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EXEMPLAR AVULSO R$10,00 | DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PA R A A S E S C O L A S D O L E I A B R A S I L | FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE

2002

|

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MEDO
PREPARE-SE!
VOCÊ VAI ENTRAR
EM TERRENO PERIGOSO.

TRATAMOS DOS MAIS VARIADOS
SINTOMAS DO MEDO.
VISITAMOS A LITERATURA E O CINEMA.
BUSCAMOS TODAS AS SUAS CAUSAS:
ESCURIDÃO, VIOLÊNCIA, PERDA E MORTE.
CHEGAMOS AO PRAZER DO MEDO
E AO MEDO DO PRAZER.
COMECE JÁ! NÃO HÁ NADA A TEMER.
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Editorial p.3
Benita Prieto
O fascínio que as histórias de terror e mistério exercem sobre nós. p. 4
Araújo
Leila Borges de Araújo
Mary Shelley e a literatura fantástica. p. 8
Feitosa
Charles Feitosa
Como o medo pode ser sábio. p. 10
Tatiana Belinky
Conheça Nieta, uma moça que temia parecer medrosa. p. 11
Miriam Sutter
Fóbos, entidade mitológica. p. 12
Entre
Entrevista
O cordelista Gonçalves Ferreira da Silva p. 14
Gonçalves Ferreira
erreir
Silva.
Albuquerque
José Durval Cavalcanti de Albuquerque
Existirá um dia no qual tenhamos vivido sem o mais leve sentimento
de medo? p. 15
Eduardo J.
Irineu Eduardo J. Corrêa
Violência: o medo, às vezes, supera a própria causa. p. 16
Entre
Entrevista
Ventur
entura
Zuenir Ventura e uma cidade partida. p. 18
Bárbara Aranyl
Bárbara Aranyl de La Corte
O depoimento de quem sofreu a síndrome do pânico. p. 20
Janeir
aneiro
Cássia Janeiro
Quando o medo pode seduzir. p. 22
Clara
Albuquerque
Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque
Unidade de leitura. p.24
Entrevista
Entre
A autora da coleção “Quem tem medo?” , Fanny Joly fala, em Paris,
Joly,
com a jornalistaTatiana Milanez p. 26
Milanez.
T
Cacá Mourthé
Pluft, o doce fantasminha com medo de gente. p. 28
João Carlos Rodrigues
Filmes de arrepiar. p. 30
Filmografia
Filmografia p. 31
Ricardo
Ricardo Oiticica
O diálogo entre Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos. p. 32
Paulo Condini
Luizinho sofre com o valentão do ônibus da escola. p. 34
Roberto Corrêa dos Santos
Breve genealogia do medo na obra de Clarice Lispector. p. 36
Didier Lamaison
O pavor de falar um idioma estrangeiro. p.37
Rosa Gens
A força da literatura de terror e seus maiores nomes. p. 38
hereza
Thereza Lessa
Um escritor assombrado por fantasmas geniais. p. 41
Bibliografia
Bibliografia p. 42

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BÚÚÚ!
Quando escolhemos o tema dessa edição,
imediatamente nos ocorreu buscar o depoimento
daqueles que julgávamos sem medo: os evictos.
Aqueles que, por estarem condenados por uma
vida à reclusão; por viverem na total promiscuidade corroendo seu amor-próprio; por terem esquecido as condições de sociabilidade e já não
terem mais qualquer esperança, são donos do mais
absoluto “nada a perder”.
Puro engano — se há vida, há medo.
Logo descobrimos o conceito que norteia esse
número de Leituras Compartilhadas: se alguma
espécie, em qualquer tempo, não teve medo, então
essa espécie foi extinta.
O medo é o mais básico dos instintos e está
ligado à sobrevivência.
Não só à sobrevivência física, à dor e à morte
da matéria.
Ele está ligado, também, à manutenção de
uma situação confortável. Na psicologia, confortável não é o que é agradável, mas o que não nos
ameaça com mudanças.
Vem daí o nosso medo de tudo: do desconhecido, do novo e até da felicidade.E também
do escuro, de altura, de solidão, do outro etc.
Como se isso não fosse o bastante, o medo
nos é ensinado caprichosamente, por tudo e por
todos, ao longo da vida.Quem nunca escutou dos
pais um grito tenso dizendo — “cuidado”.
Cuidado para não cair. Cuidado com estranhos, com os bichos, com fogo...
Quantas histórias ouvimos na infância como
as de Chapeuzinho Vermelho, Pedro e o Lobo e
o Homem do Surrão, para ficar só nas que nos
aconselhavam e não falar das que nos davam medo
como as cantigas de ninar?
Por isso, talvez, o medo nos cause tantas reações físicas como suor frio, taquicardia, boca seca,
paralisia, necessidade de fechar ou cobrir os olhos,

“Se alguma espécie,
em qualquer tempo, não teve medo,
então essa espécie foi extinta.

”

pêlos arrepiados, e outros sintomas que são derivações de medo, que também se desdobra em
pânico, fobia, pavor etc.
Estranhamente, o medo que nos ameaça é o
mesmo que nos seduz.
Drácula, o príncipe das trevas que visitava o
pescoço das donzelas em seus leitos desprotegidos tarde da noite, aterrorizava e seduzia com a
mesma competência.
É um paradoxo: quanto mais ameaçadora a
história ou a personagem, tão mais atraente a obra.
O medo inspira a literatura, rende bilhões no
cinema e motiva dezenas de esportes chamados
radicais, onde o homem testa seus limites físicos
e emocionais.
Na mitologia, Fóbos, o Deus do Medo, é
filho de Marte, o Deus da Guerra. Curiosamente, sua face foi pouco interpretada pelas artes
ao longo da história. Talvez porque o medo se
propague e cresça sob o véu da escuridão e do
desconhecimento. Poderíamos até afirmar, diante disso, que sua mãe seja a Noite, porque é
nesse horário que o medo mais se apodera da
mente humana.
O medo sempre esteve ligado ao olhar, tanto pelo que se via quanto pelo que não se via: a
Medusa transformava em pedra a todos que a
viam. E todos os monstros — da Esfinge aos dragões medievais, de Cérbero, o cão do inferno ao
recente Fred Krueger — possuem graves distorções estéticas que ampliam sua capacidade amedrontadora.
Prepare-se para ler sem sustos nem sobressaltos.
Desta vez vamos falar desse “gigante da alma”1,
sob suas mais variadas faces, para ajudá-lo a livrar
seus alunos dos medos, até mesmo dos livros.

Leituras Compartilhadas é uma publicação da
ONG Leia Brasil de Promoção da Leitura, distribuída
gratuitamente às escolas conveniadas à ONG.
Todos os direitos foram cedidos pelos autores para os fins aqui descritos. Quaisquer reproduções (parciais ou integrais), deverão ser autorizadas previamente.
Os artigos assinados refletem o pensamento de
seus autores.
Leia Brasil e Leituras Compartilhadas são
marcas registradas.
Editor: Jason Prado
Subeditora: Ana Cláudia Maia
Direção de Arte e Produção Gráfica: Barbara Necyk
Projeto Gráfico: Thiago Prado
Consultor literário: Ricardo Oiticica
Revisão: Sueli Rocha
Tiragem: 10.000 exemplares
Leia Brasil – Organização Não Governamental de
Promoção da Leitura.
Rua Santo Cristo 148/150 parte, Santo Cristo, Rio de Janeiro
CEP 20220300
Tel/Fax: 21 22637449 leiabr@leiabrasil.org.br
www.leiabrasil.org.br

1 Emilio Mira y Lopez.

Georgii &Vladimir Stenberg
(1927) litografia em cores, detalhe.
Biblioteca Estatal Russa, Moscou.

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O FASCÍNIO PE
BENITA PRIETO
“

A emoção mais forte e mais antiga do
homem é o medo, e a espécie mais forte e mais
antiga de medo é o medo do desconhecido.

”

H. P. Lovecraft

DIVULGAÇÃO

Estamos num novo século e a tecnologia
se desenvolve cada vez mais. No entanto, somos ainda os seres que, maravilhados, ouvimos
histórias de feitos, façanhas, assombrações...
Também aumentaram os veículos de comunicação, com o surgimento do rádio, cinema,
televisão, computador. Cada um buscando, à
sua maneira, relacionar-se com a narrativa.
E, num caldeirão repleto de gêneros, temos o desejo pelo medo. Querem a prova?
Pois perguntem a uma criança ou adolescente
que tipo de história quer ouvir e terão como
resposta um sonoro: TERROR!
O medo é um sentimento básico que faz
parte do desenvolvimento emocional. Ele nos
acompanha ao longo da vida e vai adquirindo
novas dimensões e características.
Tudo já começa no nascimento, ou quem
sabe antes, quando o bebê, que se encontrava numa situação de total aconchego e proteção, de repente, passa a conviver com um
mundo desconhecido, caótico e confuso. Logo
ele vai atribuir a esse mundo externo tudo que
lhe faz mal, como a fome, o frio, a ansiedade. O mundo vai ficar dividido no que o satisfaz e lhe dá prazer e no que lhe provoca
tensão, frustração e mal-estar.
A criança passa por vários estágios. No
princípio, na sua fantasia, ela atribui poderes
mágicos a seus pensamentos e desejos, não
diferenciando o que imagina do que ocorre
na realidade. O que ela representa em imagens tem relação com a intensidade de suas
tendências amorosas ou destrutivas e com sua
capacidade de tolerância à frustração. A qualidade dessa dinâmica será a medida dos temores e dos medos que sente e, no futuro,

4

poderá se refletir em suas ações, quando for
adolescente, adulto ou velho.
Aos poucos, a fantasia vai se organizar em
um mundo de fadas ou de bruxas, de monstros ou salvadores. A imaginação é muito rica,
e as intensas e contraditórias emoções do dia
podem se converter em imagens aterradoras
durante a noite, nos sonhos.
Também a escuridão tende a se transformar em tudo que representa o desconhecido,
num mundo que está começando a se ordenar. A criança tem muita dificuldade de entender onde acaba o mundo de dentro e começa o mundo de fora. A escuridão pode aumentar essa dúvida e dar a possibilidade de
que a imaginação, os sentimentos e as emoções reinem absolutos.
Nesse momento, pode-se utilizar a arma poderosa e ancestral que é o conto popular. Ele é
uma ferramenta valiosíssima a serviço do desenvolvimento emocional da criança. Nesses contos,
fala-se dos conflitos reais e imaginários que todos
experimentam durante seu crescimento.
Jacqueline Held no livro O imaginário no
poder, apresenta idéias que são fundamentais
para o entendimento da necessidade que temos dos contos fantásticos. Para ela “a narração fantástica reúne, materializa e traduz todo um
mundo de desejos para transformar à sua própria
vontade o universo. Mas vai tocar o leitor ou o
ouvinte se não for feito apenas de entidades ou seres
abstratos. O que torna vivo o fantástico é o cotidiano com todos os seus diferentes aspectos”.
Podemos pensar nessas questões e relacioná-las com as histórias de medo, tanto
para adultos quanto para crianças. Como já
vimos anteriormente, se inserimos seres fantásticos em um mundo que é nosso conhecido eles provocam angústia, pois há sempre a possibilidade de os relacionarmos com
o nosso real, mesmo sem percebermos. Mas
isso não causa grandes prejuízos e apenas vai
possibilitar que vivenciemos todas aquelas
sensações fortes, trazidas pela história, que se
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LAS HISTÓRIAS
E posteriormente servem para aprofundar o
processo de amadurecimento pessoal, já que
neles estão em jogo emoções básicas.
Outra questão que nos parece muito interessante é de onde vem essa noção de sinistro
tão em moda atualmente?
Em primeiro lugar, fala-se de uma indução artística e literária ao medo que é provocada pelo grotesco, já que ele é o exagero, ou
seja, o deformado, aquele que não tem forma.
Portanto há uma indução ligada à morfologia
ou iconologia literária facilmente identificável
nos fantasmas ou defuntos, por seu aspecto.
Essa idéia-núcleo de deformidade está na base
de diversos arquétipos que se repetem incessantemente nas expressões artísticas.
Mas o prefixo negativo de (de)formidade
pode ser lido também como aquilo que está
contra a forma habitual. As personificações
deformes seriam aquelas que se contrapõem
à realidade percebida ou que inclusive se
aproximam dos mistérios da morte, do vazio, do inapreensível.
Também há uma concepção degradada do
grotesco, assimilada do aspecto disparatado,
absurdo, extravagante ou grosseiro que vemos
em muitos personagens.
Historicamente o grotesco já era conhecido na Antigüidade como podemos ver nas representações mitológicas dos centauros, sátiros, medusas... A literatura e a arte medieval
também estão povoadas de expressões grotescas, por causa do tom religioso dessas artes e a
conexão com o mundo sobrenatural e escatológico. Portanto o deforme é o que está além
da morte num duplo sentido: como carente
de forma (espíritos, duendes...) e como exagero ou deformação (as visões do inferno, a imagem do diabo com chifres e asas de morcego).
Em todo caso, mais que a deformidade, o
conceito moderno sobre monstro está aproximado ao desconhecido e à surpresa. O monstruoso é o contravalor da beleza, o espelho ou
o foco que ajusta a sua imagem ou, dito de
continua

5

DIVULGAÇÃO

resolverão num plano imaginário, preservando nossa integridade física.
Acontece que, muitas vezes, pais, avós, familiares, amigos transformam o quase prazer
que esses contos provocam em algo aterrador,
através da atmosfera de pavor construída, e propositalmente criando um medo real, como se
algo pudesse acontecer. E muitos de nós já
fomos vítimas desse terror na infância, quando ouvíamos que uma infinidade de monstros
podiam nos levar.
Por isso deve-se tomar cuidado, não especificamente com o conteúdo, mas com a forma
de utilização da história. Claro que estamos
pensando em crianças que não estão traumatizadas ou têm algum transtorno psíquico ou
psicológico. O professor francês Marc Soriano
defende que “as crianças utilizam certo tipo de
imagens que despertam nelas ressonâncias afetivas
para se ‘vacinar’ contra eventuais traumatismos”.
Mas de onde vem esse fascínio pelas histórias de medo?
O psicólogo Bruno Bettelheim nos explicou o assunto a propósito dos contos de fadas, dizendo que são um meio de projeção
dos instintos e problemas da criança. Através
deles são exteriorizados determinados conflitos da psique infantil, dando forma e corpo a
esses “fantasmas”.
Já Freud interpreta o sinistro como aquilo
que foi convertido em espantoso, mas que em
algum tempo foi familiar e conhecido.
Da união das duas idéias podemos supor
que o sinistro, contido nos contos de medo,
consiste em que tais “fantasmas” pessoais nunca nos abandonam de todo e nos revisitam
periodicamente, materializando-se na ocasião
em que algum estímulo os evoque. Por detrás
do sinistro está, de forma encoberta um desejo de algo proibido ou oculto.
Por isso, nos primeiros anos de vida, esses contos que tanto fascinam são importantes, como uma forma inconsciente de exorcizar medos reais através de medos fictícios.
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O FASCÍNIO PEL
outra maneira, a outra face da mesma moeda. É próprio do sinistro a sua presença latente, como na Cuca das cantigas de ninar,
ou a necessidade de ocultamento, daí a importância dos heróis mascarados. Todos são
pessoas com uma “pele de animal”, ou animais com uma “pele de pessoa”, trazendo
de novo o mito.
Como exemplo de uma figura folclórica e sinistra, temos o “Homem do Saco”.
Sua fascinação depende do seu mistério,
seu ocultamento, e mesmo seus objetivos
não revelados. O que acontece é que essa
irracionalidade é assimilada rapidamente,
no campo moral, ligado à maldade e à
monstruosidade.
Mas a morfologia das aparições sinistras
coincide também com o luminoso. Assim a
presença de Deus é a intuição do desconhecido, de uma força sobre-humana que produz pânico, estupor e fascínio, que causa ao
sujeito experiências de diversos graus de prazer ou desprazer. Deus, em seus aspectos de
fascinante, excessivo, superabundante, aproxima-se do conceito de grotesco no seu duplo sentido como carente de forma ou contra a forma, contrapondo-se à normal.
A experiência do sagrado se transforma
à medida que a religião racionaliza a idéia
do sagrado, em uma experiência do sinistro, do não-conhecido, do inominável, que
adota as rubricas literárias do fantástico,
estranho, aterrador.
Desse modo, o sinistro nos aparece
como grotesco e o grotesco se reafirma como
essa percepção irracional dos aspectos desconhecidos de nossa personalidade, como o
retorno ao proibido, provocado por estímulos que têm alguma relação (metafórica ou
metonímica) com essa pulsão latente.
A análise do medo, tendo como paradigma a psicologia e a psicanálise, é muito extensa, mas não poderia deixar de ser abordada, mesmo que, minimamente, nesse artigo.

Agora podemos perceber que o desejo pelas histórias de medo não é da atualidade. Esses personagens são os que estão no nosso imaginário e há muito tempo amedrontam e convivem com o homem, embora tenham trocado um pouco
de feição.
Nossos monstros de hoje estão baseados em arquétipos antigos, mas mudaram
de forma e até de endereço. Temos, por
exemplo, os alienígenas e até os psicopatas, bem verdadeiros, que passeiam pelas
cidades ferindo ou matando.
Podemos conviver com todos os tipos
de monstros, como os dos desenhos japoneses, os Aliens, os Dráculas, os
morto-vivos e os seres primitivos,
nossos velhos conhecidos, que
ainda existem nas pequenas comunidades. E
todos podem amedrontar, pois de
alguma maneira
revivem os mitos.
E será que essas
narrativas também não trazem embutidas as velhas funções de Propp? Através delas, não
estaremos buscando como desenlace
a recompensa, a descoberta do objeto mágico ou a reparação de um mal?
Mas hoje nossos meninos não são os
mesmos. Têm um mundo de modernidades que os faz ver e sentir de outra
forma. Aprendem com mais rapidez,
quando têm acesso à informação e à escola. Podem ver o universo através das
telas dos computadores e dos televisores. Por isso muitas coisas se banalizam
e sentimentos que deveriam ser preservados para toda a vida são esquecidos
ou nem são sentidos.
Não há mais o silêncio que possibi-

6
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LAS HISTÓRIAS
litava elaborar os medos internos. Nem
existe o mistério e o encanto que rodeava as coisas. As relações vão ficando
frias e individualizadas. E a criança vai
perdendo a oportunidade de imaginar.
Talvez dai venha a necessidade de ouvir/ver o terror, que eles querem forte.
As histórias têm que ter muitos componentes de violência como o sangue,
ossos expostos, morte. Isso deve exprimir o desejo de algo muito mais horripilante que a própria crueldade da vida,
vista através dos diversos meios de comunicação.
Há um lado que pode ser saudável
quando atendemos o pedido: levamos
contos que tenham os tais elementos do horror, mas também ajudem a recriar algum ambiente mágico. Dessa maneira estaremos,
mais uma vez, religando esses ouvintes a toda uma
ancestralidade.
Sem esse clima estaremos apenas contribuindo para banalizar a morte,
reforçando a violência que vemos todos os dias em nossas casas,
a qualquer hora, impassíveis, através
das centenas de notícias sobre o assunto.
Outro perigo é que, atualmente,
construímos uma idéia de que somos
imortais. Quem sabe para abafarmos o
enorme pavor que temos de morrer. Essa
falsa idéia de imortalidade deve-se ao
aumento da expectativa de vida do homem, através do avanço da medicina e
à modificação de nossos rituais, pois geralmente estamos sós em um leito de hospital quando chega o nosso momento final. A morte não é mais compartilhada e,
como diz Philippe Ariès passamos a morte

DIVULGAÇÃO

7

doméstica para a morte selvagem.
Todas essas coisas se associam e para que
possamos pensar um pouco sobre o reflexo
delas nas crianças, trazemos uma declaração
muito interessante do escritor Jesús Callejo que
está no seu livro Los dueños de los sueños.
Ele sugere que, nos tempos atuais, a Cuca
foi substituída pela opressão e comercialização que é feita com o carinho, quando alguém diz para uma criança: Se não fizer tal
coisa, eu não vou mais gostar de você. Assim a criança vai incorporar à sua grande
lista de temores o de não ser querida por
aqueles de quem ela gosta tanto e necessita.
Esse será mais um dos conflitos psicológicos que ela terá que vencer ao longo da vida.

BIBLIOGRAFIA
CALLEJO, Jésus. Los dueños de los sueños: ogros, cocos
y otros seres oscuros. Barcelona: Martínez Roca, 1998.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo:
Palas Athena, 1990.
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore
brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/
Ministério da Educação e Cultura, 1954. Literatura oral
no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1984.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 2.ed. Rio
de Janeiro: Ática, 1991.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças
e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.
(Novas buscas em educação, v.7)
LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural
na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
Benita Prieto Engenheira, atriz, produtora, contadora de histórias do Grupo Morandubetá, especialista em Literatura Infantil e
Juvenil, e em “Leitura: teoria e práticas”. Autora do livro infantil:
As “armas” penadas.

