja motivado por alguma concep¸ao messiˆnica a c˜ a da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicita¸˜o para ela ca mesma de sua pr´pria diferen¸a ´ uma coisa; organizar pol´ o c e ıtica, econˆmica e o socialmente a evolu¸˜o dessa diferen¸a ´ uma outra coisa. Ou seja, a partica c e cipa¸ao do antrop´logo naquilo que ´ hoje a vanguarda do anticolonialismo c˜ o e e da luta para os direitos humanos e das minorias ´tnicas ´, a meu ver, uma e e conseq¨ˆncia de nossa profiss˜o, mas n˜o ´ a nossa profiss˜o propriamente ue a a e a dita. Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urgˆncia a e ` qual temos o dever de responder. 12 As muta¸˜es de comportamentos geradas por essa forma de civiliza¸˜o mundialista co ca podem tamb´m evidentemente ser encontradas nas nossa; pr´prias culturas rurais e ure o banas. Em compensa¸˜o, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde ca come¸ou a redigir este livro c
  • 22. 20 ´ CONTEUDO a) Urgˆncia de preserva¸ao dos patrimˆnios culturais locais amea¸ados (e e c˜ o c a respeito disso a etnologia est´ desde o seu nascimento lutando contra o a tempo para que a transcri¸˜o dos arquivos orais e visuais possa ser realizada ca a tempo, enquanto os ultimos deposit´rios das tradi¸˜es ainda est˜o vivos) ´ a co a e, sobretudo, de restitui¸ao aos habitantes das diversas regi˜es nas quais trac˜ o balhamos, de seu pr´prio saber e saber-fazer. Isso sup˜e uma ruptura com o o a concep¸ao assim´trica da pesquisa, baseada na capta¸˜o de informa¸˜es. c˜ e ca co N˜o h´, de fato, antropologia sem troca, isto ´, sem itiner´rio no decora a e a rer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da necessidade de n˜o deixar se perder formas de pensamento e atividade unicas. a ´ b) Urgˆncia de an´lise das muta¸oes culturais impostas pelo desenvolvimento e a c˜ extremamente r´pido de todas as sociedades contemporˆneas, que n˜o s˜o a a a a mais ”sociedades tradicionais”, e sim sociedades que est˜o passando por um a desenvolvimento tecnol´gico absolutamente in´dito, por muta¸˜es de suas o e co rela¸oes sociais, por movimentos de migra¸˜o Interna, e por um processo de c˜ ca urbaniza¸ao acelerado. Atrav´s da especificidade de sua abordagem, nossa c˜ e disciplina deve, n˜o fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim fora mular quest˜es com eles, elaborar com eles uma reflex˜o racional (e n˜o mais o a a m´gica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tamb´m uma a e crise de identidade ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto ´, o encontro e de l´ ınguas, t´cnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropol´gica, que e o n˜o ´ de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem a e nunca se substituir aos projetos e as decis˜es dos pr´prios atores sociais, ` o o tem hoje como voca¸˜o maior a de propor n˜o solu¸˜es mas instrumentos ca a co de investiga¸˜o que poder˜o ser utilizados em especial para reagir ao choque ca a da acultura¸ao, isto ´, ao risco de um desenvolvimento conflituoso levando ` c˜ e a violˆncia negadora das particularidades econˆmicas, sociais, culturais de um e o povo. 5) Uma quinta dificuldade diz respeito, finalmente, ` natureza desta obra que a deve apresentar, em um n´mero de p´ginas reduzido, um campo de pesquisa u a imenso, cujo desenvolvimento recente ´ extremamente especializado. No fie nal do s´culo XIX, um unico pesquisador podia, no limite, dominar o campo e ´ global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural, ling¨´ uıstica, pr´-hist´rica, e tamb´m mais recentemente o caso de Ktoeber, e o e provavemente o ultimo antrop´logo que explorou: com sucesso uma area t˜o ´ o ´ a extensa). N˜o ´, evidentemente, o caso hoje em dia. O antrop´logo considera a e o agora – com raz˜o – que ´ competente apenas dentro de uma ´rea restrita 13 a e a 13 A antropologia das t´cnicas, a antropologia econˆmica, pol´ e o ıtica, a antropologia do
  • 23. ´ CONTEUDO 21 de sua pr´pria disciplina e para uma area geogr´fica delimitada. o ´ a Era-me portanto imposs´ ıvel, dentro de um texto de dimens˜es t˜o restrio a tas, dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar um certo n´mero de referˆncias, definir alguns conceitos a partir dos quais o u e leitor poder´, espero, interessar-se em ir mais adiante. a Ver-se-´ que este livro caminha em espiral. As preocupa¸oes que est˜o no a c˜ a centro de qualquer abordagem antropol´gica e que acabam de ser mencioo nadas ser˜o retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em a primeiro lugar quais foram as principais etapas da constitui¸ao de nossa disc˜ ciplina e como, atrav´s dessa hist´ria da antropologia, foram se colocando e o progressivamente as quest˜es que continuam nos interessando at´ hoje. Em o e seguida, esbo¸arei os p´los te´ricos - a meu ver cinco - em volta dos quais c o o oscilam o pensamento e a pr´tica antropol´gica. Teria sido, de fato, surpreena o dente, se, procurando dar conta da pluraridade, a antropologia permanecesse monol´ ıtica. Ela ´ ao contr´rio claramente plural. Veremos no decorrer deste e a livro que existem perspectivas complementares, mas tamb´m mutuamente e exclusivas, entre as quais ´ preciso escolher. E, em vez de fingir ter adoe tado o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que nas ciˆncias humanas ´ um engodo, esfor¸ando-me ao mesmo tempo para e e c apresentar com o m´ximo de objetividade o pensamento dos outros, n˜o a a dissimularei as minhas pr´prias op¸˜es. Finalmente, em uma ultima parte, o co ´ os principais eixos anteriormente examinados ser˜o, em um movimento por a assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de definir aquilo que constitui, a meu ver, a especificidade da antropologia. Eu queria finalmente acrescentar que este livro dirige-se o mais amplo p´blico poss´ u ıvel. N˜o aqueles que tˆm por profiss˜o a antropologia – dua ` e a vido que encontrem nele um grande interesse – mas a todos que, em algum momento de sua vida (profissional, mas tamb´m pessoal), possam ser levados e a utilizar o modo de conhecimento t˜o caracter´ a ıstico da antropologia. Esta ´ a raz˜o pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem t´cnica e a e e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente pela segunda. Pois a antropologia, que ´ a ciˆncia do homem por excelˆncia, e e e pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos n´s. o parentesco, das organiza¸˜es sociais, a antropologia religiosa, art´ co ıstica, a antropologia dos sistemas de comunica¸˜es... co
  • 25. Parte I Marcos Para Uma Hist´ria Do o Pensamento Antropol´gio o 23
  • 26.
