1) O livro descreve a vida e influência de Tia Ciata e a comunidade negra na Pequena África no Rio de Janeiro no início do século XX.
2) Tia Ciata era uma importante líder da comunidade baiana no Rio de Janeiro e sua casa se tornou um ponto de encontro cultural e político para os negros cariocas.
3) O livro explora como a comunidade negra de Salvador influenciou a cultura do Rio de Janeiro através de figuras como Tia Ciata e como eles ajudaram a desenvolver estilos
2. TIA CIATA
e a Pequena África
no Rio de Janeiro
Heitor dos Prazeres. Batuque no samba. 1965. Óleo s/tela, 63x50 cm. In:
Cinqüenta anos de samba. Calendário Pirelli, 1968.
3. PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Cesar Maia
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA
Helena Severo
DEPARTAMENTO GERAL DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO
CULTURAL
Graça Salgado
DIVISÃO DE EDITORAÇÃO
Heloisa Frossard
CONSELHO EDITORIAL
Graça Salgado (presidente), Margareth da Silva Pereira,
Renato Cordeiro Gomes, Alexandre Mendes Nazareth,
Heloisa Frossard, Margarida de Souza Neves, Paulo Elian
dos Santos, Anna Maria Rodrigues, Lygia Marina Pires de
Moraes, Heloisa Buarque de Hollanda e Beatriz Resende.
4. TIA CIATA
e a Pequena África
no Rio de Janeiro
Roberto Moura
1995
2ª Edição
revista
pelo autor
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Cultura
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural
Divisão de Editoração
6. ORELHAS DO LIVRO
Roberto Moura focaliza um Rio de Janeiro subalterno,
eventualmente marginal, indefinido, a partir da virada do último
século, que teria particular expressividade no engendramento da
identidade moderna da cidade. Ao lado da história de Tia Ciata e
da diáspora baiana no Rio, um trabalho de contexto que inter-
relaciona e desvenda esta cidade, em contrapartida àquela que “se
civiliza” no Centro e na Zona Sul, redefinida pela reforma do prefeito
Pereira Passos. Abrindo a obra com um painel da situação política
nacional, quando da Abolição e do advento da República, o autor
traça o roteiro da vinda dos negros de Salvador para o Rio de
Janeiro, “uma história possível, uma história banal, sublime,
vergonhosa”. E mostra como a colônia baiana se impõe no mundo
carioca, em torno de seus líderes vindos dos postos do candomblé e
dos grupos festeiros, cuja influência se estenderia a toda a
comunidade heterogênea que se formou nos bairros, em torno do
cais do porto e depois na Cidade Nova, tocada pelas
transformações urbanas.
São revisitadas figuras lendárias como Hilário, o mais
fecundo fundador de ranchos e sujos do Carnaval carioca; a casa
de candomblé de João Alabá, com as tias Amélia, mãe de Donga,
Perciliana, mãe de João Baiana, e a mais famosa de todas, Tia
Ciata, cuja casa se tornará a capital na Pequena África, em torno
da Praça Onze.
Mais do que em qualquer cidade brasileira, a diversificação
da vida e o ritmo cosmopolita do Rio de Janeiro permitiriam que
certos hábitos musicais dos negros se encontrassem com a música
ocidental de feição popular. O maxixe e o seu sucessor, o samba,
acharam terreno propício na Cidade Nova: festeiros baianos,
músicos e compositores negros, em processo de profissionalização,
7. e empresários da caótica vida noturna da cidade criariam as
formas da canção popular carioca, antecedendo uma geração de
compositores que, junto com burgueses de Vila Isabel, depois de
1930, fariam a “época de ouro” da música popular brasileira.
Assim definida por uma densa experiência sócio-cultural,
quase sempre omitida pelos meios de informação da época,
sedimenta-se, já no fim da República Velha, uma verdadeira cultura
popular carioca, que se mostraria, ao lado dos novos hábitos
civilizatórios das elites, fundamental na redefinição do Rio de
Janeiro e na formação de sua personalidade moderna.
Fruto do encontro de uma
fluminense com um paraense no Rio
de Janeiro, Roberto Moura, pai de
Pedro e Alice, é tricolor.
Cineasta, dirigiu e produziu na
Corisco Filmes, desde os anos 70,
firmemente sediada na praça
Tiradentes, uma linha de
documentários que lançam olhar
poético-antropológico sobre a cidade,
abordando as repercussões da modernidade no povo negro e sua
expressão através da indústria cultural. Filmes e livros, como os
escritos e filmados sobre Tia Ciata e Cartola.
Nos anos 80, começou a experimentar a ficção numa série de
trabalhos que desembocaram num filme protagonizado por
Grande Othelo, uma biografia precoce de uma geração pós-
Cinema Novo. Esse longa foi sua tese em Cinema no doutorado da
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de S. Paulo,
depois de ter se graduado e feito o mestrado na Escola de
8. Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É, há
alguns anos, professor do Departamento de Cinema e Vídeo da
Universidade Federal Fluminense, e é com a equipe temperada por
profissionais e alunos que está realizando seus novos projetos:
uma pesquisa sobre a representação do Rio no cinema e um novo
filme que, novamente da Tiradentes, busca a cidade.
9. SUMÁRIO
NOTA DO AUTOR
APRESENTAÇÃO À 1ª EDIÇÃO
ABOLIÇÃO & REPÚBLICA: A SITUAÇÃO POLÍTICA NACIONAL
DE SALVADOR PARA O RIO DE JANEIRO
O RIO DE JANEIRO DOS BAIRROS POPULARES
VIDA DE SAMBISTA E TRABALHADOR
GEOGRAFIA MUSICAL DA CIDADE
A PEQUENA ÁFRICA E O REDUTO DE TIA CIATA
AS BAIANAS NA FESTA DA PENHA
A POLÊMICA DO PELO TELEFONE
AS TRANFORMAÇÕES NA COMUNIDADE NEGRA E A VIDA NO
RIO DE JANEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO
ÁLBUM DE FAMÍLIA
LEMBRANÇAS, IMPRESSÕES & FANTASIAS
BIBLIOGRAFIA
10. NOTA DO AUTOR
Uma oportunidade de reescrever algumas partes e
acrescentar coisas do que se conversou ou publicou nesses dez
anos que separam a primeira desta edição. E de trazer no capítulo
GEOGRAFIA MUSICAL DA CIDADE — ponto partida para o
trabalho que escrevo agora sobre o nascimento e a peculiaridade
da indústria cultural no Brasil, os pioneiros negros do espetáculo-
negócio na reinvenção do Rio de Janeiro, algumas idéias mui
abrangentes, latinoafromundistas, fruto dos papos e trocas de
textos com meu amigo Alejo Ulloa. Mas basicamente o mesmo
livro, um dos trabalhos que mais me deu alegria pela
multiplicidade de coisas que me trouxe e provocou.
E ele teve uma versão cinematográfica, se eu puder dizer
assim, pela maneira extremamente livre que lidei com o livro, já
que sabia que o autor não ia reclamar. O filme, um média
metragem 16mm OKÊ JUMBEBA — A PEQUENA ÁFRICA NO RIO
DE JANEIRO, um documentário elaborado com recursos
ficcionais, se organiza em pequenas cenas, suscitadas por charges
da época dramatizadas por atores, em torno da revolta popular de
1904. Um trabalho surpreendente para alguns a quem sou
apresentado pelo livro sem saber que pertenço ao Cinema, e
esperam uma ilustração audiovisual do que leram. Mas já em seu
prólogo as imagens vem sujas, desordenadas, preferindo à solução
institucional sugerir um filme primitivo de uma outra era. As
partes que ficcionam os acontecimentos na virada do século
11. procuram aquele cinema pré-giftiano que se fazia num surto
precoce no Rio da época — 200 filmes por ano, escuta essa, eram
filmados aqui antes de se organizar o sistema internacional de
distribuição que ainda nos ocupa! Os elementos conceituais do
samba e suas entidades em sua marcante & conflituada presença
na cidade do Rio de Janeiro, a possibilidade que o Cinema trás de
buscar um olhar da época a partir dos pintores e desenhistas
negros, sugerindo com suas imagens, procedimentos
cinematográficos.
Essa nova edição tem a parceria incisiva e carinhosa de
Heloisa Frossard, com quem discuti e trabalhei todas as fases
desses 2.000 livrinhos, cada um dedicado a alguém e todos a essa
cidade nesse final de milênio.
Roberto Moura
Dezembro de 1994
[pg. 09]
12. APRESENTAÇÃO À PRIMEIRA EDIÇÃO
Este livro é o desdobramento de um trabalho realizado
inicialmente em cinema sobre o Rio de Janeiro subalterno e
eventualmente marginal, redefinido a partir da virada do século
que teria uma particular expressividade para essa cidade no
engendramento de sua identidade moderna.
Em torno da Corisco Filmes, organizamos um pequeno
centro de informação primariamente voltado para a vida carioca,
que, tendo produzido filmes sobre o tema, agora termina esse
primeiro texto como resposta às próprias dificuldades de pesquisa
e resultado das discussões que mantivemos nesses anos de
trabalho. Assim, ao lado da história da Tia Ciata e de sua diáspora
baiana no Rio de Janeiro, tomou corpo a nostalgia por um
trabalho de contexto que interrelacionasse e desvendasse este Rio
de Janeiro, em contrapartida àquele que “se civiliza” no Centro e
na Zona Sul, redefinido pela reforma do prefeito Passos. Tal
postura alongou o texto e acabou por lhe dar essa feição final,
onde à preocupação didática e informativa se junta o intuito
ensaístico e especulativo.
Além de todos que participaram dos filmes que começamos a
rodar nos anos 70, cada um à sua maneira parceiro nessa
proposta, nesse trajeto, fui apoiado no trabalho de pesquisa deste
livro por Ângela Nenzy, com quem tanto discuti as questões sobre
as religiões negras no Rio; Elisabeth Formaggini, que muito
contribuiu para o levantamento da situação do mercado de
13. trabalho e particularmente da presença da mulher, além de liderar
a pesquisa iconográfica, e Cida Dacosta, que, inicialmente
trabalhando na parte administrativa, bandeou-se para a pesquisa
por seu interesse responsável pela situação do negro na cidade.
Formou-se então uma equipe criativa e profissional onde quase
sempre trabalho foi prazer. Ainda na Corisco, Roberto Machado
Jr., Antonio Luis Mendes Soares e Henrique Sodré se ocuparam
das fotos e reproduções; e Paulo “Baiano” Fortes, das gravações
das entrevistas, sempre feitas com qualidade esperando o cinema.
Pedro Wilson Leitão leu e criticou o texto entre viagens. Amigos,
irmãos. Do Departamento de Editoração da Funarte, Suzana
Martins revisou o texto com técnica e realismo, enquanto Martha
Costa Ribeiro fez a diagramação das fotos com sua sensibilidade
esclarecida.
Sinto que fazemos parte de um movimento maior, não
codificado ou institucionalizado, mas que parte de sensibilidades
fundamentais comuns e de um projeto de mudança que
transcendem a origens sociais e culturais, ou gerações, que
repudia as desigualdades como valoriza as diferenças, que se volta
para o passado para dimensionar o presente. A nós, o futuro.