“O medo é tão saudável para o espírito como o
banho para o corpo.”
Máximo Gorki 1868-1936 escritor russo
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LITERATURA FANTÁSTICA
LEILA BORGES DE ARAÚJO
O medo é um sentimento universal e
muito antigo. Pode ser definido como uma
sensação de que você corre perigo, de que algo
de muito ruim está para acontecer, em geral
acompanhado de sintomas físicos que incomodam bastante tais como: palpitações, tonturas, sudorese, calafrios, falta de ar, boca seca,
atordoamento, taquicardia, confusão mental,
contrações musculares, sensação de que algo
horrível está preste a acontecer. Quando esse
medo é desproporcional, irracional, com fortíssimos sinais de perigo, e também seguido
de evitação das situações causadoras de medo,
é chamado de fobia. A fobia na verdade é uma
crise de pânico desencadeada em situações específicas. Em nosso artigo não vamos abordar
fobia, mas sim apenas o sentimento de medo.
O medo na literatura gerando um fascínio em
vivenciar este sentimento.
O sentimento do medo libera uma substância conhecida como adrenalina, e isto sempre acontece quando passamos por situações
de medo ou estresse. Quando há o alívio desta situação no nosso organismo, há a liberação de outra substância conhecida como endorfina, esta traz uma sensação de alívio e bem
estar. O ato de fazer amor passa pelo processo
de liberação da adrenalina durante o ato e,
depois do orgasmo, a endorfina. Talvez por
isso muitas pessoas tenham um fascínio por
algo que as faça sentir medo, é uma maneira
de liberar tensões reprimidas, e ler contos ou
romances que nos fazem sentir medo nos faz
bem. Algumas pessoas precisam passar por situações de perigo para se sentirem felizes e satisfeitas. Poderia citar alguns esportes radicais
praticados pessoas e que são perigos e nos fazem liberar adrenalina.
De forma mais explícita ou menos, o sentimento do medo já habitou os mais diversos
gêneros literários. Influenciada por leituras de

8

histórias de fantasmas alemãs e francesas, Mary
Shelley criou a história de Frankenstein na
Suiça, numa noite de insônia, no verão de
1816. Segundo suas próprias palavras, Mary
“viu” nessa noite a cena central de sua história: o jovem cientista apavorado diante da grotesca criatura a que acaba de dar vida. Seu conto
começava com a frase “Era uma noite lúgubre de
novembro...”, que na versão definitiva do romance corresponde à abertura do capítulo V,
justamente aquele em que se narra o momento em que a criatura de Frankenstein ganha
vida. A primeira edição do romance data de
1818. Mary Sheley ficou conhecida mundialmente por esta obra, cujos leitores ficaram
fascinados com o fato da criação de um ser
com pedaços de vários cadáveres, de aspecto monstruoso e horripilante, que gerava um
sentimento de medo intenso, mas ao mesmo tempo de curiosidade, fascínio por aquele ser sobrenatural.
Para entender melhor sobre o fascínio
pelo medo na literatura pode-se abordar o
fantástico na literatura. E o que seria, então,
o fantástico na literatura? Em Introdução à
literatura fantástica, Tzevetan Todorov que
afirma que “o ponto principal do fantástico é a
situação de ambigüidade”. As histórias que
pertencem a este gênero nos deixam as perguntas: Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Quando um leitor se depara com um
mundo que é exatamente como o seu, qualquer acontecimento que fuja às leis desse
mundo familiar cria a dúvida e a incerteza
sobre a possibilidade do fato ser ou não real.
Todorov diz que “o fantástico ocorre nesta incerteza (...). O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais,
face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. O conceito de fantástico se define pois com
relação aos de real e de imaginário...”. O autor
recorrerá a outras definições de fantástico
afirmando que em algumas “cabe ao leitor hesitar entre as duas possibilidades” e, em outras,
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“Convivo com o medo de morrer e ele
me fascina.”

DESEJO

AYRTON SENNA 1960-1994 Piloto de Fórmula 1

esta hesitação fica a cargo da personagem. O
limite entre o estranho e o maravilhoso é
apenas o tempo de uma hesitação. Essa hesitação que, segundo o crítico, é comum ao
leitor e a personagem, porém tem sua duração restrita ao momento da narração do fato.
A hesitação não só da personagem, como
também do leitor é a condição primeira do
fantástico.
Uma ressalva que o crítico faz às definições do gênero é a da insistência em colocar
o “critério do fantástico (...) na experiência particular do leitor”. Mais especificamente na experiência de medo ou terror que ela é capaz
de provocar. Se a duração do fantástico é a
hesitação, então, estamos diante de um gênero extremamente frágil, que pode se desfazer a qualquer minuto.
A literatura fantástica do século XIX surge como reação a um mundo em que o medo
não tem mais espaço diante da infalibilidade das leis postuladas pela ciência. A ciência
passa a ser o desconhecido, o fantástico no
mundo.Este mundo ordenado é substituído
por um mundo de ambigüidade, sempre
aberto para uma contínua revisão, tanto dos
valores quanto das certezas.
No século XXI, no entanto, seria isso que
deveria acontecer, a ciência acima de tudo, mas
as pessoas não param de ler e nem de assistir a
cenas que os conduzem e fazem sentir medo.
O homem ainda reage de maneira a querer sentir esta experiência de medo.
Qual a explicação deste fascínio? A resposta seria a vontade de viver perigosamente, liberando adrenalina para depois relaxar
com a endorfina e alcançar o prazer.

O homem
em movimento.
Próxima edição de

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LEILA BORGES DE ARAÚJO Doutoranda em Psicologia da Educação – Universidade do Minho – Braga – Portugal, Mestre
em Literatura Inglesa pela University of London e Mestre em
Psicologia pela Universidade Gama Filho- Coordenadora do
Curso de Letras do Centro Universitário da Cidade –
UniverCidade - Pesquisadora em Psicometria e Desenvolvimento Cognitivo – Universidade Gama Filho, Universidade
Estácio de Sá e Universidade do Minho

9

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A SABEDORIA
DO MEDO

DETALHE DE “MORTE E VIDA” DE GUSTAV KLINT (1916)

CHARLES FEITOSA
Segundo uma definição antiga (Aristóteles), medo é a expectativa de um mal que
se avizinha. O medo pode se manifestar de
várias formas e graus, mas tem sempre uma
causa específica: medo de avião, de altura,
de escuro etc. Todos os animais sentem
medo, mas esse medo refere-se sempre a
uma ameaça iminente (um predador, por
exemplo). Somente o homem é capaz de
sentir medo mesmo que não haja risco à
vista. Somente o homem é capaz de tremer
mesmo no aconchego e na segurança da sua
sala de estar. Esse tipo de medo, especificamente humano, não é provocado por nenhum motivo determinado: não há nada
em si que o justifique. Parece um medo de
nada, mas é algo muito mais sério: trata-se
do medo do nada, ou melhor, do “nada”
mesmo se manifestando!
O medo é o começo da sabedoria, diz
o filósofo alemão Hegel (1770-1831) em
uma famosa passagem da sua Dialética da
dominação e da servidão (In: Fenomenologia do espírito, Cap. IV) . Nesse texto
Hegel descreve teatralmente um combate de
vida e morte entre dois homens, ávidos pelo
reconhecimento de sua autonomia e independência absolutas. Um deles irá até as
últimas conseqüências, empenhado em confirmar sua liberdade; o outro vai hesitar ao
considerar que a manutenção da vida é ainda mais importante. Um tem medo e o outro, não. Um vai abdicar servilmente da sua
própria independência para se manter vivo;
o outro vai ser premiado, pela sua coragem
de correr riscos, com o poder. Um é o servo: o outro, o senhor.
É interessante notar que a partilha de
poder não ocorreria se o senhor matasse
o servo. Com a morte do outro, seria vedada também a possibilidade de obter re-

10

conhecimento. O senhor precisa do servo
vivo, para que sua autonomia possa se
constituir. Hegel é o primeiro filósofo da
modernidade a mostrar que o poder não
se dá apenas pela administração do governo ou através de autoridades instituídas,
mas principalmente como uma relação de
força, como uma maneira de controlar
indivíduos, classes, povos, minorias, natureza ou os próprios desejos. O poder é
uma forma de controle através da ameaça
constante de morte, uma exploração violenta do medo. Ora, que tipo de sabedoria pode haver então em uma atitude temerosa que conduz à servidão?
É no medo do nada, na angústia diante
da morte, que Hegel vê a origem da sabedoria. Não se trata de uma sabedoria científica,
nem técnica, mas existencial. Para Hegel,
embora o homem que teme se torne um servo, ele fez uma experiência que o impulsionará para o futuro. A autonomia do senhor,
ao contrário, se revelará frágil, pois se sustenta apenas na subjugação do outro. O servo aprende no medo que a morte é o “senhor absoluto”, quer dizer, a morte tem poder tanto sobre o servo como sobre o senhor.
No temor da morte o homem aprende algo
acerca da sua finitude, pois ele treme e esse
tremor faz com que todas as suas certezas,
verdades e valores precisem ser reexaminados e revalorados. Diante da morte (uma
possibilidade certa, ainda que a hora seja
incerta), todos os problemas têm importância relativa, todos os projetos têm urgência
absoluta. O medo do servo é em certa medida um saber da finitude. Essa sabedoria do
medo tem o poder da transformação de si e
do mundo, rumo à outras formas de liberdade, que não se baseiem mais nem na dominação, nem na servidão.
Charles Feitosa Doutor em Filosofia pela Universidade de
Freiburg/Alemanha e professor da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
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MEDOS E MEDOS...
TATIANA BELINKY
Falar sobre medo é até fácil. Eu poderia
falar do medo do escuro, do medo do trovão,
de fantasma, de vampiro, de bruxa, de cobra,
de lobisomem e de outros menos votados, até
mesmo do popular medo de barata.
Mas o medo de que eu quero falar é um
medo diferente. Não é um medo racional,
nem irracional, nem mesmo o já conhecido
medo do medo. O medo de que eu estou falando é um medo todo especial: é o medo de
“parecer medroso”!
O medo de parecer medroso resulta da insegurança que a pessoa – criança ou não – sente, e que faz com que ela esteja a toda hora querendo se afirmar, demonstrar que não tem medo
disto, daquilo ou daquilo outro. Isto acontece
muito com a pessoa tímida, que acha que precisa sempre provar alguma coisa a respeito de si
mesma, do seu próprio valor.
E que por isso mesmo

volta-e-meia se mete em toda sorte de “saias justas” das quais na verdade não precisaria.
Bem, só pra dar um exemplo, vou contar
um pequeno caso verdadeiro, que aconteceu
com uma moça que eu conheci, há muito tempo. O caso de uma jovem que não era medrosa, mas era tímida, e tinha muito medo de “dar
parte de fraca”, em especial diante dos rapazes. Vamos lá.
Aconteceu certo dia que esta Nieta – digamos que este era o seu nome – estava em
um daqueles parques de diversões e mostrouse muito boa de pontaria no estande
de tiro-ao-alvo. Mas muito boa mesmo, tanto que ganhou vários prêmios, como um ursinho de pelúcia e até uma caixa de charutos,
para aplausos dos admirados circunstantes.
E foi aí que aconteceu o inesperado. O rapaz que a acompanhava, um garboso estudante de Medicina, resolveu testála e provocou:
- Como é Nieta, você que é tão
boa de pontaria, teria
coragem de acertar com o
seu chumbinho um cigarro na
minha boca, a uns oito metros
de distância – ou teria medo?
Assim desafiada, a Nieta retrucou sem hesitar
– na esperança, claro,
de que ele estivesse apenas brincando:

- Ora se você tem coragem de se postar na
minha frente com seu cigarro, eu terei coragem de atirar!
Mas infelizmente ele não estava brincando, e se plantou, todo pimpão, de perfil para
Nieta, com o cigarro – um “Minister” longo espetado entre os lábios.
E agora? Se a Nieta desistisse de topar o
desafio, passaria por medrosa, e isto ela, nos
seus brios feministas, não podia permitir. Ou
achava que não podia...
Daí, ela pegou a espingarda de ar comprimido, com seus chumbinhos, e a levou ao
ombro – sem qualquer apoio. Suspense geral, todos assistindo, meio receosos. E a
Nieta não fez o que obviamente deveria
ter feito, que era mirar bem pra fora daquele alvo difícil, resolvendo o assunto com um
inofensivo tiro no ar. Mas isto nem sequer
lhe passou pela cabeça. Na sua honestidade – ou seria ingenuidade? – ela mirou o
cigarro mesmo – do meio para a ponta, é
verdade – mas o cigarro, sim. Mirou e
apertou o gatilho – com tanta sorte (e excelente pontaria) – que cortou o bendito cigarro pelo meio!
Vitória! Aplausos gerais para os dois
bobos – a Nieta e seu desafiador. Dois
bobos, sim – porque aquela exibição não
era um ato de coragem, que é o contrário de medo, mas uma tola bravata dos
dois jovens protagonistas.
E bravata, gente, não é coragem.
Coragem seria vencer um medo verdadeiro – e muitas vezes sensato e inteligente
– em caso de extrema necessidade ou situação-limite.
Imaginem só se o medo da Nieta, o de
parecer medrosa, resultasse em um ferimento no rosto, ou mesmo no olho, do valentão
que provocou aquela cena? Ixi!
TATIANA BELINKY Escritora. Entre os seus livros estão: Coral
dos bichos e Mandaliques

ILUSTRAÇÔES DE FÊ PARA O LIVRO DOS DISPARATES DE TATIANA BELINKY, ED. SARAIVA

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MICHELANGELO

FÓBOS,

MIRIAM SUTTER
Medo, pânico, terror, temor, horror, pavor, fobia! A todo o momento nos confrontamos com estes sentimentos que nos inundam
e assombram e nos parecem únicos e unipessoais. Cada qual sofre os seus medos! Mas o
que é o medo? A moderna ciência talvez tenha já suas teorias e suas respostas, talvez não!
Mas antes do pensamento científico, a consciência mítica, operando por uma lógica diferente, experienciava o medo e sentimentos semelhantes e os explicava por meio de uma linguagem própria, a linguagem mítica. Mas há

algum mito específico do medo? Não, não há!
Mesmo porque na linguagem dos mitos ou na
“gramática” da consciência mítica as palavras
não precisam necessariamente de uma “explanação discursiva”. Elas próprias, as palavras,
assumem o caráter de “seres míticos”, dotadas
de um poder mágico, que as transforma em
uma espécie de força divina primitiva, de onde
emana e se corporifica ou presentifica tanto o
ser quanto a ação ou sentimento que a palavra
designa. “No princípio era o Verbo …”
Nos mitos gregos encontramos muitas
destas palavras que designam paixões, qualidades intelectuais, sentimentos: Mnemosýne, a
Memória, a mãe das Musas é uma delas; Éris,

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a Discórdia; Éros, o Amor; e assim por diante.
São palavras divinizadas, ou melhor, são daímones, “poderes divinos” que não possuem
propriamente um mito, mas que se constituem como realidades divinas no e pelo próprio
nome que as designa. Quando se presentificam no íntimo do homem, os daímones são
sentidos como forças que ultrapassam e extravasam o ser humano, pois um daímon é “o
rosto oculto da ação divina”. O medo, em grego Fóbos (Phóbos)1, é uma dessas palavras: é um
daímon, uma força divina.
E é como um daímon que encontramos
Fóbos em Homero. Na Ilíada, Fóbos sempre
está presente quando Ares, o deus da guerra
sanguinolenta, o deus que se sacia de sangue
e de carnificina, o “matador de homens” está
em ação.
Ares instigava os troianos, Atena de olhos
brilhantes, os aqueus. Deímos (o terror) e Phóbos (o medo) estavam soltos, e também Éris ( a
discódia), a aliada-irmã de Ares matador de homens, o insaciável e incontido furor da sanguinolenta carnificina … ( Il.IV, 399 sqq.)
No mundo da lógica lingüística, no entanto, fóbos possui uma outra história. Em
sua origem ou etimologia, fóbos é um nome
de ação, derivado do verbo “fébomai” (phébomai). Este verbo é empregado por Homero no sentido de “fugir”, especialmente quando menciona um“grupo de pessoas que foge
tomado de medo, pânico ou terror. O sentido primeiro de fóbos é, portanto, “fuga”, mas
fuga motivada pelo medo. Medo de enfrentar o adversário na luta, medo da violência
desenfreada de Ares, em última instância,
medo da violência de matar e ser morto. Sentimento e ação se fundem, e de seu sentido
primeiro, “fuga”, fóbos passa a significar o
próprio medo em si.
Mas para a mentalidade mítico-religiosa,
Fóbos, o medo, é um daímon, uma força exterior ao homem, e por isso personificada como
um “demônio” divino. Hesíodo, poeta poste-
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UMA POTÊNCIA DIVINA
rior a Homero, confirma esta personificação
na sua Teogonia.
Na genealogia divina de Hesíodo, Fóbos
como personificação do Medo recebe uma
filiação definitiva. Seu pai, como não poderia deixar de ser, é o terrível deus Ares, o flagelo dos homens. Mas é então que a simbologia mítica nos surpreende e encanta. Sua
mãe é Afrodite, a deusa da fecundidade, a
personificação do instinto biológico que assegura a perpetuação das espécies e, conseqüentemente, deusa do desejo sexual e deusa do amor.
Hesíodo, todavia, só menciona a união de
Ares e Afrodite e os filhos que os dois deuses
geraram. Mas Homero, na Odisséia (VIII, 266
sqq.), nos relata um episódio pitoresco da
união amorosa de Ares e Afrodite.
Segundo o mito, Afrodite desposara em
bodas legítimas o deus Hefesto, o deus ferreiro, que confeccionava artefatos extraordinários em suas forjas divinas. Mas Hefesto
era o único deus feio e fisicamente imperfeito do Olimpo, pois era coxo. Além disso,
pode-se dizer que também era “manco” psiquicamente, uma vez que fora rejeitado por
seus pais, Hera e Zeus, ao nascer. Mas essa
já é outra história.
Certo dia, Hefesto recebeu a visita de Hélio, o deus
Sol que tudo vê, ao percorrer diariamente o mundo
em seu magnífico carro
dourado, puxado por cavalos imortais. Hélio tinha
visto Afrodite e Ares quando se amavam às ocultas no
próprio palácio de Hefesto.
O feio e coxo deus, julgando que era desprezado por
sua imperfeição física, resolveu flagrar os dois amantes.
Confeccionou uma rede de
malhas inquebrantáveis e

invisíveis, estendeu-a sobre o leito conjugal e
avisou a esposa de que saía para receber suas
homenagens cultuais na ilha de Lemnos.
Afrodite imediatamente chamou Ares, que
sôfrega e velozmente se precipitou ao encontro da amada. Estavam juntos no leito quando subitamente se viram enredados na armadilha de Hefesto. Este logo chamou os deuses para testemunharem a traição e a desonra
do leito conjugal. Para seu espanto, porém,
Apolo, Posídon, Hermes riram-se da situação
e convenceram Hefesto a soltar os dois amantes, mediante um tipo de “indenização por
perdas e danos”. Libertos, Ares voltou para
seu lar na Trácia; Afrodite, para Chipre, onde
as ninfas a banharam, untaram seu corpo com
óleos odoríferos e a vestiram com mantos deslumbrantes.
Indiscrições homéricas à parte, da união
desses dois extremos antagônicos de um todo,
pulsão de vida (Afrodite) e pulsão de morte
(Ares), nascem Fóbos e seus dois irmãos: Deímos (o terror) e a bela Harmonia.
Harmonia, etimologicamente, significa “o
acordo”, “a junção das partes”. Harmonia é,
portanto, outra daquelas palavras divinizadas
e personificadas que presentificam uma abs-

tração, qual seja, a concórdia, o consenso, o
equilíbrio e, como tal, estava desde sempre
associada ao âmbito do amor e à deusa Afrodite,
de cujo cortejo fazia parte. Personificada, torna-se a filha de pais antagônicos, Ares e Afrodite, e ganha por irmãos Deímos e Fóbos.
Deímos, o terror que paralisa momentâneamente o homem, é irmão de Fóbos, o medo
do desconhecido que faz fugir.
Morte, vida, discórdia, concórdia, ódio,
amor, desarmonia, harmonia, medo, destemor
… constelam, assim, na linguagem mitopoética, um complexo divino de opostos “aparentados” e, justamente por isso, são símbolos de
realidades paradoxalmente opostas e complementares, que subjazem à condição humana,
ambígua em si mesma, ontem e hoje … e sempre. A nós, meros mortais, resta-nos a aventura de descomplexificá-los, de harmonizá-los,
sem fóbos, ou como diz a nossa poesia oral,
“sem medo de ser feliz”.
1 Fóbos, em grego, possui muitos correlatos semânticos. Pânico (< panikós “do deus Pã ”, terror infundido pela aparição de
Pã) é um deles; déos, “medo dos deuses”, “temor respeitoso”,
“reverência”; deíma, “temor” são outros, com outras nuances
semânticas.
MIRIAM SUTTER Professora da PUC-Rio, doutora em Língua e
Literatura Latina

DIVULGAÇÃO

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CABRA VALENTE DO CORDEL
ENTREVISTA
“Medo para Rafael
continuava um segredo,
pois aprendeu ser valente
teve que lutar tão cedo
que na vida nunca teve
qualquer sensação de medo.”
Do cordel Duelo de machos, de Gonçalo Ferreira da Silva

A literatura de cordel reflete de forma quase
imediata, o cotidiano, as crenças e aspirações
do povo brasileiro. Um povo, que em grande
parte, raramente tem acesso a uma educação
formal e aos livros. Narrativas jocosas, aventurescas ou aterradoras mantêm viva essa tradição do nordeste levada ao sul-maravilha em
caminhões e ônibus de migrantes.
O cordelista Gonçalo
Ferreira da Silva é um
autor e um apaixonado
pela literatura de cordel e pelo repente.
Em Santa Teresa,
bairro histórico do
Rio de Janeiro, ele
reúne um acervo incomum de cordéis e
promove encontros
com os denominados
por ele acadêmicos
da Academia Brasileira de Literatura de
Cordel. Em meio a pequenas histórias do cangaço, lendas brasileiras e histórias urbanas, ele pinçou
uma que fala do medo, ou
melhor, da falta de medo
do homem do nordeste, que
segundo Gonçalo “por natureza não sente medo, e se sente é algo

secreto. Ele não deixa exteriorizar o medo, a não
ser no dia que tiver uma prova monstruosa. Pois
na literatura de cordel não existe maior virtude nem bondade ou beatitude - que a coragem de um
sujeito.”
Um amigo meu estava na casa de um compadre. Quando chegou perto da meia-noite,
foi aconselhado pelo dono da casa:
- Rapaz, você não devia viajar a esta hora,
é muito perigoso. Você vai passar pela gruta
da Avó.
E o outro, com fama de cabra macho,
retrucou:
- Não, isso é coisa que não existe, é coisa
de leigo.
Quando chegou na gruta da Avó, meu
amigo viu que tinha um camarada parado. De
repente, a figura do sujeito se agigantou de uma
maneira inaceitável, ficando com quatro ou cinco metros de altura. Aí ele teve medo, muito
medo. Quis correr, mas as pernas lhe negaram
equilíbrio. Ele ficou numa situação tal até que
ele acabou correndo de qualquer maneira.
O sol veio raiando às cinco horas da manhã, e ele ficou feliz pela vista da porteira do
cercado, da aproximação da casa. E disse:
- Ah! Valeu-me Deus que estou em casa.