  • 27. Cap´ ıtulo 1 A Pr´-Hist´ria Da e o Antropologia: a descoberta das diferen¸as pelos vic ajantes do s´culo e a dupla resposta e ideol´gica dada daquela ´poca at´ noso e e sos dias A gˆnese da reflex˜o antropol´gica ´ contemporˆnea a descoberta do Novo e a o e a ` Mundo. O Renascimento explora espa¸os at´ ent˜o desconhecidos e come¸a c e a c 1 a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espa¸os. A c grande quest˜o que ´ ent˜o colocada, e que nasce desse primeiro confronto a e a visual com a alteridade, ´ a seguinte: aqueles que acabaram de serem descoe bertos pertencem ` humanidade? O crit´rio essencial para saber se conv´m a e e atribuir-lhes um estatuto humano ´, nessa ´poca, religioso: O selvagem tem e e uma alma? O pecado original tamb´m lhes diz respeito? –quest˜o capital e a para os mission´rios, j´ que da resposta ir´ depender o fato de saber se ´ a a a e poss´ trazer-lhes a revela¸˜o. Notamos que se, no s´culo XIV, a quest˜o ıvel ca e a 1 As primeiras observa¸˜es e os primeiros discursos sobre os povos ”distantes”de que co dispomos provˆm de duas fontes: 1) as rea¸˜es dos primeiros viajantes, formando o que e co habitualmente chamamos de ”literatura de viagem”. Dizem respeito em primeiro lugar ` a P´rsia e ` Turquia, em seguida ` Am´rica, ` Asia e ` Africa. Em 1556, Andr´ Thevet e a a e a ´ a ´ e escreve As Singularidades da Fran¸a Ant´rtica, em 1558 Jean de Lery, A Hist´ria de Uma c a o Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tamb´m como exemplo, para um per´ e ıodo anterior (s´culo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um per´ e ıodo posterior (s´culo e XVII) Y. d’Evreux (reed. 1985), bom como a coletˆnea de textos de J. P. Duviols (1978); a 2) os relat´rios dos mission´rios e particularmente as ”Rela¸˜es”dos jesu´ (s´culo XVII) o a co ıtas e ˆ nc Canad´, no Jap˜o, na China, Cf., por exemplo, as Lettres Edifiantes et Curieuses de la a a Chine par des Missionnaires J´suites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979. e 25
  • 28. ´ ´ CAP´ ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA: 26 ´ colocada, n˜o ´ de forma alguma solucionada. Ela ser´ definitivamente e a e a resolvida apenas dois s´culos mais tarde. e Nessa ´poca ´ que come¸am a se esbo¸ar as duas ideologias concorrentes, e e c c mas das quais uma consiste no sim´trico invertido da outra: a recusa do ese tranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corol´rio ´ a boa consciˆncia a e e 2 que se tem sobre si e sua sociedade; a fascina¸˜o pelo estranho cujo corol´rio ca a ´ a m´ consciˆncia que se tem sobre si e sua sociedade. e a e Ora, os pr´prios termos dessa dupla posi¸˜o est˜o colocados desde a meo ca a tade do s´culo XIV: no debate, que se torna uma controv´rsia p´blica, que e e u durar´ v´rios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que op˜e o a a o dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera. Las Casas: ` ”Aqueles que pretendem que os ´ndios s˜o b´rbaros, responderemos que essas ı a a pessoas tˆm aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem pol´tica que, e ı em alguns reinos, ´ melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou e at´ superavam muitas na¸˜es e uma ordem pol´tica que, em alguns reinos, ´ e co ı e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou at´ superavam muitas e na¸˜es do mundo conhecidas como policiadas e razo´veis, e n˜o eram infeco a a riores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e at´, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tamb´m a e e Inglaterra, a Fran¸a, e algumas de nossas regi˜es da Espanha. (...) Pois a c o maioria dessas na¸˜es do mundo, sen˜o todas, foram muito mais pervertidas, co a irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prudˆncia e sagae cidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. N´s o mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extens˜o a de nossa Espanha, pela barb´rie de nosso modo de vida e pela deprava¸˜o de a ca nossos costumes”. Sepulvera: ”Aqueles que superam os outros em prudˆncia e raz˜o, mesmo que n˜o see a a jam superiores em for¸a f´sica, aqueles s˜o, por natureza, os senhores; ao c ı a contr´rio, por´m, os pregui¸osos, os esp´ritos lentos, mesmo que tenham as a e c ı for¸as f´sicas para cumprir todas as tarefas necess´rias, s˜o por natureza serc ı a a 2 Sendo, as duas variantes dessa figura: 1) a condescendˆncia e a prote¸˜o, paternalista e ca do outro: 2) sua exclus˜o a
  • 29. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27 vos. E ´ justo e util que sejam servos, e vemos isso sancionado pela pr´pria e ´ o lei divina. Tais s˜o as na¸˜es b´rbaras e desumanas, estranhas ` vida civil a co a a e aos costumes pac´ficos. E ser´ sempre justo e conforme o direito natural ı a que essas pessoas estejam submetidas ao imp´rio de pr´ncipes e de na¸˜es e ı co mais cultas e humanas, de modo que, gra¸as ` virtude destas e ` prudˆncia c a a e de suas leis, eles abandonem a barb´rie e se conformem a uma vida mais a humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imp´rio, pode-se e impˆ-lo pelo meio das armas e essa guerra ser´ justa, bem como o declara o a o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que n˜o tˆm essas virtudes”. a e Ora, as ideologias que est˜o por tr´s desse duplo discurso, mesmo que n˜o se a a a expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro s´culos e ap´s a polˆmicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como s˜o estere´tipos o e a o que envenenam essa antropologia espontˆnea de que temos ainda hoje tanta a dificuldade para nos livrarmos, conv´m nos determos sobre eles. e 1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos homens como um fato, e sim como uma aberra¸˜o exigindo uma justifica¸ao. ca c˜ A antig¨idade grega designava sob o nome de b´rbaro tudo o que n˜o paru a a ticipava da helenidade (em referˆncia a inarticula¸ao do canto dos p´ssaros e ` c˜ a oposto a significa¸˜o da linguagem humana), o Renascimento, os s´culos ` ca e XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto ´, seres da floresta), e opondo assim a animalidade a humanidade. O termo primitivos ´ que triun` e far´ no s´culo XIX, enquanto optamos preferencialmente na ´poca atual pelo a e e de subdesenvolvidos. Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto ´, para a natureza toe dos aqueles que n˜o participam da faixa de humanidade ` qual pertencemos a a e com a qual nos identificamos, ´, como lembra L´vi-Strauss, a mais comum e e 3 Essa oscila¸˜o entre dois p´los concorrentes, mas ligados entre si por um movimento ca o de pˆndulo ininterrupto, pode ser encontrada n˜o apenas em uma mesma ´poca, mas em e a e um mesmo autor. Cf., por exemplo, L´ry (1972) ou Buffon (1984). e