Roberto Moura
[pg. 11]
15. ABOLIÇÃO E REPÚBLICA:
A SITUAÇÃO POLÍTICA NACIONAL
Jamais se aninhou em mim qualquer preconceito de raça. Cresci, e me
fiz homem, amando os meus semelhantes, tratando com especial
deferência e carinho os pretos, os mulatos, os mais humildes. Pensava,
assim, resgatar a injustiça da escravidão a que foram submetidos.
Como já disse antes, minha família foi entusiasta da Abolição. E quanto
ao aspecto concreto e pessoal da questão: poderá parecer que minha
resposta a este item contradiz a dada ao anterior. Mas não há tal: fui
sincero, como serei ao responder o último. Falo a um sociólogo, a um fino
psicólogo e estou certo, ele me compreenderá. Não veria com agrado,
confesso, o casamento de um filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa
de cor. Há em mim forças ancestrais que justificam essa atitude. São
elas, percebo, mais instintivas do que racionais, como, em geral, soem
ser aquelas forças, sedimentadas, há séculos, no subconsciente de
sucessivas gerações.
Depoimento de Luiz de Toledo Piza Sobrinho, nascido em 1888,
respondendo a enquête realizada por Gilberto Freyre para o livro
Ordem e Progresso.
Com a Independência e a formação do Império, configura-se
uma nação brasileira nos moldes definidos pela moderna política
internacional. O país se transforma. Mas nem tanto: da própria
casa real portuguesa herdamos soberanos, e poucas foram as
transformações operadas no regime produtivo e nas relações
sociais. Do autoritarismo de Pedro I à personalidade política
ambígua de Pedro II, só chegamos à Abolição através da,
finalmente insustentável, pressão internacional — isso dito sem
minimizar a importância da campanha abolicionista, mas apenas
aferindo seu peso. O sistema político-administrativo do Império
parecia não acompanhar as necessidades de mudança exigidas
16. pelos sistema econômico internacional, justificadas tanto pela
argumentação ideológica da burguesia européia e dos
revolucionários ianques, como pelas exigências operacionais do
capitalismo. Assim, o golpe republicano na madrugada de
novembro de 1889 pega surpreendida a cidade, sua gente alheia à
trama política definida pelo encontro de liberais burgueses,
organizados num movimento republicano sem força popular, com
uma facção do conflituado Exército nacional particularmente
incompatibilizada com o governo monárquico, encontro que dá à
materialidade impalpável das idéias o peso das armas. O apoio
internacional, no pronto reconhecimento da República brasileira
pelos países centrais e posteriormente pelos bancos ingleses,
completaria a manobra que marca fundas alterações na vida
nacional: o início de nossa modernidade.
A confirmação pelo novo regime do disposto pela Lei de
Terras de 1850 — que legalizara o monopólio [pg. 15] por uma
minoria sobre as terras disponíveis, restringindo o acesso à
propriedade primária, mesmo contra opiniões isoladas de alguns
abolicionistas e republicanos considerados radicais que, desde
antes, propunham uma reforma agrária contemplando
principalmente aqueles que tinham sido escravizados — garantia
na prática a reprodução do padrão de poder e de apropriação
diferencial da riqueza. Antigos segmentos populares vindos ainda
da Colônia, muitos interioranos, e migrantes recém-chegados são
confrontados com a implantação de um processo de proletarização
nas cidades, que se absorve só alguns enquanto muitos seriam
condenados à marginalidade, aproxima esses homens diversos em
um formidável encontro. Crescem e se sofisticam classes médias
urbanas, favorecidas pelo reaparelhamento estatal e pelo
progresso industrial, para quem prioritariamente seria montada
17. uma indústria do entretenimento, que daria voz, entretanto, ao
negro, omitido num país que se queria ocidental. No topo,
redefinem-se posições no bloco de poder entre as elites nacionais,
fortemente mimetizadas com a burguesia européia.
O progressivo deslocamento do poder decisivo das
oligarquias para setores mais modernos ligados ao café, à
indústria nascente e ao comércio internacional, tem como
contrapartida uma abertura, pelo menos formal, do espaço
político, ocasionando um recrudescimento das oposições lideradas
por setores das elites alijados episodicamente do poder, mas
também por alguns setores das classes médias e do nascente
operariado, oposições essas, de baixo para cima, que seriam
imediatamente compreendidas pelo sistema como uma ameaça à
situação instituída, como uma transgressão às regras tácitas do
jogo. A reação a essas manifestações iria do autoritarismo
hierárquico introjetado pela experiência histórica com o mando
irrefreado, ao ritualismo eleitoral, que tem seu auge na própria
República Velha, a política institucional manipulada pelos
demagogos conservadores e oportunistas, o controle estatal
sufocando o nascente sindicalismo e as demais tentativas de
organização fora da órbita oficial.
Em nossa versão tropical da democracia burguesa, a minoria
que se constituía na classe possuidora nacional teria no Estado
sua principal área de manobra. Com uma precária legitimação
eleitoral, os governos republicanos definem as metas sociais, “já
que a própria nação não seria capaz de fixá-las em prol do
progresso nacional”, a privatização do poder justificada com o
“mal necessário” em virtude da permanente subestimação da
maioria. O povo vil, a plebe, a malta, a ralé, o povão de negros
libertos, para quem não seria destinado nem o acesso à terra nem
18. os investimentos em educação ou treinamento técnico reclamados
anteriormente. Homens que passam a conviver nos cantos das
grandes cidades brasileiras, nas suas ruas, nos seus bairros
populares e favelas, com italianos, portugueses, espanhóis,
franceses e francesas, poloneses e polacas, tocados de uma
Europa superpovoada e em crise.
Como pertencendo a um outro Brasil, são mantidos fora do
mercado de trabalho e da vida política nacional negros, caboclos e
brancos pobres, se mestiçando, alheios às grandes cenas da “vida
nacional” e ausentes de sua história oficial. Apesar da ruptura
determinada pela Abolição, com a modernização de aspectos do
sistema produtivo, o país não oferecia a esses homens,
principalmente aos “libertados”, alternativas para a reordenação
de suas vidas a partir de uma nova posição na sociedade nacional,
a não [pg. 16] ser as construídas por eles mesmos. Assim, por
algumas vezes esses homens se uniriam rebelados nas cidades e
no interior, como em Canudos, onde, por algum tempo, o engenho
militar popular e o conhecimento da terra derrotam divisões do
Exército, ou no cangaço, quando arte e desespero terminam
esmagados pela inexorável rotina da repressão.
Com a Abolição se rompem muitas das formas anteriores de
convivência entre brancos e negros e mesmo entre negros e
negros. Anteriormente, seja através de eufemismos religiosos que
ganhariam tradição e complexidade na vida brasileira, seja nas
festas populares retraduzindo as franquias governamentais para o
melhor controle da massa cativa, o negro havia conseguido manter
aspectos centrais de suas culturas, fundando tradições que se
incorporam de modo próprio na aventura brasileira. Entretanto,
tanto as grandes concentrações propiciadas pelas plantações,
como seus pontos de encontro nas cidades, se dispersam neste
19. momento de transição, vivendo o negro no Brasil novamente a
situação de ruptura de seu mundo associativo e simbólico frente
às estruturas sociais em mutação.
A intensa imigração de operários europeus que ocorre no
período não vinha atender às necessidades internas de mão-de-
obra, já que esta era abundante, se justificando não só pelas
vantagens técnicas que os estrangeiros já proletarizados
ofereceriam às nossas primeiras indústrias, mas principalmente
pelas ideologias raciais que suportavam os grandes investimentos
do Estado, idealizando o imigrante como agente culturalmente
civilizador e racialmente regenerador de um Brasil idealizado por
suas “modernas” classes superiores. Assim, as extensas massas
de trabalhadores nacionais que chegam às cidades — centros
antiescravagistas do período anterior, logo, símbolos e promessas
de liberdade — passam a transitar sem condições de penetrar em
seu mercado de trabalho regular e sustentar suas regras, sejam
eles negros ou nordestinos expulsos pela seca, funcionando como
um exército proletário de reserva entregue aos serviços mais
brutos e sem garantias, exercendo efeitos depressivos sobre as
condições de remuneração.
Além disso, o mercado capitalista, colocando os homens uns
diante dos outros em termos unicamente do valor de seus bens e
de sua força de trabalho, e assim posicionando-os socialmente,
impõe uma nova lógica que de imediato não é absorvida nem
utilizada em suas possibilidades pelos trabalhadores nacionais,
vindos de outras tradições civilizatórias, de outras experiências. A
teimosia de alguns em se ater ao mínimo para a subsistência. A
ausência de uma ética da venda do trabalho e de uma motivação
para a acumulação. Muitos não compreenderiam inicialmente a
natureza essencial do trabalho “livre”, da mercantilização do
20. trabalho, que separa este da pessoa do trabalhador; ou então
visceralmente se opunham a essas concepções, o que atrasa entre
nós o surgimento de uma consciência profissional em sua
expressão ocidental moderna. O uso da competição e do conflito
em relações contratuais se chocava com as tradições de lealdade
do trabalhador nacional, situação que seria vivida de forma
simetricamente oposta pelos antigos senhores, agora tornados
patrões, que esperavam vinculações e obrigações de seus
subordinados que de muito ultrapassavam as novas relações
profissionais estabelecidas.
Despossuídos de bens e de conhecimentos valorizados nesse
mercado, eles se ajuntam na cena das [pg. 17] cidades, em bairros
que, com a ampliação da cidade, progressivamente vão se
afastando dos setores aristocráticos; ou então em suas cozinhas e
oficinas. Uma vida subalterna que vai da brutalização à extrema
vitalidade. Uma história mal contada ou omitida, que só aparece
no pragmatismo estatístico dos serviços sanitários ou da
repressão, nos desconcertantes estereótipos da nacionalidade
surgidos na arte popular filtrada pela indústria de diversões.
Pontos de luz e de escuridão que irregularmente se completam.
Uma história que começa na Bahia para se transferir para o Rio
de Janeiro. Uma história possível mas despercebida. Uma história
banal, sublime, vergonhosa. [pg. 18]
21. DE SALVADOR PARA O RIO DE JANEIRO
A extinção do elemento servil pelo influxo do sentimento nacional e das
liberalidades dos particulares, em honra do Brasil, adiantou-se
pacificamente de tal modo que é hoje aspiração aclamada por todas as
classes, com admiráveis exemplos de abnegação por parte dos
proprietários. Quando o próprio interesse privado vem espontaneamente
colaborar para que o Brasil se desfaça da infeliz herança, que as
necessidades da lavoura haviam mantido, confio que não hesitareis em
apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura, em
antagonismo com o espírito cristão e liberal das nossas instituições.
Princesa Isabel, Fala do trono: 13 de maio de 1888.
Salvador, antiga capital, é no início do século XIX uma
surpreendente cidade do mundo colonial português. Porto
exportador reunindo gente de diversos interesses onde renascia
uma forte aristocracia local, porto negreiro abastecendo a região
das Minas Gerais, Salvador seria a cidade colonial em que o negro
tinha maior presença, onde a chegada de iorubas e islâmicos daria
novas cores e significados às fortes tradições festeiras dos bantos.
Lá se deflagram as grandes revoltas urbanas, conflitos que legam
à sociedade brasileira da Primeira República o temor de levantes
negros nas capitais, expresso pelas instituições policiais por uma
duradoura vigilância e intolerância.