DETALHES DE XILOGRAVURA DE ERIVALDO PARA O CORDEL A CHEGADA DE LAMPIÃO NO INFERNO, DE JOSÉ PACHECO
CHEGADA
INFERNO,

14

14

Chegando perto da
cerca, tinha seu camarada, que o havia recebido na noite anterior,
na porteira:
- Ô rapaz, eu passei
por uma situação esta
noite. Uma situação
inaceitável para um homem do sertão, acostumado a não temer coisa
alguma. Meia-noite,
quando fui atravessar a gruta da Avó,
uma figura se agigantou de maneira estúpida na minha
frente. Só o pé
dava mais de um
metro.
- Mais ou menos assim...
E o sujeito mostrou o
pé que se agigantava nas
sombras do lusco-fusco do
amanhecer. O amigo só
quis mostrar que medo é
coisa de ocasião.
E perguntado se já sentiu medo Seu Gonçalo responde: “eu não sei se o que sinto é medo. Pelo que as
pessoas falam, o que eu sinto seria um princípio de
medo, mas como eu não tenho certeza, digo que não.
Só de uma prova monstruosa”.
“Foi este mais um capítulo
da maldade e tirania
da história do nordeste
para ser contado um dia
que acaso for abordado
assunto de valentia”
Do cordel Labareda, o capador de covardes, de Gonçalo Ferreira
da Silva
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NOSSO VELHO E
ESTRANHO CONHECIDO
JOSÉ DURVAL CAVALCANTI
DE ALBUQUERQUE
Existirá um dia no qual tenhamos vivido sem o mais leve sentimento de medo?
Não é possível, e ninguém objetará, se após
procurarmos na mais recuada de nossas memórias dissermos que esse dia não aconteceu. Medo do dia que se inicia. Medo do
dia que se vai com a noite, a chegar com seus
sortilégios. Medo, onde o sono nos envolve em sonhos, a nos transportar a lugares que, apesar de desconhecidos, são estranhamente familiares. Medo contido no grito da
criança, na noite, a assustar
seus pais, horrorizada com
as formas da sombra a desenharem fantasmas de
um “bicho”, de um “ladrão”, de um “papão”.
Aquele expresso no sonho
de cair no abismo, de contemplar o próprio corpo, de que
nos perseguem, da onda gigantesca prestes a nos engolfar, da pessoa
querida com vestes e rosto do desconhecido. Do sentimento de que nos
contam alguma coisa em voz que não se
ouve. De contemplar uma nuvem a desenhar
formas não sabidas. Medo, que determina
um estupor diante do realizado da tragédia
que só no pensamento foi rascunhada. No
perseverante medo infantil, a nos acompanhar com a imagem de monstros que nadam
em poço negro e profundo, como algo que
não se gasta e que permanece fora do tempo. É qualquer coisa que nos habita, que até
no sono nos agita, sem descansar. Angústias
sonhadas, muito mais reais do que as que o
dia a dia nos traz. Sensações somente imagi-

nadas e, no entanto, verdadeiramente sentidas. São tantas as coisas que, mesmo sem
existirem, existem o tempo todo. É o afeto
que pode nos tomar quando contemplamos
uma bolinha de papel na correnteza d’água,
a pular desassossegada na direção do escuro
de um bueiro. É quando entendemos a noite
que se aproxima como aquilo que tira o mundo do mundo, assinalando o umbigo do
medo. Como dizia o poeta, “é o medo da morte e o medo de depois da morte”.
Na sua origem, biologicamente, a cria-

tura humana, comparada aos outros animais,
sofre uma prolongada dependência daqueles que a nutrem e amparam. Em seu começo, este ser constitui-se com um arremedo
de abertura para o mundo, ao qual lançará
seus apelos. Internamente, do ponto de vista psíquico, um condensado de energias sem
organização, onde não existe vontade, o não,
a contradição, a noção de tempo, mas tão
somente uma força constante e imperiosa na

15

direção de uma satisfação. Em seu princípio,
este ser inerme sai de sua obscuridade através
do grito. Grito esse a presentificar o outro,
próximo na resposta ao seu apelo. Esta resposta, formada na ajuda, confere sentido ao
grito. É ato inaugural de uma compreensão
mútua, edificada sobre a dependência constitutiva do ser humano. É o que determina um
modo de relação que vai servir de palco para
o desenrolar da história do homem.
A criança não sabe do certo ou do errado, do bem ou do mal. Estas noções encontram-se no outro, a bem dizer, nos pais, através do que dizem e mostram. É do próximo
que ela vai receber as palavras com as quais
se “entende”. É da mãe que, ouvindo o choro da criança, diz: “Tens sono, tens fome,
tens medo”. É um outro que fala pelo um.
Implica isto um constante medo do errar,
num viver entre a culpa e o castigo. No
pior dos medos, a perda do amor ou
do abandono. O homem lança mão
de recursos: heróis imortais e imbatíveis, espíritos protetores serão inventados. Orações poderosas contra
os inimigos serão invocadas.
Mais tarde,
quem sabe, talvez,
um “não preciso de nada”. Ou ainda, um de
tudo saber. Antídoto vigoroso, o amor, deve
ser usado. Porém, paradoxalmente, este traz
novamente o medo. O de perder o seu objeto de amor ou de não ser correspondido. O
retorno ao inanimado, a morte, é o final da
cadeia do medo.
JOSÉ DURVAL CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Médico, psiquiatra e membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise
Iracy Doyle.
E-mail: jdurval@unisys.com.br
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A VIOLÊNCIA
IRINEU EDUARDO J. CORRÊA
Assaltos, seqüestros, assassinatos, balas
perdidas, brigas em boates e bailes. Todos têm
um caso de violência para contar. A imprensa noticia a sua banalização e ela acabou por
se tornar a maior preocupação da sociedade.
Várias causas são apontadas para a explicar a
situação: miséria, patologias individuais e sociais, educação, decisão individual, decisão
política. Um único sentimento está no centro das ações de vigilância, prevenção e defesa: o medo de ser tocado por ela.
O medo é um velho companheiro do homem, embora não tenha nascido com ele. Recém-nascidos, aparentemente, não têm o que
chamamos de medo. O primeiro choro do
bebe é ocasionado pela distensão dos pulmões
e os imediatamente seguintes são devidos à
sensação de desconforto gerada pela falta de
alimento na barriga ou pela falta de manutenção da temperatura no nível epidérmico.
Com o passar do tempo, os comportamentos associados àquelas sensações se tornam
mais complexos e variados. Um deles corresponderia a uma espécie de angústia, seja diante da fome, seja pela falta do seio ou da
mamadeira que saciará aquela sensação. Idem
em relação ao frio, que será saciado por uma
boa coberta ou, de modo igualmente eficiente, por um bom aconchego.
Na medida que as sensações se repetem,
entra em cena uma divisão prática entre aquele que as sentem, a quem podemos chamar de
sujeito, e aquela coisa outra que sacia. O desenvolvimento de cada pessoa tem por base
essa relação, um processo que faz as distinções
entre os objetos que estão no mundo, sejam
pessoas, coisas ou ações. Importante lembrar
que todo e qualquer sujeito poderá ocupar a
posição de objeto ou de Outro. E isto não parece ser problema para nenhum deles, pelo
menos, em situações normais.

Em sua trajetória, as pessoas vão experimentando uma infinidade de sensações agradáveis e outras tantas desagradáveis, as quais
podem, até mesmo, estar distanciadas daquelas, direta e inicialmente, ligadas à fome, ao
frio e à saciedade, até a um ponto quase impossível de identificar qualquer relação entre
aquelas primeiras e as novas. Nesse processo,
podem entrar na lista de objetos mesmo aqueles que não foram diretamente testados, bastando que se pareçam com algum que já esteja na lista. A identificação dessa semelhança
varia de indivíduo para indivíduo, o que serve de ponto de referência para um, não serve
necessariamente para outro, embora, num
mesmo grupo os gostos tendam a se aproximar uns dos outros. Aliás, quem diverge muito da média do seu grupo costuma ser chamado de excêntrico ou esquisito. De qualquer
modo, as sensações de ambos os tipos vão se
acumulando e o indivíduo se aproxima de um
estado de equilíbrio homeostático e psicológico, no qual a sua consciência de diferenciação das coisas e pessoas do mundo avança, para
além daquela dimensão prática de quando era
bebê, em direção a uma subjetividade que permite que ele se reconheça definitivamente
como sujeito e reconheça o mundo como diferenciado de si, onde têm existência objetos e
o Outro.
Todavia, este equilíbrio não é estático ou
definitivo, até mesmo no indivíduo adulto,
e a manutenção do equilíbrio é uma atividade constante e árdua, mesmo que não seja
consciente todo o tempo.
O ato que identificaremos como violento
é aquele em que o equilíbrio é rompido de
modo drástico e a integridade do sujeito é colocada em risco, quer do ponto de vista objetivo, quer do
subjetivo.

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Nesta conjunção estarão estabelecidas as
condições para que apareça o estado chamado de medo. Embora seja claramente um estado de desequilíbrio, onde predominam as
sensações desagradáveis, o medo tem um papel importante, de certo modo vital para a
sobrevivência, quando ajuda na identificação e controle por enfrentamento ou fuga
de alguma situação desfavorável aos seus interesses ou de algum inimigo.
Mas não é este o medo que se constitui
na preocupação maior da sociedade atual.
Neste caso está o medo que vem sendo gerado por uma situação de violência que associa episódios de alta potência com constância permanente, uma combinação que vem
fazendo com que as pessoas se sintam desamparadas, de tal forma que perdem o sentimento de ser sujeito e se vejam como se
fossem mero objeto, subordinado às vicissitudes da violência que o faz sofrer.
Neste estado de coisas, a imensa desproporção entre a potência do ato violento e a
presumida capacidade de resposta do indivíduo faz com que esta se torne inexeqüível
e, de imediato, não reste ao indivíduo nem
a fuga e nem o enfrentamento, apenas aguardar que passe. Na verdade, uma fuga sim,
mas por uma espécie de congelamento ou
anestesia até que aquele acontecimento termine. Posteriormente, uma alegria desmedida, gerada pelo fim da situação de tensão,
pouco depois, uma profunda melancolia e
uma raiva incomensurável, mesmo quando negadas ou
reprimidas.
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QUE PARALISA
TERROR DA MORTE (fragmento)

“Ah, o horror de morrer!
E encontrar o mistério frente a frente
Sem poder evitá-lo, sem poder...
Gela-me a idéia de que a morte seja
O encontrar o mistério face a face
E conhecê-lo. Por mais mal que seja
A vida e o mistério de a viver
E a ignorância em que a alma vive a vida,
Pior me [relampeja] pela alma
A idéia de que enfim tudo será
Sabido e claro...
O animal teme a morte porque vive,
O homem também, e porque a desconhece;
Só a mim é dado com horror
Temê-la, por lhe conhecer a inteira
Extensão e mistério, por medir
O [infinito] seu de escuridão.
Medo da morte, não; horror da morte.
Horror por ela ser, pelo que é
E pelo inevitável.

”

FERNANDO PESSOA 1888-1935 Considerado um dos
maiores poetas da língua portuguesa

AMOR E MEDO (fragmento)

“Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

”

CASIMIRO DE ABREU 1839-1860
Poeta. Autor de As primaveras.
DIVULGAÇÃO

Noutra ponta, as atitudes que preveniriam a violência tentarão se equiparar a ela em
potência. Ao sujeito ameaçado em sua integridade, qualquer espaço protegido é considerado um oásis, não importando o preço que se
pague por isso, em termos concretos ou subjetivos — seja dinheiro, liberdade individual ou
coletiva. Os automóveis particulares são blindados. Pessoas, condomínios e trechos de ruas
recebem segurança particular ostensiva. As residências são gradeadas e se transformam em
verdadeiras fortalezas. A vigilância constante
em locais públicos por câmeras de vídeo se dissemina. A imprensa repercute o clamor por
uma polícia de eficiência absoluta, leis muito
mais rígidas e sentenças judiciais mais longas e
de execução sem possibilidade de comutação
ou outros recursos de suavização. Ninguém
nota que diariamente a polícia prende mais e
mais suspeitos e criminosos, os tribunais estão abarrotados de processos, os julgamentos
se sucedem e as prisões e penitenciárias estão
superlotadas. Alguns políticos dizem que “bandido bom é bandido morto”. Algumas pessoas concordam. O medo da violência parece
justificar a violência contra o Outro.
IRINEU EDUARDO J. CORRÊA Psicólogo, mestre em Letras e pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional. Trabalhou como coordenador de projetos da FUNABEM e exerceu a presidência da
Comissão de Ética do Conselho Regional
de Psicologia do Rio de Janeiro.

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“Quem tem medo do futuro,
tem medo de ser livre!”
Frei Beto Escritor

ZUENIR VENTURA
ENTREVISTA
O Rio de Janeiro continua lindo. Mas infelizmente esta beleza está encoberta pela sombra da violência. Uma sombra que encobre
também outras grandes e belas cidades brasileiras. É triste ver as cadeiras nas calçadas de
antigas ruas de subúrbio serem recolhidas para
dentro de casas gradeadas. O comércio fecha
suas portas, as casas, suas janelas e a população seu coração, trancados a cadeado pelo
medo. Lar de brasileiros e estrangeiros, democrática em suas praias e rodas de samba, e hoje
rasgada pela miséria e violência.
Em seu livro Cidade partida, o jornalista Zuenir Ventura conta a história de uma cidade que nasceu com a vocação da acolhida
e foi mutilada pela insegurança. Em entrevista ao Leituras Compartilhadas, este cronista
da vida carioca fala da cultura do medo estabelecida e de sua crença de que o Rio de Janeiro vai continuar sendo...
LC:O grande problema do Rio de Janeiro atualmente é a violência. O que isto
gera no cotidiano da cidade?
Zuenir: O problema dos níveis de violência hoje é que eles provocam, além
do medo natural e justificável, o
medo irracional e, às vezes, imotivado. Há casos em que o
medo se torna pior que a
própria violência. Hoje,
muitos têm medo de
vir ao Rio de Janeiro.
Um medo que não
cede à argumentação de que muitos cariocas, por
exemplo, nunca
foram assaltados. A cultura
da violência aca-

ILUSTRAÇÃO DE JUAREZ MACHADO PARA SEU LIVRO LIMITE ED. AGIR
LIMITE,

18

bou por criar uma cultura do medo que, como já
disse, tornou o medo da violência pior do que a
própria violência.
LC: O início dos agrupamentos humanos, que
deram origem às cidades, foi causado pela necessidade da união dos habitantes de determinadas
regiões de se unirem para uma melhor defesa contra inimigos externos. Hoje, o inimigo é interno.
Isto pode gerar um processo inverso de isolamento e fuga dos grandes centros?
Zuenir: Todas as formas de isolamento, de segregação, de distanciamento já foram tentadas. Aqui
no Rio, primeiro as pessoas tentaram cercar suas
casas com grades, depois foram para condomínios fechados. Tentaram criar exércitos particulares de seguranças, se fechar em verdadeiros
bunkers, e nada disso deu certo. Um caso controvertido são os condomínios da Barra da Tijuca1,
onde teoricamente as pessoas estariam livres da
violência, com a realidade mantida de fora. Por
fim, foi constatado que havia uma violência endógena, um tipo de violência interna que se criou
nos condomínios. Hoje, um dos seus maiores
problemas é exatamente a violência dos jovens
que roubam carros para comprar drogas e as brigas de gangues, tornando os condomínios semelhantes a guetos violentos. Muitas tentativas
de segregação, de apartheid, foram tentadas e todas fracassaram. A solução não é fácil. É demorada. É a solução da integração da cidade. O Rio
de Janeiro é uma cidade calorosa, de encontro,
afetuosa, uma cidade realmente de celebração.
O destino do Rio vai ser o de voltar ao encontro, à celebração. Espero que o momento atual
seja um acidente de percurso. Espero que a vocação do Rio, seu destino, seja realmente a da
integração. O apartheid, seja o racial, seja o social, não dá certo em nenhum lugar do mundo e
no Rio de Janeiro também não dá. Apesar de
tudo, a esperança é que haja realmente o encontro, o destino natural das cidades.
LC: Então a busca de interação cultural, como os
projetos que procuram integrar os habitantes da
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E A CIDADE PARTIDA
favela com os do asfalto, seria um caminho?
Zuenir: Quando eu disse que, às vezes, o medo
da violência é pior do que a violência, isso acontece muito pelo nosso olhar daqui do asfalto para
as favelas. Nós temos a idéia, a impressão carregada de estereótipos, de que lá é um antro, uma
usina de violência, esquecendo que ali a maioria
da população é pacífica, ordeira e trabalhadora.
A violência ali é produzida por um núcleo mínimo de 0,1 % dos moradores. Eu acho que você
olhar para a favela, para o outro, para o diferente, e mudar seu olhar de suspeita, desconfiança,
é uma forma efetiva de aproximação. A cultura,
mais uma vez, está fazendo isso como fez no
fim do século XIX com o samba, que nasceu
sendo a música dos segregados, discriminado, e
acabou sendo apropriado pela classe média, depois de um primeiro momento em que ela o rejeitava e temia. Está acontecendo um pouco isto
com a cultura do hip hop, do funk, e com os grupos de música de periferia. Essa é uma forma de
integração. No Rio, ou melhor, no Brasil, a economia separa o que a cultura une. A ponte desta
cidade partida tem de ser feita além do movimento social, também pela cultura.
LC: Cidade partida foi lançado em 1994.
Nestes oito anos, o que mudou? Você considera que houve melhora ou a situação se degradou ainda mais?
Zuenir: O que evoluiu daquela época para cá é
que, hoje, a sociedade tem, mais do que naquele
momento, a consciência de que a violência é um
problema dela também. De que não adianta virar as costas para esta questão. De nada vale dizer que se pagam impostos, portanto isto é problema do governo, ele que resolva o problema
da violência. Sabemos que não é assim. Até porque a bala perdida não escolhe cabeça. Ela está
caindo do nosso lado, aqui no asfalto. Essa consciência, que ainda é embrionária e precisa ser desenvolvida, começa a tomar corpo na sociedade.
Com os movimentos do terceiro setor e toda essa
tragédia que aconteceu, de alguma maneira cha-

mamos a atenção para isto. Eu diria que hoje há
uma maior consciência da sociedade de que ela
tem uma tarefa a cumprir nessa questão.
LC: Então a sociedade, como forma de combater
o medo, partiu para tentar conhecer e entender
os problemas que causam a violência e, por conseguinte, o medo?
Zuenir: Exatamente. Durante décadas, até mais
de um século, fomos criados com todos os
estereótipos em relação às favelas como um
antro de violência. Quando você vê as condições de vida lá, se surpreende de como é pacífica essa população. Porque, na verdade,
todos os bens, direitos e conquistas da cidadania ainda não chegaram lá. Então criamos
uma série de barreiras preconceituosas, uma
visão estereotipada, estigmatizando um universo por ele ser diferente do nosso. Diferente na cor da pele, diferente na maneira de
morar, o fato de ser pobre... Isto tudo em um
processo de associação que é muito mais
antigo.Vou me remeter apenas ao período da
abolição da escravatura, quando os negros foram jogados na rua: “agora vocês se virem”. Por
esse processo de discriminação ter sido muito permanente, muito freqüente, ele está arraigado, entranhado na nossa história recen-

“...A missa foi na segunda-feira, e no dia
seguinte, no feriado ensolarado, quem não estava vendo a parada militar, estava na praia.
Às 12h45, as areias de Ipanema e Arpoador
estavam lotadas.
De repente, a confusão. Cerca de cinqüenta garotos, identificados depois como funkeiros
de algumas favelas da cidade, começaram a
brigar. Os tiros disparados para o alto pelos
policiais militares – uns poucos, já que a maioria estava no desfile – aumentaram o pânico.
O tumulto durou menos de uma hora, mas
foi suficiente para esvaziar as duas praias vizinhas e encher a imaginação das pessoas de terror. Os banhistas correram apavorados, achan-

19

te e também na mais remota. Para sair disto
leva tempo, mas eu creio que hoje já esteja
surgindo uma luz no fim do túnel. Sabemos
que a solução está na aproximação e não na
guerra. Nós temos uma certa vantagem, pois
no Brasil não existem questões explosivas,
como por exemplo, a questão racial do Leste
Europeu, em países como a Iugoslávia em que
se mata por achar que o sangue é diferente.
Temos preconceito e racismo, mas não é uma
forma tão explosiva, de jeito que não estamos à beira de uma guerra racial, étnica. Podemos estar próximos de uma guerra social,
isto é, de uma convulsão social. Mas todo problema social tem jeito. A questão da miséria
é uma questão de vontade política, que pode
ser resolvida com um programa de integração social. O Brasil tem - e o Rio de Janeiro
tem muito - uma energia vital, uma alegria,
muito grande. Apesar de tudo, neste momento, o que vivemos é a vocação da celebração,
do encontro, da alegria, da paz.
1 Bairro do Rio de Janeiro conhecido por seus condomínios e shoppings .

