1. Existe uma ciência que investiga o ser em si mesmo e suas propriedades inerentes à sua própria natureza. Essa ciência é a metafísica ou ontologia.
2. A metafísica estuda os diversos sentidos do termo "ser" e conceitos relacionados como unidade, identidade e contrariedade. Ela investiga as essências e atributos desses conceitos enquanto ser.
3. A metafísica também estuda os axiomas das matemáticas e da substância, uma vez que esses princípios se aplicam ao ser em
1. META FíSICA 103
LIVRO IV EDIPRO
I LIVRO IV I
1. Há uma ciência que investiga o ser como ser125e as pro-
priedades que lhe são inerentes devido à sua' própria nature-
za.126
Essa ciência não é nenhuma das chamadas ciências parti-
25 culares, pois nenhuma delas ocupa-se do ser geralmente como
ser. Elas secionam alguma porção do ser e investigam os atribu-
tos desta porção, como fazem, por exemplo, as ciências mate-
mátícas.V' Mas visto que buscamos os primeiros princípios e as
causas supremas,128 está claro que devem pertencer a algo em
função de sua própria natureza. Por conseguinte, se esses prin-
cípios foram investigados por aqueles que também investigaram
os elementos das coisas que existem, os elementos têm quer ser
30 elementos do ser não acidentalmente, mas em relação ao ser
como ser. Portanto, é do ser como ser que nós também temos
que apreender as primeiras ceusas.F"
2. O termo ser é utilizado em vários sentidos, mas com refe-
rência a uma idéia central e uma característica definida, e não
meramente como um epíteto ordinário.P'' Assim, corno o termo
35 saudável relaciona-se sempre com saúde (no sentido de a pre-
servar, ou no de a produzir, ou naquele de ser um sintoma dela,
ou naquele de ser receptivo a ela) e como médico relaciona-se
1003b1 com a arte da medicina (no sentido de a possuir, ou naquele de
estar naturalmente adaptado a ela, ou naquele de que é uma
função da medicina) - e descobriremos outros termos empre-
gados dé maneira semelhante a esses - do mesmo modo ser é
5 usado 'em diversos sentidos, mas sempre com referência a um
único princípio. Com efeito, diz-se de algumas coisas que são
porque são substâncias, outras porque são modificações da
125. ...'t0 OV YJOV... (10011 e on).
126. A metafísica ou ontologia, mas Aristóteles não a designará com estes nomes (ver a origem
dapalavra metafisica nos Dados Bibliográficos neste volume.
127. A aritmética, a geometria, a harmonia (música) e a astronomia.
128. ...'tas apxas Kat 'tas aKpo'ta'tas cvnce; ... (tas arkhas kai Ias akrotatas ai/ias).
129. ...1tpúnas at'tlas ... (pratas ai/ias).
130. Isto é, esses sentidos não são homônimos.
2. 104
ARISTÓTELES
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LIVRO IV
substância; outras porque constituem um processo para a subs-
tância, ou destruições, ou privações, ou qualidades da substân-
cia, ou porque são produtivas ou geradoras da substância ou de
termos relativos à substância, ou ainda negações de alguns
10 desses termos ou da substância (assim, chegamos a dizer até
que não-ser é não-ser). Desta maneira, tal como há uma ciên-
cia de todas as coisas saudáveis, o mesmo aplica-se verdadei-
ramente a tudo o mais, pois não é somente no caso de termos
que expressam uma noção comum que a investigação diz res-
peito a uma ciência, como também no caso de termos que se
relacionam a uma característica particular, posto que estes últi-
15 mos também, num certo sentido, expressam uma noção co-
mum. Fica claro, portanto, que a investigação das coisas que
são, enquanto são, também diz respeito a uma ciência. Ora, em
todos os casos o conhecimento sobretudo tange àquilo que é
primário, isto é, aquilo de que todas as outras coisas dependem
e do que extraem seus nomes. Se, então, a substância é essa
coisa primária, é das substâncias que o filósofo deve apreender
os primeiros princípios e causas.
Ora, para toda classe particular de coisas, na medida em
20 que há percepção, há uma ciência. Por exemplo, a gramática,
que é uma ciência, ocupa-se da investigação de todos os sons
articulados (fala). Daí, a investigação de todas as espécies de
ser como ser diz respeito a uma ciência que é genericamente
singular, e a investigação das diversas espécies de ser diz respei-
to às partes específicas dessa ciência.