Em 1584 o padre Anchieta faz uma estimativa: existiam já
três mil negros na Bahia. Na verdade, o tráfico se inicia logo que
se define uma intenção prática de exploração da terra descoberta
à mercê do governo português, e o primeiro negreiro aporta na
terra brasileira antes mesmo que se estabeleça o governo geral. Os
22. negros que chegam ao porto de Salvador são “da Guiné”, o que
significa apenas que eram mandingas, berbecins, felupos, achatis,
berberes e de outras etnias, povos mais ou menos conhecidos aqui
genericamente como bantos.
O mercado negreiro de Salvador continuaria com os mesmos
endereços, que definiam a presença esmagadora de bantos por
séculos. Entretanto, a conquista pelo Daomé do porto de Ajudá em
1725, favorecida por uma série de circunstâncias, faz com que o
rumo dos navios que abasteciam a capital baiana se mude para a
Costa da Mina. As epidemias de bexiga que se sucediam nos
portos sujos e ensangüentados dos negreiros, e o excepcional
valor de que desfrutava o fumo baiano no mercado da Mina, fazem
conveniente a mudança do negócio, e logo os traficantes
portugueses passam a apregoar a qualidade superior do novo
produto: o negro sudanês. A pior parte da safra do fumo baiano,
enviado para o negócio com os vendedores de homens africanos,
concorria no mercado africano com outro refugo, a famigerada [pg.
19] aguardente Roma, oferecida pelos comerciantes ingleses,
levando vantagem os negreiros portugueses de Salvador, pais da
aristocracia da cidade.
As relações entre Bahia e Daomé seriam intensas. O
comércio de escravos era por vezes mediado por negros nascidos
no Brasil, como o mulato Félix de Sousa, o Chachá, título
concedido pelo rei de Daomé. Homens fabulosamente ricos e
poderosos controlavam o negócio do fumo, utilizando negros
aprisionados na África subquatoriana em guerras fomentadas
para satisfazer o apetite do mercado escravagista. Embaixadas
daomeanas visitam Salvador por várias vezes, a partir do final do
século XVIII, para acertar os negócios e garantir as prioridades de
que gozavam com os interesses locais, tentando conseguir o
23. monopólio do fornecimento, acordo que nunca vem a se dar. Dos
negros que chegam, parte considerável é negociada para o
trabalho das minas, mas os muitos que ficam na cidade começam
a transformar a população escrava, embora sempre se mantenha
a forte presença banto, através dos seus descendentes nascidos
no cativeiro, antes mesmo da chegada de novos africanos do
tráfico com Angola, que nunca vem a se interromper, apenas
perdendo a expressão anterior. Os iorubas ou nagôs ganham
prestígio do meio negro, assim como os islamizados vindos do
outro lado, com a chegada recente e maciça dos prisioneiros da
guerra, vindo entre eles negros cultos, conscientes do valor de
suas culturas expressas por elaboradas filosofias e práticas
religiosas.
Se o negro escravizado em Salvador não perde seus hábitos
coletivistas, teimosamente mantidos, seus vínculos de linhagem e
família, que no caso dos iorubas eram pontos de referência
religiosa essenciais, são inevitavelmente destruídos. Mortos na
viagem ou precocemente no cativeiro, já que era mais barato
comprar africanos adultos do que criar seus filhos, separados
entre diversos compradores, nos primeiros tempos da Colônia são
poucos os exemplos dos núcleos de africanos que se mantêm na
nova terra. Aqui se torna necessário, uma vez que a cultura
trazida é desprendida das formas sociais africanas, que sejam
recriados os meios de convívio e organização da religião e fora da
órbita de controle dos escravagistas, onde é proibida.
A própria sobrevivência do indivíduo escravizado dependia
de sua repersonalização, da aceitação relativa das novas regras do
jogo, mesmo para que pudesse agir no sentido de modificá-las, ou
pelo menos de criar alternativas para si e para os seus, dentro das
possibilidades existentes na vida do escravo. São inimagináveis os
24. choques, a perda da liberdade, a viagem no negreiro, a exposição a
uma nova sociedade onde seria escravizado, que se somam para o
indivíduo. Aqui, cada negro viveria imerso em duas comunidades
distintas, grande parte do tempo em contato com a sociedade
branca que o força a adaptar-se a sua nova condição e funções, o
que implica uma série de aprendizados sobre a nova cultura.
Homens ajuntados, vindos de diversas procedências, irmanados
pela cor da pele e pela situação comum, que redefinem suas
tradições como escravos nessa sociedade paralela do mundo
ocidental-cristão.
Acostumada com o caráter festeiro do banto, que abria suas
celebrações na rua baiana se apropriando do calendário católico,
criando novas tradições na antiga capital, a mudança do tráfico
para a Costa da Mina povoa Salvador com negros sudaneses,
vindos de culturas extremamente elaboradas e com forte [pg. 20]
sentimento “nacional” (aqui falamos das “nações” africanas),
prontos a se organizar separados, diversos, e da resistência
cultural partir para a revolta armada.
Preta Baiana. Ilustração de Marques Preta Mina. In Luiz Edmundo,
Júnior. In Luiz Edmundo, O Rio de op. cit., v.l, p. 101.
Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro,
Conquista, 1957. 5v., v.l., p.99.
25. Relata Nina Rodrigues o que provavelmente o babalaô
Martiniano Eliseu do Bonfim lhe contou: “Em 1802, o Dam-Foité
Othman, constituindo-se, com os fiéis, em dijemãa, ou associação
religiosa e militar, (...) inspirou-se no mesmo fanatismo religioso
que lançou os árabes vitoriosos sobre a África e sobre a Europa”
(Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil). Na África, as jihád,
guerras santas islâmicas que se iniciam no século XIX,
forneceriam escravos para Salvador, exportando também o espírito
guerreiro e independente dos contendores. Com as lutas
religiosas, negros islâmicos haussas (auçás) e malês, que já eram
enviados anteriormente pelos azares do tráfico, vêm agora em
maior número juntamente com seus adversários na África,
iorubas e jejes. O islamismo, como ideologia religiosa e guerreira,
passa a ter grande influência entre os escravos em Salvador,
operando um movimento cultural de grande importância que se
fortalece na marginalidade com a organização de cultos religiosos
e sociedades secretas. No Islã fica explícito que a função do Estado
é servir à lei divina, implicando a conversão num projeto político
de tomada do governo (uma teocracia almejada, como diz Manuela
Carneiro da Cunha em Negros, estrangeiros) que seria liderado por
um líder religioso letrado, como foi Licutan na revolta malê
baiana.
Continua Nina:
repelidos pelos fulás, os negros haussas caíram sobre o grande e
poderoso reino central de Ioruba e [pg. 21] destruíram-lhe a capital
Oyó. No reinado de Arogangan, Ioruba perdeu, em 1807, a província
Ilorim, cujo governador Afunjá, sobrinho do rei, se serviu dos haussas
para declarar-se independente. Os maometanos em 1825 queimaram
vivo a Afunjá e desde então elegeu-se ali um rei ou governo
muçulmano. Ilorim tornou-se por este modo um centro de propaganda
do islamismo nos povos iorubanos ou nagôs (Nina Rodrigues, op. cit.).
26. Inicia-se, assim, com a guerra civil que divide o império ioruba de
Oyó no início do século XIX, irradiando o islamismo de Ilorin onde
se reuniram iorubas islamizados com haussas, um processo de
transnacionalização, que teria seqüência imediatamente depois no
Brasil, um movimento multiétnico que toma o Islã como
linguagem. Um projeto político embutido num projeto religioso,
reunindo sob a bandeira do islamismo diversos grupos étnicos.
Esse processo de transnacionalização se amplia no Brasil entre os
próprios adversários na África, através dos prisioneiros de ambos
os lados que se reencontram aqui, em condições comuns como
escravos em um novo mundo. A revolta de 1809 reúne pela
primeira vez haussas e nagôs, o processo se expandindo a ponto
do movimento de 1835 unir oito nações em Salvador contra o
poder colonial.
A antropologia brasileira clássica privilegiou o estudo dos
negros sudaneses que se concentram em Salvador, enquanto na
maioria das outras províncias seguia-se o tráfico com a costa de
Angola. O livro de Luís Viana Filho, O negro na Bahia,
significativamente prefaciado pela mestria de Gilberto Freyre,
mesmo trazendo como novidade uma reavaliação da presença
numérica de negros bantos na Bahia, mantém a tese de sua
inferioridade frente aos nagôs (iorubas), e da diluição de suas
marcas civilizatórias numa cultura popular urbana liderada pela
Igreja e vulgarizada para o consumo das grandes camadas
escravizadas da população. Tal fato teria determinado na época a
não participação dos bantos nos movimentos insurrecionais
baianos.
As religiões banto partiam do culto dos ancestrais, dos
grandes personagens da comunidade que retornavam
incorporados nos seus cavalos, atualizando suas características
27. frente às novas situações enfrentadas por seu povo. Apesar da
dita “pobreza da mítica banto, em relação aos sudaneses, fato
reconhecido por todos os etnógrafos, o que resultou na sua quase
total absorção no Brasil, pelo feitichismo jeje-nagô” (Artur Ramos,
O negro brasileiro), essas conclusões parecem esconder tanto o
pouco conhecimento real da cultura dos povos subequatorianos,
como uma não compreensão do sentido dinâmico fundamental de
seu complexo civilizatório, menos comprometido com a
manutenção de formas tradicionais fixas, sensível às conjunturas
históricas vividas e aos encontros culturais. Edison Carneiro, um
negro doutor mais versado nos bantos, dizia que na Bahia, já na
primeira metade do século XIX, talvez só houvesse um candomblé
estritamente afro-banto, o do pai Manuel Bernardino no Bate-
Folha, o que pode ser compreendido tanto como prova da
fragilidade de suas formas culturais superadas pelos cultos nas
nações iorubas, como numa reavaliação, percebida sua extrema
vitalidade assimiladora, que no inconsciente coletivo do negro
brasileiro faria aflorar uma multidão de entidades novas, índios,
caboclos, [pg. 22] santos católicos, representações de seu novo
mundo social que, através das novas religiões afro-brasileiras,
seriam integradas numa cosmogonia comum onde ganham
Inteligibilidade, preservadas suas características e posições.
Se o banto escravizado marca sua presença em Salvador
pela transformação que opera nas características das festas do
calendário católico hegemônico na cidade, o negro sudanês se
voltaria para a atividade de flagrante resistência, se distinguindo
explicitamente não só dos brancos, como inicialmente dos negros
das outras nações a quem é apresentado pelo proselitismo político
dos islâmicos. A política do conde dos Arcos, permitindo a
retomada dos encontros de nações, para que surgissem
28. rivalidades dentro da massa escrava, já que a experiência comum
do cativeiro aproximara indivíduos atomizados vindos de diversas
etnias, se revela eficiente para que muitas rebeliões fossem
denunciadas por escravos rivais, mas não impediria a
aproximação de haussas e iorubas. Os textos existentes repetem
as informações tentando uma tipologização do escravo a partir da
oposição básica de bantos e sudaneses, pouco esclarecendo sobre
as alianças entre iorubas e malês, os antigos adversários nas
cruzadas islâmicas, invocando coincidências culturais superiores,
e portanto seu impulso comum para o enfrentamento da
sociedade escravagista, onde brancos e mulatos não eram
diferenciados como inimigos.