  • 30. ´ ´ CAP´ ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA: 28 a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracter´ ıstica dos ”selvagens”.4 Entre os crit´rios utilizados a partir do s´culo XIV pelos europeus para julgar e e se conv´m conferir aos ´ e ındios um estatuto humano, al´m do crit´rio religioso e e do qual j´ falamos, e que pede, na configura¸ao na qual nos situamos, uma a c˜ resposta negativa (”sem religi˜o nenhuma”, s˜o ”mais diabos”), citaremos: a a • a aparˆncia f´ e ısica: eles est˜o nus ou ”vestidos de peles de animais”; a • os comportamentos alimentares: eles ”comem carne crua”, e ´ todo o e imagin´rio do canibalismo que ir´ aqui se elaborar;5 a a • a inteligˆncia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles e falam ”uma l´ ıngua inintelig´ ıvel”. Assim, n˜o acreditando em Deus, n˜o tendo alma, n˜o tendo acesso ` a a a a linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem ´ apreendido nos modos de um besti´rio. E esse discurso soe a bre a alteridade, que recorre constantemente a met´fora zool´gica, abre o ` a o grande leque das ausˆncias: sem moral, sem religi˜o, sem lei, sem escrita, e a sem Estado, sem consciˆncia, sem raz˜o, sem objetivo, sem arte, sem pase a sado, sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentar´ at´, no s´culo XVIII: a e e ”sem barba”, ”sem sobrancelhas”, ”sem pˆlos”, ”sem esp´ e ıritosem ardor para com sua fˆmea”. e ´ ”E a grande gl´ria e a honra de nossos reis e dos espanh´is, escreve Goo o mara em sua Hist´ria Geral dos ´ndios, ter feito aceitar aos ´ndios um unico o ı ı ´ Deus, uma unica f´ e um unico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa´ e ´ crif´cios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus ı pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais; 4 ”Assim”, escreve L´vi-Strauss (1961), ”Ocorrem curiosas situa¸˜es onde dois interloe co cutores d˜o-s´ cruelmente a r´plica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos ap´s a descoberta a e e o da Am´rica, enquanto os espanh´is enviavam comiss˜es de inqu´rito para pesquisar se os e o o e ind´ ıgenas possu´ ıam ou n˜o uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisioa neiros a fim de verificar, por uma observa¸˜o demorada, se seus cad´veres eram ou n˜o ca a a sujeitos ` putrefa¸˜o” a ca 5 Cf. especialmente Hans Staden, V´ritable Histoire et Descriptiou d’un Pays Habit´ e e par des Hommes Sauvages, Nus. F´roces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M. e JVl´taili´, 1979. e e 6 Essa falta pode ser apreendida atrav´s de duas variantes: I) n˜o tˆm, irremediavele a e mente, futuro e n˜o temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) ´ poss´ a e ıvel fazˆ-los e evoluir. Pela a¸˜o mission´ria (a partir s´culo XVI). Assim como pela a¸˜o administrativa ca a e ca
  • 31. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 29 mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens s˜o como animais e o uso do a ferro que ´ t˜o necess´rio ao homem. Tamb´m lhes mostramos v´rios bons e a a e a h´bitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso – e a at´ cada uma dessas coisas – vale mais que as penas, as p´rolas, o ouro que e e tomamos deles, ainda mais porque n˜o utilizavam esses metais como moeda”. a ”As pessoas desse pa´s, por sua natureza, s˜o t˜o ociosas, viciosas, de pouco ı a a trabalho, melanc´licas, covardes, sujas, de m´ condi¸˜o, mentirosas, de mole o a ca constˆncia e firmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, aboa min´veis pecados dessas pessoas selvagens, r´sticas e bestiais, que fossem a u atirados e banidos da superf´cie da Terra”. escreve na mesma ´poca (1555) ı e Oviedo em sua Hist´ria das ´ndias. o ı Opini˜es desse tipo s˜o inumer´veis, e passaram tranq¨ilamente para nossa o a a u ´poca. No s´culo XIX, Stanley, em seu livro dedicado a pesquisa de Lie e ` vingstone, compara os africanos aos ”macacos de um jardim zool´gico”, e o convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que foi o discurso colonial dos franceses na Arg´lia. e Mais dois textos ir˜o deter mais demoradamente nossa aten¸ao, por nos paa c˜ recerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso do civilizado. S˜o as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes a para servir a Hist´ria da Esp´cie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado ` o e em 1774, e a famosa Introdu¸˜o a Filosofia da Hist´ria, de Hegel. ca ` o 1) De Pauw nos prop˜e suas reflex˜es sobre os ´ o o ındios da Am´rica do Norte. e Sua convic¸ao ´ a de que sobre estes l´ c˜ e ıllimos a influˆncia da natureza ´ total, e e ou mais precisamente negativa. Se essa ra¸a inferior n˜o tem hist´ria e est´ c a o a pura sempre condenada, por seu estado ”degenerado”, a permanecer fora do movimento da Hist´ria, a raz˜o deve ser atribu´ ao clima de uma extrema o a ıda umidade: ”Deve existir, na organiza¸˜o dos americanos, uma causa qualquer que emca brutece sua sensibilidade e seu esp´rito. A qualidade do clima, a grosseria ı de seus humores, o v´cio radical do sangue, a constitui¸˜o de seu temperaı ca mento excessivamente fleum´tico podem ter diminu´do o tom e o saracoteio a ı dos nervos desses homens embrutecidos”. Eles tˆm, prossegue Pauw, um ”temperamento t˜o umido quanto o ar e e a ´ a terra onde vegetam”e que explica que eles n˜o tenham nenhum desejo sea xual. Em suma, s˜o ”infelizes que suportam todo o peso da vida agreste a
  • 32. ´ ´ CAP´ ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA: 30 na escurid˜o das florestas, parecem mais animais do que vegetais”. Ap´s a a o degenerescˆncia ligada a um ”v´ de constitui¸˜o f´ e ıcio ca ısica”, Pauw chega a de` ´ grada¸ao moral. E a quinta parte do livro, cuja primeira se¸ao ´ intitulada: c˜ c˜ e ”O gˆnio embrutecido dos Americanos”. e ”A insensibilidade, escreve nosso autor, ´ neles um v´cio de sua constitui¸˜o e ı ca alterada; eles s˜o de uma pregui¸a imperdo´vel, n˜o inventam nada, n˜o ema c a a a preendem nada, e n˜o estendem a esfera de sua concep¸˜o al´m do que vˆem a ca e e pusilˆnimes, covardes, irritados, sem nobreza de esp´rito, o desˆnimo e a a ı a falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam in´teis para u si mesmos e para a sociedade. Enfim, os californianos vegetam mais do que vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma. Essa separa¸˜o entre um estado de natureza concebido por Pauw como irca remediavelmente imut´vel, e o estado de civiliza¸˜o, pode ser visualizado a ca num mapa m´ndi. No s´culo XVIII, a enciclop´dia efetua dois tra¸ados: um u e e c longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa, ´ ´ a Africa e a Asia, de outro a Am´rica, e um latitudinal dividindo o que se e encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buffon, a proximidade ou o afastamento da linha equatorial s˜o explicativos n˜o apenas da a a constitui¸ao f´ c˜ ısica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filos´ficas o sobre os Americanos escolhe claramente o crit´rio latitudinal, fundamento e aos seus olhos da distribui¸˜o da popula¸˜o mundial, distribui¸ao essa n˜o ca ca c˜ a cultural e sim natural da civiliza¸ao e da barb´rie: ”A natureza tirou tudo c˜ a de um hemisf´rio deste globo para d´-lo ao outro”. ”A diferen¸a entre um e a c hemisf´rio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) ´ total, t˜o grande quanto e e a poderia ser e quanto podemos imagin´-la”: de um lado, a humanidade, e de a outro, a ”estupidez na qual vegetam”esses seres indiferenciados: ”Igualmente b´rbaros, vivendo igualmente da ca¸a e da pesca, em pa´ses a c ı frios, est´reis, cobertos de florestas, que despropor¸˜o se queria imaginar e ca entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de satisfazˆ-los s˜o os mesmos, onde as influˆncias do ar s˜o t˜o semelhantes, ´ e a e a a e poss´vel haver contradi¸˜o nos costumes ou varia¸˜es nas id´ias?” ı ca co e Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os ind´ ıgenas americanos vivem em um ”estado de embrutecimento”geral. T˜o degenerados uns a quanto os outros, seria em v˜o procurar entre eles variedades distintivas daa quilo que se pareceria com uma cultura e com uma hist´ria.7 o 7 Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
