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Perfil publicado no jornal A Notícia, na seção Anexo, no dia 18 de janeiro de 1996.



                              ROSA DO PÉ INCHADO
                                       Uma rapsódia trágica

                                        Fernando Karl - Joinville
                                  (sobre argumento de Sheila Deretti)

       Rosa não é flor de roseira, parte rosada das faces. Rosa não é rosácea, não é boca circular e
ornamentada no tamanho dos instrumentos de cordas de dedilhar. Rosa não é nada disto. Rosa é
um nome com osso e respiração e havia nela um pé que sofria, por isto o codinome: “Rosa do pé
inchado”.
       Voltemos um pouco no tempo encardido. Lá vai ela com os pés envoltos em gaze,
esparadrapo e iodo. Ela e sua bengala tosca, chapliana. Lá vai Rosa, tão eloquente fala muda, pela
via dos defuntos, mocinha sempre vaidosa, o vestido longo bem apertado na cintura e o gesto
sucumbido na dor. Fábula singular numa cidade distraída — Joinville — Rosa circula constelada da
própria sina entre as pessoas. Tem vezes que ela brinca, outras que verte o pranto copioso. Muitas
vezes passa os dias ameaçando com a bengala do inferno qualquer um que cisma de indagar como
vai seu pé. Lá vai Rosa de bengala na mão, como faz há mais de 50 anos.
       Rosa Correa, o nome de batismo. A água do padre escorreu na cabeça da menina e
disseram o doce nome: Rosa. No entanto, hoje só a conhecem como “Rosa do pé inchado”. Nasceu
em Araquari a 8 de julho de 1913. Seus pais morreram cedo. Ela e sua irmã de dois anos, Maria,
foram criadas por parente. Maria faleceu há dez anos, de derrame cerebral. Rosa saiu moça da
casa dos tios e veio para Joinville.
       Trabalhou no Hospital São José, de onde saiu e entrou três vezes. Comentava-se que
“gostava de liberdade demais”. Rosa não aguentou aquelas horas tediosas e fugiu. Queria ares
novos, foi para Curitiba, onde trabalhou na casa de um farmacêutico. Nesta época teve uma filha.
Chocou em si o ovo de escorpião, lavou manta e sangue, mas nunca disse quem era o pai. Este seu
maior segredo durante a vida. Mas as bocas ferinas proliferam e há quem sugira, como Justina
Peixe Moreira, conhecida de Rosa, que o pai de todo legítimo, o pai mesmo era o patrão
farmacêutico. Carmelina da Conceição, que conviveu com Rosa durante o azougue dos quinze
anos, diz que ela foi amante de conhecido médico de Joinville e engravidou na época em que
trabalhava no Hospital São José. Durante este tempo, quando perguntavam a Rosa quem era o pai,
apenas respondia: “Não sei, estava dormindo. Só senti um peso em cima de mim. Quando acordei,
o peso não estava mais lá”.
       A maternidade de “Rosa do pé inchado” esconde também mistérios de família. Na condição
de mãe solteira, foi árduo dar pão e céu ao bebê. Então entregou a criança de apenas dois meses
aos cuidados de um casal de primos que morava em Curitiba. Eles tinham um filho e boas
condições financeiras. Rosa ia sempre visitar a criança. Receosos de que a filha de rosa descobrisse
a identidade da verdadeira mãe, os pais adotivos mudaram-se para São Paulo.
       Rosa foi que nem doida atrás da menina sem ao menos saber onde morava. Não
encontrou. Hoje a filha está com 49 anos e é casada com um farmacêutico. Continua morando em
São Paulo, no bairro Santana. Os pais adotivos já morreram e nunca lhe contaram sobre sua
verdadeira mãe.