ZUENIR VENTURA Jornalista e professor universitário há 40 anos.
Ganhou o prêmio Esso de Reportagem e o Prêmio Wladimir Herzog
de Jornalismo, em 1989. É autor de 1968, O ano que não terminou e Cidade partida. Atualmente é colunista do jornal O Globo.
ANA CLÁUDIA MAIA

do que iriam ser vítimas de um arrastão igual
ou pior do que o de outubro de 1992.
Às duas manifestações anteriores de violência – a chacina de Vigário Geral e um mês
antes o massacre dos oito meninos de rua na
Candelária – se somava mais essa. Os três episódios estavam carregados de um intenso peso
simbólico. Segundo o antropólogo Luiz Eduardo Soares, significavam ‘a violação de três espaços míticos: o espaço sagrado, o espaço doméstico e o espaço do convívio democrático, a
praia’. A imagem da cidade apartada pelo
medo reforçava a comoção social.”
Cidade partida, de Zuenir Ventura, Ed. Companhia das
Letras, págs. 87,88.
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SÍNDROME DO PÂNICO
UMA HISTÓRIA REAL
Até onde consigo me lembrar, tive minha
primeira crise de pânico aos 17 anos. Naquela época ainda não eram freqüentes - não mais
que uma a cada 5 meses - mas já o suficiente
para me fazer acreditar ser algo amalucada, ou
cercada por espíritos malignos... Em 1987 pouco ou nada se falava no Brasil sobre a síndrome do pânico. Passaram-se os anos e várias crises mais, até que um dia eu me deparasse com
uma reportagem sobre a síndrome. Meu sentimento - diferentemente do da maioria das pessoas quando recebem esse diagnóstico - foi de
alívio. Opa! Eu não era Carrie, a estranha... E
tampouco a única a ter aquele tipo de problema. E, melhor ainda, se havia um nome, se
era um quadro clínico, então haveria de existir
também uma forma de tratamento.
Mas ainda levei muitos anos até conseguir
controlar as crises. Vivia em altos e baixos. Às
vezes se passavam muitos meses sem nenhuma crise e, de repente, tinha duas em um mês.
Cheguei a cercear minha vida em função da
síndrome. Tinha uma crise em um bar, com amigos, e resolvia que não queria mais sair de noite... Que em casa estaria mais “segura”. E então
tinha uma crise em casa, e não havia o que fazer... Demorei algum tempo até perceber que o
problema estava dentro de mim e, não, fora.
É muito difícil explicar uma crise de pânico a quem nunca as vivenciou. Costumo tentar assim: imagine-se sozinho, no meio de um
campo e, de repente, vendo um enorme leão
pulando na sua frente, pronto pra devorá-lo.
Só que não há leão.
Física e emocionalmente, isso se traduz em
uma sensação de perda de controle do próprio corpo, como se estivesse em curso um
motim interno que não nos achamos capazes
de combater. Você sente-se sufocar, faltando o
ar, faltando o chão, faltando-lhe o controle dos

próprios movimentos e pensamentos. E tremores, ou dentes batendo, cólicas, enjôo, pressão baixa, muitas vezes tudo ao mesmo tempo. Terror.
A vontade que se tem nessas horas é de
correr para algum lugar seguro... Mas, uma vez
que não existe leão (ao menos não um de grande juba e quatro patas), não há esse lugar seguro. A ameaça é interna, é você frente aos seus
medos, aos seus fantasmas... E eles o acompanharão para onde você for.
Já ouvi várias explicações para a síndrome
do pânico, dadas por médicos, psicólogos, psiquiatras. Em todas elas o fator predominante
era o medo. A síndrome é comum em pessoas

ILUSTRAÇÃO DE JUAREZ MACHADO PARA SEU LIVRO LIMITE ED. AGIR
LIMITE,

BÁRBARA ARANYL
DE LA CORTE

20

com nível de exigência muito alto para consigo mesmas - e o medo de não ser capaz (seja lá
do que for) leva à crise. E há também o medo
de não ter controle absoluto sobre si mesmo,
corpo/mente/coração. E também o medo de
enfrentar o mundo que nos cerca (e que, convenhamos, não anda dos mais tranqüilos). Ou
o medo do sofrimento, de estar sozinho, de se
entregar... Toda uma família de medos - bastante aparentados entre si, diga-se de passagem.
Acho difícil falar em superação total desses medos. Eles vão e vêm, rondam, espreitam... Mas tenho aprendido que não há outro
caminho que não seja o enfrentamento. Claro
que isso não é fácil, e aí uma ajuda profissio-
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“Temer o amor é temer a vida e os que temem
a vida já estão meio mortos.”
Bertrand Russell 1872-1970 Filósofo e matemático inglês

O Caderno de Leitura do Programa
Leia Brasil reunindo crônicas, contos, poesias,
entrevistas e artigos de especialistas para ajudar
educadores a trabalhar a leitura na escola.

nal é, na minha forma de ver, fundamental.
Fazer uma terapia, para tentar descobrir qual a
origem e como funcionam esses medos. E também buscar um tratamento, seja alopático, homeopático, acupuntura, ayurveda... Desde que
sério e seguido com constância.
Juntamente com a ajuda profissional, é de
um valor inestimável a ajuda da família e dos
amigos. Carinho é um poderoso remédio contra a síndrome.
Quanto a mim, não posso me dizer “curada”. Sigo com meu tratamento, e vou seguir
enquanto for necessário. Estou em algo como
um work-in-progress. Um contínuo respirar fundo e tomar coragem. Respirar fundo e mandar
os fantasmas procurarem outra morada, porque aqui eles não são mais bem-vindos. Isso
porque acredito que – um tanto inconscientemente - somos nós que os mantemos por perto. E o fazemos quiçá por medo... Sim, porque por mais contraditório que isso pareça,
esses medos, a síndrome, o pânico, depois de
um tempo, também podem se constituir em
uma morada, conhecida, e, como tal, aparentemente mais segura. Algo assim como morar
em uma casa mal-assombrada, mas que é a
única casa que você conhece. Quem pode garantir que fora dela não vá ser ainda pior?
Não é.
Sei muito bem que conselho não se dá, mas
algumas dicas posso, não? São pequenas coisas
que fui descobrindo no decorrer dos anos, e
que me ajudaram muito. Se ajudarem a uma
pessoa mais que seja, já fico feliz. Vamos lá.
A síndrome do pânico atinge cerca de 3% da
população mundial. No Brasil, são aproximadamente cinco milhões de pessoas. Nem
sempre os sintomas são claros. Saiba mais.
Associação Nacional da Síndrome do Pânico
Telefone (11) 5579-7257
Plantão SOS Psicológico
Telefone (11) 3654-1313
www.sos.org.br

O que se pode
ler nos rios ou
através deles?

Velhas diferenças,
que fazem, de
cada um, um.

Tome seu lugar
a bordo. Porque
navegar é preciso,
e ler também.

Indispensável para escolas que
têm e que não têm um Programa
de Leitura.
21

Assine já!
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assinaturas@leiabrasil.org.br
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APROXIMAÇÃO
DANAIDE, DE AUGUSTE RODIN

CÁSSIA JANEIRO
Ouço passos no corredor comprido de
minha casa. A porta do meu quarto está fechada. Os passos se tornam mais fortes e eu sei
que, em breve, a porta se abrirá num estrondo. Tremo sob as cobertas. Poderia fugir, mas
sinto-me inerte.
A peregrinação do desconhecido é um
lapso de tempo, mas
longa como

só a espera pode ser. Sinto meu coração e meus
nervos todos vibram uníssonos, segundo a segundo. Uma gota de suor escorre em minha
testa, apesar do frio. O teto me comprime, como
se procurasse sufocar qualquer tentativa de fuga.
Imobilizada, apenas ouço e espero ... e espero
... Não posso mais sentir minhas mãos e meus
pés. Paralisia. Não sei o que virá, mas é mais
aterrorizante a espera do que o que está por
acontecer. Meus olhos ainda se mexem e procuram uma saída, uma réstia de esperança vã.
Sei, contudo, que escapar é impossível. A escuridão é completa, mas meus olhos tentam, desesperados, ver através dela..
Um calor lascivo me toma o corpo, num
estranho regojizo desprotegido. Estou só. Eu e
meu desconhecido. Sinto o calor ruborizando
a minha pele clara e delicada. Delírio quente é o medo. Não sei até quando posso
sustentar a névoa que me encobre as
sensações e, paradoxalmente, as
desvela. Minhas roupas estão
jogadas no chão. Sei que
estou nua e a nudez
me torna ainda mais
frágil e desprotegida e também

mais quente. Num átimo sinto todo o meu
corpo, a maciez da minha pele, a textura da
minha boca úmida. Os passos estão mais próximos e agora o medo é fascínio, é sedução e
terror. Quanto mais próximo o som, mais sinto o corpo, sensível como só aqueles que estão totalmente expostos podem ser. O lençol
a roçar na minha pele traça um desenho delicado, uma estranha dança de sensações. Não
me movimento, embora o corpo seja leve; sou
inteira uma teia de possibilidades.
Não ouço mais os passos, não porque não
existam, apenas porque estou embevecida e
abafam-nos as batidas do meu coração. Sei que
a porta se abrirá. Temo porque não conheço e,
não conhecendo, não posso, não estou no
controle. Mas, como alguém que está por afogar-se, sei que de nada adiantará me debater.
Deixo que a correnteza de sensações me leve
para onde quiser. E, no exato instante em que
paro de lutar, posso desfrutar da hipnose da
minha alma, que também pulsa na sua própria escuridão. Não procuro alívio. Sei que
estou encurralada e há um estranho prazer nisso. Arrebata-me a satisfação de não estar mais
no controle, não saber o que virá, não ter idéia
do que acontecerá.
Tenho os olhos fixos na porta agora. Sei
que está muito próximo o momento em que
ela se abrirá. Volto a olhar para as minhas roupas inertes no chão e minha nudez não é mais
a mesma, é uma nudez total. Inesperadamente desejo estar ali e não em qualquer outro lugar. Já não importa o que virá da porta. Ela
está fora de mim. E dentro de mim está uma
desconhecida cujo corpo se contorce faminto
entre os lençóis, derrubando o pesado cobertor. Descubro o medo nas frestas da minha
alma, parte dela que pulsa e lateja. Não posso
me separar dele, não agora que ele é medo que
se faz fascínio.
A porta se abre num estrondo. Fecho os
olhos e deixo-me tomar. Entregue. Inexorável.
CÁSSIA JANEIRO Poeta e educadora. Autora de Poemas de Janeiro.

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O CORVO DE EDGAR ALLAN POE
Tradução de Machado de Assis

(FRAGMENTOS)

“ certo dia, à hora, à hora
Em
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
‘É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais’.
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial Dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e: ‘Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais.’
Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: ‘Imploro de vós - ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisado de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais’.
Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Entro co’a alma incendiada,
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
‘Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos.
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso.
Obra do vento e nada mais’.
Abro a janela e, de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: ‘Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?’
E o corvo disse: ‘Nunca mais’.
Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,

23

Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lh’a entendera.
Na verdade jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: ‘Nunca mais’.
No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: ‘Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora’.
E o corvo disse: ‘Nunca mais!’
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
‘Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz , tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, da amarga e última cantiga,
Esse estribilho: ‘Nunca mais’.

...

”

“ ve ou demônio que negrejas!
‘
A
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua’.
E o corvo disse: ‘Nunca mais’.

”

EDGAR ALLAN POE 1809-1849 Poeta, contista e jornalista norteamericano. Criador do romance policial e um dos grandes nomes da literatura fantástica. Entre suas obras estão: O gato preto;
O poço e o pêndulo; A queda da casa de Usher.
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UNIDADE DE LEITURA
QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU?

BONECO DE PEDRO E O LOBO DO GRUPO GIRAMUNDO

MARIA CLARA CAVALCANTI
DE ALBUQUERQUE
Quem tem medo do lobo mau? O Chapeuzinho Vermelho, os três porquinhos, os
sete cabritinhos, nossos alunos, você e eu.
Uma vez perguntaram ao folclorista Câmara Cascudo se, depois de tantos anos estudando nossos mitos, ele acreditava em lobisomem. Cascudo passou as mãos pelos
cabelos e respondeu mais ou menos assim:
“aqui, nesta sala iluminada, conversando com
você, não acredito não, mas em noite de lua
cheia, andando sozinho no mato, meu amigo...
acredito sim e você também”.
O medo está presente em nossa vida desde que nascemos. Medo do bicho-papão,
da alma penada, do escuro, de não sermos
amados por nossos pais são somente alguns
pesadelos que povoam nossa infância.
São os lobos infantis que rondam nossos sonhos e enchem de uivos nossa imaginação.
Não é à toa que os acalantos com os quais somos embalados já nos avisam
dos perigos e
nos orientam sobre
o que

esperar da vida que se inicia.“Dorme neném
que a Cuca vem pegar / Papai foi à roça, mamãe foi trabalhar” ou “Bicho-papão em cima
do telhado / Deixa meu menino dormir sono
sossegado.”
Com ouvidos adultos, parece-nos bem
pouco provável que uma criança adormeça
ouvindo sobre perigos tão próximos ou ameaças tão aterrorizantes, mas o fato de um
adulto compartilhar com ela o conhecimento da presença do monstro, aliado ao aconchego e à voz que a embala, dá-lhe a certeza
de não estar sozinha e a faz relaxar.
Não é à toa, também, que as histórias de
fadas clássicas vêm sendo contadas, através
dos séculos, a crianças que nelas encontram
alívio para os mais diferentes sentimentos.
Poder ouvir que a madrasta inveja a beleza de Branca de Neve; que o Pequeno Polegar consegue ludibriar o terrível gigante;
que Dona Baratinha, após chorar a morte de
D. Ratão, volta à janela para procurar outro
noivo; que Cinderela, desobedecendo as
ordens da madrasta, vai ao baile proibido e
consegue casar com o príncipe; que João e
Maria conseguem sobreviver apesar do abandono de seus pais é sinalizar que nem tudo
está perdido.
É saber que não somos os únicos a sentir inveja, que mesmo a força poderosa de
um gigante pode ser vencida se usarmos a
cabeça, que às vezes é preciso enfrentar as
situações para conseguirmos o que desejamos, que mesmo após as grandes perdas a vida
continua, e que, mesmo nossos pais, são capazes de sentimentos ruins.
Ouvir que outras pessoas compartilham de nossos sentimentos
nos faz
menos
sozinhos.

24

Quando mudamos as estruturas destas
histórias numa tentativa de torná-las menos
tristes, tiramos das crianças a oportunidade
de vivenciar seus medos, compartilhar com
os personagens seus sentimentos menos nobres, enfim, acalmar seus lobos. Se ressuscitamos D. Ratão, por exemplo, dando-lhe um
bom banho e o casamos com D. Baratinha,
teremos não só negado à criança que nos escuta uma excelente oportunidade de aprender a lidar com perdas, como criado, aí sim,
uma história de terror imensurável. Imaginem o fruto deste casamento - um rato e uma
barata - nem Lovecraft, em seu mais louco
devaneio, seria capaz de pensar semelhante
horror!
À medida que vamos crescendo e que o
mundo a nossa volta vai se modificando, os
lobos vão ganhando novos nomes e contornos.
Podemos chamá-los de morte, solidão, doença, guerra, separação, desemprego, violência,
fome... O nome varia, mas o sentimento de
impotência que nos invade é o mesmo.
Como já não temos quem nos tome nos
braços e acalme nosso coração, procuramos
outros meios de enfrentar a alcatéia faminta
que nos rodeia.
Num tempo de alta tecnologia, onde o
homem é capaz de brincar de Deus clonando animais e ensaiando a clonagem de pessoas, nunca se estudou tanto as profecias ou
se consultou tantos astrólogos e videntes,
numa tentativa de adivinhar o futuro e acalmar nossos temores. Como não temer o dia
de amanhã se acompanhamos ao vivo e a
cores, confortavelmente instalados em nossas salas, o desmoronamento de dois símbolos do maior império contemporâneo? Se
o lobo já entra em nossa casa não só pela
porta, mas também através do cabo da televisão, é preciso usarmos todos os meios possíveis para, pelo menos, enjaulá-lo.
A arte, sempre cronista de seu tempo,
nos sinaliza caminhos e escapes. Os filmes
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coleção

“Ciência e religião têm uma origem comum:
a necessidade humana de controle do medo.”
Marcelo Gleiser Físico.

de terror lotam as salas dos cinemas, os livros sobre bruxaria alcançam as listas dos
mais vendidos, os jornais e revistas se esgotam ao falarem do crime organizado. O
outdoor de propaganda de uma revista nos
alerta - Bons tempos em que só se sentia medo
de bandido solto.
Precisamos desesperadamente de alguém
que converse e compartilhe conosco, seja em
que linguagem for, dos nossos medos, pois,
como diz João Carlos Rodrigues em seu artigo, “nenhuma ficção pode ser hoje mais amedrontadora do que a realidade.”
No entanto, são as histórias - ficcionais
ou não -, livros, filmes, músicas, peças de
teatro e novelas, as armas com que podemos
nos municiar para tentar, pelo menos, domesticar nossos lobos particulares e ajudar
nossos alunos a enfrentarem os seus.
Por que não voltarmos com eles ao tempo de embalá-los com histórias e leituras que
lhes permitam elaborar e compartilhar seus
sentimentos? Ao trabalharmos o medo de
monstros imaginários, estaremos fortalecendo-os para lidar com os medos reais. Ao falarmos abertamente de medos contemporâneos, estaremos lhes dando a oportunidade
de exorcizarem suas preocupações e temores.
É preciso vencer o medo de falar do
medo. O diálogo aberto, a história bem contada, a leitura compartilhada nos permitirão
olhar o lobo de frente e construir casas resistentes que não caiam com um mero sopro,
atravessar florestas sabendo como não cair em
conversa de estranhos, saber a quem devemos
ou não abrir a porta de nossa casa e nos mantermos alertas à aproximação das feras.
Aí sim, como já dizia Cascudo, só sentiremos medo de lobos e lobisomens no meio
do mato em noite de lua cheia, e não nas
salas iluminadas.

Histórias de bruxas,fantasmas e outros habitantes do
universo do terror sempre fizeram parte do imaginário
infanto-juvenil. E que atire a primeira pedra quem
nunca conferiu se havia um monstro embaixo da
cama ou deixou a luz acesa em noite de tempestade.

MARIA CLARA DE CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Psicóloga e
especialista em Literatura Infanto-juvenil e Leitura.