  • 33. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 31 2) Os julgamentos que acabamos de relatar – que est˜o, notamos, em ruptura a com a ideologia dominante do s´culo XVIII, da qual falaremos mais adiante, e e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado vinte anos antes – por excessivos que sejam, apenas radicalizam id´ias come partilhadas por muitas pessoas nessa ´poca. Id´ias que ser˜o retomadas e e e a expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introdu¸˜o ca a Filosofia da Hist´ria, nos exp˜e o horror que ele ressente frente ao es` o o tado de natureza, que ´ o desses povos que jamais-ascender˜o ` ”hist´ria”e e a a o a ”consciˆncia de si”. ` e Na leitura dessa Introdu¸ao, a Am´rica do Sul parece mais est´pida ainda c˜ e u ´ do que a do Norte. A Asia aparentemente n˜o est´ muito melhor. Mas ´ a a e ´ ´ a Africa, e, em especial, a Africa profunda do interior, onde a civiliza¸ao c˜ nessa ´poca ainda n˜o penetrou, que representa para o fil´sofo a forma mais e a o nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade: ´ ”E o pa´ do ouro, fechado sobre si mesmo, o pa´s da infˆncia, que, al´m ıs ı a e do dia e da hist´ria consciente, est´ envolto na cor negra da noite”. o a ´ Tudo, na Africa, ´ nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os ”nee gros”n˜o respeitam nada, nem mesmo eles pr´prios, j´ que comem carne a o a humana e fazem com´rcio da ”carne”de seus pr´ximos. Vivendo em uma e o ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles n˜o tˆm moral, nem institui¸˜es sociais, religi˜o ou Estado.8 Pea e co a trificados em uma desordem inexor´vel, nada, nem mesmo as for¸as da coloa c niza¸ao, poder´ nunca preencher o fosso que os separa da Hist´ria universal c˜ a o da humanidade. Na descri¸ao dessa africanidade estagnante da qual n˜o h´ absolutamente c˜ a a nada a esperar – e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado a ` indianidade em Pauw – , o autor da Fenomenologia do Esp´ ırito vai, vale a pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filos´ficas sobre os Amerio canos. O ”negro”nem mesmo se vˆ atribuir o estatuto de vegetal. ”Ele cai”, e escreve Hegel, ”para o n´ de uma coisa, de um objeto sem valor”. ıvel 8 ”O fato de devorar homens corresponde ao princ´ ıpio africano.”Ou ainda: ”S˜o os a seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante ´ para eles apenas uma carne e como qualquer outra, suas guerras s˜o feroze: e sua religi˜o pura supersti¸˜o”. a a ca
  • 34. 32 1.2 ´ ´ CAP´ ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA: A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado A figura de uma natureza m´ na qual vegeta um selvagem embrutecido ´ emia e nentemente suscet´ de se transformar em seu oposto: a da boa natureza ıvel dispensando suas benfeitorias a um selvagem feliz. Os termos da atribui¸˜o ` ca permanecem, como veremos, rigorosamente idˆnticos, da mesma forma que e o par constitu´ pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natuıdo ral). Mas efetua-se dessa vez a invers˜o daquilo que era apreendido como um a vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como um menos que se torna um mais. O car´ter privativo dessas sociedades sem a escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religi˜o organizada, sem clero, a sem sacerdotes, sem pol´ ıcia, sem leis, sem Estado –acrescentar-se-´ no s´culo a e ´ XX sem Complexo de Edipo – n˜o constitui uma desvantagem. O selvagem a n˜o ´ quem pensamos. a e Evidentemente, essa representa¸ao concorrente (mas que consiste apenas c˜ em inverter a atribui¸ao de significa¸oes e valores dentro de uma estrutura c˜ c˜ idˆntica) permanece ainda bastante r´ e ıgida na ´poca na qual o Ocidente descoe bre povos ainda desconhecidos. A figura do bom selvagem s´ encontrar´ sua o a formula¸˜o mais sistem´tica e mais radical dois s´culos ap´s o Renascimento: ca a e o no rousseau´ ısmo do s´culo XVIII, e, em s´guida, no Romantismo. N˜o deixa e e a por´m de estar presente, pelo menos em estado embrion´rio, na percep¸˜o e a ca que tˆm os primeiros viajantes. Am´rico Vesp´cio descobre a Am´rica: e e u e ”As pessoas est˜o nuas, s˜o bonitas, de pele escura, de corpo elegante. . a a . Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo ´ colocado em comum. e E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua m˜e, sua irm˜, ou sua amiga, entre as quais eles n˜o fazem diferen¸a. . . a a a c Eles vivem cinq¨enta anos. E n˜o tˆm governo”. u a e Crist´v˜o Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tamb´m o para´ o a e ıso; ”Eles s˜o muito mansos e ignorantes do que ´ o mal, eles n˜o sabem se a e a matar uns aos outros (...) Eu n˜o penso que haja no mundo homens melhoa res, como tamb´m n˜o h´ terra melhor”. e a a Toda a reflex˜o de L´ry e de Montaigne no s´culo XVI sobre os ”naturais”baseiaa e e se sobre o tema da no¸ao de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela c˜ primeira vez, instaura-se uma cr´ ıtica da civiliza¸ao e um elogio da ”ingenuic˜
  • 35. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 33 dade original”do estado de natureza. L´ry, entre os Tupinamb´s, interroga-se e a sobre o que se passa ”aqu´m”, isto ´, na Europa. Ele escreve, a respeito de e e ”nossos grandes usur´rios”: ”Eles s˜o mais cru´is do que os selvagens dos a a e quais estou falando”. E Montaigne, sobre esses ultimos: ”Podemos portanto ´ de fato cham´-los de b´rbaros quanto as regras da raz˜o, mas n˜o quanto a a ` a a a n´s mesmos que os superamos em toda sorte de barb´rie”. Para o autor o a dos Ensaios, esse estado paradis´ ıaco que teria sido o nosso outrora, talvez esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei at´ o e encontrou. Esse fasc´ ınio exercido pelo ind´ ıgena americano, e em especial por le Hu9 ron, protegido da civiliza¸ao e que nos convida a reencontrar o universo cac˜ loroso da natureza, triunfa nos s´culos XVII e XVIII. Nas primeiras Rela¸oes e c˜ dos jesu´ que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler: ıtas ”Eles s˜o af´veis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que a a freq¨entaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente u entre eles do que entre n´s”. Seu ideal: ”viver em comum sem processo, o contentar-se de pouco sem avareza, ser ass´duo no trabalho”. ı Do lado dos livres-pensadores, ´ o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan: e ”Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris˜es e sem torturas passam a o vida na do¸ura, na tranq¨ilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida c u dos franceses”. Essa admira¸ao n˜o ´ compartilhada apenas pelos navegadores estupefac˜ a e 10 tos. O selvagem ingressa progressivamente na filosofia – os pensadores 9 Um dos primeiros textos sobre os Hurons ´ publicado em 1632: Le Grand Vayage e au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux Voyages du Baron de La Hontan o¨ ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1’Auteur et u un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Am´ricains, de Lafitau; em 1767, Vlng´nu, de e e Vol-taire.. Notemos que de cada popula¸˜o encontrada nasce um estere´tipo. Se o discurso euroca o peu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, referˆncia ` crueldade, o e a discurso sobre os Esquim´s a sua hospitalidade, estes ultimos n˜o hesitando em oferecer o ´ a suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente ´ sem d´vida predominante e u em grande parte na literatura sobre os ´ ındios. 10 No s´culo XVIII, um marinheiro francˆs escreve em seu di´rio de viagem: ”A inocˆncia e e a e e a tranq¨ilidade est´ entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n˜o trocariam essa u a a vida e seu pa´ por qualquer coisa no mundo”(coment´rios relatados por ). P. Duviols, ıs a 1978).