O que é certo é a denúncia por parte de um indivíduo cujo
nome o governador não declina, apesar de afirmar ser “de
probidade e empregado nesta cidade”, de um extremamente
articulado levante haussa em 1807 em bairros de Salvador e suas
redondezas, que é duramente reprimido pelo poder colonial com
execuções e açoites. Registra ainda o conde da Ponte a apreensão
de armas, além “de certas composições supersticiosas e de seu
uso a que chamam mandingas, com que se supõem invulneráveis
e ao abrigo de qualquer dor ou defesa”. Uma sociedade secreta
negra, Obgoni, estaria por trás de nova rebelião que explode dois
anos depois, quando os haussas, dessa vez já apoiados pelos
nagôs, agridem as propriedades em volta da capital, terminando
por ser esmagados pela tropa. Apesar dos redobrados cuidados
dos capitães-de-mato, feitores e policiais, as revoltas se sucedem
durante as primeiras décadas até a grande insurreição de janeiro
de 1835, quando mesmo novamente denunciados por uma negra
forra, forçando o abortamento da luta, os negros chegam a tentar
dominar o quartel dos permanentes da Mouraria, mantendo pela
29. Barraquinha, na Baixa do Sapateiro, e finalmente em Águas de
Meninos, a luta com a tropa organizada, sendo finalmente
derrotados depois de batalha cruenta.
Se a liderança guerreira era dos haussas islâmicos, a vida
religiosa da cidade é redefinida com a chegada da grande religião
dos iorubas, seus orixás conquistando os terreiros que batiam
tarde da noite, disfarçados como meras reuniões festivas. Mesmo
nas casas dos bantos, os orixás iorubas passam a descer juntos
com suas entidades, expressão das identidades e compatibilidades
entre a mística dos diversos africanos. O proselitismo, e, por outro
lado, a intolerância dos haussas com a vida religiosa das outras
nações, acirrando rivalidades, e a perseguição e violência que lhes
sobrevém a partir de suas constantes revoltas, faz que suas casas
de culto caiam na marginalidade, e que muitos dos iniciados
tenham que se [pg. 23] isolar ou mesmo desaparecer da cidade,
alguns de volta para a África, outros também subindo de navio
para a capital do Império.
Grupo de antigos carregadores africanos. In: Artur Ramos, O negro brasileiro. 3.ed.
São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1951, p.16 (Brasiliana, 188).
30. Por volta do fim do primeiro quarto de século chegam a
Salvador quatro africanos livres do golfo de Benin que fundariam o
candomblé do Iyá Omi Axé Airá Ontile, situado perto da igreja da
Boa Morte, no bairro da Barraquinha, em cuja irmandade depois
ingressariam. Iyá Nassô, filha de uma escrava baiana que voltara
para a África, Iyá Detá, e Iyá Kalá, juntas com um Wassa,
sacerdote com alto título religioso, vêm de forma deliberada fundar
uma casa de orixá, trazendo seu axé e seus fundamentos para os
negros de origem na Bahia. Iyá Nassô, ao contrário do que
geralmente acontecia na África, onde os homens lideravam os
terreiros, se torna Yalorixá e dá nome à casa, Ilê Iyá Nassô (casa
da mãe Nassô), que ganha força e respeito entre os iorubas. Esse
terreiro, que muda muita vezes de sítio, até se instalar
definitivamente no bairro do Engenho Velho, é sem dúvida a
instituição negra mais duradoura na história brasileira, central na
vida religiosa de Salvador. [pg. 24]
Marcelina seria a substituta de Iyá Nassô depois de sua
morte já depois da metade do século, mas sua sucessão
provocaria uma cisão que redunda na fundação de outro
candomblé no Rio Vermelho que também se celebrizaria, o Iyá
Omi Axé Iyá Massê, que fica conhecido com o nome do antigo
proprietário do terreno, Gantois. É ainda do velho Ilê Iyá Nassô,
outra vez dividido na sucessão de Mãe Ursulina, que Aninha, filha
do afamado Bambochê, lidera outros dissidentes para uma nova
casa: o Axé de Opô Afonjá. Três candomblés tradicionais na vida
baiana, e centrais em sua história moderna, na “história
subalterna” do Brasil. Outros candomblés ioruba surgiriam em
Salvador, como o Alaketu, fundado no Matatu Grande, local hoje
chamado Luís Anselmo, por duas princesas, que a história conta
terem sido alforriadas pelo próprio Oxumaré, o Ilê Ogunjá,
31. também no Matatu, e outros já com fortes raízes de Angola,
chamados de Caboclo, caracterizadas também pela forte presença
da mística dos índios do interior baiano, em um encontro de
similitudes religioso-filosóficas e cumplicidades sociais.
O candomblé trazido por
Iyá Nassô e para o Brasil é, de
uma forma, um culto novo,
pois compensa as lacunas na
cosmogonia nagô ocasionadas
pela escravatura com uma
nova organização ritual,
incorporando num só terreiro
os cultos das principais
cidades iorubas, diversamente
do que ocorria na África, onde
eles se davam em templos
separados. O terreiro toma a
forma simbólica do próprio
continente africano, os orixás
das cidades com seus Negra baiana. 1909. Postal da coleção
Antonio Marcelino. Funarte, Núcleo de
assentamentos no barracão, Fotografia, 1982.
enquanto as entidades do céu aberto são cultuadas em sua mata.
O próprio termo candomblé, só aqui teria o significado de culto, ou
casa [pg. 25] religiosa, e a forma acabada do Ilê Iyá Nassô, do
Gantois, do Ilê Axé Apô Afonjá e dos outros terreiros tradicionais,
se manteria como estrutura central das organizações religiosas
negras no Brasil.
A extinção do tráfico negreiro inglês em 1807 ocasiona
mudanças fundamentais no tráfico de escravos para o Brasil.
Movidos por razões morais e humanistas firmemente alicerçadas
32. por forte pragmatismo econômico, que confia nas vantagens que
traria a modernização do sistema de trabalho liberando grandes
parcelas de capital imobilizadas na compra de escravos, os
ingleses passariam a não permitir a concorrência dos países
escravagistas, já que os primeiros momentos de implantação do
sistema do trabalho livre poderiam dar vantagens aos que se
valessem dos negros cativos. Sua diplomacia, amparada pelo forte
poderio naval, passa a impor uma série de medidas restritivas,
que se iniciam com o tratado de 1810 assinado pelo temeroso
governo português. Este comprometia Portugal a não negociar fora
dos domínios portugueses na África e vedava os negócios com
Bissau e Molembo, que caem definitivamente na influência
francesa, e com Ajudá na Costa da Mina. Cinco anos depois, esse
tratado seria complementado com o compromisso formal de
Portugal de cessar o tráfico com toda a costa africana ao norte do
Equador, impedindo, pelo menos no plano formal, o comércio
baiano com seus tradicionais parceiros. A partir daí, todos os
escravos que entram oficialmente no porto de Salvador seriam de
procedência angolana, o que é uma verdade apenas parcial, se
caracterizando os anos que separam este último tratado da Lei
Euzébio de Queirós de 1850, proferida pelas câmaras brasileiras,
que marca o fim efetivo do comércio escravo no país, por uma luta
surda entre contrabandistas e os vigilantes brigues ingleses.
O Brasil na época da Independência era ainda bem pouco
urbanizado. Os interesses colonialistas fizeram com que o país
ficasse inteiramente voltado para fora: as grandes cidades-portos,
como Salvador, locais de embarque do produzido pela
monocultura ou pelas minas, eram os centros de administração e
controle, locais de desembarque do necessário para manutenção
do sistema produtivo subordinado, instrumentos, aparelhos,
33. manufaturas, algum alimento, e, principalmente, escravos. O
negro era fundamental no nosso mundo colonial, e a Abolição só
seria assinada quando as pressões internacionais e internas
tornam o regime insustentável. Assim,
num sistema dominado pelo trabalho servil é fatal que inúmeras
atividades sejam entregues aos escravos. A eles cabe todo o trabalho
considerado vil pela população branca de origem européia, que mesmo
pobre, não quer se rebaixar executando certos serviços manuais. Além
disso, todo imigrante pretende encontrar além-mar um estado superior
ao que possuía na Europa. Os relatos dos viajantes estrangeiros
mostram os escravos atrelados aos trabalhos mais diversos desde o
começo do século XVII. E a mão-de-obra livre era rara. O trabalho
escravo é indispensável e a figura do senhor que aluga seus escravos
encontra-se em todas as cidades brasileiras (Kátia M. de Queirós
Mattoso, Ser escravo no Brasil).
Não só até a metade do século o comércio escravo é mantido,
seja legalmente com a costa de Angola, como ilegalmente com a
venda dos vindos da Costa da Mina, mais valorizados, como se
mantém internamente depois de impedido o tráfico, tornando-se a
maior fonte de renda da província da Bahia. [pg. 26]
Finalmente, as contínuas
revoltas negras em Salvador e
a rudeza da fiscalização
inglesa, forçam finalmente o
governo imperial a aceitar o
fim do tráfico, continuando o
comércio escravagista a atuar
internamente, também de
Baiana quituteira. Foto Roberto Moura,
1976. forma bastante lucrativa,
vendendo escravos do Nordeste para as plantações de café do Sul.
Apesar da denúncia moral da escravatura pelo movimento
34. abolicionista, o negócio negreiro não era na época socialmente
infamante nem dava dores de consciência aos donos da Cidade
frente à Igreja ou ao governo colonial, que, acumpliciados, só
cederiam em suas rendosas transações, quando não restavam
mais meios práticos de mantê-las. Henri Cordier registra em seu
livro Mélanges américains um relato do barão Forth Rouen sobre
sua passagem em Salvador:
Numa igreja da cidade tive a oportunidade de ver, entre um grande
número de ex-votos, um quadro bem recente representando um navio
negreiro sob pavilhão brasileiro, sendo perseguido por dois barcos, um
francês e outro inglês. No céu, aparecia a figura de Cristo que, com
sua mão poderosa protegia o navio brasileiro, permitindo-lhe escapar
do perigo e entrar calmamente na enseada.
De qualquer forma, depois de anos de tráfico contínuo com a
África, a Bahia liquidava sua população escrava. Dos quinhentos
mil que teria pelo início do século XIX, em 1874 não restaram
mais, de acordo com as estatísticas, que 173.639 escravos. A
decadência do açúcar brasileiro frente à concorrência no mercado
internacional e a progressiva importância econômica que assumia
o café que se expande em municípios do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e São Paulo, faz com que grandes levas de negros sejam
vendidas a preços crescentes para o Sul. As plantações cafeeiras
haviam sido supridas no primeiro momento, no segundo quarto do
século XIX, pelo excedente de escravos acumulado na região
mineira. O esgotamento desta fonte, agravado pelo término do
tráfico africano, diminui a oferta, subindo astronomicamente a
procura e os preços “por peça”, já que inicialmente os fazendeiros
não consideravam a possibilidade de mobilizar trabalhadores
livres como uma alternativa.