25

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LEITURASCOMPARTILHADAS
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MEDO DE QUÊ,
TATIANA MILANEZ
Fanny Joly adora rir. Foi rindo que ela escreveu seu primeiro texto, um monólogo cômico para a irmã mais velha, a atriz Sylvie Joly.
Isso foi há quase trinta anos. Hoje, aos 47, um
marido e três filhos, a escritora continua se
divertindo com o trabalho. Apesar da Licenciatura em Letras, Fanny confessa que sua formação não foi na universidade. Seu aprendizado foi no trabalho. Começou como redatora publicitária, uma profissão que, segundo ela,
lhe ensinou a ser direta no texto, dado essencial na literatura infantil. Fanny também escreveu roteiros para o cinema e televisão, além
de esquetes para o teatro. Mas o que mais lhe
dá prazer são as histórias para crianças. Foram
mais de 130 livros traduzidos em 14 línguas,
entre eles a conhecida coleção Quem tem
medo de. Nas paredes em volta de sua mesa
de trabalho, vários desenhos de pequenos leitores. É nesta sala, num apartamento claro e
confortável, a poucos metros da Torre Eiffel,
em Paris, que Fanny Joly recebeu a repórter de
Leituras Compartilhadas:
LC: Os seus livros da coleção Quem tem medo
de falam de medos infantis que parecem universais. A senhora acredita que existam medos
que todas as crianças sentem em determinada
idade ?
Fanny: Esta coleção é dirigida às crianças entre
3 e 8 anos. Nesta fase existem medos quase

instintivos que encontramos em todas as crianças. Quando começamos a pensar nesta coleção, fizemos uma lista de medos. Escolhemos então doze temas que nos pareciam universais. Nós até fizemos um teste: perguntamos a algumas crianças quais os medos que
elas tinham. Nós terminamos por escolher temas que nos permitiam uma história tranquilizadora e engraçada. A idéia era mostrar o
medo num contexto onde não haveria razão
para que ele existisse, como medo de dragão,
medo de rato, medo de escuro... Eliminamos
os temas que falavam de coisas que realmente
dão medo e que são perigosas, como por exemplo, o fogo. A gente preferiu se concentrar em
medos de conto de fada, quase míticos.
LC: E por que escrever sobre o medo? Quando criança, a senhora tinha medo?
Fanny: Eu era muito medrosa, muito mesmo.
Na verdade, eu não escolhi escrever sobre este
tema. Como na época eu já era uma autora
mais ou menos conhecida dos editores, me
propuseram fazer essa coleção em torno do
medo. E como de fato eu era muito medrosa
quando criança, achei a idéia interessante e me
deu vontade de fazer.
LC: Hoje em dia a educação infantil se preocupa em ajudar as crianças a perder o medo. Mas
antigamente o medo era utilizado como método de educação como, por exemplo, “tem
um monstro no teu quarto que vai te pegar, se
você não dormir”. A senhora acredita que

26

muito dos medos infantis foram criados pelos
adultos?
Fanny: Usar o medo da criança como método
de educação – entre aspas - ou como meio de
obter o que se quer como o exemplo que você
utilizou, eu acho que é algo realmente nocivo.
Para mim, o medo é um elemento muito negativo no dia-a-dia. Ele nos impede de ir para
a frente, nos bloqueia, nos freia, nos faz andar
para trás. Acho então que é um elemento que
deve ser combatido. É verdade que hoje em
dia nós, adultos, temos razão de ter medo. A
mídia nos submete a uma enorme quantidade
de notícias, nós somos bombardeados de imagens que nos transtornam, é difícil de lidar com
tudo isso! Mas se eu tivesse que escrever, por
exemplo, “Quem tem medo de seqüestro?”,
num contexto onde isso pode acontecer, não
sei o que faria... Porque o que as crianças amam
nestas histórias sobre o medo é que elas se sentem tranqüilas. O fio condutor da história é
“você tem medo de rato?”, “mas o rato não
vai te comer!”, “você tem medo de aranha?”,
“mas, olha, a tua avó pega a aranha com a
mão...”. É este tipo de coisa que tranqüiliza,
mas é verdade que com um seqüestrador, por
exemplo, você corre o risco de encontrá-lo e
vai ser horrível!
LC: Os seus livros são sempre engraçados, bem
humorados. A senhora acredita no riso como
arma contra o medo?
Fanny: Ah, sim! Eu acredito no riso como arma
contra quase tudo no mundo. Contra o medo,
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FANNY JOLY?
rir é uma arma fantástica. Quando você está
com medo e alguém te faz rir, o medo se desfaz imediatamente. De qualquer maneira eu
sou uma pessoa que adora rir e todos os meus
livros têm um tom humorístico. Nessa coleção eu escolhi um estilo diferente. De todos
os livros que escrevi, os livros Quem tem
medo são os únicos nos quais eu falo com a
criança na segunda pessoa. Geralmente nos livros para crianças a narração é feita na terceira
ou na primeira pessoa. Nessa coleção eu escolhi falar diretamente com a criança. Ela é o
herói da história. Quando o medo aparece de
repente, ela se identifica ainda mais, ela está
dentro da história. E o que acontece no livro,
acontece com ela também. E eu acho que esse
estilo funciona muito bem. Eu encontrei muitas crianças que leram esses livros. Na França,
eles foram publicados há dez anos, então tive
a oportunidade de encontrar muitas crianças e
professores que me disseram que o texto na
segunda pessoa fala diretamente às crianças,
funciona.
LC: Muitas crianças são reprimidas quando têm
medo. Alguns pais dizem aos seus filhos que
medo é sinal de fragilidade. A senhora acredita que é importante sentir medo?
Fanny: Eu não acho que temos que eliminar o
medo e sim tentar compreendê-lo e superá-lo.
Tentar entender o porquê, se o medo tem razão de existir naquele momento. O fato de não
termos medo não significa que está tudo bem,
mas o importante é tentar ir em frente, supe-

rar este medo. É uma etapa de crescimento, de
maturidade. É bom poder falar.
LC: A senhora acha que a série sobre o medo
terminou ou acha que daria para escrever mais
alguns livros sobre o tema?
Fanny: Eu acho que acabou. Para mim a idéia
original dessa coleção foi há dez anos. Ela foi
criada num grande formato, depois relançamos a coleção num formato menor, mas não
escrevi livros novos, ficamos com os doze temas. Foram os doze estabelecidos inicialmente. Aliás, o mais difícil para mim foi escrever o
livro Quem tem medo do mar?. É verdade
que existem crianças que têm medo da água e
é verdade que depois que aprendemos a nadar
perdemos esse medo e que no mar tem peixinhos. Mas, ao mesmo tempo, o mar pode ser
perigoso. Quando eu te dizia que o fogo pode
ser perigoso, o mar também pode ser perigoso, então não foi muito fácil. Foi o tema mais
difícil a ser tratado.
LC: E como você achou a solução para falar de
um tema difícil?
Fanny: Para mim a melhor solução seria não ter
que escrever sobre o mar. Eu não gosto da idéia
de ter que dizer: “não precisa ter medo do mar”.
Por outro lado, o livro sobre o monstro, por
exemplo, foi fantástico escrever, porque monstros não existem! É ótimo poder dizer no final
da história: “os monstros são ótimos, mas felizmente não existem, só nos livros”. Sobre os
extraterrestres, como eu não acredito neles,

27

adorei poder contar uma história delirante e
saber que nunca vamos encontrar um. Houve
uma idéia de fazer “Quem tem medo de ladrão?”, - parecido com a idéia do seqüestrador
de que falamos agora há pouco - , mas decidimos não incluir este tema, porque no nosso
espírito seguro e engraçado, não cabia ...
LC: Hoje em dia as crianças enfrentam o medo
do dia-a-dia: medo de terroristas, medo de
bomba... A senhora acha, no entanto, que elas
ainda têm medo de monstros e bruxas?
Fanny: Sim, porque há um prazer de ter medo,
que é o medo com o qual podemos brincar,
sabendo que ele não existe de verdade. As crianças têm realmente medo quando vêem o
noticiário com assuntos assustadores, mas elas
adoram ter medo com os livros, com brinquedos... Elas brincam com o medo porque sabem que no fundo é mentira e que de alguma
forma é um prazer ter medo. Quando estamos
lendo, nossa vida não corre nenhum risco.
TATIANA MILANEZ Jornalista
Com colaboração de Ana Cláudia Maia
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Revista medo