  • 36. 34 ´ ´ CAP´ ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA: das Lumi`resu 11 – , mas tamb´m nos sal˜es liter´rios e nos teatros parisiene e o a ses. Em 1721, ´ montado um espet´culo intitulado O Arlequim Selvagem. 0 e a personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco: ”Vocˆs s˜o loucos, pois procuram com muito empenho uma infinidade de e a coisas in´teis; vocˆs s˜o pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez u e a de simplesmente gozar da cria¸˜o, como n´s, que n˜o queremos nada a fim ca o a de desfrutar mais livremente de tudo”. ´ e E a ´poca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau acabou de escrever, a ´poca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens. e Manifesta¸oes essas que constituem uma verdadeira acusa¸ao contra a civic˜ c˜ liza¸ao. Depois, o fasc´ c˜ ınio pelos ´ ındios ser´ substitu´ progressivamente, a a ıdo partir do fim do s´culo XVIII, pelo charme e prazer id´ e ılico que provoca o encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquip´lagos e polin´sios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de P´scoa, e soe a bretudo o Taiti. Aqui est´, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua a Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980): ”Seja dia ou noite, as casas est˜o abertas. Cada um colhe as frutas na a primeira ´rvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ´cio a o ´ compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar ´ sua mais preciosa e e ocupa¸˜o. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres ca pareciam n˜o querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada a instante as do¸uras do amor, tudo incita ao abandono”. c Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exaltam a do¸ura das sociedades ”selvagens”, e, correlativamente fustigam tudo c que pertence ao Ocidente ainda s˜o atuais. Se n˜o o fossem, n˜o nos seriam a a a diretamente acess´ ıveis, n˜o nos tocariam mais nada. Ora, ´ precisamente a a e esse imagin´rio da viagem, a esse desejo de fazer existir em um ”alhures”uma a sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas virtudes se estendam a magnificˆncia da fauna e da flora (Chateau-briand, ` e Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu sucesso com o p´blico. u O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar 11 Condillac escreve: ”N´s que nos consideramos instru´ o ıdos, precisar´ ıamos ir entre os povos mais ignorantes, para aprender destes o come¸o de nossas descobertas: pois ´ soc e bretudo desse come¸o que precisar´ c ıamos: ignoramo-lo porque deixamos h´ tempo de ser a os disc´ ıpulos da natureza”
  • 37. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 35 ao Ocidente mort´ ıfero li¸oes de grandeza, como acabamos de ver, n˜o ´ novic˜ a e dade. Mas grande parte do p´blico est´ infinitamente mais dispon´ agora u a ıvel do que antes para se deixar persuadir que as sociedades constrangedoras da ` abstra¸ao, do c´lculo e da impessoalidade das rela¸˜es humanas, op˜em-se c˜ a co o sociedades de solidariedade comunit´ria, abrigadas na suntuosidade de uma a natureza generosa. A decep¸˜o ligada aos ”benef´ ca ıcios”do progresso (nos quais muitos entre n´s acreditam cada vez menos) bem como a solid˜o e o anoo a nimato do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos s´ aspirem a se projetar nesses para´ (perdido) dos tr´picos ou dos mares o ıso o do Sul, que o Ocidente teria substitu´ pelo inferno da sociedade tecnol´gica. ıdo o Mas conv´m, a meu ver, ir mais longe. O etn´logo, como o militar, ´ recrue o e tado no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a ´ sua, as mesmas insatisfa¸oes,-ang´stias, desejos. Se essa busca do Ultimo dos c˜ u Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo ”vento dos coqueiros”(que ´ na e realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa disciplina, ela est´ presente nas motiva¸oes dos pr´prios etn´logos. Malia c˜ o o nowski ter´ a franqueza de escrever e ser´ muito criticado por isso: a a ”Um dos ref´gios fora dessa pris˜o mecˆnica da cultura ´ o estudo das foru a a e mas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades long´ ınquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga romˆntica para longe de nossa cultura uniformizada”. a Ora, essa ”nostalgia do neol´ ıtico”, de que fala Alfred M´traux e que ese teve na origem de sua pr´pria voca¸ao de Ctn´logo, ´ encontrada em muitos o c˜ o e autores, especialmente nas descri¸˜es de popula¸˜es preservadas do contato co co corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transparˆncia. e O qualificativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que s˜o caracterizadas pela riqueza das trocas simb´licas, foi certamente o de a o ”autˆntico”(oposto ` aliena¸ao das sociedades industriais adiantadas), termo e a c˜ proposto por Sapir em 1925, e que ´ erroneamente atribu´ a L´vi-Strauss. e ıdo e *** A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si mesmo) n˜o parou, portanto, de oscilar entre os p´los de um verdadeiro a o movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem: • era um monstro, um ”animal com figura humana”(L´ry), a meio camie nho entre a animalidade e a humanidade mas tamb´m que os monstros e
  • 38. 36 ´ ´ CAP´ ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA: ´ramos n´s, sendo que ele tinha li¸oes de humanidade a nos dar; e o c˜ • levava uma existˆncia infeliz e miser´vel, ou, pelo contr´rio, vivia num e a a estado de beatitude, adquirindo sem esfor¸os os produtos maravilhosos c da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a assumir as duras tarefas da ind´stria; u • era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre gui¸oso; c • n˜o tinha alma e n˜o acreditava em nenhum deus, ou era profundaa a mente religioso; • vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na harmonia • era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, at´ e inclusive suas pr´prias e o mulheres; • era admiravelmente bonito, ou feio; • era movido por uma impulsividade criminalmente congˆnita quando era e leg´ ıtimo temer, ou devia ser considerado como uma crian¸a precisando c de prote¸ao; c˜ • era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassid˜o a permanente, ou, pelo contr´rio, um ser preso, obedecendo estritamente a aos tabus e as proibi¸˜es de seu grupo; ` co • era