O documento descreve o conflito fundiário na década de 1940-1950 na região de Porecatu no Paraná entre posseiros e fazendeiros. Os posseiros resistiram à doação de terras que ocupavam a grandes proprietários. O Partido Comunista apoiou os posseiros e testou táticas de guerrilha rural, transformando o conflito em uma experiência de luta armada. Violentos confrontos eclodiram entre os grupos, deixando mortos e feridos.
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
Guerrilha de Porecatu
1. Guerrilha de Porecatu: a resistência camponesa na colonização do norte do
Paraná1
Osvaldo Heller da Silva
Emanuel Menim
Um conflito em gestação
Do final dos anos 1940 ao início dos anos 50, o até então pacato município de
Porecatu e seus arredores foram sacudidos por violentos conflitos sociais. Afrontavam-
se, de um lado, fazendeiros, grileiros e seus jagunços apoiados por forças policiais dos
estados do Paraná e de São Paulo; e de outro, camponeses posseiros, secundados por
militantes comunistas. As hostilidades começaram quando o governo paranaense doou a
grandes proprietários terras que já estavam ocupadas por posseiros. Alguns camponeses,
encorajados pelo então Partido Comunista do Brasil (PCB), resistiram a essa decisão
governamental. Dos enfrentamentos resultaram mortos e feridos. Com razão, o
jornalista Pedro Felismino, do jornal Folha de Londrina, na data de 14 de julho de
1985, observou que esses combates, apesar da amnésia da historiografia oficial,
traduzem uma importante fase da colonização do norte do Paraná, constituindo-se em
um conflito armado sem precedentes na história do estado.
A guerrilha de Porecatu inaugurou uma sequência de lutas sociais que eclodiram
em diferentes áreas rurais brasileiras, ao longo da década de 1950. Esses conflitos no
norte do Paraná, eventos de repercussão nacional, certamente foram tomados como
referência ou como exemplo – a ser seguido ou não – por vários outros, em diferentes
pontos do país.
O PCB escolheu Porecatu para testar, na prática, sua virada ultra esquerdista,
expressa no Manifesto de Agosto de 1950. Mediante palavras de ordem de
enfrentamento direto ao aparelho de Estado e às oligarquias rurais, os comunistas
lançaram um balão de ensaio de luta armada no campo. Provavelmente inspirado nas
táticas de guerrilha utilizadas por Mao Tsé-Tung, o Partidão, pela primeira vez no
Brasil, preparou e empurrou os camponeses ao combate aberto contra seus “inimigos de
1
Este texto foi elaborado, com modificações, a partir de um capítulo do livro de Osvaldo Heller da Silva,
A foice e a cruz: comunistas e católicos na história do sindicalismo dos trabalhadores rurais do Paraná
(Rosa de Bassi, 2006).
2. classe”.
Ao bancar o aprendiz de feiticeiro, o PCB, até então confinado ao espaço
urbano, conseguiu penetrar nos sertões do norte do Paraná. Ao protagonizar o
movimento armado de Porecatu, o partido ensaiou a constituição de organizações rurais
com características associativas: as “ligas camponesas” do Paraná. De uma forma
inédita, um ator político tentava enquadrar o campesinato desse estado. Essas
organizações protossindicais, criadas pelos comunistas em diferentes pontos do
território nacional, mais tarde transmitiriam a sua herança às famosas ligas camponesas
do Nordeste e, em que pesem a forte oposição e repressão encontradas, as sementes da
organização partidária comunista e da organização sindical germinaram nesse solo fértil.
As terras disputadas na região dos municípios de Jaguapitã e de Porecatu faziam
parte de uma concessão muito antiga, que o governo do estado do Paraná havia feito em
favor da Companhia Colonizadora Alves de Almeida & Irmãos, sem que nenhuma obra
de colonização tivesse sido efetivamente realizada. Por volta de 1942, o governador
Manoel Ribas anulou essa concessão, loteando as terras para vendê-las a preços
módicos para lavradores. Na realidade, o poder público lançou uma campanha cujo
objetivo era atrair mão de obra de outros estados, visando ao desmatamento e à
colonização de, aproximadamente, 120 mil hectares de terras da União. Em
consequência, lavradores vindos de vários lugares, tanto aqueles que compraram seus
lotes, quanto aqueles que simplesmente os ocuparam, foram atraídos para a região.
Essa política do governo atraiu uma multidão de pessoas para a região. Segundo
dados apresentados por Oikawa (2011), em 1940, eles eram 300 posseiros e, em 1951,
no auge do conflito, já somavam cerca de 3 mil pessoas. No início, as terras eram
abundantes, os lavradores podiam instalar-se, cultivar suas roças, alguns chegaram até a
prosperar (WESTPHALEN, 1968). Porém, tais facilidades não duraram muito. Os anos
passaram sem que o governo legalizasse as terras dos posseiros. A insatisfação
aumentou e cresceu ainda mais sob a pressão de acontecimentos mais amplos.
O aumento dos preços do café no mercado internacional, o descobrimento das
qualidades fitoedáficas excepcionais das terras setentrionais do Paraná, superiores a
qualquer região do país, acabaram por desencadear um afluxo de posseiros, vindos de
todos os confins do Brasil, seduzidos pelo novo Eldorado. Mas isso provocou,
paralelamente, a corrida para a região de fazendeiros, proprietários de terras e
especuladores de todo o tipo. Os lavradores eram muitas vezes acusados de terem
montado uma espécie de indústria da invasão, que teria transformado os posseiros em
3. profissionais dessa prática:
Malandros vindos de outros estados entram em fazendas, arbitrariamente, e
ali se localizam. Alguns fazendo plantações, outros simples choupanas, com o
objetivo de, mais tarde, obter grossa indenização. Umas vez indenizados
pelos proprietários, saem e vão intrusar outras fazendas, constituindo, assim,
verdadeiro comércio ilícito e altamente lucrativo com a „intrusagem‟.
(DIÁRIO DA TARDE, 22 jun. 1951).
Estavam, portanto, reunidas as condições favoráveis para a eclosão de um
conflito fundiário. À primeira vista, a luta social teria surgido das diferenças de
interesses entre posseiros e fazendeiros. Entretanto, não se pode resumi-la a uma disputa
pela terra entre camponeses e grandes proprietários, ainda que esse seja o centro do
problema. O conflito se deu em torno de questões bem mais complexas: de um lado,
posseiros, empurrados por militantes e instâncias do PCB, que desejavam se envolver
no caso; de outro lado, fazendeiros, circundados por jagunços e pistoleiros, pelo
aparelho do Estado – o governo federal, os sucessivos governos estaduais, as
autoridades locais e os militares –; todos, em graus diferentes, tinham vontade ou
alegavam necessidade de intervir. Por fim, o último protagonista do conflito: a imprensa
– na maioria das vezes pronta a servir aos grupos dominantes –, que desempenhou
muito mais um papel na formação da opinião do que na informação ao público. Cada
um desses agentes tinha interesses econômicos imediatos e projetos políticos em longo
prazo.
Nessa atmosfera política tensa, conforme será visto, o Partido Comunista foi
quem melhor compreendeu as peculiaridades da situação. Efetivamente, soube
transformar um conflito fundiário, banal nos sertões brasileiros, em uma experiência
ímpar de guerrilha rural. Com esse propósito, o partido tomou todas as disposições
necessárias a intervenções rápidas e eficazes, tornando-se o agente mais ativo ao longo
dos acontecimentos. Vale notar que o conflito eclodiu no perímetro formado pelos
municípios de Jaguapitã, Guaraci, Centenário do Sul e Porecatu, localizados na região
central do norte do Paraná, limítrofe ao estado de São Paulo. O epicentro da revolta
situou-se em Porecatu, na área do “grilo” conhecida por Barra do Tibagi. A área media,
aproximadamente, 4.000 hectares, estando delimitada pelos rios Paranapanema,
Centenário e Ribeirão do Tenente e a rodovia Porecatu-Centenário do Sul (LOPES,
1982).