  • 1. LEITURASCOMPARTILHADAS EXEMPLAR AVULSO R$10,00 | DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PA R A A S E S C O L A S D O L E I A B R A S I L | FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR MEDO PREPARE-SE! VOCÊ VAI ENTRAR EM TERRENO PERIGOSO. TRATAMOS DOS MAIS VARIADOS SINTOMAS DO MEDO. VISITAMOS A LITERATURA E O CINEMA. BUSCAMOS TODAS AS SUAS CAUSAS: ESCURIDÃO, VIOLÊNCIA, PERDA E MORTE. CHEGAMOS AO PRAZER DO MEDO E AO MEDO DO PRAZER. COMECE JÁ! NÃO HÁ NADA A TEMER.
  • 2. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR Editorial p.3 Benita Prieto O fascínio que as histórias de terror e mistério exercem sobre nós. p. 4 Araújo Leila Borges de Araújo Mary Shelley e a literatura fantástica. p. 8 Feitosa Charles Feitosa Como o medo pode ser sábio. p. 10 Tatiana Belinky Conheça Nieta, uma moça que temia parecer medrosa. p. 11 Miriam Sutter Fóbos, entidade mitológica. p. 12 Entre Entrevista O cordelista Gonçalves Ferreira da Silva p. 14 Gonçalves Ferreira erreir Silva. Albuquerque José Durval Cavalcanti de Albuquerque Existirá um dia no qual tenhamos vivido sem o mais leve sentimento de medo? p. 15 Eduardo J. Irineu Eduardo J. Corrêa Violência: o medo, às vezes, supera a própria causa. p. 16 Entre Entrevista Ventur entura Zuenir Ventura e uma cidade partida. p. 18 Bárbara Aranyl Bárbara Aranyl de La Corte O depoimento de quem sofreu a síndrome do pânico. p. 20 Janeir aneiro Cássia Janeiro Quando o medo pode seduzir. p. 22 Clara Albuquerque Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque Unidade de leitura. p.24 Entrevista Entre A autora da coleção “Quem tem medo?” , Fanny Joly fala, em Paris, Joly, com a jornalistaTatiana Milanez p. 26 Milanez. T Cacá Mourthé Pluft, o doce fantasminha com medo de gente. p. 28 João Carlos Rodrigues Filmes de arrepiar. p. 30 Filmografia Filmografia p. 31 Ricardo Ricardo Oiticica O diálogo entre Álvares de Azevedo e Augusto dos Anjos. p. 32 Paulo Condini Luizinho sofre com o valentão do ônibus da escola. p. 34 Roberto Corrêa dos Santos Breve genealogia do medo na obra de Clarice Lispector. p. 36 Didier Lamaison O pavor de falar um idioma estrangeiro. p.37 Rosa Gens A força da literatura de terror e seus maiores nomes. p. 38 hereza Thereza Lessa Um escritor assombrado por fantasmas geniais. p. 41 Bibliografia Bibliografia p. 42 2
  • 3. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR BÚÚÚ! Quando escolhemos o tema dessa edição, imediatamente nos ocorreu buscar o depoimento daqueles que julgávamos sem medo: os evictos. Aqueles que, por estarem condenados por uma vida à reclusão; por viverem na total promiscuidade corroendo seu amor-próprio; por terem esquecido as condições de sociabilidade e já não terem mais qualquer esperança, são donos do mais absoluto “nada a perder”. Puro engano — se há vida, há medo. Logo descobrimos o conceito que norteia esse número de Leituras Compartilhadas: se alguma espécie, em qualquer tempo, não teve medo, então essa espécie foi extinta. O medo é o mais básico dos instintos e está ligado à sobrevivência. Não só à sobrevivência física, à dor e à morte da matéria. Ele está ligado, também, à manutenção de uma situação confortável. Na psicologia, confortável não é o que é agradável, mas o que não nos ameaça com mudanças. Vem daí o nosso medo de tudo: do desconhecido, do novo e até da felicidade.E também do escuro, de altura, de solidão, do outro etc. Como se isso não fosse o bastante, o medo nos é ensinado caprichosamente, por tudo e por todos, ao longo da vida.Quem nunca escutou dos pais um grito tenso dizendo — “cuidado”. Cuidado para não cair. Cuidado com estranhos, com os bichos, com fogo... Quantas histórias ouvimos na infância como as de Chapeuzinho Vermelho, Pedro e o Lobo e o Homem do Surrão, para ficar só nas que nos aconselhavam e não falar das que nos davam medo como as cantigas de ninar? Por isso, talvez, o medo nos cause tantas reações físicas como suor frio, taquicardia, boca seca, paralisia, necessidade de fechar ou cobrir os olhos, “Se alguma espécie, em qualquer tempo, não teve medo, então essa espécie foi extinta. ” pêlos arrepiados, e outros sintomas que são derivações de medo, que também se desdobra em pânico, fobia, pavor etc. Estranhamente, o medo que nos ameaça é o mesmo que nos seduz. Drácula, o príncipe das trevas que visitava o pescoço das donzelas em seus leitos desprotegidos tarde da noite, aterrorizava e seduzia com a mesma competência. É um paradoxo: quanto mais ameaçadora a história ou a personagem, tão mais atraente a obra. O medo inspira a literatura, rende bilhões no cinema e motiva dezenas de esportes chamados radicais, onde o homem testa seus limites físicos e emocionais. Na mitologia, Fóbos, o Deus do Medo, é filho de Marte, o Deus da Guerra. Curiosamente, sua face foi pouco interpretada pelas artes ao longo da história. Talvez porque o medo se propague e cresça sob o véu da escuridão e do desconhecimento. Poderíamos até afirmar, diante disso, que sua mãe seja a Noite, porque é nesse horário que o medo mais se apodera da mente humana. O medo sempre esteve ligado ao olhar, tanto pelo que se via quanto pelo que não se via: a Medusa transformava em pedra a todos que a viam. E todos os monstros — da Esfinge aos dragões medievais, de Cérbero, o cão do inferno ao recente Fred Krueger — possuem graves distorções estéticas que ampliam sua capacidade amedrontadora. Prepare-se para ler sem sustos nem sobressaltos. Desta vez vamos falar desse “gigante da alma”1, sob suas mais variadas faces, para ajudá-lo a livrar seus alunos dos medos, até mesmo dos livros. Leituras Compartilhadas é uma publicação da ONG Leia Brasil de Promoção da Leitura, distribuída gratuitamente às escolas conveniadas à ONG. Todos os direitos foram cedidos pelos autores para os fins aqui descritos. Quaisquer reproduções (parciais ou integrais), deverão ser autorizadas previamente. Os artigos assinados refletem o pensamento de seus autores. Leia Brasil e Leituras Compartilhadas são marcas registradas. Editor: Jason Prado Subeditora: Ana Cláudia Maia Direção de Arte e Produção Gráfica: Barbara Necyk Projeto Gráfico: Thiago Prado Consultor literário: Ricardo Oiticica Revisão: Sueli Rocha Tiragem: 10.000 exemplares Leia Brasil – Organização Não Governamental de Promoção da Leitura. Rua Santo Cristo 148/150 parte, Santo Cristo, Rio de Janeiro CEP 20220300 Tel/Fax: 21 22637449 leiabr@leiabrasil.org.br www.leiabrasil.org.br 1 Emilio Mira y Lopez. Georgii &Vladimir Stenberg (1927) litografia em cores, detalhe. Biblioteca Estatal Russa, Moscou. 3
  • 4. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR O FASCÍNIO PE BENITA PRIETO “ A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido. ” H. P. Lovecraft DIVULGAÇÃO Estamos num novo século e a tecnologia se desenvolve cada vez mais. No entanto, somos ainda os seres que, maravilhados, ouvimos histórias de feitos, façanhas, assombrações... Também aumentaram os veículos de comunicação, com o surgimento do rádio, cinema, televisão, computador. Cada um buscando, à sua maneira, relacionar-se com a narrativa. E, num caldeirão repleto de gêneros, temos o desejo pelo medo. Querem a prova? Pois perguntem a uma criança ou adolescente que tipo de história quer ouvir e terão como resposta um sonoro: TERROR! O medo é um sentimento básico que faz parte do desenvolvimento emocional. Ele nos acompanha ao longo da vida e vai adquirindo novas dimensões e características. Tudo já começa no nascimento, ou quem sabe antes, quando o bebê, que se encontrava numa situação de total aconchego e proteção, de repente, passa a conviver com um mundo desconhecido, caótico e confuso. Logo ele vai atribuir a esse mundo externo tudo que lhe faz mal, como a fome, o frio, a ansiedade. O mundo vai ficar dividido no que o satisfaz e lhe dá prazer e no que lhe provoca tensão, frustração e mal-estar. A criança passa por vários estágios. No princípio, na sua fantasia, ela atribui poderes mágicos a seus pensamentos e desejos, não diferenciando o que imagina do que ocorre na realidade. O que ela representa em imagens tem relação com a intensidade de suas tendências amorosas ou destrutivas e com sua capacidade de tolerância à frustração. A qualidade dessa dinâmica será a medida dos temores e dos medos que sente e, no futuro, 4 poderá se refletir em suas ações, quando for adolescente, adulto ou velho. Aos poucos, a fantasia vai se organizar em um mundo de fadas ou de bruxas, de monstros ou salvadores. A imaginação é muito rica, e as intensas e contraditórias emoções do dia podem se converter em imagens aterradoras durante a noite, nos sonhos. Também a escuridão tende a se transformar em tudo que representa o desconhecido, num mundo que está começando a se ordenar. A criança tem muita dificuldade de entender onde acaba o mundo de dentro e começa o mundo de fora. A escuridão pode aumentar essa dúvida e dar a possibilidade de que a imaginação, os sentimentos e as emoções reinem absolutos. Nesse momento, pode-se utilizar a arma poderosa e ancestral que é o conto popular. Ele é uma ferramenta valiosíssima a serviço do desenvolvimento emocional da criança. Nesses contos, fala-se dos conflitos reais e imaginários que todos experimentam durante seu crescimento. Jacqueline Held no livro O imaginário no poder, apresenta idéias que são fundamentais para o entendimento da necessidade que temos dos contos fantásticos. Para ela “a narração fantástica reúne, materializa e traduz todo um mundo de desejos para transformar à sua própria vontade o universo. Mas vai tocar o leitor ou o ouvinte se não for feito apenas de entidades ou seres abstratos. O que torna vivo o fantástico é o cotidiano com todos os seus diferentes aspectos”. Podemos pensar nessas questões e relacioná-las com as histórias de medo, tanto para adultos quanto para crianças. Como já vimos anteriormente, se inserimos seres fantásticos em um mundo que é nosso conhecido eles provocam angústia, pois há sempre a possibilidade de os relacionarmos com o nosso real, mesmo sem percebermos. Mas isso não causa grandes prejuízos e apenas vai possibilitar que vivenciemos todas aquelas sensações fortes, trazidas pela história, que se
  • 5. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR LAS HISTÓRIAS E posteriormente servem para aprofundar o processo de amadurecimento pessoal, já que neles estão em jogo emoções básicas. Outra questão que nos parece muito interessante é de onde vem essa noção de sinistro tão em moda atualmente? Em primeiro lugar, fala-se de uma indução artística e literária ao medo que é provocada pelo grotesco, já que ele é o exagero, ou seja, o deformado, aquele que não tem forma. Portanto há uma indução ligada à morfologia ou iconologia literária facilmente identificável nos fantasmas ou defuntos, por seu aspecto. Essa idéia-núcleo de deformidade está na base de diversos arquétipos que se repetem incessantemente nas expressões artísticas. Mas o prefixo negativo de (de)formidade pode ser lido também como aquilo que está contra a forma habitual. As personificações deformes seriam aquelas que se contrapõem à realidade percebida ou que inclusive se aproximam dos mistérios da morte, do vazio, do inapreensível. Também há uma concepção degradada do grotesco, assimilada do aspecto disparatado, absurdo, extravagante ou grosseiro que vemos em muitos personagens. Historicamente o grotesco já era conhecido na Antigüidade como podemos ver nas representações mitológicas dos centauros, sátiros, medusas... A literatura e a arte medieval também estão povoadas de expressões grotescas, por causa do tom religioso dessas artes e a conexão com o mundo sobrenatural e escatológico. Portanto o deforme é o que está além da morte num duplo sentido: como carente de forma (espíritos, duendes...) e como exagero ou deformação (as visões do inferno, a imagem do diabo com chifres e asas de morcego). Em todo caso, mais que a deformidade, o conceito moderno sobre monstro está aproximado ao desconhecido e à surpresa. O monstruoso é o contravalor da beleza, o espelho ou o foco que ajusta a sua imagem ou, dito de continua 5 DIVULGAÇÃO resolverão num plano imaginário, preservando nossa integridade física. Acontece que, muitas vezes, pais, avós, familiares, amigos transformam o quase prazer que esses contos provocam em algo aterrador, através da atmosfera de pavor construída, e propositalmente criando um medo real, como se algo pudesse acontecer. E muitos de nós já fomos vítimas desse terror na infância, quando ouvíamos que uma infinidade de monstros podiam nos levar. Por isso deve-se tomar cuidado, não especificamente com o conteúdo, mas com a forma de utilização da história. Claro que estamos pensando em crianças que não estão traumatizadas ou têm algum transtorno psíquico ou psicológico. O professor francês Marc Soriano defende que “as crianças utilizam certo tipo de imagens que despertam nelas ressonâncias afetivas para se ‘vacinar’ contra eventuais traumatismos”. Mas de onde vem esse fascínio pelas histórias de medo? O psicólogo Bruno Bettelheim nos explicou o assunto a propósito dos contos de fadas, dizendo que são um meio de projeção dos instintos e problemas da criança. Através deles são exteriorizados determinados conflitos da psique infantil, dando forma e corpo a esses “fantasmas”. Já Freud interpreta o sinistro como aquilo que foi convertido em espantoso, mas que em algum tempo foi familiar e conhecido. Da união das duas idéias podemos supor que o sinistro, contido nos contos de medo, consiste em que tais “fantasmas” pessoais nunca nos abandonam de todo e nos revisitam periodicamente, materializando-se na ocasião em que algum estímulo os evoque. Por detrás do sinistro está, de forma encoberta um desejo de algo proibido ou oculto. Por isso, nos primeiros anos de vida, esses contos que tanto fascinam são importantes, como uma forma inconsciente de exorcizar medos reais através de medos fictícios.
  • 6. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR O FASCÍNIO PEL outra maneira, a outra face da mesma moeda. É próprio do sinistro a sua presença latente, como na Cuca das cantigas de ninar, ou a necessidade de ocultamento, daí a importância dos heróis mascarados. Todos são pessoas com uma “pele de animal”, ou animais com uma “pele de pessoa”, trazendo de novo o mito. Como exemplo de uma figura folclórica e sinistra, temos o “Homem do Saco”. Sua fascinação depende do seu mistério, seu ocultamento, e mesmo seus objetivos não revelados. O que acontece é que essa irracionalidade é assimilada rapidamente, no campo moral, ligado à maldade e à monstruosidade. Mas a morfologia das aparições sinistras coincide também com o luminoso. Assim a presença de Deus é a intuição do desconhecido, de uma força sobre-humana que produz pânico, estupor e fascínio, que causa ao sujeito experiências de diversos graus de prazer ou desprazer. Deus, em seus aspectos de fascinante, excessivo, superabundante, aproxima-se do conceito de grotesco no seu duplo sentido como carente de forma ou contra a forma, contrapondo-se à normal. A experiência do sagrado se transforma à medida que a religião racionaliza a idéia do sagrado, em uma experiência do sinistro, do não-conhecido, do inominável, que adota as rubricas literárias do fantástico, estranho, aterrador. Desse modo, o sinistro nos aparece como grotesco e o grotesco se reafirma como essa percepção irracional dos aspectos desconhecidos de nossa personalidade, como o retorno ao proibido, provocado por estímulos que têm alguma relação (metafórica ou metonímica) com essa pulsão latente. A análise do medo, tendo como paradigma a psicologia e a psicanálise, é muito extensa, mas não poderia deixar de ser abordada, mesmo que, minimamente, nesse artigo. Agora podemos perceber que o desejo pelas histórias de medo não é da atualidade. Esses personagens são os que estão no nosso imaginário e há muito tempo amedrontam e convivem com o homem, embora tenham trocado um pouco de feição. Nossos monstros de hoje estão baseados em arquétipos antigos, mas mudaram de forma e até de endereço. Temos, por exemplo, os alienígenas e até os psicopatas, bem verdadeiros, que passeiam pelas cidades ferindo ou matando. Podemos conviver com todos os tipos de monstros, como os dos desenhos japoneses, os Aliens, os Dráculas, os morto-vivos e os seres primitivos, nossos velhos conhecidos, que ainda existem nas pequenas comunidades. E todos podem amedrontar, pois de alguma maneira revivem os mitos. E será que essas narrativas também não trazem embutidas as velhas funções de Propp? Através delas, não estaremos buscando como desenlace a recompensa, a descoberta do objeto mágico ou a reparação de um mal? Mas hoje nossos meninos não são os mesmos. Têm um mundo de modernidades que os faz ver e sentir de outra forma. Aprendem com mais rapidez, quando têm acesso à informação e à escola. Podem ver o universo através das telas dos computadores e dos televisores. Por isso muitas coisas se banalizam e sentimentos que deveriam ser preservados para toda a vida são esquecidos ou nem são sentidos. Não há mais o silêncio que possibi- 6
  • 7. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR LAS HISTÓRIAS litava elaborar os medos internos. Nem existe o mistério e o encanto que rodeava as coisas. As relações vão ficando frias e individualizadas. E a criança vai perdendo a oportunidade de imaginar. Talvez dai venha a necessidade de ouvir/ver o terror, que eles querem forte. As histórias têm que ter muitos componentes de violência como o sangue, ossos expostos, morte. Isso deve exprimir o desejo de algo muito mais horripilante que a própria crueldade da vida, vista através dos diversos meios de comunicação. Há um lado que pode ser saudável quando atendemos o pedido: levamos contos que tenham os tais elementos do horror, mas também ajudem a recriar algum ambiente mágico. Dessa maneira estaremos, mais uma vez, religando esses ouvintes a toda uma ancestralidade. Sem esse clima estaremos apenas contribuindo para banalizar a morte, reforçando a violência que vemos todos os dias em nossas casas, a qualquer hora, impassíveis, através das centenas de notícias sobre o assunto. Outro perigo é que, atualmente, construímos uma idéia de que somos imortais. Quem sabe para abafarmos o enorme pavor que temos de morrer. Essa falsa idéia de imortalidade deve-se ao aumento da expectativa de vida do homem, através do avanço da medicina e à modificação de nossos rituais, pois geralmente estamos sós em um leito de hospital quando chega o nosso momento final. A morte não é mais compartilhada e, como diz Philippe Ariès passamos a morte DIVULGAÇÃO 7 doméstica para a morte selvagem. Todas essas coisas se associam e para que possamos pensar um pouco sobre o reflexo delas nas crianças, trazemos uma declaração muito interessante do escritor Jesús Callejo que está no seu livro Los dueños de los sueños. Ele sugere que, nos tempos atuais, a Cuca foi substituída pela opressão e comercialização que é feita com o carinho, quando alguém diz para uma criança: Se não fizer tal coisa, eu não vou mais gostar de você. Assim a criança vai incorporar à sua grande lista de temores o de não ser querida por aqueles de quem ela gosta tanto e necessita. Esse será mais um dos conflitos psicológicos que ela terá que vencer ao longo da vida. BIBLIOGRAFIA CALLEJO, Jésus. Los dueños de los sueños: ogros, cocos y otros seres oscuros. Barcelona: Martínez Roca, 1998. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/ Ministério da Educação e Cultura, 1954. Literatura oral no Brasil. 3.ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1984. COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Ática, 1991. HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980. (Novas buscas em educação, v.7) LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. Benita Prieto Engenheira, atriz, produtora, contadora de histórias do Grupo Morandubetá, especialista em Literatura Infantil e Juvenil, e em “Leitura: teoria e práticas”. Autora do livro infantil: As “armas” penadas. “O medo é tão saudável para o espírito como o banho para o corpo.” Máximo Gorki 1868-1936 escritor russo
  • 8. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR LITERATURA FANTÁSTICA LEILA BORGES DE ARAÚJO O medo é um sentimento universal e muito antigo. Pode ser definido como uma sensação de que você corre perigo, de que algo de muito ruim está para acontecer, em geral acompanhado de sintomas físicos que incomodam bastante tais como: palpitações, tonturas, sudorese, calafrios, falta de ar, boca seca, atordoamento, taquicardia, confusão mental, contrações musculares, sensação de que algo horrível está preste a acontecer. Quando esse medo é desproporcional, irracional, com fortíssimos sinais de perigo, e também seguido de evitação das situações causadoras de medo, é chamado de fobia. A fobia na verdade é uma crise de pânico desencadeada em situações específicas. Em nosso artigo não vamos abordar fobia, mas sim apenas o sentimento de medo. O medo na literatura gerando um fascínio em vivenciar este sentimento. O sentimento do medo libera uma substância conhecida como adrenalina, e isto sempre acontece quando passamos por situações de medo ou estresse. Quando há o alívio desta situação no nosso organismo, há a liberação de outra substância conhecida como endorfina, esta traz uma sensação de alívio e bem estar. O ato de fazer amor passa pelo processo de liberação da adrenalina durante o ato e, depois do orgasmo, a endorfina. Talvez por isso muitas pessoas tenham um fascínio por algo que as faça sentir medo, é uma maneira de liberar tensões reprimidas, e ler contos ou romances que nos fazem sentir medo nos faz bem. Algumas pessoas precisam passar por situações de perigo para se sentirem felizes e satisfeitas. Poderia citar alguns esportes radicais praticados pessoas e que são perigos e nos fazem liberar adrenalina. De forma mais explícita ou menos, o sentimento do medo já habitou os mais diversos gêneros literários. Influenciada por leituras de 8 histórias de fantasmas alemãs e francesas, Mary Shelley criou a história de Frankenstein na Suiça, numa noite de insônia, no verão de 1816. Segundo suas próprias palavras, Mary “viu” nessa noite a cena central de sua história: o jovem cientista apavorado diante da grotesca criatura a que acaba de dar vida. Seu conto começava com a frase “Era uma noite lúgubre de novembro...”, que na versão definitiva do romance corresponde à abertura do capítulo V, justamente aquele em que se narra o momento em que a criatura de Frankenstein ganha vida. A primeira edição do romance data de 1818. Mary Sheley ficou conhecida mundialmente por esta obra, cujos leitores ficaram fascinados com o fato da criação de um ser com pedaços de vários cadáveres, de aspecto monstruoso e horripilante, que gerava um sentimento de medo intenso, mas ao mesmo tempo de curiosidade, fascínio por aquele ser sobrenatural. Para entender melhor sobre o fascínio pelo medo na literatura pode-se abordar o fantástico na literatura. E o que seria, então, o fantástico na literatura? Em Introdução à literatura fantástica, Tzevetan Todorov que afirma que “o ponto principal do fantástico é a situação de ambigüidade”. As histórias que pertencem a este gênero nos deixam as perguntas: Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Quando um leitor se depara com um mundo que é exatamente como o seu, qualquer acontecimento que fuja às leis desse mundo familiar cria a dúvida e a incerteza sobre a possibilidade do fato ser ou não real. Todorov diz que “o fantástico ocorre nesta incerteza (...). O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. O conceito de fantástico se define pois com relação aos de real e de imaginário...”. O autor recorrerá a outras definições de fantástico afirmando que em algumas “cabe ao leitor hesitar entre as duas possibilidades” e, em outras,
  • 9. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR “Convivo com o medo de morrer e ele me fascina.” DESEJO AYRTON SENNA 1960-1994 Piloto de Fórmula 1 esta hesitação fica a cargo da personagem. O limite entre o estranho e o maravilhoso é apenas o tempo de uma hesitação. Essa hesitação que, segundo o crítico, é comum ao leitor e a personagem, porém tem sua duração restrita ao momento da narração do fato. A hesitação não só da personagem, como também do leitor é a condição primeira do fantástico. Uma ressalva que o crítico faz às definições do gênero é a da insistência em colocar o “critério do fantástico (...) na experiência particular do leitor”. Mais especificamente na experiência de medo ou terror que ela é capaz de provocar. Se a duração do fantástico é a hesitação, então, estamos diante de um gênero extremamente frágil, que pode se desfazer a qualquer minuto. A literatura fantástica do século XIX surge como reação a um mundo em que o medo não tem mais espaço diante da infalibilidade das leis postuladas pela ciência. A ciência passa a ser o desconhecido, o fantástico no mundo.Este mundo ordenado é substituído por um mundo de ambigüidade, sempre aberto para uma contínua revisão, tanto dos valores quanto das certezas. No século XXI, no entanto, seria isso que deveria acontecer, a ciência acima de tudo, mas as pessoas não param de ler e nem de assistir a cenas que os conduzem e fazem sentir medo. O homem ainda reage de maneira a querer sentir esta experiência de medo. Qual a explicação deste fascínio? A resposta seria a vontade de viver perigosamente, liberando adrenalina para depois relaxar com a endorfina e alcançar o prazer. O homem em movimento. Próxima edição de LEITURASCOMPARTILHADAS LEILA BORGES DE ARAÚJO Doutoranda em Psicologia da Educação – Universidade do Minho – Braga – Portugal, Mestre em Literatura Inglesa pela University of London e Mestre em Psicologia pela Universidade Gama Filho- Coordenadora do Curso de Letras do Centro Universitário da Cidade – UniverCidade - Pesquisadora em Psicometria e Desenvolvimento Cognitivo – Universidade Gama Filho, Universidade Estácio de Sá e Universidade do Minho 9 Assinejá! www.leiabrasil.org.br assinaturas@leiabrasil.org.br