       UM RAMALHETE DE FLORES


       Rosa, crivada de angústia e pouco ouro, andava, andava, de cidade em cidade, peregrina do
lodo, mas sempre voltava para Joinville, seu porto seguro. Os que conviveram com ela, e que agora
são velhos, contam que Rosa era ardente, com voz tangida de força áspera, e também vaidosa,
muito, nas horas acordadas. Todos comentam que “Rosa do pé inchado” era bonita, demasiado
bonita. Se tingia de forte maquiagem e o vestido apertado na cinturinha de mosquito, que era
como se chamava a cintura fina naqueles idos. Às vezes, chegava para uma pessoa e lhe oferecia
um ramalhete de flores colhido por ela mesma. Entoava, então, uma cantiga qualquer. Alguns,
como o cunhado Felipe, falam que desde jovem Rosa teve temperamento de dinamite. Outros,
como a prima Ester Pereira, a achavam “uma moça querida e educada”. Com o desaguar dos anos,
entretanto, “Rosinha”, como também a chamavam, mudou: começou a beber e passou a vibrar
escarlates agonias. Tornou-se chucra, agressiva com acidez pelos poros, e ainda andava suja e mal
vestida. Os pés, que ela em silêncio tentava ocultar com faixas de gaze, inchavam cada vez mais e
mais. Por compaixão, as pessoas lhe davam uns níqueis e Rosa passou a viver de esmolas.
       O apelido “Rosa do pé inchado” vem do mal que lhe consumia os pés. Isto desde moça era
assim. Rosa Sprotte, que a conheceu em Araquari, e a própria Justina Pereira, dizem que era
“erisipela” (doença causada por um micróbio) o que punha o pé de Rosa daquele jeito deplorável.
       Mas o inchaço pode ter tido como causa um problema de circulação provocado por choque
térmico. Explica-se: há muito anos era comum as pessoas fazerem fogo no chão da casa e, depois
de aquecidas, lavavam a roupa na água fria do rio, causando o choque. Rosa conviveu toda a vida
com este problema, sem tratamento adequado. Justina recorda de sua dor: “Quando tinha 15
anos, ela vivia enchendo o pé de perfume. Uma vez em que estávamos passeando, ela pediu que
eu caminhasse na frente. Não queria que eu sentisse o mau cheiro que exalava dos pés”.


       CAMA DE CIMENTO ÚMIDO


       No entanto, a doença não impediu que Rosa caminhasse durante anos pelas ruas de
Joinville, delirando, sem rumo, sem destino. Certo dia, João Carvalho, um dos fundadores e
presidente da Vila Vicentina (no bairro Boa Vista), lugar onde só moram pessoas idosas e sem
família, decidiu que Rosa moraria lá. Ela ficou 35 anos na Vila, onde deu muito trabalho. Rosa
vertia cachaça goela abaixo, desafiava o coro dos contentes, fazia arruaça, metia o dedo no nariz
dos anjos, e gritava, gritava, bagunçando a tranquilidade da vizinhança. Por duas vezes colocou
fogo em sua casa. Tinha mania de incendiar tudo. Colchão e travesseiro não duravam. Lençóis em
cinzas, paredes cobertas de carvão. Rosa queria pôr fogo no mundo. E não adiantava dar vestido
novo para Rosa. Usava uma vez e no dia seguinte rasgava. Os últimos anos de Rosa foram de corpo
atado à dor. Cólera, clausura, inchaço, bebida, arruaça, clamor que varava em surdo grito de loba
machucada as infindas madrugadas. Foram dias de muito sofrimento os últimos anos de “Rosa do
pé inchado”. Abandonada, azeda, e porque fedia, Rosa ficou só. No fundo do poço chegou a beber
álcool puro, tamanha a crise de alcoolismo.
       Rosa, com o tempo, sentia maciço o céu sobre sua cabeça frágil e feia. Definhava cada vez
mais, bebendo e vivendo na sujeira. Não podia mais entrar em sua casa, tão forte o cheiro do lixo e
das fezes que se acumulavam pelos cantos. As paredes da sua casa — totalmente pretas — por
causa dos constantes incêndios que ela mesma provocava. Difícil imaginar um ser humano lá
dentro dormindo numa “cama” de cimento úmido e apenas um travesseiro. Quanto aos pés,
também foram piorando. Em vez de tratá-los, Rosa os enrolava em jornal e dizia que era para “tirar
a dor”. Mesmo assim, continuava andando por Joinville e só aceitou ir ao médico quando perdeu
toda capacidade de se locomover. Tarde demais. No Dia de Finados do ano passado, logo depois de
ter ido ao médico e ficar algum tempo no hospital, Rosa sofreu a descarga de um derrame que
paralisou um de seus braços e a impossibilitou de falar. Foi tratada pelas moradoras da Vila
Vicentina numa nova casa. Estava limpa e bem cuidada. A comunidade da Vila ajudou muito, com
alimentos e vigílias durante a noite. “Rosinha”, que sempre foi pequena, estava menor do que
nunca e muito magra. As pernas, sem faixas, mostravam o que ela tentou esconder a vida inteira:
os buracos gangrenados das pustulentas e malcheirosas feridas nunca curadas.
       Como viam que ela não melhoraria, resolveram levar Rosa para o Hospital Regional. Já não
movia mais a boca nem abria os olhos. Apenas um fino filamento de soro a nutria. Na madrugada
do dia 12 de dezembro de 95 Rosa morreu. Ninguém vai mais encontrar com ela na hora do rush,
ou girando sua bengala espraguejando, ou movimentando seu corpo de medula queimando pela
cidade ninguém vai mais, porque Rosa morreu, morreu profundamente, sem música, sem uvas.
Talvez um pano enxugue sua dor, um pano tecido com o linho da infância.