Em 1944, os lavradores perderam a paciência pelo mutismo governamental. A
4. fim de solucionar o problema comum – a ausência de medidas concretas para a
obtenção do título de propriedade –, eles resolveram se unir. Em Porecatu e em Guaraci,
mais de 500 famílias de posseiros reuniram-se e, segundo as diretivas do Partido
Comunista do Brasil, elegeram seus representantes. Já era perceptível “a ingerência
ainda um pouco tímida” do PCB, sobretudo dos simpatizantes de Jaguapitã, nessas
primeiras tentativas de mobilização dos lavradores. Entre os porta-vozes escolhidos,
somente um não chegou a tornar-se membro do Partidão. Nomeando representantes, os
agricultores procuravam ultrapassar a condição de posseiro isolado, disperso e
atomizado, para alcançar o nível de grupo objetivado, isto é, de grupo político que
deseja ser ouvido.
Desde o início, os posseiros dotaram-se de mediadores influentes. Assim, um de
seus representantes foi para o Rio de Janeiro, então capital do país, a fim de solicitar a
intervenção favorável do presidente da República. Infelizmente, para eles, essa ação não
obteve resultado imediato. Em 1945, o destino dos posseiros tornou-se ainda mais
incerto: Manoel Ribas foi substituído por Moysés Lupion no governo do estado. Até
então, os lavradores tinham como garantia apenas a palavra de Manoel Ribas e os
documentos – pouco confiáveis – de demanda do título de propriedade à Comissão
Mista de Terras, órgão do governo do estado encarregado de assuntos fundiários. Mas,
com o novo governador, os posseiros já não estavam certos de que o compromisso
assumido por Manoel Ribas seria respeitado, ainda mais se considerando que Moysés
Lupion pertencia a uma tendência política diferente daquela de seu antecessor. O
primeiro era do Partido Social Democrático (PSD), e o segundo, da União Democrática
Nacional (UDN).
Além disso, à medida que o interesse sobre o território aumentava, os preços das
terras subiam e o mercado do setor se aquecia, favorecendo a agiotagem e a corrupção.
Segundo comentários da época, o governador Moysés Lupion teria vendido “até o
quinto andar” das terras do Paraná, e alguns funcionários teriam transformado o
Departamento de Terras e Colonização em autêntico balcão para enriquecimento
pessoal. Assim, os grupos que viviam à sombra do governo tinham o poder de mudar a
geografia, falsificando mapas e documentos. Essas elites demandavam grandes
extensões de terras devolutas, porém já ocupadas, desmatadas e exploradas por
posseiros, que aguardavam o título de propriedade. Ora, as plantações mantidas pelos
lavradores atiçavam a cupidez do pessoal da Rua Quinze, a avenida dos negócios da
capital, Curitiba. O posseiro Izidro Garcia assim descreveu a desapropriação que sofreu:
5. Eu era proprietário do lote 17 [...] com 66 alqueires. Cheguei ali no dia 1º de
setembro de 1942. Há um ano e oito meses o senhor José Climácio, com a
proteção do governo Lupion, tomou o lote 17 e entregou-me o 19. Ora,
acontece que este lote 19 era imaginário, ele media 22 alqueires e ficava
sobre meu próprio terreno. Pois bem, agora também esses 22 alqueires esse
sujeito me tirou.
Não esperando mais pela promessa de ação imparcial do governo do estado, os
posseiros pegaram em armas para defender aquilo que consideravam como seu por
direito. Inevitavelmente, os conflitos começaram. Segundo Manoel Jacinto – liderança
do PCB em Londrina –, desde 1945, o município de Guaraci foi sede das primeiras lutas
pela posse das terras e lugar da organização inicial dos posseiros, cujo objetivo era
combater a desapropriação, permanecendo nos lotes de terra. Durante muitos dias, 1.500
posseiros armados reuniram-se para reivindicar a legalização de suas posses. Eles
conseguiram, com muitas dificuldades, reunir os lavradores para conhecer a opinião de
cada um e saber se queriam ou não permanecer nas terras: “a maioria queria, e surgiu a
luta” (WESTPHALEN, 1968)
Um dos conflitos mais graves, que marcou o início dos acontecimentos, deu-se
na posse dos Billar. Até aquele dia, a família Billar pagava regularmente os impostos,
confiando na palavra das autoridades, esperando a regularização de seu direito à
propriedade. Eles viviam “no reino de Deus”, como dizia Antônia Billar, a “mãezona”
do grupo. Mas, em um dia de 1947, a polícia de Porecatu chegou para visitá-los:
Chefiados pelo capitão Eusébio [...] eram doze homens. Eles bateram nas
nossas filhas, espancaram nossos filhos - e prenderam eles em Porecatu. Meu
velho foi chamado alguns dias mais tarde pelo juiz Luiz Carlos Valente [...].
Aí falaram que, se ele quisesse ver seus filhos livres - e isto foi dito com a
ameaça dos fuzis - devia assinar uma declaração de renúncia às terras em
troco de CR$ 18.000. [...] Mas o proprietário não quis pagar. Foi quando o
José disse, então, que naquelas condições, só sairia dali morto. E ficamos na
terra. (O CRUZEIRO, 14 jun. 1951).
Depois de terem todas as suas tentativas de conciliação frustradas e devido às
agressões sofridas, os posseiros reagiram. Dias mais tarde, os Billar, armados de
escopetas, impediram os trabalhadores contratados pelos fazendeiros de desmatar a sua
posse. Em seguida, essas iniciativas se tornaram corriqueiras e, aos poucos, foram se
formando bandos armados, resistindo em suas posses.
6. Os comunistas no centro da batalha
As relações iniciais entre posseiros e comunistas foram estabelecidas por meio
de conversas, primeiramente ocasionais, com os militantes de Jaguapitã. Em 1947,
segundo Manoel Jacinto, o PCB foi contatado pelos posseiros, fato que deixa
subentendido que foram os camponeses que tomaram a iniciativa de ir à procura do
partido, e não o contrário. Em seguida, o Comitê Municipal do PCB de Londrina e a
Comissão Executiva do Paraná – por intermédio de Manoel Jacinto, enviado ao local –
tomaram conhecimento da situação dos lavradores, sem, no entanto, intervir diretamente
no conflito. Até aí, a ação dos comunistas resumia-se à fraca participação de alguns
militantes locais.
Após uma série de contatos preliminares, os dirigentes do Partidão tomaram a
decisão de atuar mais efetivamente em apoio aos lavradores que resistiam no norte do
Paraná. Mais que isso, como direção revolucionária das massas, o Partido Comunista
visou a tomar a frente da mobilização. Não se tratava, portanto, de levar-lhes um apoio
desinteressado, desempenhando um papel secundário. Os comunistas queriam liderar a
ação.
Em um ambiente político hostil às esquerdas e largamente dominado pelos
conservadores, os comunistas eram socialmente malvistos e percebidos como
indesejáveis e intrusos. No entanto, apesar de todo o preconceito de uma ideologia
anticomunista em gestação, os posseiros se mostraram receptivos ao apoio do Partidão.