  • 10. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR A SABEDORIA DO MEDO DETALHE DE “MORTE E VIDA” DE GUSTAV KLINT (1916) CHARLES FEITOSA Segundo uma definição antiga (Aristóteles), medo é a expectativa de um mal que se avizinha. O medo pode se manifestar de várias formas e graus, mas tem sempre uma causa específica: medo de avião, de altura, de escuro etc. Todos os animais sentem medo, mas esse medo refere-se sempre a uma ameaça iminente (um predador, por exemplo). Somente o homem é capaz de sentir medo mesmo que não haja risco à vista. Somente o homem é capaz de tremer mesmo no aconchego e na segurança da sua sala de estar. Esse tipo de medo, especificamente humano, não é provocado por nenhum motivo determinado: não há nada em si que o justifique. Parece um medo de nada, mas é algo muito mais sério: trata-se do medo do nada, ou melhor, do “nada” mesmo se manifestando! O medo é o começo da sabedoria, diz o filósofo alemão Hegel (1770-1831) em uma famosa passagem da sua Dialética da dominação e da servidão (In: Fenomenologia do espírito, Cap. IV) . Nesse texto Hegel descreve teatralmente um combate de vida e morte entre dois homens, ávidos pelo reconhecimento de sua autonomia e independência absolutas. Um deles irá até as últimas conseqüências, empenhado em confirmar sua liberdade; o outro vai hesitar ao considerar que a manutenção da vida é ainda mais importante. Um tem medo e o outro, não. Um vai abdicar servilmente da sua própria independência para se manter vivo; o outro vai ser premiado, pela sua coragem de correr riscos, com o poder. Um é o servo: o outro, o senhor. É interessante notar que a partilha de poder não ocorreria se o senhor matasse o servo. Com a morte do outro, seria vedada também a possibilidade de obter re- 10 conhecimento. O senhor precisa do servo vivo, para que sua autonomia possa se constituir. Hegel é o primeiro filósofo da modernidade a mostrar que o poder não se dá apenas pela administração do governo ou através de autoridades instituídas, mas principalmente como uma relação de força, como uma maneira de controlar indivíduos, classes, povos, minorias, natureza ou os próprios desejos. O poder é uma forma de controle através da ameaça constante de morte, uma exploração violenta do medo. Ora, que tipo de sabedoria pode haver então em uma atitude temerosa que conduz à servidão? É no medo do nada, na angústia diante da morte, que Hegel vê a origem da sabedoria. Não se trata de uma sabedoria científica, nem técnica, mas existencial. Para Hegel, embora o homem que teme se torne um servo, ele fez uma experiência que o impulsionará para o futuro. A autonomia do senhor, ao contrário, se revelará frágil, pois se sustenta apenas na subjugação do outro. O servo aprende no medo que a morte é o “senhor absoluto”, quer dizer, a morte tem poder tanto sobre o servo como sobre o senhor. No temor da morte o homem aprende algo acerca da sua finitude, pois ele treme e esse tremor faz com que todas as suas certezas, verdades e valores precisem ser reexaminados e revalorados. Diante da morte (uma possibilidade certa, ainda que a hora seja incerta), todos os problemas têm importância relativa, todos os projetos têm urgência absoluta. O medo do servo é em certa medida um saber da finitude. Essa sabedoria do medo tem o poder da transformação de si e do mundo, rumo à outras formas de liberdade, que não se baseiem mais nem na dominação, nem na servidão. Charles Feitosa Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg/Alemanha e professor da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
  • 11. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR MEDOS E MEDOS... TATIANA BELINKY Falar sobre medo é até fácil. Eu poderia falar do medo do escuro, do medo do trovão, de fantasma, de vampiro, de bruxa, de cobra, de lobisomem e de outros menos votados, até mesmo do popular medo de barata. Mas o medo de que eu quero falar é um medo diferente. Não é um medo racional, nem irracional, nem mesmo o já conhecido medo do medo. O medo de que eu estou falando é um medo todo especial: é o medo de “parecer medroso”! O medo de parecer medroso resulta da insegurança que a pessoa – criança ou não – sente, e que faz com que ela esteja a toda hora querendo se afirmar, demonstrar que não tem medo disto, daquilo ou daquilo outro. Isto acontece muito com a pessoa tímida, que acha que precisa sempre provar alguma coisa a respeito de si mesma, do seu próprio valor. E que por isso mesmo volta-e-meia se mete em toda sorte de “saias justas” das quais na verdade não precisaria. Bem, só pra dar um exemplo, vou contar um pequeno caso verdadeiro, que aconteceu com uma moça que eu conheci, há muito tempo. O caso de uma jovem que não era medrosa, mas era tímida, e tinha muito medo de “dar parte de fraca”, em especial diante dos rapazes. Vamos lá. Aconteceu certo dia que esta Nieta – digamos que este era o seu nome – estava em um daqueles parques de diversões e mostrouse muito boa de pontaria no estande de tiro-ao-alvo. Mas muito boa mesmo, tanto que ganhou vários prêmios, como um ursinho de pelúcia e até uma caixa de charutos, para aplausos dos admirados circunstantes. E foi aí que aconteceu o inesperado. O rapaz que a acompanhava, um garboso estudante de Medicina, resolveu testála e provocou: - Como é Nieta, você que é tão boa de pontaria, teria coragem de acertar com o seu chumbinho um cigarro na minha boca, a uns oito metros de distância – ou teria medo? Assim desafiada, a Nieta retrucou sem hesitar – na esperança, claro, de que ele estivesse apenas brincando: - Ora se você tem coragem de se postar na minha frente com seu cigarro, eu terei coragem de atirar! Mas infelizmente ele não estava brincando, e se plantou, todo pimpão, de perfil para Nieta, com o cigarro – um “Minister” longo espetado entre os lábios. E agora? Se a Nieta desistisse de topar o desafio, passaria por medrosa, e isto ela, nos seus brios feministas, não podia permitir. Ou achava que não podia... Daí, ela pegou a espingarda de ar comprimido, com seus chumbinhos, e a levou ao ombro – sem qualquer apoio. Suspense geral, todos assistindo, meio receosos. E a Nieta não fez o que obviamente deveria ter feito, que era mirar bem pra fora daquele alvo difícil, resolvendo o assunto com um inofensivo tiro no ar. Mas isto nem sequer lhe passou pela cabeça. Na sua honestidade – ou seria ingenuidade? – ela mirou o cigarro mesmo – do meio para a ponta, é verdade – mas o cigarro, sim. Mirou e apertou o gatilho – com tanta sorte (e excelente pontaria) – que cortou o bendito cigarro pelo meio! Vitória! Aplausos gerais para os dois bobos – a Nieta e seu desafiador. Dois bobos, sim – porque aquela exibição não era um ato de coragem, que é o contrário de medo, mas uma tola bravata dos dois jovens protagonistas. E bravata, gente, não é coragem. Coragem seria vencer um medo verdadeiro – e muitas vezes sensato e inteligente – em caso de extrema necessidade ou situação-limite. Imaginem só se o medo da Nieta, o de parecer medrosa, resultasse em um ferimento no rosto, ou mesmo no olho, do valentão que provocou aquela cena? Ixi! TATIANA BELINKY Escritora. Entre os seus livros estão: Coral dos bichos e Mandaliques ILUSTRAÇÔES DE FÊ PARA O LIVRO DOS DISPARATES DE TATIANA BELINKY, ED. SARAIVA 11
  • 12. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR MICHELANGELO FÓBOS, MIRIAM SUTTER Medo, pânico, terror, temor, horror, pavor, fobia! A todo o momento nos confrontamos com estes sentimentos que nos inundam e assombram e nos parecem únicos e unipessoais. Cada qual sofre os seus medos! Mas o que é o medo? A moderna ciência talvez tenha já suas teorias e suas respostas, talvez não! Mas antes do pensamento científico, a consciência mítica, operando por uma lógica diferente, experienciava o medo e sentimentos semelhantes e os explicava por meio de uma linguagem própria, a linguagem mítica. Mas há algum mito específico do medo? Não, não há! Mesmo porque na linguagem dos mitos ou na “gramática” da consciência mítica as palavras não precisam necessariamente de uma “explanação discursiva”. Elas próprias, as palavras, assumem o caráter de “seres míticos”, dotadas de um poder mágico, que as transforma em uma espécie de força divina primitiva, de onde emana e se corporifica ou presentifica tanto o ser quanto a ação ou sentimento que a palavra designa. “No princípio era o Verbo …” Nos mitos gregos encontramos muitas destas palavras que designam paixões, qualidades intelectuais, sentimentos: Mnemosýne, a Memória, a mãe das Musas é uma delas; Éris, 12 a Discórdia; Éros, o Amor; e assim por diante. São palavras divinizadas, ou melhor, são daímones, “poderes divinos” que não possuem propriamente um mito, mas que se constituem como realidades divinas no e pelo próprio nome que as designa. Quando se presentificam no íntimo do homem, os daímones são sentidos como forças que ultrapassam e extravasam o ser humano, pois um daímon é “o rosto oculto da ação divina”. O medo, em grego Fóbos (Phóbos)1, é uma dessas palavras: é um daímon, uma força divina. E é como um daímon que encontramos Fóbos em Homero. Na Ilíada, Fóbos sempre está presente quando Ares, o deus da guerra sanguinolenta, o deus que se sacia de sangue e de carnificina, o “matador de homens” está em ação. Ares instigava os troianos, Atena de olhos brilhantes, os aqueus. Deímos (o terror) e Phóbos (o medo) estavam soltos, e também Éris ( a discódia), a aliada-irmã de Ares matador de homens, o insaciável e incontido furor da sanguinolenta carnificina … ( Il.IV, 399 sqq.) No mundo da lógica lingüística, no entanto, fóbos possui uma outra história. Em sua origem ou etimologia, fóbos é um nome de ação, derivado do verbo “fébomai” (phébomai). Este verbo é empregado por Homero no sentido de “fugir”, especialmente quando menciona um“grupo de pessoas que foge tomado de medo, pânico ou terror. O sentido primeiro de fóbos é, portanto, “fuga”, mas fuga motivada pelo medo. Medo de enfrentar o adversário na luta, medo da violência desenfreada de Ares, em última instância, medo da violência de matar e ser morto. Sentimento e ação se fundem, e de seu sentido primeiro, “fuga”, fóbos passa a significar o próprio medo em si. Mas para a mentalidade mítico-religiosa, Fóbos, o medo, é um daímon, uma força exterior ao homem, e por isso personificada como um “demônio” divino. Hesíodo, poeta poste-
  • 13. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR UMA POTÊNCIA DIVINA rior a Homero, confirma esta personificação na sua Teogonia. Na genealogia divina de Hesíodo, Fóbos como personificação do Medo recebe uma filiação definitiva. Seu pai, como não poderia deixar de ser, é o terrível deus Ares, o flagelo dos homens. Mas é então que a simbologia mítica nos surpreende e encanta. Sua mãe é Afrodite, a deusa da fecundidade, a personificação do instinto biológico que assegura a perpetuação das espécies e, conseqüentemente, deusa do desejo sexual e deusa do amor. Hesíodo, todavia, só menciona a união de Ares e Afrodite e os filhos que os dois deuses geraram. Mas Homero, na Odisséia (VIII, 266 sqq.), nos relata um episódio pitoresco da união amorosa de Ares e Afrodite. Segundo o mito, Afrodite desposara em bodas legítimas o deus Hefesto, o deus ferreiro, que confeccionava artefatos extraordinários em suas forjas divinas. Mas Hefesto era o único deus feio e fisicamente imperfeito do Olimpo, pois era coxo. Além disso, pode-se dizer que também era “manco” psiquicamente, uma vez que fora rejeitado por seus pais, Hera e Zeus, ao nascer. Mas essa já é outra história. Certo dia, Hefesto recebeu a visita de Hélio, o deus Sol que tudo vê, ao percorrer diariamente o mundo em seu magnífico carro dourado, puxado por cavalos imortais. Hélio tinha visto Afrodite e Ares quando se amavam às ocultas no próprio palácio de Hefesto. O feio e coxo deus, julgando que era desprezado por sua imperfeição física, resolveu flagrar os dois amantes. Confeccionou uma rede de malhas inquebrantáveis e invisíveis, estendeu-a sobre o leito conjugal e avisou a esposa de que saía para receber suas homenagens cultuais na ilha de Lemnos. Afrodite imediatamente chamou Ares, que sôfrega e velozmente se precipitou ao encontro da amada. Estavam juntos no leito quando subitamente se viram enredados na armadilha de Hefesto. Este logo chamou os deuses para testemunharem a traição e a desonra do leito conjugal. Para seu espanto, porém, Apolo, Posídon, Hermes riram-se da situação e convenceram Hefesto a soltar os dois amantes, mediante um tipo de “indenização por perdas e danos”. Libertos, Ares voltou para seu lar na Trácia; Afrodite, para Chipre, onde as ninfas a banharam, untaram seu corpo com óleos odoríferos e a vestiram com mantos deslumbrantes. Indiscrições homéricas à parte, da união desses dois extremos antagônicos de um todo, pulsão de vida (Afrodite) e pulsão de morte (Ares), nascem Fóbos e seus dois irmãos: Deímos (o terror) e a bela Harmonia. Harmonia, etimologicamente, significa “o acordo”, “a junção das partes”. Harmonia é, portanto, outra daquelas palavras divinizadas e personificadas que presentificam uma abs- tração, qual seja, a concórdia, o consenso, o equilíbrio e, como tal, estava desde sempre associada ao âmbito do amor e à deusa Afrodite, de cujo cortejo fazia parte. Personificada, torna-se a filha de pais antagônicos, Ares e Afrodite, e ganha por irmãos Deímos e Fóbos. Deímos, o terror que paralisa momentâneamente o homem, é irmão de Fóbos, o medo do desconhecido que faz fugir. Morte, vida, discórdia, concórdia, ódio, amor, desarmonia, harmonia, medo, destemor … constelam, assim, na linguagem mitopoética, um complexo divino de opostos “aparentados” e, justamente por isso, são símbolos de realidades paradoxalmente opostas e complementares, que subjazem à condição humana, ambígua em si mesma, ontem e hoje … e sempre. A nós, meros mortais, resta-nos a aventura de descomplexificá-los, de harmonizá-los, sem fóbos, ou como diz a nossa poesia oral, “sem medo de ser feliz”. 1 Fóbos, em grego, possui muitos correlatos semânticos. Pânico (< panikós “do deus Pã ”, terror infundido pela aparição de Pã) é um deles; déos, “medo dos deuses”, “temor respeitoso”, “reverência”; deíma, “temor” são outros, com outras nuances semânticas. MIRIAM SUTTER Professora da PUC-Rio, doutora em Língua e Literatura Latina DIVULGAÇÃO 13
  • 14. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR CABRA VALENTE DO CORDEL ENTREVISTA “Medo para Rafael continuava um segredo, pois aprendeu ser valente teve que lutar tão cedo que na vida nunca teve qualquer sensação de medo.” Do cordel Duelo de machos, de Gonçalo Ferreira da Silva A literatura de cordel reflete de forma quase imediata, o cotidiano, as crenças e aspirações do povo brasileiro. Um povo, que em grande parte, raramente tem acesso a uma educação formal e aos livros. Narrativas jocosas, aventurescas ou aterradoras mantêm viva essa tradição do nordeste levada ao sul-maravilha em caminhões e ônibus de migrantes. O cordelista Gonçalo Ferreira da Silva é um autor e um apaixonado pela literatura de cordel e pelo repente. Em Santa Teresa, bairro histórico do Rio de Janeiro, ele reúne um acervo incomum de cordéis e promove encontros com os denominados por ele acadêmicos da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Em meio a pequenas histórias do cangaço, lendas brasileiras e histórias urbanas, ele pinçou uma que fala do medo, ou melhor, da falta de medo do homem do nordeste, que segundo Gonçalo “por natureza não sente medo, e se sente é algo secreto. Ele não deixa exteriorizar o medo, a não ser no dia que tiver uma prova monstruosa. Pois na literatura de cordel não existe maior virtude nem bondade ou beatitude - que a coragem de um sujeito.” Um amigo meu estava na casa de um compadre. Quando chegou perto da meia-noite, foi aconselhado pelo dono da casa: - Rapaz, você não devia viajar a esta hora, é muito perigoso. Você vai passar pela gruta da Avó. E o outro, com fama de cabra macho, retrucou: - Não, isso é coisa que não existe, é coisa de leigo. Quando chegou na gruta da Avó, meu amigo viu que tinha um camarada parado. De repente, a figura do sujeito se agigantou de uma maneira inaceitável, ficando com quatro ou cinco metros de altura. Aí ele teve medo, muito medo. Quis correr, mas as pernas lhe negaram equilíbrio. Ele ficou numa situação tal até que ele acabou correndo de qualquer maneira. O sol veio raiando às cinco horas da manhã, e ele ficou feliz pela vista da porteira do cercado, da aproximação da casa. E disse: - Ah! Valeu-me Deus que estou em casa. DETALHES DE XILOGRAVURA DE ERIVALDO PARA O CORDEL A CHEGADA DE LAMPIÃO NO INFERNO, DE JOSÉ PACHECO CHEGADA INFERNO, 14 14 Chegando perto da cerca, tinha seu camarada, que o havia recebido na noite anterior, na porteira: - Ô rapaz, eu passei por uma situação esta noite. Uma situação inaceitável para um homem do sertão, acostumado a não temer coisa alguma. Meia-noite, quando fui atravessar a gruta da Avó, uma figura se agigantou de maneira estúpida na minha frente. Só o pé dava mais de um metro. - Mais ou menos assim... E o sujeito mostrou o pé que se agigantava nas sombras do lusco-fusco do amanhecer. O amigo só quis mostrar que medo é coisa de ocasião. E perguntado se já sentiu medo Seu Gonçalo responde: “eu não sei se o que sinto é medo. Pelo que as pessoas falam, o que eu sinto seria um princípio de medo, mas como eu não tenho certeza, digo que não. Só de uma prova monstruosa”. “Foi este mais um capítulo da maldade e tirania da história do nordeste para ser contado um dia que acaso for abordado assunto de valentia” Do cordel Labareda, o capador de covardes, de Gonçalo Ferreira da Silva
  • 15. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR NOSSO VELHO E ESTRANHO CONHECIDO JOSÉ DURVAL CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Existirá um dia no qual tenhamos vivido sem o mais leve sentimento de medo? Não é possível, e ninguém objetará, se após procurarmos na mais recuada de nossas memórias dissermos que esse dia não aconteceu. Medo do dia que se inicia. Medo do dia que se vai com a noite, a chegar com seus sortilégios. Medo, onde o sono nos envolve em sonhos, a nos transportar a lugares que, apesar de desconhecidos, são estranhamente familiares. Medo contido no grito da criança, na noite, a assustar seus pais, horrorizada com as formas da sombra a desenharem fantasmas de um “bicho”, de um “ladrão”, de um “papão”. Aquele expresso no sonho de cair no abismo, de contemplar o próprio corpo, de que nos perseguem, da onda gigantesca prestes a nos engolfar, da pessoa querida com vestes e rosto do desconhecido. Do sentimento de que nos contam alguma coisa em voz que não se ouve. De contemplar uma nuvem a desenhar formas não sabidas. Medo, que determina um estupor diante do realizado da tragédia que só no pensamento foi rascunhada. No perseverante medo infantil, a nos acompanhar com a imagem de monstros que nadam em poço negro e profundo, como algo que não se gasta e que permanece fora do tempo. É qualquer coisa que nos habita, que até no sono nos agita, sem descansar. Angústias sonhadas, muito mais reais do que as que o dia a dia nos traz. Sensações somente imagi- nadas e, no entanto, verdadeiramente sentidas. São tantas as coisas que, mesmo sem existirem, existem o tempo todo. É o afeto que pode nos tomar quando contemplamos uma bolinha de papel na correnteza d’água, a pular desassossegada na direção do escuro de um bueiro. É quando entendemos a noite que se aproxima como aquilo que tira o mundo do mundo, assinalando o umbigo do medo. Como dizia o poeta, “é o medo da morte e o medo de depois da morte”. Na sua origem, biologicamente, a cria- tura humana, comparada aos outros animais, sofre uma prolongada dependência daqueles que a nutrem e amparam. Em seu começo, este ser constitui-se com um arremedo de abertura para o mundo, ao qual lançará seus apelos. Internamente, do ponto de vista psíquico, um condensado de energias sem organização, onde não existe vontade, o não, a contradição, a noção de tempo, mas tão somente uma força constante e imperiosa na 15 direção de uma satisfação. Em seu princípio, este ser inerme sai de sua obscuridade através do grito. Grito esse a presentificar o outro, próximo na resposta ao seu apelo. Esta resposta, formada na ajuda, confere sentido ao grito. É ato inaugural de uma compreensão mútua, edificada sobre a dependência constitutiva do ser humano. É o que determina um modo de relação que vai servir de palco para o desenrolar da história do homem. A criança não sabe do certo ou do errado, do bem ou do mal. Estas noções encontram-se no outro, a bem dizer, nos pais, através do que dizem e mostram. É do próximo que ela vai receber as palavras com as quais se “entende”. É da mãe que, ouvindo o choro da criança, diz: “Tens sono, tens fome, tens medo”. É um outro que fala pelo um. Implica isto um constante medo do errar, num viver entre a culpa e o castigo. No pior dos medos, a perda do amor ou do abandono. O homem lança mão de recursos: heróis imortais e imbatíveis, espíritos protetores serão inventados. Orações poderosas contra os inimigos serão invocadas. Mais tarde, quem sabe, talvez, um “não preciso de nada”. Ou ainda, um de tudo saber. Antídoto vigoroso, o amor, deve ser usado. Porém, paradoxalmente, este traz novamente o medo. O de perder o seu objeto de amor ou de não ser correspondido. O retorno ao inanimado, a morte, é o final da cadeia do medo. JOSÉ DURVAL CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Médico, psiquiatra e membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. E-mail: jdurval@unisys.com.br
  • 16. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR A VIOLÊNCIA IRINEU EDUARDO J. CORRÊA Assaltos, seqüestros, assassinatos, balas perdidas, brigas em boates e bailes. Todos têm um caso de violência para contar. A imprensa noticia a sua banalização e ela acabou por se tornar a maior preocupação da sociedade. Várias causas são apontadas para a explicar a situação: miséria, patologias individuais e sociais, educação, decisão individual, decisão política. Um único sentimento está no centro das ações de vigilância, prevenção e defesa: o medo de ser tocado por ela. O medo é um velho companheiro do homem, embora não tenha nascido com ele. Recém-nascidos, aparentemente, não têm o que chamamos de medo. O primeiro choro do bebe é ocasionado pela distensão dos pulmões e os imediatamente seguintes são devidos à sensação de desconforto gerada pela falta de alimento na barriga ou pela falta de manutenção da temperatura no nível epidérmico. Com o passar do tempo, os comportamentos associados àquelas sensações se tornam mais complexos e variados. Um deles corresponderia a uma espécie de angústia, seja diante da fome, seja pela falta do seio ou da mamadeira que saciará aquela sensação. Idem em relação ao frio, que será saciado por uma boa coberta ou, de modo igualmente eficiente, por um bom aconchego. Na medida que as sensações se repetem, entra em cena uma divisão prática entre aquele que as sentem, a quem podemos chamar de sujeito, e aquela coisa outra que sacia. O desenvolvimento de cada pessoa tem por base essa relação, um processo que faz as distinções entre os objetos que estão no mundo, sejam pessoas, coisas ou ações. Importante lembrar que todo e qualquer sujeito poderá ocupar a posição de objeto ou de Outro. E isto não parece ser problema para nenhum deles, pelo menos, em situações normais. Em sua trajetória, as pessoas vão experimentando uma infinidade de sensações agradáveis e outras tantas desagradáveis, as quais podem, até mesmo, estar distanciadas daquelas, direta e inicialmente, ligadas à fome, ao frio e à saciedade, até a um ponto quase impossível de identificar qualquer relação entre aquelas primeiras e as novas. Nesse processo, podem entrar na lista de objetos mesmo aqueles que não foram diretamente testados, bastando que se pareçam com algum que já esteja na lista. A identificação dessa semelhança varia de indivíduo para indivíduo, o que serve de ponto de referência para um, não serve necessariamente para outro, embora, num mesmo grupo os gostos tendam a se aproximar uns dos outros. Aliás, quem diverge muito da média do seu grupo costuma ser chamado de excêntrico ou esquisito. De qualquer modo, as sensações de ambos os tipos vão se acumulando e o indivíduo se aproxima de um estado de equilíbrio homeostático e psicológico, no qual a sua consciência de diferenciação das coisas e pessoas do mundo avança, para além daquela dimensão prática de quando era bebê, em direção a uma subjetividade que permite que ele se reconheça definitivamente como sujeito e reconheça o mundo como diferenciado de si, onde têm existência objetos e o Outro. Todavia, este equilíbrio não é estático ou definitivo, até mesmo no indivíduo adulto, e a manutenção do equilíbrio é uma atividade constante e árdua, mesmo que não seja consciente todo o tempo. O ato que identificaremos como violento é aquele em que o equilíbrio é rompido de modo drástico e a integridade do sujeito é colocada em risco, quer do ponto de vista objetivo, quer do subjetivo. 16 Nesta conjunção estarão estabelecidas as condições para que apareça o estado chamado de medo. Embora seja claramente um estado de desequilíbrio, onde predominam as sensações desagradáveis, o medo tem um papel importante, de certo modo vital para a sobrevivência, quando ajuda na identificação e controle por enfrentamento ou fuga de alguma situação desfavorável aos seus interesses ou de algum inimigo. Mas não é este o medo que se constitui na preocupação maior da sociedade atual. Neste caso está o medo que vem sendo gerado por uma situação de violência que associa episódios de alta potência com constância permanente, uma combinação que vem fazendo com que as pessoas se sintam desamparadas, de tal forma que perdem o sentimento de ser sujeito e se vejam como se fossem mero objeto, subordinado às vicissitudes da violência que o faz sofrer. Neste estado de coisas, a imensa desproporção entre a potência do ato violento e a presumida capacidade de resposta do indivíduo faz com que esta se torne inexeqüível e, de imediato, não reste ao indivíduo nem a fuga e nem o enfrentamento, apenas aguardar que passe. Na verdade, uma fuga sim, mas por uma espécie de congelamento ou anestesia até que aquele acontecimento termine. Posteriormente, uma alegria desmedida, gerada pelo fim da situação de tensão, pouco depois, uma profunda melancolia e uma raiva incomensurável, mesmo quando negadas ou reprimidas.