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Joinville em Boatos - Rosa do pé inchado

  • 1. Perfil publicado no jornal A Notícia, na seção Anexo, no dia 18 de janeiro de 1996. ROSA DO PÉ INCHADO Uma rapsódia trágica Fernando Karl - Joinville (sobre argumento de Sheila Deretti) Rosa não é flor de roseira, parte rosada das faces. Rosa não é rosácea, não é boca circular e ornamentada no tamanho dos instrumentos de cordas de dedilhar. Rosa não é nada disto. Rosa é um nome com osso e respiração e havia nela um pé que sofria, por isto o codinome: “Rosa do pé inchado”. Voltemos um pouco no tempo encardido. Lá vai ela com os pés envoltos em gaze, esparadrapo e iodo. Ela e sua bengala tosca, chapliana. Lá vai Rosa, tão eloquente fala muda, pela via dos defuntos, mocinha sempre vaidosa, o vestido longo bem apertado na cintura e o gesto sucumbido na dor. Fábula singular numa cidade distraída — Joinville — Rosa circula constelada da própria sina entre as pessoas. Tem vezes que ela brinca, outras que verte o pranto copioso. Muitas vezes passa os dias ameaçando com a bengala do inferno qualquer um que cisma de indagar como vai seu pé. Lá vai Rosa de bengala na mão, como faz há mais de 50 anos. Rosa Correa, o nome de batismo. A água do padre escorreu na cabeça da menina e disseram o doce nome: Rosa. No entanto, hoje só a conhecem como “Rosa do pé inchado”. Nasceu em Araquari a 8 de julho de 1913. Seus pais morreram cedo. Ela e sua irmã de dois anos, Maria, foram criadas por parente. Maria faleceu há dez anos, de derrame cerebral. Rosa saiu moça da casa dos tios e veio para Joinville. Trabalhou no Hospital São José, de onde saiu e entrou três vezes. Comentava-se que “gostava de liberdade demais”. Rosa não aguentou aquelas horas tediosas e fugiu. Queria ares novos, foi para Curitiba, onde trabalhou na casa de um farmacêutico. Nesta época teve uma filha. Chocou em si o ovo de escorpião, lavou manta e sangue, mas nunca disse quem era o pai. Este seu maior segredo durante a vida. Mas as bocas ferinas proliferam e há quem sugira, como Justina Peixe Moreira, conhecida de Rosa, que o pai de todo legítimo, o pai mesmo era o patrão farmacêutico. Carmelina da Conceição, que conviveu com Rosa durante o azougue dos quinze anos, diz que ela foi amante de conhecido médico de Joinville e engravidou na época em que trabalhava no Hospital São José. Durante este tempo, quando perguntavam a Rosa quem era o pai, apenas respondia: “Não sei, estava dormindo. Só senti um peso em cima de mim. Quando acordei,
  • 2. o peso não estava mais lá”. A maternidade de “Rosa do pé inchado” esconde também mistérios de família. Na condição de mãe solteira, foi árduo dar pão e céu ao bebê. Então entregou a criança de apenas dois meses aos cuidados de um casal de primos que morava em Curitiba. Eles tinham um filho e boas condições financeiras. Rosa ia sempre visitar a criança. Receosos de que a filha de rosa descobrisse a identidade da verdadeira mãe, os pais adotivos mudaram-se para São Paulo. Rosa foi que nem doida atrás da menina sem ao menos saber onde morava. Não encontrou. Hoje a filha está com 49 anos e é casada com um farmacêutico. Continua morando em São Paulo, no bairro Santana. Os pais adotivos já morreram e nunca lhe contaram sobre sua verdadeira mãe. UM RAMALHETE DE FLORES Rosa, crivada de angústia e pouco ouro, andava, andava, de cidade em cidade, peregrina do lodo, mas sempre voltava para Joinville, seu porto seguro. Os que conviveram com ela, e que agora são velhos, contam que Rosa era ardente, com voz tangida de força áspera, e também vaidosa, muito, nas horas acordadas. Todos comentam que “Rosa do pé inchado” era bonita, demasiado bonita. Se tingia de forte maquiagem e o vestido apertado na cinturinha de mosquito, que era como se chamava a cintura fina naqueles idos. Às vezes, chegava para uma pessoa e lhe oferecia um ramalhete de flores colhido por ela mesma. Entoava, então, uma cantiga qualquer. Alguns, como o cunhado Felipe, falam que desde jovem Rosa teve temperamento de dinamite. Outros, como a prima Ester Pereira, a achavam “uma moça querida e educada”. Com o desaguar dos anos, entretanto, “Rosinha”, como também a