O documento discute os fundamentos da ética segundo a perspectiva budista, incluindo a noção de origem dependente, onde todas as coisas surgem a partir de uma rede de causas e condições, e não possuem identidade independente. Também aborda a importância da paz interior e da compaixão para o alcance da felicidade, e como a adversidade pode ser uma oportunidade para cultivar a paciência e a tolerância.
1. Uma ética para o novo milênio
LAMA, Dalai. Uma ética para o novo milênio/Sua santidade o Dalai-Lama; Rio de
Janeiro: Sextante, 2006.
O fundamento da ética
Como diz um velho provérbio tibetano, “a próxima vida ou o dia de amanhã: nunca se
pode saber com certeza qual virá primeiro”.
Criamos uma sociedade em que as pessoas acham cada vez mais difícil demonstrar o
mínimo de afeto aos outros.
Na realidade, é importante a distinção a ser feita entre religião e espiritualidade.
Religião seria a crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé, crença
esta que tem como um de seus principais aspectos a aceitação de alguma forma de
realidade metafísica ou sobrenatural, inclindo possivelmente uma idéia de paraíso ou
nirvana. Associados a isso estão ensinamentos ou dogams religiosos, rituais, orações, e
assim por diante. Considero que a espiritualidade esteja realacionada com aquelas
qualidades do espírito humano – tais como amor e compaixão, paciência, tolerância,
capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia –
que trazem felicidade tanto para a própria pessoa como para os outros. Não existe razão
pela qual um individuo não possa desenvolve-las, até mesmo em alto grau, sem recorrer
a qualquer sistema religioso ou metafísico. É por isso que às vezes digo que talvez se
possa dispensar a religião. O que não se pode dispensar são essas qualidades espirituais
básicas.
Crença religiosa não é garantia de integridade moral.
De acordo com a filosofia budista, podemos compreender como as coisas acontecem
através de três maneiras diferentes: o principio da causa e efeito, pelo qual todas as
coisas e todos os acontecimentos surgem dependendo de uma complexa rede de causas
e condições relacionadas entre si. Num segundo nível, em termos da mútua dependência
que existe entre as partes e o todo. Sem as partes não se pode ter o todo e, sem o todo, o
conceito de partes não tem sentido. A idéia de “todo” implica partes, mas cada uma
dessas partes precisa ser considerada como um todo composto de suas próprias partes.
No terceiro nível, pode-se dizer que todos os fenômenos tem uma origem dependente
porque, quando os analisamos, verificamos que, em essência, eles não possuem uma
identidade independente. Por exemplo, as palavras “ação” e “agente”: uma pressupõe a
existência da outra. Assim como “pai” e “filho”. A pessoa só pode ser pai se tiver filhos.
E um filho ou uma filha são assim chamados apenas com referência ao fato de terem
pais.
Uma outra maneira de compreender o conceito de origem depender é considerar o
fenômeno do tempo. Falamos de tempo passado, presente e futuro. Verificamos que a
expressão “momento presente” é apenas um rótulo que indica a interface entre os
tempos “passado” e “futuro”. Não podemos narealidade localizar com precisão o
presente. O passado esta apenas uma fração de segundo depois estão o futuro, no
entanto, se dissermos que o momento presente é “agora”, assim que acabarmos de
2. pronunciar esta palavra ele já estará no passado. O presente só toma forma como
dependente do passado e do futuro.
Nossos bens materiais são uma fonte de ansiedade. Assim como nosso trabalho ou
nosso emprego, à medida que nos preocupamos com a possibilidade de perdê-los. Até
mesmo nossos amigos e parentes são capazes de se tornar uma fonte de problemas.
Portanto, não há esperança de alcançar felicidade duradoura se não tivermos paz
interior.
Um erudito e médico indiano Shantideva observou certa vez que não há esperança de
encontrarmos uma quantidade suficiente de couro que cubra toda a terra para que nunca
espetemos nossos pés em espinhos, mas na verdade isso não é necessário: basta um
pedaço para cobrirmos as solas de nossos pés.
Uma grande fonte de paz interior, de felicidade genuína são, é claro, os atos que
realizamos em nossa busca da felicidade.
Nós seres humanos somos seres sociais. Viemos ao mundo em conseqüência de ações
dos outros. Quando nos preocupamos menos conosco, a experiência de nosso próprio
sofrimento é menos intensa.
É a maneira de como reagimos aos acontecimentos e experiências determina o conteúdo
moral de nossos atos.
A constatação de que emoção e consciência não são a mesma coisa mostra que não
temos de ser forçosamente controlados pela emoção. Antes de cada uma de nossas ações
é preciso que haja um esforço para avaliarmos as alternativas e escolher com liberdade a
melhor maneira de atuar. É evidente que, enquanto não aprendermos a disciplinar
nossas mentes, teremos dificuldade para exercer essa liberdade. E é a maneira como
reagimos aos acontecimentos e experiências que determina o conteúdo moral de nossos
atos. Em poucas palavras, isso significa que nossos atos serão éticos se reagirmos
positivamente, visando ao bem da coletividade e não aos nossos interesses pessoais e
exclusivos. Se reagirmos negativamente, negligenciando os outros, nossos atos serão
antiéticos.
De acordo com essa visão, podemos pensar na mente ou na consciência como um
presidente ou monarca que é muito honesto e puro e em nossos pensamento e emoções
como ministros de Estado. Uns dão bons conselhos, outros dão maus. Alguns têm o
bem-estar dos outros como seu objetivo principal, outros tem apenas seus próprios
interesses. A responsabilidade da consciência – do líder – é determinar quais são os
subordinados que dão bons conselhos e quais os que dão os maus, quais são confiáveis e
quais não são, e agir segundo orientação de um dos lados, rejeitando a do outro.
Uma boa reputação também é uma fonte de felicidade.
Quem se entrega a emoções e pensamentos negativos inevitavelmente se acostuma com
eles. Torna-se escravo deles.
3. A paz interior – que é a principal característica da felicidade – e a raiva não podem
coexistir sem que uma arruíne a outra.
A ética da virtude
A adversidade não como uma ameaça à nossa paz de espírito, mas como o próprio meio
pelo qual se adquire paciência.
Com a adversidade podemos aprender o valor da paciência, da tolerância. E aqueles que
nos prejudicam são, em especial, os que nos oferecem oportunidades sem paralelo para
praticar a disciplina de nosso comportamento.
A ética da virtude consiste em evitar os extremos.
A ética da compaixão