Esses lavradores desconfiavam das autoridades públicas, enfrentavam uma
marginalização política perante as instituições tradicionais e estavam sem esperança em
relação ao futuro. Naquele momento, os militantes comunistas apareceram como os
portadores de uma possibilidade de mudança, talvez de um futuro melhor. Contestando
a ordem estabelecida e os dogmas oficiais, opondo uma representação do mundo social
contrária à representação instituída, os militantes se apresentavam como os “profetas”
anunciadores de uma nova ordem (BOURDIEU, 1974, 1981).
Em novembro de 1948, após algumas reuniões e discussões, foi proposta pelo
Partidão a constituição de bandos armados, “para tomarem a terra à força” e resistirem
ao governo, “si possível fosse”. Dessa forma, foi adotada a luta armada, e aqueles
lavradores do norte do Paraná tornaram-se camponeses rebeldes, preparados, armados e
organizados pelos militantes do partido. Essa decisão audaz era surpreendente por parte
do PCB, cujo exercício político fora relativamente moderado até então. No entanto, essa
7. escolha não era nada mais do que uma consequência prática da virada à esquerda,
conduzida pelos comunistas para combater o que acreditavam ser o governo de traição
nacional em um contexto de guerra fria.
Uma das primeiras medidas dos rebeldes foi constituir duas equipes para realizar
ações táticas. Essas equipes eram compostas por 12 homens, em média, liderados por
Hilário Gonçalves Padilha Filho, vulgo Itagiba, e por Arildo Gajardone, conhecido por
Strogoff. Um sinal revelador da liderança comunista do movimento é que, desde a
constituição dos grupos, os dois chefes já tinham um status de quadros do partido. Os
grupos estavam divididos em acampamentos de tipo militar, instalados na mata. Graças
à experiência adquirida no exército por parte de alguns de seus membros e à própria
estrutura rígida do PCB, o bando de rebeldes apresentava disciplina de ação e estrutura
hierarquizada militarmente, agindo de forma centralizada.
Os posseiros foram submetidos à dura preparação física, pois, às vezes, eram
obrigados a marchar durante um dia e uma noite, cerca de 80 km, quando estavam
cercados pela polícia. Algumas sessões de tiro foram também organizadas. Podemos
dizer que os camponeses comandados pelo Partidão estavam bem armados. No início,
cada novo adepto trazia o seu material de caça, geralmente uma espingarda Winchester.
Mais tarde, à medida que o movimento se organizava, os camponeses recebiam
diretamente armas de qualidade bem superior fornecidas pelo PCB de Londrina, de
Curitiba e mesmo de Presidente Prudente, no estado de São Paulo (CHILCOTE, 1982).
Durante um ano, os militantes do Partidão efetuaram um levantamento
topográfico da região. Apesar das dificuldades que enfrentaram, souberam identificar os
pontos estratégicos, que podiam servir de quartel-general, os locais que podiam oferecer
uma resistência à polícia e aos jagunços e as trilhas secretas que permitiam a ligação
entre os QG. De fato, José Ortiz, membro do partido, especialista em armas, chegou a
Porecatu com o único objetivo de cumprir esta missão: organizar o sistema de defesa e
os acampamentos.
Graças ainda à habilidade de Ortiz, foi instalado um sistema eficaz de
informação e comunicação entre os rebeldes no sertão e os militantes e os organismos
do partido na cidade. Era “o SNI da pequena Coreia”, constituído por antigos posseiros,
já idosos, que não despertavam suspeitas da polícia. Discretamente, nos bares, eles
fumavam o seu palheiro, tomavam a sua pinga e escutavam atentos todas as conversas.
E depois, eles passavam as informações. Dessa forma, o grupo rebelde sabia sempre o
que acontecia em Porecatu, em Londrina e nos demais lugares: as reações dos
8. fazendeiros, as decisões do governo, os movimentos das tropas e ainda as novas ordens
dos dirigentes. O grupo era também constantemente abastecido com medicamentos,
alimentos, armas e roupas e informado sobre as notícias na imprensa e, sem dúvida,
sobre a propaganda do partido.
Londrina: a base logística
O apoio essencial dos rebeldes encontrava-se em Londrina, pólo econômico e
político do Paraná setentrional, cidade onde o Partidão apresentava um enraizamento
significativo, sobretudo na classe média urbana. Graças ao prestígio do médico Newton
Câmara, o partido havia conquistado respeitabilidade tanto na área de saúde quanto
entre as elites locais. Conhecido, reconhecido e proclamado como o chefe do PCB dessa
região, Newton Câmara era considerado por toda a imprensa como o responsável
principal dos acontecimentos correntes. Além disso, o trabalho de apoio jurídico,
prestado pelo advogado Flávio Ribeiro, oferecia-lhe um acesso privilegiado aos
trabalhadores. Redator do Jornal do Povo, o advogado organizava reuniões com os
lavradores simpatizantes do partido.
Nessa época, o partido difundia a sua doutrina por meio do seu jornal local, O
Momento – sendo seu secretário o discreto Nelson Galvão – e por meio de jornais
comunistas vindos do resto do país. Igualmente discreto, o jornalista João Saldanha foi
empregado, em Londrina, na sede local do semanário Hoje, editado pelo PCB de São
Paulo. Mais que isso, Saldanha era o homem de ligação entre o norte do Paraná e o
Comitê Central do Partidão.
Enfim, os comunistas contavam com a tribuna da Câmara de Vereadores, na
pessoa de Manoel Jacinto, eleito em 1947 pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN).
Estando na clandestinidade, o PCB tinha adotado a estratégia política de alçar seus
quadros em cargos públicos, por meio de outro partido, um partido legal. Assim, o
Partido Comunista conseguiu infiltrar-se de tal forma no PTN local, que o respectivo
Comitê Municipal era quase que uma réplica do Comitê Regional daquele. Apesar de
suas características marcadamente urbanas, nessa época o PCB de Londrina exercia uma
intensa atividade de propaganda no meio rural. A partir desse trabalho obstinado, o
partido pôde tomar contato com os posseiros de Porecatu desde o início da luta. Então,
aos poucos, as ligações se fortaleceram, e o Comitê Regional tornou-se o principal
fornecedor logístico e político dos combatentes na mata.
9. Em Londrina o jornal O Momento era editado, assim como todos os panfletos e
impressos necessários para os rebeldes. Aí moravam e chegavam todas as figuras de
proa, os cabeças do partido, como os famosos Agildo Barata e Gregório Bezerra, que,
segundo algumas fontes, estavam presentes no teatro das operações. De Londrina, saíam
também alguns emissários, como Manoel Jacinto, rumo à região insurgida. No outro
sentido, os dirigentes dos posseiros vinham à cidade, para garantir a ligação.
A força política responsável pelo impulso da luta de resistência dos posseiros
foi, indubitavelmente, o Partido Comunista do Brasil; e a cidade de Londrina
transformou-se no centro nervoso e irradiador da implantação do Partido Comunista no
estado do Paraná, tornando-se mais importante, desse ponto de vista, do que a capital,
Curitiba. Como escreveu um jornalista, Londrina tornou-se a matriz da crença vermelha.