Bem, se o ser e a unidade são idênticos, isto é, uma só natu-
reza no sentido de que estão associados como o estão o princí-
pio e a causa, não como denotados pela mesma definição (se
25 bem que não faça diferença, mas seja útil ao nosso argumento
os compreendermos no mesmo sentido), uma vez que um ser
humano ser humano bem como ser humano existente e ser
humano são a mesma coisa, ou melhor, a duplicação na afir-
mação "ele é um ser humano e um ser humano existente" não
proporciona nenhum significado novo (é claro que os conceitos
de humanidade e existência não estão dissociados no que diz
30 respeito a vir a ser ou deixar de ser), e igualmente no caso do
termo um, de modo que, obviamente, o termo adicional nessas
frases tem a mesma significação de unidade em nada se distin-
gue de ser; além disso, se a substância de cada coisa é singular,
META risse» 100
LIVRO IV EOIPRO
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em nenhum sentido acidental e, analogamente, é de sua pró-
pria natureza algo que é, então há tantas espécies de ser quanto
de unidade. E para investigar a essência dessas espécies (quero
dizer, por exemplo, a investigação do mesmo e do outro, e
todos os demais conceitos semelhantes - que, a nos expressar a
grosso modo, todos os contrários são reduzíveis a esse primeiro
princípio, mas que nos é lícito considerar que foram suficiente-
mente abordados na Seleção dos Contráriosl31
) existe o domí-
nio de uma ciência que é genericamente singular.
E há tantas divisões da filosofia quanto há tipos de substân-
cias, de modo que deve haver entre eles uma filosofia primeira
e uma que a ela sucede. Com efeito, o ser e a unidade acarre-
tam imediatamente gêneros e, assim, as ciências corresponde-
rão a esses gêneros. O termo filósofo é como o termo matemáti-
co em seus usos, pois as matemáticas também possuem divi-
sões - há uma ciência primária e uma secundária, e outras
sucessivamente, no domínio das matemáticas.
Ora, uma vez que a tarefa de uma ciência é investigar opos-
tos, e o' oposto da unidade é a pluralidade, e cabe a uma ciên-
cia investigar a negação e a privação da unidade, porque em
ambos os casos estamos estudando a unidade, à qual a nega-
ção (ou a privação) se refere, enunciada ou sob a simples forma
de que a unidade não está presente, ou sob a forma ·de. que não
está presente numa classe particular, sendo que neste último
caso a unidade é modificada pela diferença, independentemen-
te do conteúdo da negação (pois a negação da unidade é sua
ausência), embora na privação haja um substrato do qual ela é
predicada, conclui-se que os opostos dos conceitos acima indi-
cados, (tais como, alteridade, dessemelhança, desigualdade e
tudo o mais que seja deles derivado ou da pluralidade e unida-
de - enquadram-se na esfera da ciência supramencionada. E a
contrariedade é um deles, tratando-se de um tipo da diferença,
sendo a diferença um tipo de alteridade. Por conseguinte, tal
como o termo uno é usado em vários sentidos, também o serão
esses termos e, no entanto, diz respeito a uma única ciência
considerá-Ias a todos. Com efeito, os termos enquadram-se em
distintas ciências não se forem empregados em vários sentidos,
mas se suas definições não forem nem idênticas nem referenciá-
5
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15
20
13J. Aristóteles refere-se a um tratado que não chegou a nós.
3. 106 ARISTÓTELES
EDIPRO LIVRO IV
25 veis a uma noção comum. E como tudo é referido ao que é
primário (por exemplo, todas as coisas que são chamadas de
unas são referidas ao uno primário), temos que admitir que isso
é também verdadeiro no que toca à identidade e alteridade, e
aos contrários. Assim, a primeira coisa a fazer é distinguir todos
os sentidos nos quais cada termo é usado e, em seguida referi-
30 los, ao primário, no caso de cada predicado, e constatar como
estão relacionados com ele, pois alguns extrairão seu nome de
sua posse, enquanto outros o extrairão de sua produção, e
finalmente outros por razões semelhantes.
Assim, fica claro que diz respeito a uma ciência fornecer
uma explicação tanto desses conceitos quanto da substância
(sendo esta uma das questões suscitadas nas dificuldades), e
cabe ao filósofo ser capaz de investigar todos os assuntos. Se
1004b1 não for assim, a quem caberá investigar se "Sócrates" e "Sócra-
tes sentado" são o mesmo, ou se uma coisa possui um contrá-
rio, ou o que é o contrário, ou quantos significados ele possui?