atrasado, est´pido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente u virtuoso e eminentemente complexo; • era um animal, um ”vegetal”(de Pauw), uma ”coisa”, um ”objeto sem valor”(Hegel), ou participava, pelo contr´rio, de uma humanidade da a qual tinha tudo como aprender. Tais s˜o as diferentes constru¸˜es em presen¸a (nas quais a repuls˜o se transa co c a forma rapidamente em fasc´ ınio) dessa alteridade fantasm´tica que n˜o tem a a muita rela¸˜o com a realidade. O outro – o ´ ca ındio, o taitiano, mas recentemente o basco ou o bret˜o– ´ simplesmente utilizado como suporte de um a e imagin´rio cujo lugar de referˆncia nunca ´ a Am´rica, Taiti, o Pa´ Basco a e e e ıs ou a Bretanha. S˜o objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com a vistas a explora¸˜o econˆmica, quanto ao militarismo pol´ ` ca o ıtico, ` convers˜o a a religiosa ou a emo¸ao est´tica. Mas, em todos os casos, o outro n˜o ´ consi` c˜ e a e derado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
  • 39. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 37 Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em v˜o, tala vez anacrˆnico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento o etnol´gico, t˜o problem´tico, como acabamos de observar, ainda no final do o a a s´culo XX. N˜o basta viajar e surpreender-se com o que se vˆ para tornar-se e a e etn´logo (n˜o basta mesmo ter numerosos anos de ”campo”, como se diz o a hoje). Por´m, numerosos viajantes nessa ´poca colocam problemas (o que e e n˜o significa uma problem´tica) aos quais ser´ necessariamente confrontado a a a qualquer antrop´logo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ir´ o a se tornar a etnologia. Jean de L´ry, entre os ind´ e ıgenas brasileiros, perguntase: ´ preciso rejeit´-los fora da humanidade? Consider´-los como virtualidae a a des de crist˜os? Ou questionar a vis˜o que temos da pr´pria humanidade, a a o isto ´, reconhecer que a cultura ´ plural? Atrav´s de muitas contradi¸oes (a e e e c˜ oscila¸ao permanente entre a convers˜o e o olhar, os objetivos teol´gicos e os c˜ a o que poder´ ıamos chamar de etnogr´ficos, o ponto de vista normativo e o ponto a de vista narrativo), o autor da Viagem n˜o tem resposta. Mas as quest˜es a o (e para o que nos interessa aqui, mas especificamente a ultima) est˜o no en´ a tanto implicitamente colocadas. Montaigne (hoje as vezes criticado), mesmo ` se o que o preocupa ´ menos a humanidade dos ´ e ındios do que a inumanidade dos europeus, seguindo nisso L´ry que transporta para o ”Novo Mundo”os e conflitos do antigo, come¸a a introduzir a d´vida no edif´ do pensamento c u ıcio europeu. Ele testemunha o desmoronamento poss´ deste pensamento, meıvel nos inclusive ao pronunciar a condena¸ao da civiliza¸ao do que ao considerar c˜ c˜ que a ”selvageria”n˜o ´ nem inferior nem superior, e sim diferente. a e Assim, essa ´poca, muito timidamente, ´ verdade, e por alguns apenas de e e seus esp´ ıritos os menos ortodoxos, a partir da observa¸ao direta de um obc˜ jeto distante (L´ry) e da reflex˜o a distˆncia sobre este objeto (Montaigne), e a a permite a constitui¸ao progressiva, n˜o de um saber antropol´gico, muito mec˜ a o nos de uma ciˆncia antropol´gica, mas sim de um saber pr´-antropol´gico. e o e o
  • 40. 38 ´ ´ CAP´ ITULO 1. A PRE-HISTORIA DA ANTROPOLOGIA:
  • 41. Cap´ ıtulo 2 O S´culo XVIII: e a inven¸˜o do conceito de homem ca Se durante o Renascimento esbo¸ou-se, com a explora¸ao geogr´fica de contic c˜ a nentes desconhecidos, a primeira interroga¸ao sobre a existˆncia m´ltipla do c˜ e u homem, essa interroga¸˜o fechou-se muito rapidamente no s´culo seguinte, ca e no qual a evidˆncia do cogito, fundador da ordem do pensamento cl´ssico, e a exclui da raz˜o o louco, a crian¸a, o selvagem, enquanto figuras da anormaa c lidade. Ser´ preciso esperar o s´culo XVIII para que se constitua o projeto de funa e dar uma ciˆncia do homem, isto ´, de um saber n˜o mais exclusivamente e e a especulaivo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no s´culo e XVI elementos que permitem compreender a pr´-hist´ria da antropologia, ene o quanto o s´culo XVII (cujos discursos n˜o nos s˜o mais diretamente acess´ e a a ıveis hoje) interrompe nitidamente essa evolu¸ao, apenas no s´culo XVIII ´ que c˜ e e entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na modernidade. Apenas nessa ´poca, e n˜o antes, ´ que se pode apreender as e a e condi¸oes hist´ricas, culturais e epistemol´gicas de possibilidade daquilo que c˜ o o vai se tornar a antropologia. ”Antes do final do s´culo XVIII”, escreve Fou-cauilt, ”o homem n˜o existia. e a Como tamb´m o poder du vida, a fecundidade do trabalho ou a densidade e ´ hist´rica da linguagem. E uma criatura muito recente que o demiurgo do sao ber fabricou com suas pr´prias m˜os, h´ menos de duzentos anos (...) Uma o a a coisa em todo caso ´ certa, o homem n˜o ´ o mais antigo problema, nem o e a e mais constante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem ´ uma e inven¸˜o e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto ´ recente. ca e E”, acrescenta Foucault no final de As Palavras e as Coisas, ”qu˜o pr´ximo a o 39
  • 42. 40 ´ CAP´ ITULO 2. O SECULO XVIII: talvez seja o seu fim”. O projeto antropol´gico (e n˜o a realiza¸ao da antropologia como a enteno a c˜ demos hoje) sup˜e: o 1) a constru¸ao de um certo n´mero de conceitos, come¸ando pelo pr´prio c˜ u c o conceito de homem, n˜o apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do a saber; abordagem totalmente in´dita, j´ que consiste em introduzir dualidade e a caracter´ ıstica das ciˆncias exatas (o sujeito observante e o objeto observado) e no cora¸ao do pr´prio homem; c˜ o 2) a constitui¸˜o de um saber que n˜o seja apenas de reflex˜o, e sim de ca a a observa¸˜o, isto ´, de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser ca e considerado em sua existˆncia concreta, envolvida nas determina¸˜es de seu e co organismo, de suas rela¸oes de produ¸ao, de sua linguagem, de suas instic˜ c˜ tui¸oes, de seus comportamentos. Assim come¸a a constitui¸˜o dessa posic˜ c ca tividade de um saber emp´ ırico (e n˜o mais transcendental) sobre o homem a enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e fala (ling¨´ uıstica). . . Montesquieu, em O Esp´ ırito das Leis (1748), ao mostrar a rela¸ao de interdependˆncia que ´ a dos fenˆmenos sociais, abriu o c˜ e e o caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no