Os comunistas endurecem sua posição
Na região do conflito, na medida em que a luta se espalhava, os rebeldes
executavam operações sempre mais espetaculares, de tipo comando. A proibição do
trabalho agrícola era uma tática utilizada amplamente. Eles impediam, sob ameaça das
armas, toda atividade agrícola nas fazendas, como o plantio, o desmatamento, a capina,
a colheita etc. Dessa forma, queriam mostrar sua força e organização, amedrontar os
proprietários fundiários e seus jagunços e, enfim, fazerem-se ouvir. Na realidade, com o
passar dos meses, o medo e o terror tornavam-se uma prática claramente utilizada pelos
rebeldes para, ao mesmo tempo, desorientar e paralisar o adversário e infligir-lhe
derrotas, e então ganhar cada vez mais a confiança dos posseiros. Em agosto de 1947,
em consequência de uma ação desse gênero, ocorreu um violento combate em Guaraci,
cujo saldo foi quatro mortos e incontáveis feridos.
Em 1950, a direção nacional do PCB lançou o Manifesto de Agosto − aliás,
muito controverso −, tendo, com isso, empreendido uma brusca guinada política à
esquerda. Pregando a constituição de um exército popular de libertação nacional, esse
programa revolucionário conclamava “todos os trabalhadores da cidade e da lavoura,
braçais e intelectuais, homens e mulheres à ação e à luta”, para constituir uma “Frente
Democrática de Libertação Nacional” (PCB, 1980).
Respondendo positivamente ao Manifesto de Agosto, os camponeses liderados
pelo PCB intensificaram suas ações beligerantes. Assim, invadiram a fazenda
Centenário, expulsando o administrador, sua família e demais empregados. Na medida
10. em que ganhavam mais confiança, os rebeldes passavam à ofensiva mais ampla. O
objetivo era controlar a região. Daí a implementação de uma tática de ação bem peculiar
e original por parte dos posseiros. Um dos chefes rebeldes, Strogoff,
cercou a sede da fazenda e, acompanhado apenas de Hilarinho e Lazão, todos
armados, apresentou-se dizendo que no mato havia mais de 150 homens
aguardando ordem para atacar. Invariavelmente Strogoff ordenava a seus
homens, bem espalhados, que atirassem para o alto seguidamente, o que de
fato dava a impressão de serem dezenas de combatentes [...] bastava três
homens surgirem num descampado para intimidar até mesmo 60
trabalhadores...
Cenas de violência sucederam-se até o dia 10 de outubro de 1950, quando
aconteceu o mais grave enfrentamento. As tropas militares, comandadas pelo tenente
Paredes, chegaram para despejar os posseiros da fazenda Palmeira. Como resultado de
três violentos combates, houve seis mortos − quatro posseiros, um garoto de 14 anos e
um jagunço, guia da tropa militar − e entre seis e oito feridos, alguns muito gravemente.
Depois desse dia, as forças policiais começaram a ter medo de entrar nas posses.
Nos povoados, como o de Vila Progresso, os rebeldes podiam até passear pelas ruas,
indiferentes, sem risco de enfrentar os militares. Como consequência, mais de 20
soldados desertaram – inclusive o tenente João André Paredes. Uns “covardes”, segundo
os rebeldes. Paralelamente, os jagunços começaram a abandonar a região, sobretudo
após a eliminação do impiedoso José Celestino, lendário pistoleiro contratado pelos
Lunardelli.
Os comunistas reforçavam suas posições. Em dezembro de 1950, o Comitê
Central, no Rio de Janeiro, quis estudar a situação mais de perto. Enviou Celso Cabral
de Mello, quadro do PCB, para o norte do Paraná, a fim de preparar um relatório sobre a
questão. Em 15 dias, ele coletou os dados para o Comitê Central. Em consequência, a
direção do partido decidiu intervir diretamente e, para tanto, enviou novamente “o
homem do CC” − como foi chamado pelos posseiros − para a região (CHILCOTE,
1982). Segundo João Saldanha, a decisão de enviá-lo ao Paraná veio de Luiz Carlos
Prestes, que na época representava uma tendência esquerdista no seio do Comitê
Central. No dia 20 de fevereiro de 1951, depois do carnaval, Celso Mello voltou a
Porecatu, mas, dessa vez, de forma definitiva a fim de assumir o comando geral das
operações. Paralelamente às suas tarefas de direção, dava cursos de guerrilha, de
autodefesa, sobre explosivos e ainda garantia a ligação entre a cidade e o campo.
11. Essa medida foi percebida por muitos dirigentes comunistas locais como uma
ingerência externa. Mesmo que se admita que Celso Mello teve uma grande ascendência
sobre todo o pessoal na mata, mais tarde ele foi duramente criticado pelos comunistas
de então. Manoel Jacinto expressou suas queixas:
Ele abandonava sua tarefa lá no mato e vinha para os prostíbulos em
Londrina, gastar todo o dinheiro adquirido com tanto sacrifício. Ele se julgava
acima de todos nós, [...] me chamava de caboclo provinciano [...] violou os
estatutos segundo os quais ninguém poderia sair do acampamento. Com isso,
alguns elementos saíam dos Q.Gs. para beber pinga [...]. Houve então um
desmoronamento, um relaxamento, uma indisciplina imposta por este
elemento do Comitê Central [...]. [No Rio de Janeiro] eles achavam que nós,
crioulos da região, os pernas de pau, não éramos capazes de nada, por isso
mandaram aquele sujeito que era o „tal‟, completamente ignorante no trato
com os camponeses e que aqui fez a sua lei, indispondo-se, inclusive, contra
nós, que tínhamos outras intenções na luta. (FOLHA DE LONDRINA, 23 e
27. jul. 1985).
Apesar das querelas entre comunistas, o dirigente conseguiu dar um ritmo novo
à ação dos camponeses rebeldes. Assim, a proibição do trabalho, as invasões das
fazendas, as ameaças, os métodos de persuasão e as demais táticas mais ou menos
violentas multiplicaram-se consideravelmente.
A caçada final
A conjunção de vários fatores acabou empurrando o governo do Paraná a
prescrever o tratamento profilático tradicionalmente utilizado: o uso puro e simples da
força. A existência de um território, dentro do estado, praticamente sob controle de um
grupo de camponeses filiados ao Partido Comunista, amplificado pela publicidade que
lhe foi dada, tornou-se intolerável aos olhos da administração pública. No início, o
governo ensaiou métodos pacíficos para solucionar o conflito: decreto de
desapropriação, formação de uma comissão de mais alto nível, tentativa de acordo com
os posseiros etc. As bases regionais do partido do governo, a grande imprensa e as
autoridades de Porecatu cobravam de Bento Munhoz uma solução urgente ao conflito,
porque a situação era muito feia e havia riscos de calamidade. Por sua vez, não podendo
mais cumprir com seu mandato, o presidente da Comissão de Terras pediu ajuda para o
chefe da polícia do Paraná.
Assim, no dia 1º de junho de 1951, o governo do Paraná desencadeou uma
grande operação militar, cercando inteiramente o perímetro sublevado. Tropas da
12. Polícia Militar e até da Aeronáutica chegaram de todos os cantos do Paraná e de São
Paulo e ocuparam as cidades da região. Ergueram-se barreiras em todas as estradas. O
secretário de Segurança Pública de São Paulo bloqueou a fronteira do Paraná para
impedir a fuga dos grupos armados. No dia 20 de junho, o coronel Albino Silva, chefe
da polícia do Paraná, acompanhado pelo comandante Hugo Bethlem, diretor de
Segurança Política e Social do Rio de Janeiro, chegou a Porecatu para pessoalmente
dirigir as operações.
A fim de constituir um cerco completo, visando especialmente à cidade de
Londrina – ponto estratégico da logística −, o comissário especial da Delegacia de
Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo, Louzada da Rocha, foi deslocado para a
região junto com uma dúzia de agentes.