5 ... e igualmente com todas as demais questões deste jaez. Deste
modo, visto serem essas as modificações essenciais da unidade
como unidade e do ser como ser, e não como números, linhas
ou fogo, está claro que cabe a essa ciência132 descobrir tanto a
essência quanto os atributos desses conceitos. E aqueles que os
investigam erram, não por não serem filosóficos, mas porque a
substância, da qual não possuem nenhum conhecimento real, é
10 anterior. De fato, tal como o número como número apresenta
suas modificações peculiares, por exemplo, imparidade e pari-
dade, comensurabilidade e igualdade, excesso e deficiência,
sendo estas coisas inerentes aos números, tanto considerados
independentemente quanto em relação com outros números, e
tal como, de modo semelhante, outras modificações peculiares
são inerentes ao sólido, ao imóvel e ao móvel, ao imponderável
15 e ao ponderável, também o ser como ser possui certas modifi-
cações peculiares, sendo a função do filósofo descobrir a ver-
dade destas modificações peculiares, havendo [inclusive] evi-
dência desse fato. Dialéticos e sofistas ostentam a aparência do
filósofo, pois a sofística não passa de aparência de sabedoria;
20 dialéticos discutem todos os assuntos, e o ser é um assunto
comum a todos eles, mas está claro que discutem tais assuntos,
132. Ou seja, a filosofia primeira ou metafísica.
107
METAFíSICA
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LIVRO IV
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porque pertencem à filosofia. A sofística e a dialética ocupam-se
da mesma classe de temas da filosofia, mas esta difere da pri-
meira em função da natureza de sua capacidade, e da segunda
em função de sua perspectiva da vida.
133
A dialética aborda
como exercício aquilo que a filosofia procura compreender, ao
passo que a sofística parece ser filosofia, mas não é.
Ademais, a segunda coluna de contrários é privativa, e tudo
é reduzível a ser e não ser, unidade e pluralidade, por exemplo
o repouso enquadrando-se na unidade e o movimento na plu-
ralidade. E quase todos concordam que a substância e as coisas
existentes são compostas de contrários. De um modo ou outro,
todos referem-se aos primeiros princípios como contrários, al-
guns como ímpar e par,134 alguns como quente e frio,135 alguns
como limitado e ílírnitado.l'" e alguns como amor e conflito.
137
E é evidente que todas as demais coisas também são reduzíveis
à unidade e pluralidade (é de se supor esta redução). E os prin-
cípios aduzidos por outros pensadores enquadram-se comple-
tamente nesses, na qualidade de gêneros. E então essas consi-
derações também deixam patente que compete a uma única
ciência investigar o ser como ser, já que todas as coisas são ou
contrários ou derivadas de contrários, e os primeiros princípios
dos contrários são unidade e pluralidade, os quais pertencem a
uma só ciência, quer façam referência a uma noção corrulm ou
não. Provavelmente, a verdade é que não façam essa referên-
cia, mas mesmo se o termo uno for usado em vários sentidos,
os outros estarão relacionados ao sentido primário (e, analo-
gamente, no que tange aos contrários) - mesmo se o ser ou a
unidade não for um universal e o mesmo em todos os casos, ou
não for dissociavel dos particulares (como presumivelmente não
o é - a unidade é, em alguns casos, a da referência comum, em
outros a da sucessão). P9r esta mesma razão, não cabe ao geô-
metra inquirir o que é contrariedade, ou completitude, ou ser,
30
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133. O texto de Bekker parece induzir aqui a uma inversão entre sofística e dialética, pois a crítica
de ordem metodológica (relativa ao instrumento do conhecer) feita por Aristóteles é dirigi da
aos diaiéticos, enquanto a crítica de ordem ética (relativa à conduta dos sofistas como profes-
soresremunerados) é dirigida aos sofistas. O texto de Ross ratifica essa inversão.
134. Alusão aos pitagóricos.
135. Possível'alusão a Parmênides.
136. Alusão aos platônicos.
137. Alusão a EmpédocIes.
4. 108
A RISTÓTELES
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LIVRO IV
ou unidade, ou identidade, ou alteridade, mas proceder a partir
da suposição deles.
Patenteia-se então que diz respeito a uma ciência investigar
15 o ser como ser e os atributos que lhe são inerentes como ser,
estando esta mesma ciência encarregada de investigar, além
dos conceitos acima indicados, a prioridade e a posterioridade,
o gênero e a espécie, o todo e a parte e todos os demais concei-
tos semelhantes.