s´culo seguinte) a falar e em uma ”ciˆncia da sociedade”. Da mesma forma, antes dessa ´poca, a line e guagem, quando tomada em considera¸ao, era objeto de filosofia ou exegese. c˜ Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, Rousseau) o objeto espec´ ıfico de um saber cient´ ıfico (ou, pelo menos, de voca¸˜o cient´ ca ıfica); 3) uma problem´tica essencial: a da diferen¸a. Rompendo com a convic¸ao a c c˜ de uma transparˆncia imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no e s´culo XVIII a quest˜o da rela¸ao ao impensado, bem como a dos poss´ e a c˜ ıveis processos de reapropria¸˜o dos nossos condicionamentos fisiol´gicos, das nosca o sas rela¸oes de produ¸˜o, dos nossos sistema de organiza¸ao social. Assim, c˜ ca c˜ inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constitui¸ao da id´ia c˜ e de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais reflex˜es sobre os limites do saber, assim como sobre as rela¸oes de sentido o c˜ e poder (que anunciam o fim da metaf´ ısica) eram inimagin´veis antes. A a sociedade do s´culo XVIII vive uma crise da identidade do humanismo e da e consciˆncia europ´ia. Parte de suas elites busca suas referˆncias em um cone e e fronto com o distante. Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Comparados aos Costumes dos Primeiros Tempos, Lafitau se d´ por objetivo o de a
  • 43. 41 fundar uma ”ciˆncia dos costumes e h´bitos”, que, al´m da contingˆncia dos e a e e fatos particulares, poder´ servir de compara¸ao entre v´rias formas de hua c˜ a manidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Educa¸ao do Jovem Selvagem c˜ do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade ` qual pertencem a o homem da civiliza¸˜o em que nos transportamos e o homem da natureza, ca a crian¸a-lobo.1 Mas foi Rousseau quem tra¸ou, em seu Discurso sobre a c c Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornar´ o da a etnologia cl´ssica, no seu campo tem´tico2 tanto quanto na sua abordagem: a a a indu¸ao de que falaremos agora; c˜ 4) um m´todo de observa¸˜o e an´lise: o m´todo indutivo. Os grupos sociais e ca a e (que come¸am a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados c como sistemas ”naturais”que devem ser estudados empiricamente, a partir du observa¸˜o de fatos, a fim de extrair princ´ ca ıpios gerais, que hoje chamar´ ıamos de leis. Esse naturalismo, que consiste numa emancipa¸ao definitiva em rela¸ao ao c˜ c˜ 3 pensamento teol´gico, imp˜e-se em especial na Inglaterra, com Adam Smith o o e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza Humana, cujo t´ ıtulo completo ´: ”Tratado sobre a natureza Humana: tentae tiva de introdu¸˜o de um m´todo experimental de racioc´ ca e ınio para o estudo de assuntos de moral”. Os fil´sofos ingleses colocam as premissas de todas o as pesquisas que procurar˜o fundar, no s´culo XVIII, uma moral natural”, a e um ”direito natural”, ou ainda uma ”religi˜o natural”. a *** Esse projeto de um conhecimento positivo do homem – isto ´, de um estudo e de sua existˆncia emp´ e ırica considerada por sua vez como objeto do saber – constitui um evento consider´vel na hist´ria da humanidade. Um evento que a o se deu no Ocidente no s´culo XVIII, que, evidentemente, n˜o ocorreu da noite e a para o dia, mas que terminou impondo-se j´ que se tornou definitivamente a 1 Cf. o filme de Fran¸ois Truffaut, VEnfant Sauvage (1970), e o livro de Lucien Malson c que the serviu de base. 2 Rousseau estabelece a lista das regi˜es devedoras de viagens ”filos´ficas”: o mundo o o inteiro menos a Europa ocidental. 3 A precocidade e preeminˆncia, no pensamento inglˆs, do empirismo em rela¸˜o ao e e ca pensamento francˆs, caracterizado antes pelo racionalismo (e idealismo), podem a meu e ver explicar em parte o crescimento r´pido (no come¸o do s´culo XX) da antropologia a c e britˆnica e o atraso da antropologia francesa. a
  • 44. ´ CAP´ ITULO 2. O SECULO XVIII: 42 constitutivo da modernidade na qual, a partir dessa ´poca, entramos. A fim e de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revolu¸ao do pensamento – c˜ que instaura uma ruptura tanto com o ”humanismo”do Renascimento como com o ”racionalismo”do s´culo cl´ssico –, examinemos de mais perto o que e a mudou radicalmente desde o s´culo XVI. e 1)Trata-se em primeiro lugar da natureza dos objetos observados. Os relatos dos viajantes dos s´culos XVI e XVII eram mais uma busca cosmogr´fica do e a que uma pesquisa etnogr´fica. Afora algumas incurs˜es t´ a o ımidas para area das ´ 4 ”inclina¸oes”e dos ”costumes”, o objeto de observa¸ao, nessa ´poca era mais c˜ c˜ e o c´u, a terra, a fauna e a flora, do que o homem em si, e, quando se tratava e deste, era essencialmente o homem f´ ısico que era tomado em considera¸˜o. ca Ora, o s´culo XVIII tra¸a o primeiro esbo¸o daquilo que se tornar´ uma e c c a antropologia social e cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo, tomando como modelo a antropologia f´ ısica, e instaurando uma ruptura do monop´lio desta (especialmente na Fran¸a). o c 2) Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo para a atividade epistemol´gica, que se torna cada vez mais organizada. Os o viajantes dos s´culos XVI e XVII coletavam ”curiosidades”. Esp´ e ıritos curiosos reuniam cole¸oes que iam formar os famosos ”gabinetes de curiosidades”, c˜ ancestrais dos nossos museus contemporˆneos. No s´culo XVIII, a quest˜o a e a ´: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a e Hist´ria Geral das Viagens, do padre Pr´vost (1746), passa-se da coleta dos o e materiais para a cole¸˜o das coletas. N˜o basta mais observar, ´ preciso proca a e cessar a observa¸ao. N˜o basta mais interpretar o que ´ observado, ´ preciso c˜ a e e 5 interpretar interpreta¸oes. E ´ desse desdobramento, isto ´, desse discurso, c˜ e e que vai justamente brotar uma atividade de organiza¸ao e elabora¸˜o. Em c˜ ca 1789, Chavane, o primeiro, dar´ a essa atividade um nome. Ele a chamar´: a a a etnologia. *** Finalmente, ´ no s´culo XVIII que se forma o par do viajante e do fil´sofo: e e o o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La P´rouse. . e realizando o que ´ chamado na ´poca de ”viagens filos´ficas”, precursoras das e e o 4 Cf. em especial UHistoire Naturetle et Morale des Indes, de Acosta (1591), ou o question´rio que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informa¸˜es sobre a co o estado das mentalidades populares no reino. 5 Cf sobre isso G. Leclerc. 1979