Em uma operação policial bem-sucedida, de um só golpe, todos os dirigentes do
partido em Londrina foram presos, sem mandado judicial. Eram tantos que a polícia
teve que utilizar um ônibus para levá-los à prisão. Lá, foram amontoados como uns
porcos. Permaneceram 15 dias sequestrados, incomunicáveis, sofrendo humilhações. O
inquérito policial que deveria buscar as provas criminais a partir das quais o juiz poderia
expedir os mandados de prisão, bizarramente começou quatro dias mais tarde. Com o
mandado judicial, as prisões dos comunistas foram “legalizadas”. Segundo um chefe da
polícia, eles tiveram que agir precipitadamente porque estimavam que esse seria “um
risco que valia a pena correr”. Mas o governo falava apenas em três ou quatro capturas,
como medida preventiva. O sequestro de cidadãos democráticos, de pessoas honestas e
prezadas, a invasão de seus lares, enfim, esse crime contra a democracia e os direitos do
cidadão foi, evidentemente, objeto de grandes protestos por parte dos comunistas. Mais
do que um sério revés para o movimento rebelde, foi o golpe mortal. Desde então, os
camponeses e seus companheiros comunistas de Porecatu não só se encontravam
isolados na mata, privados de seus chefes, mas também viram integralmente cortados os
laços com o seu centro político-logístico. Foi o início do fim da resistência camponesa.
Daí por diante, as forças da ordem controlaram plenamente a situação. Tinham o
poder de decidir o momento em que os insurgidos, cercados em um canto da floresta e
isolados do mundo, seriam caçados. O dia escolhido foi 21 de junho. Um comboio
militar de mais de dez veículos se dirigiu rumo à Vila Progresso, espécie de república
livre dos rebeldes.
Pelo caminho, os posseiros tinham derrubado muitas árvores. Não adiantou
nada. Ao meio-dia, o povoado-símbolo dos camponeses foi cercado pelas tropas,
13. comandadas diretamente pelo coronel Albino Silva. O surpreendente foi que, como por
milagre, ele não encontrou nenhuma resistência. Satisfeito pelo êxito da operação,
enviou imediatamente um telegrama ao governador Bento Munhoz. Um pouco mais
tarde, todo o polígono do conflito estava cercado pelas forças policiais.
A população local assistia passiva e impotente às manobras militares. Os
testemunhos são unânimes: a população estava mergulhada no medo e no terror. Muitos
deixaram a região. Alguns jornais insistiam que esse clima devia-se às ameaças dos
posseiros e não à ocupação militar.
A situação tornou-se verdadeiramente dramática para os posseiros e suas
lideranças comunistas. Encurralados, isolados, também desgastados pelos meses
passados na mata, aos poucos eles foram desistindo pelo cansaço de uma luta que,
segundo entendiam, não levou a nada. Sobre essa terra maldita, vivendo como animais,
esperando morrer ou serem mortos, eles não tinham muitas escolhas: ou enfrentar as
tropas militares, continuando as ações de comando, o que seria talvez heróico, mas
certamente suicida, ou procurar fugir o mais rapidamente possível. Na falta de um
milagre, optaram pela segunda solução. Os posseiros, explica Manoel Jacinto,
já não lutavam mais para manter suas áreas, mas para fugir da polícia [...]. Os
homens mais idosos, sem forças, tiveram que ser arrastados e carregados nas
costas e a primeira coisa que comeram foi uma abóbora podre, que dividiram
entre si. Então, muitos deixaram as armas e sumiram, debandaram. (FOLHA
DE LONDRINA, 27.jul. 1985).
Pelo menos nessa empreitada, os resistentes alcançaram 100% de sucesso.
Apesar de o cerco militar parecer total, os camponeses rebeldes encontraram uma saída.
José Billar e Hilário Padilha foram os primeiros a deixar a luta armada. O jornalista
Pedro Felismino afirmou que os posseiros dispunham de um plano militar de retirada
para escapar. A eficácia do esquema e também a debilidade – talvez proposital – do
cerco policial são, no mínimo, surpreendentes. Tudo leva a pensar que não houve um
campo de batalha nem a menor resistência por parte dos rebeldes. Apesar disso,
ironizando ou desconhecendo absolutamente o que havia acontecido, um jornal
estampava a manchete: entrincheirados e fortemente armados os rebeldes ameaçavam as
forças policiais”. Mais do que isso, ao contrário das fontes oficiais e oficiosas que
difundiram a notícia da prisão de vários rebeldes (nove “agitadores” e José Sem Medo,
“nove caboclos grevistas” ou, ainda, “14 detidos em Porecatu”), a prisão de quem quer
que seja – sobretudo dos líderes – simplesmente não aconteceu. Na verdade, até 9 de
14. agosto de 1951, dos 15 principais acusados no inquérito policial em Porecatu, ninguém
havia sido preso, com exceção de Celso Mello e Newton Câmara, capturados em
Londrina.
Somente dois rebeldes da base, Alcides Ferreira da Silva e Mario Verone,
apresentaram-se “espontaneamente” à delegacia de polícia, mas não se sabe em que
condições. Repentinamente, tornaram-se informantes e serviram às autoridades, fosse
denunciando os recalcitrantes e suas ações, fosse guiando os agentes nas batidas
policiais. Esses camponeses que o aparelho repressivo conseguiu cooptar desculparam-
se, apresentando o pretexto de que foram enrolados e que, contra vontade, tinham
aderido ao grupo. Fazendo-se de ingênuos, esses indivíduos procuraram se escapar de
todas as responsabilidades relacionadas ao conflito. A imagem do posseiro manobrado
pelos comunistas foi, aliás, muito bem aceita e reproduzida pela polícia e pela imprensa.
Considerando que não se tratava dos dirigentes, a polícia não tinha qualquer interesse
em incriminá-los. Ao mesmo tempo, essa imagem encaixava-se na representação social
negativa dos comunistas, que as elites se esforçavam por instituir. Porém, é possível
que, finalmente, em um clima de desespero e pânico, a coação física tenha sido utilizada
no campo rebelde para conter a hemorragia das deserções.
Aliviados, a mídia, o governo, os fazendeiros misericordiosos, em suma, todos
os filantropos se alegraram pela ausência de sangue derramado, o “sangue generoso de
brasileiros que tinham sido enganados”. A habilidade do coronel Albino Silva,
“brilhante oficial”, tinha permitido um “trabalho limpo”. Com o mesmo entusiasmo, o
Estado Maior das forças militares felicitou-se pelo desempenho. O presidente da
República foi também mantido informado do êxito da operação de Porecatu.
No entanto, em meio à harmonia geral, levantaram-se algumas vozes
dissonantes, como a de José Hoffmann, deputado do Partido Trabalhista Brasileiro, que
exigia explicações sobre os acontecimentos e ameaçava romper com a maioria
governista.
Afastados os rebeldes, a Comissão de Terras retomou suas atividades. Dando
crédito aos informes oficiais do governo e às declarações oficiosas do PCB, o problema
fundiário teria sido solucionado graças ao deslocamento e assentamento dos posseiros
em uma outra região do Paraná. Segundo as autoridades, após o conflito, 380 famílias
de posseiros, cerca de 1.520 pessoas, foram reassentadas. Segundo o Partido Comunista,
o movimento foi vitorioso porque os posseiros ganharam seus lotes. De qualquer forma,
comparando essas reações otimistas com as estimativas do número de posseiros
15. presentes na região, podemos deduzir que muitos dentre eles, talvez milhares, não
receberam terra alguma. Então, para além dos desejos governamentais e comunistas, é
muito provável que inúmeros lavradores não tenham sido beneficiados por essas
medidas de reassentamento. Milhares de homens e mulheres continuaram vivendo na
condição de posseiros, ocupando as terras de outros ou em litígio, reativando os
conflitos e, mais recentemente, acampando à beira das estradas (COSTA, 1977;
FERREIRA, 1984; WESTPHALEN, 1968).