chamavam, mudou: começou a beber e passou a vibrar escarlates agonias. Tornou-se chucra, agressiva com acidez pelos poros, e ainda andava suja e mal vestida. Os pés, que ela em silêncio tentava ocultar com faixas de gaze, inchavam cada vez mais e mais. Por compaixão, as pessoas lhe davam uns níqueis e Rosa passou a viver de esmolas. O apelido “Rosa do pé inchado” vem do mal que lhe consumia os pés. Isto desde moça era assim. Rosa Sprotte, que a conheceu em Araquari, e a própria Justina Pereira, dizem que era “erisipela” (doença causada por um micróbio) o que punha o pé de Rosa daquele jeito deplorável. Mas o inchaço pode ter tido como causa um problema de circulação provocado por choque térmico. Explica-se: há muito anos era comum as pessoas fazerem fogo no chão da casa e, depois de aquecidas, lavavam a roupa na água fria do rio, causando o choque. Rosa conviveu toda a vida com este problema, sem tratamento adequado. Justina recorda de sua dor: “Quando tinha 15
  • 3. anos, ela vivia enchendo o pé de perfume. Uma vez em que estávamos passeando, ela pediu que eu caminhasse na frente. Não queria que eu sentisse o mau cheiro que exalava dos pés”. CAMA DE CIMENTO ÚMIDO No entanto, a doença não impediu que Rosa caminhasse durante anos pelas ruas de Joinville, delirando, sem rumo, sem destino. Certo dia, João Carvalho, um dos fundadores e presidente da Vila Vicentina (no bairro Boa Vista), lugar onde só moram pessoas idosas e sem família, decidiu que Rosa moraria lá. Ela ficou 35 anos na Vila, onde deu muito trabalho. Rosa vertia cachaça goela abaixo, desafiava o coro dos contentes, fazia arruaça, metia o dedo no nariz dos anjos, e gritava, gritava, bagunçando a tranquilidade da vizinhança. Por duas vezes colocou fogo em sua casa. Tinha mania de incendiar tudo. Colchão e travesseiro não duravam. Lençóis em cinzas, paredes cobertas de carvão. Rosa queria pôr fogo no mundo. E não adiantava dar vestido novo para Rosa. Usava uma vez e no dia seguinte rasgava. Os últimos anos de Rosa foram de corpo atado à dor. Cólera, clausura, inchaço, bebida, arruaça, clamor que varava em surdo grito de loba machucada as infindas madrugadas. Foram dias de muito sofrimento os últimos anos de “Rosa do pé inchado”. Abandonada, azeda, e porque fedia, Rosa ficou só. No fundo do poço chegou a beber álcool puro, tamanha a crise de alcoolismo. Rosa, com o tempo, sentia maciço o céu sobre sua cabeça frágil e feia. Definhava cada vez mais, bebendo e vivendo na sujeira. Não podia mais entrar em sua casa, tão forte o cheiro do lixo e das fezes que se acumulavam pelos cantos. As paredes da sua casa — totalmente pretas — por causa dos constantes incêndios que ela mesma provocava. Difícil imaginar um ser humano lá dentro dormindo numa “cama” de cimento úmido e apenas um travesseiro. Quanto aos pés, também foram piorando. Em vez de tratá-los, Rosa os enrolava em jornal e dizia que era para “tirar a dor”. Mesmo assim, continuava andando por Joinville e só aceitou ir ao médico quando perdeu toda capacidade de se locomover. Tarde demais. No Dia de Finados do ano passado, logo depois de ter ido ao médico e ficar algum tempo no hospital, Rosa sofreu a descarga de um derrame que paralisou um de seus braços e a impossibilitou de falar. Foi tratada pelas moradoras da Vila Vicentina numa nova casa. Estava limpa e bem cuidada. A comunidade da Vila ajudou muito, com alimentos e vigílias durante a noite. “Rosinha”, que sempre foi pequena, estava menor do que nunca e muito magra. As pernas, sem faixas, mostravam o que ela tentou esconder a vida inteira: os buracos gangrenados das pustulentas e malcheirosas feridas nunca curadas. Como viam que ela não melhoraria, resolveram levar Rosa para o Hospital Regional. Já não
  • 4. movia mais a boca nem abria os olhos. Apenas um fino filamento de soro a nutria. Na madrugada do dia 12 de dezembro de 95 Rosa morreu. Ninguém vai mais encontrar com ela na hora do rush, ou girando sua bengala espraguejando, ou movimentando seu corpo de medula queimando pela cidade ninguém vai mais, porque Rosa morreu, morreu profundamente, sem música, sem uvas. Talvez um pano enxugue sua dor, um pano tecido com o linho da infância.