Assim, o Rio de Janeiro, com sua cultura de café localizada
35. principalmente no vale do Paraíba, seria um importante
comprador, seguido por São Paulo, que se expandia e que no
momento seguinte optaria por uma solução mais “moderna”
atraindo o imigrante europeu, embora ainda oferecendo condições
[pg. 27] econômicas e sociais praticamente insustentáveis para o
trabalhador rural na grande empresa cafeeira. A província do Rio
de Janeiro, de 119.141 escravos em 1844, no início da década de
1870 passa a contar com mais de trezentos mil, dos quais grande
parte havia chegado da África através dos portos do Nordeste,
muitos vindos de Salvador, podendo se imaginar que também
sudaneses da Costa da Mina e do golfo de Benin foram vendidos
para essas bandas.
Os negros vendidos em Minas Gerais enfrentavam enormes
caminhadas, acompanhados pelos feitores montados na direção
de suas novas senzalas no vale do Paraíba. As estradas de ferro
que vão se instalando sob o comando dos engenheiros ingleses,
símbolos do progresso, também curiosamente possibilitariam o
trânsito de milhares de escravos. Muitos homens de dinheiro,
afetados pelo estado de depressão por que passava a província da
Bahia, passam a se valer dos altos lucros da venda de negros,
enviando-os para o Sul por navio, sendo que somente entre os
anos de 1872 e 1876 chegam ao Rio de Janeiro 25.711 escravos
vindos do Norte e Nordeste.
Entretanto, surgem possibilidades para alguns da população
negra de Salvador. Se muitos escravos recém-chegados ou já
trabalhando no estado são transferidos abruptamente para o Sul,
muitos se alforriariam, aumentando uma classe intersticial de
negros livres que tomam as ruas com seus interesses e ofícios
junto aos negros de ganho, gente que sobe e desce as ladeiras, que
toma o espaço dos cantos, das beiras, das madrugadas, das feiras,
36. gente que aprende o fascínio da velha cidade baiana, onde, mesmo
inferiorizada, acharia suas alternativas de resistência e prazer. De
um escrito de 1870:
Poucas cidades pode haver tão originalmente povoadas como a Bahia.
Se não se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia sem muita
imaginação tomá-la por capital africana, residência de poderoso
príncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma
população de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na
praia, negros na cidade, negros na parte baixa, negros nos bairros
altos. Tudo o que corre, grita, trabalha, tudo o que transporta e
carrega é negro (Robert Avé-Lallemant, Reise Durchnord-brasilien).
Pela cidade se dividem os pontos das nações, negros que
saíam de casa com tarefas, ou gente de ofício, operários,
pedreiros, carpinteiros, ferreiros, sapateiros, cocheiros, barbeiros,
músicos, dividindo seus ganhos com os senhores. Estes ficam com
a parte do leão, aqueles guardando, de tostão em tostão, as sobras
para a compra da cara, portanto difícil, alforria. Geralmente, uma
vez obtida a alforria, continuavam nos mesmo ofícios, os que
podiam abrindo uma portinha onde exploravam suas habilidades
ou instalavam um pequeno comércio. Suas roupas eram feitas
pelas mulheres com o algodão grosso dos sacos: calças de enfiar
de canos curtos, camisolões compridos com bolsos, às vezes sem
mangas, vestimentas quase invariavelmente complementadas por
gorros, também de algodão grosso.
Ainda no início de século XX, restavam alguns desses
pontos, onde se reuniam africanos, cada vez menos numerosos.
Pierre Verger reconstrói Salvador de um pouco antes, da segunda
metade do século passado [pg. 28]
Na cidade baixa, nos Arcos de Santa Bárbara ficam os guruncis.
Passos adiante entre os Arcos de Santa Bárbara e o hotel das Nações,
37. alguns velhinhos cansados e modorrentos, últimos representantes da
outrora enérgica, belicosa e aguerrida colônia dos Haussas, ali
diariamente se reúnem. Mais numerosos são os “cantos” dos Nagôs.
No “canto” do Mercado, rua do Comércio ao lado dos Cobertos
Grandes, em mais de um ponto da rua das Princesas em frente aos
grandes escritórios comerciais, se congregam velhos Nagôs. São
também dos Nagôs os “cantos” da cidade alta: rua da Ajuda, no largo
da Piedade, na ladeira de S. Bento. No “canto” do Campo Grande, a
alguns Nagôs se reúnem uns três ou quatro Gegês (Pierre Verger,
Notícias da Bahia de 1850).
Com a melhora das vias de comunicação abertas pelas
tropas de bois a partir do início do século XIX, e com a abertura
das estradas de ferro na província, a migração do campo para a
capital se intensifica, por vezes carregando trabalhadores rurais
de outras províncias nordestinas tocados pela seca, situação que
chegaria a seu ápice depois com os flagelos de 1868 e 1871. A
migração contínua somava-se o número crescente de negros forros
disputando posições no mercado de trabalho de Salvador,
diminuindo a oferta e agravando as condições de moradia e de
fornecimento de alimento para os trabalhadores livres na cidade.
Os bairros populares se superlotam, os negros se juntam em
casarões alugados, geralmente com os irmãos de nação. São os
hábitos da vida comum que os protegeriam nesses duros anos de
transição. Muitos pensam em voltar para a África, outros, aqui já
nascidos, não saberiam mais para onde se dirigir num continente
rasgado pelas disputas colonialistas. Talvez valesse mais a pena,
muitos pensavam, tentar a sorte em outra cidade brasileira.
Na verdade, se trava no período uma luta surda entre
trabalhadores livres e donos de escravos, provocando o
aparecimento de uma série de disposições municipais, vedando a
ocupação de funções públicas e de alguns ofícios aos escravos. Só
38. aos livres nacionais é facultado trabalhar no transporte de
saveiros da cidade a partir de 1850. Em 1861 é a vez dos
estivadores protestarem junto ao presidente da província quanto
ao “nocivo e contumaz ascendente que há formado o abuso da
introdução de escravos no serviços da profusão de atividades no
porto desta cidade”. Também nas obras públicas, uma das
possibilidades que se abrem a indivíduos sem especialização
profissional, a partir de 1848, fica impedida a contratação de
escravos. Não constituindo a indústria ainda uma fonte de
absorção significativa de mão-de-obra, e os empregos no
funcionalismo público se reservando a uma minoria mais
instruída, restam como saída para o grande número de
desempregados os pequenos ofícios e o comércio ambulante,
expedientes que se tornam tradicionais para grande faixa da
população, marginalizada das possibilidades regulares de trabalho
até nossos dias.
“A Alforria nunca é uma aventura solitária. A carta de
alforria é um ato comercial, raramente um ato de generosidade”. A
afirmação de Kátia Mattoso resume bem a questão das cartas de
alforria. Se a legislação garantia ao escravo dentro da perspectiva
cristã “ressuscitar como homem livre”, a compra de sua própria
liberdade se reveste de extrema dificuldade, só sendo possível com
o concurso das juntas de [pg. 29] auxílio mútuo ou com a ajuda
dos parentes. O preço de referência era o de sua compra
atualizada pelos novos preços do mercado, o proprietário só o
“alforriando” quando o negócio lhe era favorável, possibilitando a
compra de um escravo mais moço. Frequentemente, o escravo
passava por um período intermediário em que continuava devendo
obrigações ao senhor, ou pagando parcelas periódicas sobre seu
valor de venda. A liberdade, entretanto, era apresentada ao
39. escravo não como um direito mas como uma “recompensa”. E
para obtê-la, precisava conquistar o senhor com seu
comportamento e seu esforço, sem que isso absolutamente
significasse a dispensa do pagamento em moeda corrente.
É particularmente
significativo naquele momento,
e para o próprio destino do
negro no país, esse grupo
intermediário de libertos, sua
paradigmática cidadania de
segunda classe, suas
possibilidades de trânsito e
influência. Se eles eram
homens livres, havia restrições
legais instituídas aos seus
direitos de cidadania. No
sistema eleitoral onde o acesso
Baiana na lavagem do Bonfim. Foto de ao voto e aos cargos era
Antonio Luiz Mendes Soares, 1977.
proporcional à propriedade e
aos rendimentos, o liberto, qualquer que fosse sua fortuna, votava
apenas nas primárias, não podendo ingressar nas ordens
religiosas, no alto funcionalato ou oficialato do Exército e da
Marinha, podendo no máximo se eleger para vereador e ingressar
na tropa ou Guarda Nacional, isso se nascido no Brasil, tendo
direito a propriedade e relativa capacidade civil.
Na verdade, a lei considerava o forro a partir de duas
preocupações: o abastecimento de mão-de-obra, e a segurança da
sociedade por eles ameaçada. Muitas alforrias já eram
condicionais, prevendo anos intermediários de serviço antes da
alforria completa. As restrições econômicas e policiais à presença
40. do negro em geral em Salvador indicavam que o país legal os
queria, mesmo depois de libertos, de volta ao eito. Já o levante de
1807 provocara a proibição da livre circulação dos escravos depois
das nove da noite, [pg. 30] visando impedir os preciosos
momentos de encontro dos negros depois do dia de trabalho.
Havia, desde antes da Independência, um antiescravismo que
argumentava em razão do medo do aumento incontrolado da
população negra, medo que ampliara seus argumentos com a
eclosão da revolução haitiana e depois das insurreições baianas,
culminando com a revolta malê em 1835, suscitando medidas
draconianas na legislação provincial e após 1835 na legislação do
Império.
Lei nacional em
10.06.1835 punia com pena de
morte os escravos que
matassem ou ferissem
gravemente seus senhores. A
Assembléia Provincial do Rio
de Janeiro chega a pedir em
1835 que se impeça o
desembarque de escravos da
Bahia e principalmente o de
libertos de qualquer estado na
capital, já que esses eram
considerados os fomentadores
das revoltas. Escreve o
Negras baianas com vestimentas típicas. presidente da província da
In: Luiz Viana Filho, O negro na Bahia. Rio
de Janeiro, J. Olympio, 1946, s.n.p. Bahia: “Os insurgidos
(Documentos Brasileiros, 55).
entretinham comunicações e
inteligências, as quais não podiam ser convenientemente
41. entretidas senão pelos libertos, que podiam livremente dispor de
seu tempo, e de suas ações para formar prosélitos e partidários de
seus desígnos”. Várias assembléias provinciais afirmavam em
moções enviadas ao governo central a existência de sociedades
secretas de escravos e forros apoiando propagadores de doutrinas
subversivas entre os escravos de grandes propriedades, onde
penetravam disfarçados de vendedores ambulantes, justificando
assim o estabelecimento de limitações à circulação dos negros.
Forros podiam ser expulsos do país sob simples suspeita de
revolta, e para eles se estabelece um imposto de dez mil-réis
anuais, sob pena de dois meses de prisão, só sendo dispensados
os inválidos, os empregados em fábricas (algodão, açúcar) e os
delatores...