A polícia abriu inquéritos em Porecatu e em Londrina, acusando 16 e 9 pessoas,
respectivamente. Contudo, a justiça não demonstrou muito zelo. O juiz de Londrina
soltou imediatamente o médico Newton Câmara, considerado o principal culpado do
processo judiciário de Londrina, animador da operação de apoio aos posseiros rebeldes.
Alguns dias depois, todos os demais militantes do PCB de Londrina foram libertados.
Por que tal complacência com os comunistas? Com certeza, o Partidão não era
um partido que tinha a simpatia das elites locais. Ele guardava a sua independência em
relação aos grupos dominantes. Mas, paralelamente, reparava-se sua dificuldade de
penetração nas camadas populares. Nessa época, era antes de tudo um partido radical
ligado às classes médias. No entanto, como já foi observado, o PCB do norte do Paraná,
especialmente em Londrina, dispunha de um conjunto de quadros, proprietários de um
capital acadêmico e de um capital social não desprezíveis. A condição de médico,
advogado ou professor, em resumo, de profissional liberal, permitia a esses militantes
comunistas serem aceitos não só no seio da população em geral, mas também entre as
elites políticas. Os médicos, além do fácil acesso ao capital econômico, tendem a
constituir um grupo de pressão poderoso e apresentar um corporativismo muito
acentuado. Aliás, um comissário de polícia tinha reparado que a “camarilha
criptocomunista” ligada ao poder havia se infiltrado no “meio respeitável dos médicos”
de Londrina, de tal forma que tinha podido influenciar a apreciação judiciária. Em
seguida, a polícia foi submetida a uma espécie de pressão moral, e o juiz local abreviou
todas as prisões dos acusados.
Na noite do dia 24 de agosto de 1951, o “capitão” Carlos, o apologista do
Manifesto de Agosto, considerado como o mais importante dos acusados, escapou
misteriosamente da cadeia de Porecatu, ainda que “fortemente vigiada”. Antes de sumir
sem deixar pistas, revelou muita coisa à polícia. Surpreendente para um revolucionário
da sua envergadura, ele pronunciou o seu mea-culpa no depoimento às autoridades:
16. ele „constata com alegria, que o problema está sendo conduzido pelas
autoridades com espírito de justiça e de humanidade e está disposto a receber
a punição que lhe cabe, se incidiu em alguma infração [...] que o partido havia
ditado para a questão de Porecatu, não representava senão uma linha de
interesse partidário [...] linha que reconhece errada que depois de madura
reflexão, está disposto a abandonar. Esclarece ter prestado as presentes
declarações de livre e espontânea vontade.‟ (MELLO, 1951).
As delações feitas pelo temido homem do CC provocaram a ira de seus antigos
camaradas. Manoel Jacinto, furioso, procurou por Celso Mello nas matas, a fim de que
ele tivesse uma conversa com seus companheiros. Mas ele fugiu e voltou para o Rio e,
curiosamente, nem a polícia nem os comunistas, ninguém jamais o reencontrou.
Finalmente, no dia 29 de maio de 1953, foi pronunciada oficialmente a sentença
a respeito dos principais acusados: Celso Mello, Hilarinho, Strogoff e os demais foram
condenados, respectivamente, a penas de 14, 9, 7 e 3 anos de prisão (BANDEIRA,
1978). Mas, tão surpreendente quanto possa parecer, ninguém foi posto na cadeia. Esse
desfecho inesperado do conflito não pode ser explicado senão pelas ligações que o PCB
londrinense mantinha com certos setores das elites locais (MARTINS, 1986).
As ligas camponesas do Paraná
Quando se fala das ligas camponesas no Brasil, pensa-se automaticamente
naquelas do nordeste, animadas pelo deputado socialista Francisco Julião (MARTINS,
1986; IANNI, 1979). Raramente se indicam que as ligas fundadas pelo PCB as
antecederam, inclusive aquelas do nordeste. Ainda mais raras são as referências feitas
sobre organizações semelhantes em outras regiões, notadamente as dos estados de São
Paulo e do Paraná, também criadas pelos comunistas (ANDRADE, 1969; LOPES,
1982).
Entre as organizações não mencionadas, ao final da década de 1940 e início de
50, assiste-se ao florescimento de ligas camponesas no interior do Paraná, antes
daquelas de Julião. Muitas publicações editadas pelas ligas, vários documentos da
polícia e de militantes do Partidão o confirmam. Os primeiros indícios das ligas
camponesas no Paraná são de 1945, logo depois da legalização do partido. Em 1946, o
PCB apontava que existiam três delas. Durante os acontecimentos de Porecatu, elas
alcançaram seu apogeu, chegando ao número de 12. Mais tarde, em meados de 1951,
uma vez findo o conflito, nunca mais se ouviu falar das ligas camponesas paranaenses.
17. Graças aos estudos mais recentes sobre o conflito de Porecatu, foi possível
lançar luz sobre o fenômeno das ligas camponesas no Paraná. Ora, a estrutura inicial e
mais importante para os rebeldes de Porecatu foi, como já realçado, a formação dos
grupos armados. No entanto, em uma segunda etapa esses grupos armados foram
organizados e/ou favoreceram a constituição das ligas camponesas. Um dos dirigentes
dos posseiros de Porecatu fazia o seguinte apelo: “organizemo-nos em ligas camponesas
e em comissões de reivindicação em todas as águas, fazendas e patrimônios!” Já os
chefes comunistas de Londrina repetiam o leitmotiv: “os camponeses devem se
organizar em ligas ou associações”. A formação das ligas camponesas era, portanto,
uma estratégia política dos comunistas durante o conflito no norte do Paraná.
Apesar de ser difícil discernir exatamente as fronteiras, as ligações e as tarefas
particulares dos grupos armados de um lado e das ligas de outro, é possível, no entanto,
detectar alguns traços específicos para estas últimas. Aparentemente, as ligas não
praticavam a luta armada; eram organizações reivindicativas, que se batiam pelos
camponeses “junto às autoridades municipais, estaduais e federais”. Todavia, durante a
guerrilha de Porecatu, é possível que tenha havido alguma confusão ou fusão entre os
grupos armados e as ligas. Por exemplo, em encontro da liga da Água do Monjolo, os
participantes fizeram algumas intervenções enérgicas a favor da resistência por todos os
meios contra os “ladrões de terra”. Segundo Hilário Pinha, depois de graves
enfrentamentos entre policiais e posseiros, as ligas camponesas começaram a organizar,
uma após a outra, várias emboscadas contra os soldados. Segundo seus princípios
estatutários, as ligas tinham o objetivo de lutar pela melhoria das condições de vida da
massa camponesa e pela elevação de seu nível educativo para lhes oferecer assistência
social, econômica, jurídica e beneficente. Elas queriam reunir todos os camponeses,
meeiros, terceiros, arrendatários, pequenos e médios sitiantes. As ligas não estavam
interessadas nos assalariados agrícolas, cujas demandas eram julgadas como dotadas de
outra natureza. Para essa categoria, em 1946, a direção do PCB estava estudando um
projeto de estatuto específico. Em teoria, a adesão à liga era livre. Porém, as anotações
de um militante comunista de Londrina revelam que os posseiros às vezes eram
constrangidos a se integrar à liga: para ocupar uma posse na região controlada pelos
combatentes, era preciso trazer uma carabina, aceitar as diretivas do comando e,
evidentemente, aderir à liga camponesa local.