3. Precisamos decidir se cabe a uma mesma ciência ou a
20 ciências diferentes a investigação dos chamados axiomas das
matemáticas e da substância. É óbvio que a investigação desses
axiomas também cabe a uma única ciência, nomeadamente a
ciência do filósofo, já que se aplicam a todas as coisas existen-
tes, e não a uma classe particular separada e distinta das outras.
Além disso, todos os pensadores os empregam, na medida em
25 que são axiomas do ser como ser, e todo gênero possui ser,
embora os empreguem somente tanto quanto suas metas o
exigem, isto é, até o ponto em que o gênero, cujos atributos
estão demonstrando, se estende. Conseqüentemente, uma vez
que esses axiomas aplicam-se a todas as coisas como ser (visto
ser isto o que Ihes é comum), cabe àquele que investiga o ser
como ser, também investigá-Ias. Por esta razão, ninguém que
30 esteja efetuando uma investigação particular - nem um geôme-
tra nem um aritmético - empenha-se em estabelecer se essas
coisas são verdadeiras ou falsas. Contudo, alguns dos filósofos
da natureza o fizeram muito naturalmente, porquanto eles ex-
clusivamente propuseram-se a investigar a natureza como um
todo, e o ser. Mas como há um tipo mais consumado de pen-
sador do que o filósofo da natureza (já que a natureza é apenas
um gênero do ser), a especulação desses axiomas também
caberá ao pensador do universal que investiga a substância
1005b1 primána.v" A ciência da natureza'ê? é uma modalidade de sa-
ber, mas não a modalidade primordial. Quanto às tentativas de
138. Ou seja, o pensador metafísico.
139. ...<jlUCHKl1 ... (jüsikê), a física. Ver o tratado homônimo, que é precisamente o que de
imediato antecede este tratado. Aristóteles claramente hierarquiza de maneira axiológica
as ciências, colocando a filosofia primeira (o que chamamos de metafísica ou antologia)
no topo. Ver a nota 8.
METAFíSICA 109
LIVRO IV EDIPRO
alguns dos que discutem os critérios de aceitação da verdade,
falta-lhes educação em lógica, pois deveriam compreender
5 essas coisas antes de empreenderem sua tarefa, e não investiga-
rem enquanto ainda permanecem aprendendo. Assim, fica
claro que a função do filósofo, isto é, do estudioso do todo da
substância em sua natureza essencial, é também investigar os
princípios do raciocínio siloqístico.l'" E é conveniente para
quem, da melhor forma, entende cada tipo de assunto ser ca-
10 paz de estabelecer os mais certos princípios do mesmo, de sorte
que quem entende os modos do ser como ser capacite-se a
estabelecer os mais certos princípios de todas as coisas. Ora,
esta pessoa é o filósofo, e o princípio mais certo de todos é
aquele com relação ao qual não se pode estar equivocado; com
efeito, este princípio tem que ser tanto o mais conhecido (pois é
acerca do menos conhecido que os erros são sempre cometi-
15 dos) quanto não baseado em hipótese, uma vez que o princípio
a ser captado pelo estudioso de qualquer tipo de ser não é de
natureza hipotética, e aquilo que alguém necessita saber - se
chega realmente a sabê-Io - é um conhecimento do qual já
deve dispor ao empreender uma investigação particular.
Está claro, portanto, que é esse princípio o mais certo de to-
dos os princípios, e assim passamos a indicar qual é ele: É im-
possível para o mesmo atributo ao mesmo tempo pertencer e
20 não pertencer à mesma coisa e na mesma relação. E é necessá-
rio, em face de objeções lóqícas,"" que juntemos quaisquer, J
qualificações. E este o mais certo de todos os princípios, porque
apresenta a definição exigida; com efeito, é impossível para
qualquer pessoa supor que uma mesma coisa é e não é - como
25 alguns imaginam que Heráclito diz - pois o que um homem diz
não representa necessariamente aquilo em que acredita. E se é
impossível para atributos contrários pertencerem, simultanea-
mente, ao mesmo sujeito (a esta premissa devem também ser
acrescidas as usuais qualificações), e uma opinião que contra-
diga a uma outra é contrária a esta, é evidente que é impossível
para o mesmo indivíduo supor, ao mesmo tempo, que a mes-
30 ma coisa é e não é, posto que o indivíduo que cometesse este
140. Tema profunda e extensivamente abordado nos Analíticos Anteriores (terceiro tratado do
6rgaI101l). '
141. Leia-se objeções dialéticas.