Africanos eram objeto de maior atenção, apátridas, nem
eleitores nem elegíveis, obstados a [pg. 31] incorporar-se em
qualquer instituição nacional. Indesejáveis. Em 1831 se estabelece
a proibição do desembarque de africanos livres no país, lei que
vigora até 1868. A eles se proíbe adquirem bens de raiz, alugar ou
arrendar casa, a não ser com autorização especial do juiz. Mesmo
depois da proibição do tráfico em 1851 os africanos apreendidos
em negreiros em águas brasileiras, embora declarados livres, eram
distribuídos pelo juiz de órfãos “para aprendizado” com
empregadores sendo estipulado salários irrisórios. O chefe de
polícia baiana Sousa Martins explicita a posição da administração
da província em 1835:
não sendo os africanos libertos nascidos no Brasil, e possuindo uma
linguagem, costumes e até religião diferente dos brasileiros, e pelo
último acontecimento declarando-se tão inimigos de nossa existência
política; eles não podem jamais ser considerados cidadãos brasileiros
para gozar das garantias afiançadas pela Constituição, antes devendo-
se reputar estrangeiros de nações com que o Brasil se não acha ligado,
42. por algum tratado, podem sem injustiça serem expulsos quando
suspeitos ou perigoso.
Francisco Gonçalves Martins, chefe da polícia na época da
revolta malê, se torna presidente da província da Bahia de 1849-
53 e, com sua obsessão pelo perigo africano, defende limitar o
escravo à esfera da agricultura e coagir os libertos a voltar para a
África. Durante sua gestão amplia as exclusões dos escravos a
ocupações urbanas, proíbe aos negros o aprendizado de
determinados ofícios, estabelece impostos aos artífices urbanos, e
aumenta a insegurança com a ação repressiva da polícia, que
enche as prisões com libertos, aumentando as levas de forros que
partem, alguns para a África, muitos para o Rio de Janeiro.
Embora o crescimento da população forra, com o aumento
da oposição à escravatura, fosse maior do que o da população
branca, a oposição dos forros, só se manifesta na política oficial,
depois da década de 1870, quando aparecem líderes mulatos
como José do Patrocínio e André Rebouças, e, mais
definitivamente, quando surge uma pequena classe média de
mulatos. Afinal,
com um padrão de povoamento escasso e a ausência de uma camada
significativa de brancos pobres, no que contrastaria fortemente com o
Sul dos EUA, o Brasil necessitava criar uma camada intermediária que
desempenhasse os trabalhos que os brancos desdenhavam e que os
escravos não podiam ser autorizados a desempenhar: atividades de
tipo “intersticial”, militares e econômicas, que só poderiam se
preenchidas no Brasil pelos mestiços livres e libertos (Marvin Harris,
Patterns of race in the Americas).
Gilberto Freyre escreveu no monumental Casa Grande e
Senzala:
Desses centros de alimentação afro-brasileira é decerto a Bahia o mais
43. importante. A doçaria de rua desenvolveu-se como em nenhuma
cidade brasileira, estabelecendo-se verdadeira guerra civil entre o bolo
de tabuleiro e o doce feito em casa. Aquele, o das forras, algumas tão
boas doceiras que conseguiram juntar dinheiro vendendo bolo. É
verdade que senhora das casas-grandes e abadessas de convento
entregaram-se [pg. 32] às vezes ao mesmo comércio de doce e
quitutes; as freiras aceitando encomendas, até para o estrangeiro, de
doces secos, bolinhos de goma, sequilhos, confeitos e outras
guloseimas. Mestre Vilhena fala desses doces e dessas iguarias —
quitutes feitos em casa e vendidos na rua em cabeça de negras mas
em proveito das senhoras — mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas,
canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-coco, angus, pão-de-
ló de arroz, pão-de-ló de milho, rolete de cana, queimados, isto é,
rebuçados etc.(...)
Embarque de negros africanos da Bahia para a África após a libertação dos escravos. In:
Luiz Viana Filho, op. cit., cap. 4
Mas o legítimo doce ou quitute de tabuleiro foi o das negras forras. O
das negras doceiras. Doce feito ou preparado por elas. Por elas
próprias enfeitado com flor de papel azul ou encarnado. E recortado
em forma de coração, de cavalinhos, de passarinhos, de peixes, de
44. galinhas — às vezes com reminiscências de velhos cultos fálicos ou
totêmicos. Arrumado por cima de folhinhas frescas de banana e dentro
de tabuleiros enormes, quase litúrgicos, forrados de toalhas alvas
como pano de missa. [pg. 33]
Com o esfacelamento da família africana pela escravatura, é
geralmente em torno da mulher que começa a se formar uma nova
família negra entre os forros, assim como são principalmente elas
que mantêm o culto. As precárias condições de moradia e de
trabalho a que fica exposta a maior parte dos libertos fazem com
que a prole fique, na maior parte das situações, sob a
responsabilidade única da mulher, que, com a precariedade das
ligações, tem geralmente filhos de diferentes pais. O descompasso
psicológico ocasionado pela libertação depois de uma vida de
cativeiro, a incerteza frente às ambiguidades da nova situação
forçam o negro liberto a se amoldar a expedientes para sobreviver,
vivendo aqui e ali, trocando de quarto nas casas de cômodos de
nação, ou se instalando em casebres erguidos longe do Centro da
cidade.
As mulheres respondem com bravura à situação: uma vez
forras, e entre estes são maioria, procuram trabalho ligado à
cozinha ou à venda nas ruas de pratos e doces de origem africana,
alguns do ritual religioso, a comida de santo, e recriações profanas
propiciadas pela ecologia brasileira. Algumas trabalham ligadas às
casas aristocráticas, onde recebem sua cidadania de segunda
classe; outras preferem se manter trabalhando em grupo,
geralmente como pequenas empresárias independentes,
cooperativadas, produzindo e vendendo sua criações. Verger fala
do espírito ao mesmo tempo empreendedor e dominador da
mulher: o homem se enfraquece no abandono do filho e com a
perda da liderança que a mulher assume na vida religiosa. É dela
que dependerá muito o destino e a continuidade do grupo, o poder
45. redefinido entre os sexos, a poligamia africana dos machos
senhores superada pelo matriarcalismo que se desenha nos
bairros afastados de Salvador, como depois aconteceria no Rio de
Janeiro.
Na escravatura, quando o escravo era integrado à família do
senhor como “criado”, o número menor de homens e a
instabilidade da sua vida, sempre à mercê de ser vendido e então
enviado para outro lugar, não importando a duração ou
significado das relações que mantivesse com o grupo ou com
indivíduos do grupo em torno de seu antigo dono, torna as
relações amorosas preferencialmente provisórias. Mesmo o
casamento formal entre escravos, que era eventualmente
autorizado pelos senhores, não impedia a separação dos cônjuges,
acaso aqueles o decidissem. Era também comum casais formados
arbitrariamente, a partir dos interesses na reprodução dos
escravos por parte dos senhores. A criança geralmente só tinha
mãe, integrando-se à comunidade de senhores e escravos, com
seus “aposentos” comuns ou rigorosamente separados, se
sobrepondo à vida familiar do negro, praticamente inexistente.
As irmandades para leigos floresceriam na Igreja durante a
Colônia, como um expediente regulador do comportamento e das
relações sociais entre grupos racial e socialmente diversos,
amortecendo os choques, fazendo com que cada um se sentisse
igual entre “os seus”, estes cuidadosamente definidos pela
organização eclesiástica. Já os dominicanos haviam enviado seus
missionários à África apoiados pelo Estado português, difundindo
o culto de santos e virgens negras num catolicismo separado.
Este, ao incorporar elementos culturais do novo grupo abordado,
redefinia-os de acordo com os princípios da cristandade, e mais
especificamente, de acordo com as necessidades de manutenção
46. da dominação [pg. 34] imposta ao africano: o sacerdote era
definitivamente associado ao soldado conquistador e ao
mercenário escravagista.
As irmandades partem dos nexos iniciais de distinção entre
os indivíduos, grupando-os, assim, a partir de suas características
raciais e sociais, e cultivando-as como rivalidades. Irmandades
ligadas a uma nação, ou exclusivamente a um sexo, irmandades
de negros africanos, negros brasileiros, de mulatos e,
evidentemente separadas, irmandades de brancos. Integrados
todos como fiéis, mas percebidos como diversos e assim
hierarquizados, eis o princípio da Igreja colonial, uma ordem
coreograficamente explicitada no espetáculo das procissões,
assegurando a diferenciação das raças e a divisão no meio
escravo. Esse catolicismo negro geraria uma série de subcultura
de etnias, de castas, se constituindo, com a Independência e
depois com a Abolição, em embrião das subculturas de classe. É
no seio das confrarias negras que as tradições africanas
ganhariam o espaço necessário à sua perpetuação na aventura
brasileira, sincretizadas com o código religioso do branco, de
maneira mais ou menos formal, inicialmente apenas como um
disfarce legitimador, mas progressivamente absorvendo o
catolicismo como uma influência profunda que se expande nas
religiões populares urbanas negras da modernidade.
Entretanto, na rua, evitada pelos aristocratas, domínio do
povinho, do negro, progressivamente se contestam essas
distinções no meio popular, e nela surgem as grandes
manifestações do encontro dessa pluralidade de civilizações
africanas de extrema expressividade místico-religiosa. O Ocidente,
via Portugal e seu catolicismo ritualizado, já vira renascer
surdamente no sagrado a festa recalcada pela Inquisição. As
47. narrativas, como a de Froger, descrevem as procissões medievais
portuguesas:
a do Santíssimo Sacramento, que não é menos considerável nesta
cidade por uma quantidade prodigiosa de cruzes, de relicários, de ricos
ornamentos e de tropas em armas, de corpos de ofícios, confrarias e de
religiosos, como também ridícula pelos grupos de máscaras, de
músicos e de dançarinos, os quais por suas posturas lúbricas
atrapalham a ordem desta santa cerimônia (Froger, Voyages de Mr. de
Gennes).
Mas é em Salvador que se redefine o calendário cristão num novo
ciclo de festas populares, quando nos santos católicos seriam
encontradas correspondências e identidades associadas aos orixás
nagôs, homenageados não só em cerimônias privadas, mas, a
partir de então, com toda exuberância na festa “católica”, nas
ruas, nas praças, nos mercados e mesmo nas igrejas da cidade.
Esse ciclo de festas populares que daria substância à
identidade profunda de Salvador, criando elementos fundamentais
à sua personalidade moderna de cidade, se inicia com o Advento,
um mês antes do Natal, aberto pela festa de santa Bárbara, a
Iansã, que já na metade do século XIX tinha a participação
marcante dos africanos, celebrando sua entidade de devoção no
mercado dos Arcos de Santa Bárbara. Dias depois é homenageada
Iemanjá, no dia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, a festa
armada em torno de sua igreja, onde, já no princípio do século
XIX, se misturavam brancos, pretos e mulatos, as negras com
seus turbantes, suas camisas finamente bordadas e saias
franzidas e rodadas. O Natal era [pg. 35] pretexto para uma série
de manifestações dos negros: cheganças, bailes, pastoris, bumba-
meu-boi e cucumbis, que saíam à rua revelando, mesmo em meio
da dura repressão provocada pelas insurreições dos escravos, a
48. progressiva afirmação do negro na cidade. Os cucumbis baianos
reapareceriam no Rio de Janeiro anos depois, em ranchos negros
onde se cantava e dançava música africana em procissões que
atravessavam os bairros populares, só interrompidas pelas luzes
da manhã.