Formalmente, essas organizações possuíam uma estrutura clássica de tipo
democrático, funcionando com assembleias gerais (como órgão máximo de
18. deliberação), uma diretoria, a contribuição financeira de seus associados e eleições
periódicas. Um lavrador, no entanto, tinha passado por uma experiência distinta na
reunião de uma liga:
Então, Strogoff falou que Mario Billar tinha sido escolhido como primeiro
secretário [da liga], e que todos nós devíamos aprovar. Em seguida, para
segundo secretário e outras coisas, até tesoureiro, ele falou que a companheira
Zefa, filha do José Billar, tinha sido escolhida. (ALVES, 1951).
As ligas se dedicavam a tarefas associativas, mesmo sindicais, de defesa dos
interesses imediatos e das demandas da classe camponesa. No plano imediato,
reclamavam para os assalariados uma remuneração melhor, férias remuneradas e oito
horas de trabalho diário; para os colonos, também uma melhor remuneração, contrato de
trabalho, direito de manter seus próprios cultivos e criações e liberdade de vender os
seus produtos; para os trabalhadores por empreitada, um melhor contrato de trabalho;
para os arrendatários, diminuição do preço do arrendamento e redução dos impostos;
para os pequenos proprietários, isenção de impostos, crédito bancário acessível, garantia
de preço para os produtos, redução do preço de compra dos implementos e estradas em
boas condições; enfim, para todos os filiados, escolas de alfabetização e cursos de
aperfeiçoamento para a mão de obra agrícola, transporte para os alunos mais jovens,
habitação, cooperativas de produtores e de consumidores e também postos de saúde. No
plano político, exigiam o reconhecimento e o direito de criar ligas, clubes ou comissões
camponesas.
Durante o conflito de Porecatu, lançaram um apelo de solidariedade aos
posseiros, demandaram uma reforma agrária e a punição das autoridades, fazendeiros e
jagunços envolvidos; encorajaram a resistência armada contra a expulsão das terras,
alertaram contra as ilusões nas eleições governamentais, em suma, as ligas pediam pão,
terra, paz e liberdade.
Por fim, as ligas defendiam ações práticas de cooperação entre os associados, na
produção, no trabalho de ajuda mútua e também nas atividades lúdicas, reuniões
recreativas e esportivas, exceto os jogos de azar.
Muitas razões explicam a aparição das ligas camponesas no estado do Paraná. A
interpretação corrente seria o desinteresse até então do PCB pelas massas camponesas,
sendo que somente nesse momento o partido resolveu implantar-se concretamente na
região. Assim, a organização abandonou sua posição passiva, ideológica e
19. propagandista, mesmo oportunista, em relação ao meio rural, posição que tinha adotado
desde sua fundação, 20 anos antes. Considerando que na época os dispositivos de
legislação sindical excluíam os lavradores e trabalhadores rurais, os comunistas
adotaram uma fórmula de enquadramento desses grupos sociais relativamente flexível e
simples de ser constituída. Esta poderia ser aceita pelo Código Civil e então,
teoricamente, poderia legalizar-se e legitimar-se socialmente (LOPES, 1982).
Em tais condições, o norte do Paraná foi escolhido como um campo privilegiado
para o desenvolvimento desses organismos. A conjuntura política e social favorecia essa
escolha. Os sonhos de enriquecimento fácil, a ocupação caótica e precipitada do espaço,
a ausência de direções políticas reconhecidas e a desconfiança em relação às autoridades
formavam um caldo de cultura favorável à organização dos posseiros como grupo
político, munido de um porta-voz e uma estrutura de enquadramento.
Desde o início do conflito de Porecatu, as ligas teriam sido criadas com o
objetivo de denunciar a violência exercida contra os posseiros. Essas ligas eram
propostas, animadas e dirigidas por militantes do PCB, ainda que a sua vocação fosse
ser organizações do campesinato. Teoricamente, todos os camponeses podiam fazer
parte, independentemente de sexo, nacionalidade, cor, crença política e religião. O
Partidão propunha a liga aos lavradores, fornecia os dirigentes, dava o impulso inicial e,
evidentemente, mantinha vinculação político-ideológica com elas, ainda que
continuassem formalmente independentes enquanto uma organização camponesa.
Contudo, não se dispõe de informações suficientes sobre a abrangência da
atividade e sobre o grau de interconexão dessas entidades entre os lavradores, os
posseiros e os trabalhadores rurais, salvo alguns dados fornecidos seja por meio das
inquietudes expressas pelos fazendeiros e pela polícia, seja pelas narrações dos
militantes da época. Entre estes últimos, há os que defendem – como Hilário Pinha e
Nelson Galvão – e os que negam − como Celso Mello − a existência de um movimento
forte. Hoje, tem-se mais conhecimento graças às informações disponíveis sobre as ligas
camponesas, sobretudo a respeito daquelas que surgiram nas seguintes localidades:
Água de Pelotas, Centenário do Sul, Água do Palmitalzinho, Guaraci, Maringá, Água do
Monjolo, Água de Mandacaru, Colombo, Cambará, Andirá, Bandeirantes e Xapecó.
Segundo os dados disponíveis, essa primeira conjunção comunista no interior do
Paraná, por meio da criação das ligas camponesas, durou, aproximadamente, seis anos,
de 1945 a 1951. Seu auge coincidiu com o movimento de guerrilha orquestrado pelos
comunistas no setentrião do estado. Pode-se questionar sobre o silêncio em relação às
20. ligas desde 1951 e também sobre o seu eventual desaparecimento. Provavelmente, a
repressão do movimento em Porecatu − com o cerco da região, as prisões em Londrina
etc. − atingiu também as ligas camponesas em toda a zona, uma vez que estavam
interligadas entre si, com o conflito de Porecatu e com o Partido Comunista.
Também é possível que a linha política do partido seja a resposta a esse
mutismo. As diretivas do Manifesto de Agosto de 1950, o radicalismo, que pregava o
enfrentamento contra o Estado e os grupos dominantes, parece ser o fundamento mesmo
da constituição de organizações como as ligas camponesas − não legalizadas, não
enquadradas pelo Estado, não reconhecidas pelas elites. De fato, desde 1952, os
comunistas enfrentaram um processo de discussão interna e de autocrítica que levou a
uma nova virada política, dessa vez, rumo a posições mais moderadas e conciliadoras. O
PCB não abandonou sua intervenção no campo, mas optou por uma ação mais
tranquilizadora para a sociedade, quer dizer, para os elementos dirigentes (no limite,
para os dominantes). Graças a esse tipo de abordagem política, os militantes comunistas
trataram de construir novas formas de enquadramento e de representação das camadas
sociais deserdadas do campo, por exemplo, por meio das uniões gerais de trabalhadores
e também com os sindicatos. Assim, é legítimo compreender o desaparecimento das
ligas do Paraná, seja em razão da sua inoperância, seja por sua metamorfose em outro
tipo de organização realmente sindical.
Porecatu: gênese da organização camponesa
Todavia, essa sucessão de acontecimentos em torno da posse da terra permanece
muito pouco conhecida para as gerações mais jovens. Esquecida, ela caiu na categoria
dos fatos que não se deve lembrar. A história oficial ditada pelas elites nada registrou.