  • 45. 43 nossas miss˜es cient´ o ıficas contemporˆneas; o fil´sofo Buffon, Voltaire, Rousa o seau, Diderot (cf. em especial o seu Suplemento a Viagem de Bougainville) ` ”esclarecendo”com suas reflex˜es as observa¸oes trazidas pelo viajante. o c˜ Mas esse par n˜o tem realmente nada de id´ a ılico. Que pena, pensa Rousseau, que os viajantes n˜o sejam fil´sofos! Bougainville retruca (em 1771 a o em sua Viagem ao Redor do Mundo): que pena que os fil´sofos n˜o sejam o a viajantes!6 Para o primeiro, bem como para todos os fil´sofos naturalistas do o s´culo das luzes, se ´ essencial observar, ´ preciso ainda que a observa¸˜o seja e e e ca esclarecida. Uma prioridade ´ portanto conferida ao observador, sujeito que, e para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo n´mero de u qualidades. E ´ assim que se constitui, na passagem do s´culo XVIII para o e e s´culo XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada e pelos ent˜o chamados ”ide´logos”, que s˜o moralistas, fil´sofos, naturalistas, a o a o m´dicos que definem muito claramente o que deve ser o campo da nova ´rea e a de saber (o homem nos seus aspectos f´ ısicos, ps´ ıquicos, sociais, culturais) e quais devem ser suas exigˆncias epistemol´gicas. e o As Considera¸oes sobre os Diversos M´todos a Seguir na Observa¸ao dos c˜ e c˜ Povos Selvagens, de De Gerando (1800) s˜o, quanto a isso, exemplares. Pria meira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma miss˜o a nas ”Terras Austrais”, esse texto ´ uma cr´ e ıtica da observa¸ao selvagem do c˜ selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista deve ser ele pr´prio testemunha ocular do que observa, pois a nova ciˆncia o e – qualificada de ”ciˆncia do homem”ou ”ciˆncia natural-- ´ uma ”ciˆncia de e e e e observa¸˜o”, devendo o observador participar da pr´pria existˆncia dos gruca o e pos sociais observados.7 6 Rousseau: ”Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um d’Alembert, um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para instruir seus compatriotas, observando como sabem fazˆ-lo a Turquia, o Egito, a Barbaria. . . Suponhamos que e esses novos H´rcules, de volta de suas andan¸as memor´veis, fizessem a seguir a hist´ria e c a o natural, moral e pol´ ıtica do que teriam visto, ver´ ıamos nascer de seus escritos um mundo novo, e aprender´ ıamos assim a conhecer o nosso. Bougainville: ”Sou viajante e marinheiro, isto ´, um mentiroso e um imbecil aos olhos e dessa classe de escritores pregui¸osos e soberbos que, na sombra de seu gabinete, filosofam c sem fim sobre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas imagina¸˜es. Modos bastante singulares e inconceb´ co ıveis da parte de pessoas que, n˜o a tendo observado nada por si pr´prias, s´ escrevem e dogmatizam a partir de observa¸˜es o o co tomadas desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar”. 7 Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas palavras de ”um homem simples e rude”, um huguenote que esteve no Brasil, a respeito dos ´ ındios entre os quais esteve.
  • 46. ´ CAP´ ITULO 2. O SECULO XVIII: 44 Por´m, o projeto de De Gerando n˜o foi aplicado por aqueles a que se dese a tinava diretamente, e n˜o ser´, por muito tempo ainda, levado em conta.8 a a Se esse programa que consiste em ligar uma reflex˜o organizada a uma oba serva¸˜o sistem´tica, n˜o apenas do homem f´ ca a a ısico, mas tamb´m do homem e social e cultural, n˜o pˆde ser realizado, ´ porque a ´poca ainda n˜o o pera o e e a mitia. O final do s´culo XVIII teve um papel essencial na elabora¸ao dos e c˜ fundamentos de uma ”ciˆncia humana”. N˜o podia ir mais longe, e n˜o poe a a der´ ıamos credit´-lo aquilo que s´ ser´ poss´ um s´culo depois. a o a ıvel e Mais especificamente, o obst´culo maior ao advento de uma antropologia a cient´ ıfica, no sentido no qual a entendemos hoje, est´ ligado, ao meu ver, a a dois motivos essenciais. 1) A distin¸ao entre o saber cient´ c˜ ıfico e o saber filos´fico, mesmo sendo o abordada, n˜o ´ de forma alguma realizada. Evidentemente, o conceito da a e unidade e universalidade do homem, que ´ pela primeira vez claramente afire mado, coloca as condi¸oes de produ¸ao de um novo saber sobre o homem. c˜ c˜ Mas n˜o leva ipso facto a constitui¸ao de um saber positivo. No final do a ` c˜ s´culo XVIII, o homem interroga-se: sobre a natureza, mas n˜o h´ biologia e a a ainda (ser´ preciso esperar Cuvier); sobre a produ¸ao e reparti-ti¸˜o das ria c˜ ca quezas, mas ainda n˜o se trata de economia (Ricardo); sobre seu discurso a mas isso n˜o basta para elaborar uma filosofia (Bopp), muito menos uma a ling¨´ uıstica.9 8 Os cientistas da expedi¸˜o conduzida por Bodin n˜o eram de forma alguma etn´grafos, ca a o e sim m´dicos, zo´logos, miner´logos, e os objetos etnogr´ficos que recolheram n˜o foram e o a a a sequer depositados no Museu de Hist´ria Natural de Paris, e sim dispersados em cole¸˜es o co particulares. O pr´prio Gerando, ”observador dos povos selvagens”em 1800, torna-se o ”visitante dos pobres”em 1824. O que mostra a prontid˜o de uma passagem poss´ entre a ıvel o estudo dos ind´ ıgenas e a ajuda aos indigentes, mas sobretudo, nessa ´poca, uma certa e ausˆncia de distin¸˜o entre a antropologia principiante e a ”filantropia”. e ca Notemos finalmente que, publicado em 1800, o m´moire de Gerando s´ foi reeditado- na e o Fran¸a em 1883. E o primeiro museu etnogr´fico da Kran¸a foi fundado apenas cinco anos c a c antes (em Paris, no Trocadero). sendo depois substitu´ pelo atual Museu do Homem. ıdo 9 A antropologia contemporˆnea me parece, pessoalmente, dividida entre uma homenaa gem a esses pais fundadores que s˜o os fil´sofos do s´culo XVIII (L´vi-Strauss, por exemplo, a o e e considera que o Discours sur l’Origine de l’In´galit´ de Rousseau ´ ”o primeiro tratado de e e e etnologia geral”) e um assass´ ınio ritual consistindo na reatualiza¸˜o de uma ruptura com ca um projeto que permanece filos´fico, enquanto que a ciˆncia exige a constitui¸˜o de um o e ca saber positivo e especializado. Mas neste segundo caso, a positividade, n˜o mais do saber, a e sim dc saberes que, muito rapidamente (a partir do s´culo XIX), se rompem se parcee lam, formando o que Foucault chama de ”ontologias regionais”constituindo-se em torno dos territ´rios da vida (biologia), do trabalho (economia), da linguagem (ling¨´ o uıstica), ´ e