A festa de Primeiro de Janeiro, que tinha seu ápice na
procissão de Nosso Senhor dos Navegantes, também seria ligada
indiretamente ao negro, já que era patrocinada por capitães e
pilotos dos navios negreiros, se acostumando o povo a associá-la
aos batuques de rua, às rodas de samba e capoeira nas praças e
em torno da igreja do “santo”. Uma das mais importantes, e ainda
hoje celebrada em moldes semelhantes, é a do Senhor do Bonfim,
a festa de Oxalá, que leva, na quinta-feira que a precede,
inúmeros negros à sua igreja para a lavagem do chão, numa
manifestação de devoção africana e piedade cristã. Mulheres
vestidas com suas roupas rituais brancas levam, com um
equilíbrio elegante, potes de barro com água, acompanhadas de
carros e carroças decorados por bandeirolas e serpentinas sempre
brancas. O príncipe Maximiliano da Áustria, insuspeitadamente
excelente cronista, descreve com um sentido cinematográfico,
onde não está ausente um excelente fecho de cena, uma dessas
ocasiões, por volta da metade do século passado, enfatizando o
surpreendente convívio da festa africana com a reunião da
sociedade baiana e o rito católico:
O tumulto de uma feira reinava, neste momento, na praça e na igreja.
A população negra, em roupas de festa, empurrava-se com muito
barulho. Viam-se suspensas sobre as cabeças caixas de vidro repletas
de comestíveis. Pequenos grupos de vendedores de cachaça formavam
como ilhas no meio deste oceano de seres humanos. Nós nos deixamos
levar pela torrente até o edifício principal. Penetramos, por uma porta
lateral, como água que se precipita numa represa. Uma longa fila de
49. jovens e alegres negrinhas ocupavam a extensão de um dos muros.
Seus encantos bronzeados estavam mais velados que ocultos, sob
gazes transparentes. Assumiam as atitudes mais cômodas, as mais à
vontade, e as mais voluptuosas vendiam toda sorte de objetos de
religião, amuletos, velas e comestíveis que levavam em cestas. Tudo
ocorria muito alegremente na sala. Indo avante com a multidão ou em
sentido oposto, chegamos a uma vasta peça decorada de ricos
ornamentos. Alguns utensílios indicavam que era a Sacristia. Um
eclesiástico, amarelo como um marmelo, apoiado num cofre, ao lado
dos ornamentos do altar, entretinha-se, da maneira mais íntima, com
algumas senhoras. A corrente nos levou como nos havia trazido,
empurrou-nos e nos arrastou através da sala do mercado e nos jogou,
enfim, apertando-nos até quase sufocar, numa grande sala de aspecto
resplandecente. Lustres inumeráveis e carregados de velas acesas
desciam do teto; as paredes brancas eram ornadas com quadros. Um
ar de festa e de alegre diversão reinava em todos os rostos. Parecia que
faltavam apenas os violinos para começar a dança. A sala estava
cheia; via-se apenas caras negras, amarelas e morenas, e entre elas as
mais belas mulheres; todas pareciam encantadas e exaltadas pela
influência da cachaça. Como troféu de festa, elas levavam uma
elegante vassoura. Todos se misturavam e se empurravam. Sentia-se
que era uma festa longamente esperada onde os negros sentiam-se em
casa. A sociedade toda parecia concordar em manter uma conversa
incessante e barulhenta. E nós, também, conversávamos alegremente
e em voz alta [pg. 36] atravessando a sala. De repente, na outra
extremidade, notei, em um ponto elevado, um personagem que ia e
vinha com ar inquieto, passava os olhos sobre um livro, olhava ao
redor de si e parecia, de vez em quando, mergulhar e tornar a subir.
Era o eclesiástico de cor amarela que cumpria as cerimônias da missa
(pois certamente não se poderia chamar aquilo de missa) (Maximilien
d’Austriche, Souvenirs de ma vie).
Além de se envolver com a organização das festas religiosas
que se profanizavam nas ruas uma vez cumpridos os rituais, as
irmandades prestavam assistência social a um meio
completamente ignorado pelas instituições públicas, com exceção
50. da força policial. É com as reservas das irmandades que eram
garantidos os enterros dos negros, como através delas se
conseguiam alguns recursos para órfãos e mesmo um auxílio para
muitos velhos ou incapazes de se sustentar. É possível mesmo se
associar a decadência das irmandades de cor, por volta do terceiro
quarto do século, à criação de novas formas institucionais no meio
negro e mesmo de instituições municipais de assistência pública,
que absorveriam muitas de suas antigas funções, a larga vivência
nas irmandades, egbé, se somando ao convívio nas suas
associações creditícias, esusu. As irmandades, assumindo os
moldes burocráticos da associação, com estatutos, por vezes até
exageradamente valorizados, e procedimentos regulares, serviriam
também para o negro como uma introdução às formas de
procedimento e trânsito social da modernidade, racionalizadas
pelo sistema de organização e documentação produzido pelo
Estado moderno e pelas
instituições financeiras,
comerciais e industriais européias.
Juntamente com as irman-
dades, surgem as primeiras
instituições urbanas autônomas
de negros. Juntas de alforria que
se [pg. 37] organizam entre negros
de ganho e libertos, para a compra
da liberdade dos parentes e dos
irmãos de nação. Essas
organizações procuravam apoiá-
los também nos primeiros passos
depois da compra da liberdade, Ilustração de Armando Pacheco. In:
Luiz Edmundo, op. cit., v.l, p.219.
quando, uma vez pago o senhor
51. com todas as suas economias, o negro se via sem recursos, além
de sua força e seu engenho, encontrando moradia entre os seus,
no nagô Tedo no alto da subida do Alvo, ou na rua dos Capitães,
perto da Tira-Chapéu, nos bairros populares como o Santo
Antônio Além do Carmo, nas casas com telhas romanas e sem
forro, com janelas sem vidraça e venezianas de madeira. A própria
roupa marcava a nova situação, principalmente, sapatos que,
mesmo carregados na mão, davam dignidade de homem livre a
seu proprietário. É notável também a organização de grupos de
trabalhadores negros, como a Companhia dos Africanos Livres,
que trabalharia com sucesso em obras no Jequitinhonha e em
outras, promovidas pela municipalidade, para modernizar a
cidade arcaica em sua paisagem e nos seus serviços, como mais
tarde e mais radicalmente sucederia no Rio de Janeiro.
Relatava Manuel Querino, em Costumes africanos no Brasil:
Praticaram aqui na Bahia, quase o mesmo, os africanos. Ainda não
existiam as caixas econômicas, pois que a primeira fundada na Bahia
data de 1834, não se cogitava ainda das caixas de emancipação e das
sociedades abolicionistas, antes mesmo de se tornar tão larga como
depois se tornou a generosidade dos senhorios, concedendo cartas de
alforria ao festejarem datas íntimas, e já havia as caixas de
empréstimo destinadas pelos africanos à conquista de sua liberdade e
de seus descendentes, caixas que se denominavam — Juntas.
Com esse nobilíssimo intuito reuniram-se sob chefia de um deles, o de
mais respeito e confiança, e constituíam a caixa de empréstimos.
Tinha o encarregado da guarda do dinheiro um modo particular de
anotações das quantias recebidas por amortização e prêmios.
Não havia escrituração alguma; mas à proporção que os tomadores
realizavam suas entradas, o prestamista ia assinalando o recebimento
das quantias ou quotas combinadas, por meio de incisões feitas num
bastonete de madeira para cada um.
Outro africano se encarregava da coleta das quantias para fazer
entrega ao chefe, quando o devedor não ia levar, espontaneamente, ao
52. prestamista a quantia ajustada.
De ordinário, reuniam-se aos domingos para o recebimento e
contagem das quantias arrecadadas, comumente em cobre, e tratarem
de assuntos relativos aos empréstimos realizados.
Se o associado precisava de qualquer importância, assistia-lhe o
direito de retirá-la, descontando-se-lhe, todavia, os juros
correspondentes ao tempo. Se a retirada do capital era integral, neste
caso, o gerente era logo reembolsado de certa percentagem que lhe era
devida, pela guarda dos dinheiros depositados. Como era natural, a
falta de escrituração proporcionava enganos prejudiciais às partes.
Às vezes, o mutuário retirava o dinheiro preciso para sua alforria, e
diante dos cálculos do gerente o tomador pagava pelo dobro da
quantia emprestada. No fim de cada ano, como acontece nas
sociedades anônimas ou de capital limitado, era certa a distribuição de
dividendos. Discussões acaloradas surgiam nessas ocasiões, sem que
todavia os associados chegassem às vias de fato, tornando-se
desnecessária e imprópria a intervenção policial.
Assim auxiliavam-se mutuamente, no interesse principal de obterem
suas cartas de alforria, e dela usarem como se encontrassem ainda
nos sertões africanos. Resgatavam-se pelo auxílio mútuo de esforço
paciente, esses heróis de trabalho. [pg. 38]
A população escrava, desta forma, se dividia entre escravos
alforriados, muitos que ainda se mantinham sob obrigações com
os senhores, e os libertos. Essa subclasse de indivíduos libertos,
ou em processo de se libertar, se caracterizava a partir da postura
de cada um frente a sua comunidade de origem, seja de nação ou
de ofício, uns identificados com seus irmãos escravos, envolvidos
tanto com as sublevações, apesar de já libertos, quanto com as
juntas de alforria; outros se afastando, se individualizando, alguns
procurando se mimetizar com os brancos e ascender. Muitos
negros de ofício chegam a comprar escravos para escapar das
tarefas braçais estigmatizantes associadas à escravatura, negros
que carregavam vistosamente os instrumentos de trabalho de seus
53. novos donos, também negros, pela rua baiana.
Entre os mulatos, já por natureza mais aproximados do
mundo dos brancos, alguns eram integrados aos estratos mais
altos da população. Entretanto, na vida brasileira e no mundo
moderno em geral, a cor da pele não necessariamente define a
prática e a visão de mundo de cada indivíduo. Nos mulatos,
particularmente, se manifesta uma aguda sensibilidade para a
questão da identidade racial, muitas vezes resolvida por uma
aderência a um dos extremos, sem se perceberem como uma
possibilidade virtual, como uma metáfora biológica de uma
nacionalidade brasileira vinda do encontro das diversas raças de
nossa formação.
Muitos forros trabalham nas forças militares e policiais,
confinados às posições subalternas como no mundo civil, expostos
aos trabalhos mais pesados. Muitas vezes alguns não puderam
aceitar e se desesperaram, com as lembranças que tais tarefas
brutas traziam dos seus dias como escravo, esmagados pela
impressão de que, apesar da carta de alforria, nada tinha mudado,
de que haviam sido enganados. Outros libertos negam-se a aceitar
trabalho ligado ao próprio sistema escravagista, principalmente os
postos de controle e repressão, estes cada vez mais difíceis de
serem preenchidos, como confirma a incompreensão de Vilhena:
A Bahia que possue uma numerosa população contudo há
dificuldades de conseguir todos os obreiros livres, geralmente há
queixa nisto: Exmo. Sr., em meu poder mais de 60 pedidos para
lugares de feitores, apontadores, mas ninguém para trabalhar, há
repugnância, eis ahi o exemplo mais evidente em que vivem, preferem
pois a vadiação a hum trabalho honesto, pelo qual conseguem o pão
necessário para o sustento de suas famílias, e habilitam-se d’esta
maneira para os empregos de feitores, e apontadores, pois quanto a
mim, prefiro um feitor dentre os melhores trabalhadores, de que um
54. homem que não sabe trabalhar e não pode mandar em consequência
disto os outros (Luiz Vilhena, Cartas soteropolitanas).