Assim, a dita opinião pública a desconhece. Mas, fato surpreendente, o principal
protagonista, o Partido Comunista, que acabava de encarar uma guinada rumo à
ortodoxia, acompanhado pelos seus quadros e militantes igualmente abafou o assunto. O
PCB quis simplesmente enterrar o ocorrido. Até hoje nenhuma análise, nenhum balanço
do partido foi publicado. Podem-se ouvir apenas algumas vozes isoladas manifestando
algum interesse pelo acontecimento. Oficiosamente para o partido as “condições
históricas para a luta armada ainda não estavam maduras”; e, no entanto, esse foi “o
único movimento de luta armada vitorioso no Brasil”, considerando que, no final,
posseiros receberam lotes, ainda que em outra região, em Campo Mourão (MORAES
21. apud LOPES, 1982; NASCIMENTO, 1962).
Outros comunistas não tiveram a mesma apreciação dos fatos. João Saldanha
mostrou-se muito crítico: “os posseiros tornaram-se grileiros”; seus camaradas rebeldes,
uma espécie de soldados do “exército de Brancaleone”, que combatiam moinhos de
vento; o Manifesto de Agosto, uma resolução que “caiu no ridículo”. Tudo isso sem
fazer a mínima autocrítica, como se ele não tivesse participado diretamente dos
acontecimentos, como um de seus dirigentes (SIQUEIRA, 2007; CORRÊA, 1980).
Contudo, as vozes verdadeiramente discordantes abandonaram o partido, muitas
vezes por divergências políticas. O “cavaleiro da esperança”, Luís Carlos Prestes, sem
querer gastar muitas palavras sobre o assunto, declarou que Porecatu tinha sido um dos
grandes erros do PCB, não suficientemente analisado e discutido. Para a direção da
agremiação, o movimento foi mais que um erro, um fracasso. Mané Jacinto acusava o
partido: o sectarismo e a estupidez de seus chefes tinham causado a derrota da guerrilha
(PRIORI, 2000). Para os dirigentes, mudar de posição era tão fácil como trocar de
camisa: de repente acharam pejorativamente que o movimento era esquerdista, sem
fundamentação, e os rebeldes, uns aventureiros. O partido fugia em zigue-zague, como
sempre, passando de uma orientação política colaboracionista a uma orientação
esquerdista, sem nenhum respeito pelos que lutaram e morreram. Com certeza, todas as
críticas dos ex-dirigentes do PCB são compreensíveis, facilitadas pela distância em
relação à agremiação política e talvez pelo desejo ou necessidade de falar sobre o
assunto.
De fato, estabeleceu-se uma cumplicidade objetiva entre todas as forças políticas
envolvidas no conflito. Uma cortina de silêncio caiu sobre Porecatu, como uma espécie
de pacto do esquecimento, que irmanou o aparelho de Estado, passando pelas elites,
inclusive intelectuais, até os grupos de esquerda.
Apesar disso, este esforço de pesquisa, ao lado de outros poucos pesquisadores,
permitiu reunir um leque importante de documentos e “refrescar” algumas memórias,
demonstrando que a guerrilha de Porecatu não foi apagada da consciência dos seus
protagonistas. Se ela ainda está viva, isso se deve ao fato de a orquestração do
esquecimento não ter conseguido apagar as pegadas que Porecatu deixou para os
posteriores processos de lutas sociais e de representação do campesinato.
Porecatu constitui-se no ponto de partida de uma série de lutas rurais que
eclodiram no Paraná e mesmo em outros estados ao longo dos anos 1950. O objetivo
principal dessas lutas foi, e ainda é, o acesso à terra. Antes da guerrilha, o cenário
22. político do Paraná era monocórdio: uma sucessão infindável de brigas de famílias entre
os grupos políticos hegemônicos – fosse de produtores de café, fosse de especuladores
de terra; fosse a UDN, fosse o PSD. A entrada em cena de um grupo comunista no
campo político fez oscilar as relações de força. A partir de então, todas as tendências
dominantes se uniram contra esse indesejável recém-chegado. As oligarquias rurais
sentiram-se ameaçadas nas suas relações de dominação e de clientelismo político,
consecutivamente estabelecidas no campo. O seu monopólio de representação política
estava sendo questionado.
Ao polarizar o espaço social, os comunistas incentivaram uma reaproximação
entre os dominantes. Os senhores das terras, o governo do Estado, a grande imprensa,
isto é, o conjunto das elites se reuniu para reafirmar uma imagem social negativa do
Comunismo e do seu partido. A estratégia adotada foi a de reforçar uma ideologia
anticomunista já existente na sociedade, mas que não conseguiu impedir a implantação
dos comunistas no meio rural. Esse combate, ao mesmo tempo ideológico e simbólico,
iria provocar a chegada de um velho ator, mas ainda muito poderoso: a Igreja Católica,
preocupada com a perda de confiança de seus fiéis da lavoura. O desdobramento disso
viria a ser a constituição de organizações de combate contra a esquerda, em sua maioria
empurradas pelos católicos, entre elas a Frente Agrária Paranaense. Preparando o
terreno, a cruzada anticomunista desembocaria no Golpe Militar de 1964.
O conflito de Porecatu desencadeou uma nova dinâmica no jogo político: outra
linguagem, novos conceitos, novas reivindicações, enfim, nesse contexto, foi
introduzida uma representação social inovadora. Diferentes camadas do campesinato
conheceram pela primeira vez práticas de luta social, de reuniões coletivas, de direito à
palavra. Antes, os camponeses eram indivíduos espalhados, pulverizados e atomizados.
Naquele cenário, tornaram-se um grupo político dotado de representação, munido de
instâncias de consagração, de ritos de deliberações coletivas e de mandatários
legitimados. A prova do enfrentamento ideológico, mas também físico, com os
fazendeiros e seus jagunços, ultrapassando o medo da crueldade repressiva, foi um
aprendizado inédito de contestação do poder absoluto das oligarquias rurais. Naquela
época no Paraná ainda não havia qualquer forma de representação das camadas sociais
marginalizadas do campo.
O movimento social dos posseiros de Porecatu teve o mérito de dar o primeiro
passo concreto na organização do campesinato do Paraná. Baseando-se na sua
experiência positiva de mobilização dos posseiros como um grupo político, assim
23. dotado de uma representação política, o PCB assentou a primeira pedra na edificação de
um novo espaço de luta social. A seguir, essa experiência viria a contribuir para a
deflagração do processo de sindicalização agrícola, conduzido pelos comunistas. Alguns
anos depois, constituir-se-ia uma rede de sindicatos camponeses e de assalariados
agrícolas, no início, nos municípios; em seguida, no estado; e, depois, no país.
Porecatu marca, assim, o ancoramento do PCB – e da esquerda, em um sentido
mais amplo – no Paraná rural. Enfim, Porecatu ficou igualmente marcada como a
primeira e única tentativa de guerrilha camponesa que foi levada a cabo no território
nacional pelo Partido Comunista durante toda sua existência. A região tinha sido
escolhida pela direção comunista como um lugar privilegiado para a “fecundação do
embrião revolucionário”. Segundo o Manifesto de Agosto, a revolução seria iminente.
Em Porecatu, tomou-se a decisão de pôr à prova a “fibra revolucionária” do
campesinato brasileiro. Depois e em consequência dos acontecimentos, o partido
aplicou uma nova orientação política, dessa vez rumo ao centro. O Manifesto foi
abandonado, o “capitão Carlos” desapareceu, e o PCB procuraria constituir sindicatos
bem mais dóceis, enquadrados e reconhecidos oficialmente pelo Ministério do Trabalho.
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