Na recente classe de bacharéis e doutores que se afirmavam
progressivamente na sociedade baiana, muitos são filhos de
escravas negras, ou seus descendentes, mulatos claros de
sobrecasaca e cartola identificados com os novos valores europeus
modernizantes, os “gentlemen de cor” de quem falam na época os
viajantes europeus, de passagem na capital da província. Esses
homens progressivamente identificados com as elites, e por elas
acolhidos, vivem uma vida à parte da grande comunidade negra
das ruas, tendo mesmo eventualmente posições contra os seus
irmãos de origem, como relata Freyre em [pg. 39]
Ordem e Progresso:
Em 1884 apresentaram-se candidatos à Câmara dos Deputados
Gerais por esta província (Bahia), cerca de trinta cidadãos. De todos
eles só havia um homem de cor — era o conselheiro Domingos Carlos
da Silva, um ex-professor da faculdade de medicina desta província.
Pois bem: o único que em documento escrito e público teve a coragem
de pedir sufrágios em nome da escravidão. Foi além do sr. Pedro Moniz
— digno representante dos engenhos de Santo Amaro — e que, com os
srs. Lacerda Werneck e Coelho Rodrigues, votou contra a abolição dos
açoites.
Na verdade, a sociedade baiana no período surpreende os
europeus, principalmente aqueles que conheciam outras
sociedades onde o negro havia sido introduzido como escravo,
como revela numa carta o ministro francês no Brasil, o conde de
Alexis Saint Priest:
Chegando aqui eu pensava que os mulatos formavam uma classe à
parte, rejeitada pelos brancos e dominando os negros, mas sou forçado
a convir que mesmo encontrando muitos indivíduos mulatos, estou
ainda à procura do partido dos homens de cor. Na Martinica e nas
55. outras ilhas, a orgulhosa aristocracia dos brancos lá nascidos tornou
temível a associação dos mestiços; a vaidade ferida fez muitas vezes
derramar o sangue de uns pelos outros, mas no Brasil, nem essa
aristocracia branca nem esta democracia parda existem na realidade.
Os mulatos não formam em absoluto uma classe à parte, há muitos
mulatos nos clubes, mas não há clubes de mulatos. Eles estão
misturados, confundidos com todo o mundo, se os encontra na
escravidão, nos mais vis dos ofícios, mas também na alta sociedade e
no Senado. A guarda permanente é composta metade de mulatos que
vivem às mil maravilhas juntos e servem fielmente ao governo atual.
Na divisão dos partidos, tal como ela existe ainda hoje, seria bem
difícil designar um lugar às pessoas de cor, nenhum deles é
inacessível aos homens de cor.
No entanto, afastados dos salões e dos escritórios, da política
e dos negócios, é nas ruas do Centro e da orla, nos bairros
populares, que surgem os negros. É com a proibição do entrudo
em 1853, e o deslocamento das manifestações processionais
negras para a época do Carnaval baiano, que este começa a tomar
uma feição moderna com seus blocos e cordões, muitos deles com
intenções críticas, que ressurgem no Carnaval carioca. Aparecem
clubes carnavalescos liderados por africanos, crioulos e mestiços,
já para o final do século, como a Embaixada Africana, os Pândegos
da África, a Chegada da África, e muitos outros. Através dos
nomes, claro estava o sentido de afirmação cultural do passado
africano, parte se identificando com egípcios, abissínios,
aparentemente alheios às suas origens, mas a maioria com
motivos da África negra.
Reportamo-nos a um desfile dos Pândegos da África:
Vimos compacta multidão de negros e mestiços que a ele pode-se
dizer, se haviam incorporado e que o acompanhavam cantando as
cantigas africanas, sapateando as suas danças e vitoriando os seus
ídolos ou santos que lhes eram mostrados do carro do feitiço. Dir-se-ia
56. um candomblé colossal a perambular pelas [pg. 40] ruas da cidade. E
de feito vingavam-se assim os negros fetichistas das impertinências
intermitentes da polícia exibindo em público a sua festa (Nina
Rodrigues, op. cit).
Nos cantos das nações se tornam comuns as giras dos
batuqueiros onde vai surgir o samba baiano, motivos
desenvolvidos pelo coro e contestados pelos solistas: o samba de
roda. Orquestra de percussionistas com tamborins, cuícas, reco-
recos e agogôs. Batuque era o nome genérico que o português
dava às danças africanas suas conhecidas ainda no continente
negro, que na Bahia tomam a forma de uma dança-luta que
ocorria aos domingos e dias de festas na praça da Graça e na do
Barbalho, apesar da constante vigilância policial. Entretanto, se o
conde dos Arcos, governador da Bahia no início de século,
defendera a libertação dos batuques de nação, argumentando que
estes “renovariam as idéias de aversão recíproca que lhes eram
naturais desde que nasceram, e que todavia se vão apagando
pouco a pouco com a desgraça comum”; com a revolta de 1814, a
permissão do conde dos Arcos é revogada e os batuques são
novamente proibidos, assim como a permanência de negros em
tendas, botequins e tavernas.
Manuel Querino fala do samba que se tocava nas festas de
rua de Salvador, rodas de samba onde os batuqueiros respondiam
aos refrões conhecidos, muitos deles ainda referentes ao trabalho
com a cana no interior — um “samba arrojado, melodioso, (...) as
morenas, entregues a um miudinho de fazer paixão” (op. cit.).
Pandeiro, violão, ganzá, faca arranhando o prato com o ritmo
certo. O partido alto que aparece na cidade de Salvador atualiza a
tradição musical africana, refrões que se celebrizam contestados
pelos improvisos de cada um. O mesmo acontece com a dança: os
movimentos rítmicos do conjunto são por momentos respondidos
57. por solos isolados ou de casais, a umbigada remetendo tanto à
aventura amorosa como ao sentido de solidariedade e
pertencimento ao grupo.
Os batuques, no entanto, continuariam numa contínua
peleja com a polícia, significativa das relações que o povo
mantinha com o governo do Império que, através de uma
legislação restritiva e do fortalecimento dos seus quadros militares
e policiais, tentava enfrentar os tempos tumultuados que se
seguem à Independência. Os tempos são de insurreição e de
motins, tanto provocados pelo meio negro como pela população
livre de Salvador, contra as duras condições de vida agravadas
pela crise provocada pela desorganização da produção. Na cena
política entre os possuidores, nacionais enfrentam portugueses
“marotos”, retóricas republicanas e federativas mascaram
interesses que às vezes explodem em lutas na cidade, acirradas
pela grande insatisfação popular, pela fome que ameaça neste
momento a grande população desprivilegiada da cidade.
Por outro lado, a hostilidade manifestada contra brancos e mulatos
(pelos negros) nos parece muito mais uma atitude consciente contra a
população livre que goza de privilégios a ela negada, do que uma
atitude de oposição racial, tendo em vista a ampla miscigenação da
população baiana e a inexistência de fronteiras raciais nitidamente
demarcadas em todos os escalões da sociedade de então. A conquista
da liberdade era o pré-requisito absoluto da inserção na sociedade
global, o bem mais precioso e a visão do “branco” como inimigo não se
prende à cor da pele mas sim ao fato que ele representa o cidadão
part-entière cujos privilégios são meios de existência e de sobrevivência
(Kátia Mattoso, op. cit.). [pg. 41]
Isso dadas as devidas dimensões. É claro que um negro retinto
não poderia ocupar posições que um mulato, a duras penas,
ocupava. Mas as possibilidades de encontro entre negros e
58. brancos em condições de relativa igualdade que o crescimento do
número das alforrias cria progressivamente até a Abolição, e o
número de filhos de pais racialmente diversos dariam
características próprias ao caso brasileiro. Mais tarde, a Abolição
termina por revelar, com o transcurso dos anos, que a liberdade
concedida não significava uma redefinição total na posição do
negro, e que muito ainda havia por conquistar.
A capoeira é uma arte dos angolas redefinida pela briga
brasileira. A roda se armando com berimbau, chocalhos e
pandeiros, os pares de lutadores se trocando com a música
cantada. A agilidade testada contra marinheiros portugueses,
pesados e muito fortes, quando o negócio era se afastar e dançar
em volta esperando uma oportunidade. O corta-jaca é tanto um
ataque característico da capoeira da cidade de Salvador como um
passo de samba, da mesma forma que o batuque é uma variação
da capoeira. Das formas tradicionais surgiram suas recriações,
formas culturais extremamente relacionadas e duradouras em sua
plasticidade, que se vitalizam com as possibilidades de trânsito e
autonomia que o negro, apesar de tudo, progressivamente
conquista.
Muitos dos melhores capoeiristas baianos, considerados
como gente turbulenta pelas autoridades, pouco dispostos a se
conformar com as normas impostas pelas posturas municipais,
são incorporados compulsoriamente pelo Exército para formar
batalhões para a guerra contra o Paraguai. Da mesma forma
como, em alguns casos, o escravo podia cumprir pena de prisão
pelo senhor, era aceitável que se mandasse um escravo para o
Exército em lugar do filho convocado. Já na luta de independência
na Bahia, alguns batalhões de milícia eram compostos por negros,
conhecidos como Legião dos Henriques, em homenagem a
59. Henrique Dias, que lutara junto aos portugueses contra o domínio
holandês em Pernambuco. Aos que lutam na Guerra do Paraguai é
dada a alforria. O negro que serve no Exército nacional, lutando
ombro a ombro com os brancos, amadurece como cidadão, ganha
asas, fica mais intolerante com as limitações de seu trânsito
social, enfim, para ele é quase impossível voltar para onde partira.
Incompreendido, impaciente, orgulhoso, ele aposta na mudança.
Se as famílias e as etnias de origem representavam a
ossatura da vida social, religiosa e de trabalho dos negros, no
Brasil, os membros de um candomblé se consideram pertencentes
a uma mesma família, a família de santo, substituta da linhagem
africana desaparecida com a escravatura. Assim, é no candomblé
e nas habitações coletivas que se espalham em Salvador, nas
juntas de alforria já no século XIX, que o negro exerce sua
personalidade profunda, seus ritmos e valores ligados ao
inconsciente coletivo africano. Com a virada da metade do século
se agravam as condições de vida na capital da Bahia, ocasionando
já uma migração sistemática de negros sudaneses para o Rio de
Janeiro. Para o negro forro a luta no mercado de trabalho se torna
cada vez mais difícil, as casas coletivas superpovoadas. Os
vínculos de nação seriam neste momento fundamentais para a
manutenção de uma identidade própria, vínculos esses que só
começariam a se desgastar depois da Abolição com a
reestruturação radical por que passam as novas [pg. 42] “classes
populares” brasileiras. Restava viver em dois mundos, ganhar
espaços na vida subalterna dos pequenos serviços e nas vendas de
rua e de feira, ou na exuberância das festas e na força do santo.
Com o olho da polícia sempre voltado para os sudaneses e
principalmente para os forros, alguns sentiriam a situação como
insustentável. E os búzios mostravam para muitos a viagem.