  • 17. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR QUE PARALISA TERROR DA MORTE (fragmento) “Ah, o horror de morrer! E encontrar o mistério frente a frente Sem poder evitá-lo, sem poder... Gela-me a idéia de que a morte seja O encontrar o mistério face a face E conhecê-lo. Por mais mal que seja A vida e o mistério de a viver E a ignorância em que a alma vive a vida, Pior me [relampeja] pela alma A idéia de que enfim tudo será Sabido e claro... O animal teme a morte porque vive, O homem também, e porque a desconhece; Só a mim é dado com horror Temê-la, por lhe conhecer a inteira Extensão e mistério, por medir O [infinito] seu de escuridão. Medo da morte, não; horror da morte. Horror por ela ser, pelo que é E pelo inevitável. ” FERNANDO PESSOA 1888-1935 Considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa AMOR E MEDO (fragmento) “Como te enganas! meu amor, é chama Que se alimenta no voraz segredo, E se te fujo é que te adoro louco... És bela — eu moço; tens amor, eu — medo... Tenho medo de mim, de ti, de tudo, Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes. Das folhas secas, do chorar das fontes, Das horas longas a correr velozes. ” CASIMIRO DE ABREU 1839-1860 Poeta. Autor de As primaveras. DIVULGAÇÃO Noutra ponta, as atitudes que preveniriam a violência tentarão se equiparar a ela em potência. Ao sujeito ameaçado em sua integridade, qualquer espaço protegido é considerado um oásis, não importando o preço que se pague por isso, em termos concretos ou subjetivos — seja dinheiro, liberdade individual ou coletiva. Os automóveis particulares são blindados. Pessoas, condomínios e trechos de ruas recebem segurança particular ostensiva. As residências são gradeadas e se transformam em verdadeiras fortalezas. A vigilância constante em locais públicos por câmeras de vídeo se dissemina. A imprensa repercute o clamor por uma polícia de eficiência absoluta, leis muito mais rígidas e sentenças judiciais mais longas e de execução sem possibilidade de comutação ou outros recursos de suavização. Ninguém nota que diariamente a polícia prende mais e mais suspeitos e criminosos, os tribunais estão abarrotados de processos, os julgamentos se sucedem e as prisões e penitenciárias estão superlotadas. Alguns políticos dizem que “bandido bom é bandido morto”. Algumas pessoas concordam. O medo da violência parece justificar a violência contra o Outro. IRINEU EDUARDO J. CORRÊA Psicólogo, mestre em Letras e pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional. Trabalhou como coordenador de projetos da FUNABEM e exerceu a presidência da Comissão de Ética do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. 17
  • 18. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR “Quem tem medo do futuro, tem medo de ser livre!” Frei Beto Escritor ZUENIR VENTURA ENTREVISTA O Rio de Janeiro continua lindo. Mas infelizmente esta beleza está encoberta pela sombra da violência. Uma sombra que encobre também outras grandes e belas cidades brasileiras. É triste ver as cadeiras nas calçadas de antigas ruas de subúrbio serem recolhidas para dentro de casas gradeadas. O comércio fecha suas portas, as casas, suas janelas e a população seu coração, trancados a cadeado pelo medo. Lar de brasileiros e estrangeiros, democrática em suas praias e rodas de samba, e hoje rasgada pela miséria e violência. Em seu livro Cidade partida, o jornalista Zuenir Ventura conta a história de uma cidade que nasceu com a vocação da acolhida e foi mutilada pela insegurança. Em entrevista ao Leituras Compartilhadas, este cronista da vida carioca fala da cultura do medo estabelecida e de sua crença de que o Rio de Janeiro vai continuar sendo... LC:O grande problema do Rio de Janeiro atualmente é a violência. O que isto gera no cotidiano da cidade? Zuenir: O problema dos níveis de violência hoje é que eles provocam, além do medo natural e justificável, o medo irracional e, às vezes, imotivado. Há casos em que o medo se torna pior que a própria violência. Hoje, muitos têm medo de vir ao Rio de Janeiro. Um medo que não cede à argumentação de que muitos cariocas, por exemplo, nunca foram assaltados. A cultura da violência aca- ILUSTRAÇÃO DE JUAREZ MACHADO PARA SEU LIVRO LIMITE ED. AGIR LIMITE, 18 bou por criar uma cultura do medo que, como já disse, tornou o medo da violência pior do que a própria violência. LC: O início dos agrupamentos humanos, que deram origem às cidades, foi causado pela necessidade da união dos habitantes de determinadas regiões de se unirem para uma melhor defesa contra inimigos externos. Hoje, o inimigo é interno. Isto pode gerar um processo inverso de isolamento e fuga dos grandes centros? Zuenir: Todas as formas de isolamento, de segregação, de distanciamento já foram tentadas. Aqui no Rio, primeiro as pessoas tentaram cercar suas casas com grades, depois foram para condomínios fechados. Tentaram criar exércitos particulares de seguranças, se fechar em verdadeiros bunkers, e nada disso deu certo. Um caso controvertido são os condomínios da Barra da Tijuca1, onde teoricamente as pessoas estariam livres da violência, com a realidade mantida de fora. Por fim, foi constatado que havia uma violência endógena, um tipo de violência interna que se criou nos condomínios. Hoje, um dos seus maiores problemas é exatamente a violência dos jovens que roubam carros para comprar drogas e as brigas de gangues, tornando os condomínios semelhantes a guetos violentos. Muitas tentativas de segregação, de apartheid, foram tentadas e todas fracassaram. A solução não é fácil. É demorada. É a solução da integração da cidade. O Rio de Janeiro é uma cidade calorosa, de encontro, afetuosa, uma cidade realmente de celebração. O destino do Rio vai ser o de voltar ao encontro, à celebração. Espero que o momento atual seja um acidente de percurso. Espero que a vocação do Rio, seu destino, seja realmente a da integração. O apartheid, seja o racial, seja o social, não dá certo em nenhum lugar do mundo e no Rio de Janeiro também não dá. Apesar de tudo, a esperança é que haja realmente o encontro, o destino natural das cidades. LC: Então a busca de interação cultural, como os projetos que procuram integrar os habitantes da
  • 19. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR E A CIDADE PARTIDA favela com os do asfalto, seria um caminho? Zuenir: Quando eu disse que, às vezes, o medo da violência é pior do que a violência, isso acontece muito pelo nosso olhar daqui do asfalto para as favelas. Nós temos a idéia, a impressão carregada de estereótipos, de que lá é um antro, uma usina de violência, esquecendo que ali a maioria da população é pacífica, ordeira e trabalhadora. A violência ali é produzida por um núcleo mínimo de 0,1 % dos moradores. Eu acho que você olhar para a favela, para o outro, para o diferente, e mudar seu olhar de suspeita, desconfiança, é uma forma efetiva de aproximação. A cultura, mais uma vez, está fazendo isso como fez no fim do século XIX com o samba, que nasceu sendo a música dos segregados, discriminado, e acabou sendo apropriado pela classe média, depois de um primeiro momento em que ela o rejeitava e temia. Está acontecendo um pouco isto com a cultura do hip hop, do funk, e com os grupos de música de periferia. Essa é uma forma de integração. No Rio, ou melhor, no Brasil, a economia separa o que a cultura une. A ponte desta cidade partida tem de ser feita além do movimento social, também pela cultura. LC: Cidade partida foi lançado em 1994. Nestes oito anos, o que mudou? Você considera que houve melhora ou a situação se degradou ainda mais? Zuenir: O que evoluiu daquela época para cá é que, hoje, a sociedade tem, mais do que naquele momento, a consciência de que a violência é um problema dela também. De que não adianta virar as costas para esta questão. De nada vale dizer que se pagam impostos, portanto isto é problema do governo, ele que resolva o problema da violência. Sabemos que não é assim. Até porque a bala perdida não escolhe cabeça. Ela está caindo do nosso lado, aqui no asfalto. Essa consciência, que ainda é embrionária e precisa ser desenvolvida, começa a tomar corpo na sociedade. Com os movimentos do terceiro setor e toda essa tragédia que aconteceu, de alguma maneira cha- mamos a atenção para isto. Eu diria que hoje há uma maior consciência da sociedade de que ela tem uma tarefa a cumprir nessa questão. LC: Então a sociedade, como forma de combater o medo, partiu para tentar conhecer e entender os problemas que causam a violência e, por conseguinte, o medo? Zuenir: Exatamente. Durante décadas, até mais de um século, fomos criados com todos os estereótipos em relação às favelas como um antro de violência. Quando você vê as condições de vida lá, se surpreende de como é pacífica essa população. Porque, na verdade, todos os bens, direitos e conquistas da cidadania ainda não chegaram lá. Então criamos uma série de barreiras preconceituosas, uma visão estereotipada, estigmatizando um universo por ele ser diferente do nosso. Diferente na cor da pele, diferente na maneira de morar, o fato de ser pobre... Isto tudo em um processo de associação que é muito mais antigo.Vou me remeter apenas ao período da abolição da escravatura, quando os negros foram jogados na rua: “agora vocês se virem”. Por esse processo de discriminação ter sido muito permanente, muito freqüente, ele está arraigado, entranhado na nossa história recen- “...A missa foi na segunda-feira, e no dia seguinte, no feriado ensolarado, quem não estava vendo a parada militar, estava na praia. Às 12h45, as areias de Ipanema e Arpoador estavam lotadas. De repente, a confusão. Cerca de cinqüenta garotos, identificados depois como funkeiros de algumas favelas da cidade, começaram a brigar. Os tiros disparados para o alto pelos policiais militares – uns poucos, já que a maioria estava no desfile – aumentaram o pânico. O tumulto durou menos de uma hora, mas foi suficiente para esvaziar as duas praias vizinhas e encher a imaginação das pessoas de terror. Os banhistas correram apavorados, achan- 19 te e também na mais remota. Para sair disto leva tempo, mas eu creio que hoje já esteja surgindo uma luz no fim do túnel. Sabemos que a solução está na aproximação e não na guerra. Nós temos uma certa vantagem, pois no Brasil não existem questões explosivas, como por exemplo, a questão racial do Leste Europeu, em países como a Iugoslávia em que se mata por achar que o sangue é diferente. Temos preconceito e racismo, mas não é uma forma tão explosiva, de jeito que não estamos à beira de uma guerra racial, étnica. Podemos estar próximos de uma guerra social, isto é, de uma convulsão social. Mas todo problema social tem jeito. A questão da miséria é uma questão de vontade política, que pode ser resolvida com um programa de integração social. O Brasil tem - e o Rio de Janeiro tem muito - uma energia vital, uma alegria, muito grande. Apesar de tudo, neste momento, o que vivemos é a vocação da celebração, do encontro, da alegria, da paz. 1 Bairro do Rio de Janeiro conhecido por seus condomínios e shoppings . ZUENIR VENTURA Jornalista e professor universitário há 40 anos. Ganhou o prêmio Esso de Reportagem e o Prêmio Wladimir Herzog de Jornalismo, em 1989. É autor de 1968, O ano que não terminou e Cidade partida. Atualmente é colunista do jornal O Globo. ANA CLÁUDIA MAIA do que iriam ser vítimas de um arrastão igual ou pior do que o de outubro de 1992. Às duas manifestações anteriores de violência – a chacina de Vigário Geral e um mês antes o massacre dos oito meninos de rua na Candelária – se somava mais essa. Os três episódios estavam carregados de um intenso peso simbólico. Segundo o antropólogo Luiz Eduardo Soares, significavam ‘a violação de três espaços míticos: o espaço sagrado, o espaço doméstico e o espaço do convívio democrático, a praia’. A imagem da cidade apartada pelo medo reforçava a comoção social.” Cidade partida, de Zuenir Ventura, Ed. Companhia das Letras, págs. 87,88.
  • 20. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR SÍNDROME DO PÂNICO UMA HISTÓRIA REAL Até onde consigo me lembrar, tive minha primeira crise de pânico aos 17 anos. Naquela época ainda não eram freqüentes - não mais que uma a cada 5 meses - mas já o suficiente para me fazer acreditar ser algo amalucada, ou cercada por espíritos malignos... Em 1987 pouco ou nada se falava no Brasil sobre a síndrome do pânico. Passaram-se os anos e várias crises mais, até que um dia eu me deparasse com uma reportagem sobre a síndrome. Meu sentimento - diferentemente do da maioria das pessoas quando recebem esse diagnóstico - foi de alívio. Opa! Eu não era Carrie, a estranha... E tampouco a única a ter aquele tipo de problema. E, melhor ainda, se havia um nome, se era um quadro clínico, então haveria de existir também uma forma de tratamento. Mas ainda levei muitos anos até conseguir controlar as crises. Vivia em altos e baixos. Às vezes se passavam muitos meses sem nenhuma crise e, de repente, tinha duas em um mês. Cheguei a cercear minha vida em função da síndrome. Tinha uma crise em um bar, com amigos, e resolvia que não queria mais sair de noite... Que em casa estaria mais “segura”. E então tinha uma crise em casa, e não havia o que fazer... Demorei algum tempo até perceber que o problema estava dentro de mim e, não, fora. É muito difícil explicar uma crise de pânico a quem nunca as vivenciou. Costumo tentar assim: imagine-se sozinho, no meio de um campo e, de repente, vendo um enorme leão pulando na sua frente, pronto pra devorá-lo. Só que não há leão. Física e emocionalmente, isso se traduz em uma sensação de perda de controle do próprio corpo, como se estivesse em curso um motim interno que não nos achamos capazes de combater. Você sente-se sufocar, faltando o ar, faltando o chão, faltando-lhe o controle dos próprios movimentos e pensamentos. E tremores, ou dentes batendo, cólicas, enjôo, pressão baixa, muitas vezes tudo ao mesmo tempo. Terror. A vontade que se tem nessas horas é de correr para algum lugar seguro... Mas, uma vez que não existe leão (ao menos não um de grande juba e quatro patas), não há esse lugar seguro. A ameaça é interna, é você frente aos seus medos, aos seus fantasmas... E eles o acompanharão para onde você for. Já ouvi várias explicações para a síndrome do pânico, dadas por médicos, psicólogos, psiquiatras. Em todas elas o fator predominante era o medo. A síndrome é comum em pessoas ILUSTRAÇÃO DE JUAREZ MACHADO PARA SEU LIVRO LIMITE ED. AGIR LIMITE, BÁRBARA ARANYL DE LA CORTE 20 com nível de exigência muito alto para consigo mesmas - e o medo de não ser capaz (seja lá do que for) leva à crise. E há também o medo de não ter controle absoluto sobre si mesmo, corpo/mente/coração. E também o medo de enfrentar o mundo que nos cerca (e que, convenhamos, não anda dos mais tranqüilos). Ou o medo do sofrimento, de estar sozinho, de se entregar... Toda uma família de medos - bastante aparentados entre si, diga-se de passagem. Acho difícil falar em superação total desses medos. Eles vão e vêm, rondam, espreitam... Mas tenho aprendido que não há outro caminho que não seja o enfrentamento. Claro que isso não é fácil, e aí uma ajuda profissio-
  • 21. LEITURASCOMPARTILHADAS LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR “Temer o amor é temer a vida e os que temem a vida já estão meio mortos.” Bertrand Russell 1872-1970 Filósofo e matemático inglês O Caderno de Leitura do Programa Leia Brasil reunindo crônicas, contos, poesias, entrevistas e artigos de especialistas para ajudar educadores a trabalhar a leitura na escola. nal é, na minha forma de ver, fundamental. Fazer uma terapia, para tentar descobrir qual a origem e como funcionam esses medos. E também buscar um tratamento, seja alopático, homeopático, acupuntura, ayurveda... Desde que sério e seguido com constância. Juntamente com a ajuda profissional, é de um valor inestimável a ajuda da família e dos amigos. Carinho é um poderoso remédio contra a síndrome. Quanto a mim, não posso me dizer “curada”. Sigo com meu tratamento, e vou seguir enquanto for necessário. Estou em algo como um work-in-progress. Um contínuo respirar fundo e tomar coragem. Respirar fundo e mandar os fantasmas procurarem outra morada, porque aqui eles não são mais bem-vindos. Isso porque acredito que – um tanto inconscientemente - somos nós que os mantemos por perto. E o fazemos quiçá por medo... Sim, porque por mais contraditório que isso pareça, esses medos, a síndrome, o pânico, depois de um tempo, também podem se constituir em uma morada, conhecida, e, como tal, aparentemente mais segura. Algo assim como morar em uma casa mal-assombrada, mas que é a única casa que você conhece. Quem pode garantir que fora dela não vá ser ainda pior? Não é. Sei muito bem que conselho não se dá, mas algumas dicas posso, não? São pequenas coisas que fui descobrindo no decorrer dos anos, e que me ajudaram muito. Se ajudarem a uma pessoa mais que seja, já fico feliz. Vamos lá. A síndrome do pânico atinge cerca de 3% da população mundial. No Brasil, são aproximadamente cinco milhões de pessoas. Nem sempre os sintomas são claros. Saiba mais. Associação Nacional da Síndrome do Pânico Telefone (11) 5579-7257 Plantão SOS Psicológico Telefone (11) 3654-1313 www.sos.org.br O que se pode ler nos rios ou através deles? Velhas diferenças, que fazem, de cada um, um. Tome seu lugar a bordo. Porque navegar é preciso, e ler também. Indispensável para escolas que têm e que não têm um Programa de Leitura. 21 Assine já! www.leiabrasil.org.br assinaturas@leiabrasil.org.br
  • 22. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR APROXIMAÇÃO DANAIDE, DE AUGUSTE RODIN CÁSSIA JANEIRO Ouço passos no corredor comprido de minha casa. A porta do meu quarto está fechada. Os passos se tornam mais fortes e eu sei que, em breve, a porta se abrirá num estrondo. Tremo sob as cobertas. Poderia fugir, mas sinto-me inerte. A peregrinação do desconhecido é um lapso de tempo, mas longa como só a espera pode ser. Sinto meu coração e meus nervos todos vibram uníssonos, segundo a segundo. Uma gota de suor escorre em minha testa, apesar do frio. O teto me comprime, como se procurasse sufocar qualquer tentativa de fuga. Imobilizada, apenas ouço e espero ... e espero ... Não posso mais sentir minhas mãos e meus pés. Paralisia. Não sei o que virá, mas é mais aterrorizante a espera do que o que está por acontecer. Meus olhos ainda se mexem e procuram uma saída, uma réstia de esperança vã. Sei, contudo, que escapar é impossível. A escuridão é completa, mas meus olhos tentam, desesperados, ver através dela.. Um calor lascivo me toma o corpo, num estranho regojizo desprotegido. Estou só. Eu e meu desconhecido. Sinto o calor ruborizando a minha pele clara e delicada. Delírio quente é o medo. Não sei até quando posso sustentar a névoa que me encobre as sensações e, paradoxalmente, as desvela. Minhas roupas estão jogadas no chão. Sei que estou nua e a nudez me torna ainda mais frágil e desprotegida e também mais quente. Num átimo sinto todo o meu corpo, a maciez da minha pele, a textura da minha boca úmida. Os passos estão mais próximos e agora o medo é fascínio, é sedução e terror. Quanto mais próximo o som, mais sinto o corpo, sensível como só aqueles que estão totalmente expostos podem ser. O lençol a roçar na minha pele traça um desenho delicado, uma estranha dança de sensações. Não me movimento, embora o corpo seja leve; sou inteira uma teia de possibilidades. Não ouço mais os passos, não porque não existam, apenas porque estou embevecida e abafam-nos as batidas do meu coração. Sei que a porta se abrirá. Temo porque não conheço e, não conhecendo, não posso, não estou no controle. Mas, como alguém que está por afogar-se, sei que de nada adiantará me debater. Deixo que a correnteza de sensações me leve para onde quiser. E, no exato instante em que paro de lutar, posso desfrutar da hipnose da minha alma, que também pulsa na sua própria escuridão. Não procuro alívio. Sei que estou encurralada e há um estranho prazer nisso. Arrebata-me a satisfação de não estar mais no controle, não saber o que virá, não ter idéia do que acontecerá. Tenho os olhos fixos na porta agora. Sei que está muito próximo o momento em que ela se abrirá. Volto a olhar para as minhas roupas inertes no chão e minha nudez não é mais a mesma, é uma nudez total. Inesperadamente desejo estar ali e não em qualquer outro lugar. Já não importa o que virá da porta. Ela está fora de mim. E dentro de mim está uma desconhecida cujo corpo se contorce faminto entre os lençóis, derrubando o pesado cobertor. Descubro o medo nas frestas da minha alma, parte dela que pulsa e lateja. Não posso me separar dele, não agora que ele é medo que se faz fascínio. A porta se abre num estrondo. Fecho os olhos e deixo-me tomar. Entregue. Inexorável. CÁSSIA JANEIRO Poeta e educadora. Autora de Poemas de Janeiro. 22
  • 23. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR O CORVO DE EDGAR ALLAN POE Tradução de Machado de Assis (FRAGMENTOS) “ certo dia, à hora, à hora Em Da meia-noite que apavora, Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, Ao pé de muita lauda antiga, De uma velha doutrina, agora morta, Ia pensando, quando ouvi à porta Do meu quarto um soar devagarinho E disse estas palavras tais: ‘É alguém que me bate à porta de mansinho; Há de ser isso e nada mais’. Ah! bem me lembro! bem me lembro! Era no glacial Dezembro; Cada brasa do lar sobre o chão refletia A sua última agonia. Eu, ansioso pelo sol, buscava Sacar daqueles livros que estudava Repouso (em vão!) à dor esmagadora Destas saudades imortais Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora, E que ninguém chamará mais. E o rumor triste, vago, brando Das cortinas ia acordando Dentro em meu coração um rumor não sabido, Nunca por ele padecido. Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito, Levantei-me de pronto, e: ‘Com efeito, (Disse) é visita amiga e retardada Que bate a estas horas tais. É visita que pede à minha porta entrada: Há de ser isso e nada mais.’ Minh’alma então sentiu-se forte; Não mais vacilo e desta sorte Falo: ‘Imploro de vós - ou senhor ou senhora, Me desculpeis tanta demora. Mas como eu, precisado de descanso, Já cochilava, e tão de manso e manso Batestes, não fui logo, prestemente, Certificar-me que aí estais’. Disse: a porta escancaro, acho a noite somente, Somente a noite, e nada mais. Com longo olhar escruto a sombra, Que me amedronta, que me assombra. E sonho o que nenhum mortal há já sonhado, Mas o silêncio amplo e calado, Calado fica; a quietação quieta; Só tu, palavra única e dileta, Lenora, tu, como um suspiro escasso, Da minha triste boca sais; E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; Foi isso apenas, nada mais. Entro co’a alma incendiada, Logo depois outra pancada Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela: ‘Seguramente, há na janela Alguma coisa que sussurra. Abramos. Eia, fora o temor, eia, vejamos A explicação do caso misterioso Dessas duas pancadas tais. Devolvamos a paz ao coração medroso. Obra do vento e nada mais’. Abro a janela e, de repente, Vejo tumultuosamente Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias. Não despendeu em cortesias Um minuto, um instante. Tinha o aspecto De um lord ou de uma lady. E pronto e reto, Movendo no ar as suas negras alas, Acima voa dos portais, Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas; Trepado fica, e nada mais. Diante da ave feia e escura, Naquela rígida postura, Com o gesto severo, - o triste pensamento Sorriu-me ali por um momento, E eu disse: ‘Ó tu que das noturnas plagas Vens, embora a cabeça nua tragas, Sem topete, não és ave medrosa, Dize os teus nomes senhoriais; Como te chamas tu na grande noite umbrosa?’ E o corvo disse: ‘Nunca mais’. Vendo que o pássaro entendia A pergunta que lhe eu fazia, 23 Fico atônito, embora a resposta que dera Dificilmente lh’a entendera. Na verdade jamais homem há visto Coisa na terra semelhante a isto: Uma ave negra, friamente posta Num busto, acima dos portais, Ouvir uma pergunta e dizer em resposta Que este é seu nome: ‘Nunca mais’. No entanto, o corvo solitário Não teve outro vocabulário. Como se essa palavra escassa que ali disse Toda a sua alma resumisse. Nenhuma outra proferiu, nenhuma. Não chegou a mexer uma só pluma, Até que eu murmurei: ‘Perdi outrora Tantos amigos tão leais! Perderei também este em regressando a aurora’. E o corvo disse: ‘Nunca mais!’ Estremeço. A resposta ouvida É tão exata! é tão cabida! ‘Certamente, digo eu, essa é toda a ciência Que ele trouxe da convivência De algum mestre infeliz e acabrunhado Que o implacável destino há castigado Tão tenaz , tão sem pausa, nem fadiga, Que dos seus cantos usuais Só lhe ficou, da amarga e última cantiga, Esse estribilho: ‘Nunca mais’. ... ” “ ve ou demônio que negrejas! ‘ A Profeta, ou o que quer que sejas! Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa! Regressa ao temporal, regressa À tua noite, deixa-me comigo. Vai-te, não fique no meu casto abrigo Pluma que lembre essa mentira tua. Tira-me ao peito essas fatais Garras que abrindo vão a minha dor já crua’. E o corvo disse: ‘Nunca mais’. ” EDGAR ALLAN POE 1809-1849 Poeta, contista e jornalista norteamericano. Criador do romance policial e um dos grandes nomes da literatura fantástica. Entre suas obras estão: O gato preto; O poço e o pêndulo; A queda da casa de Usher.
  • 24. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR UNIDADE DE LEITURA QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU? BONECO DE PEDRO E O LOBO DO GRUPO GIRAMUNDO MARIA CLARA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Quem tem medo do lobo mau? O Chapeuzinho Vermelho, os três porquinhos, os sete cabritinhos, nossos alunos, você e eu. Uma vez perguntaram ao folclorista Câmara Cascudo se, depois de tantos anos estudando nossos mitos, ele acreditava em lobisomem. Cascudo passou as mãos pelos cabelos e respondeu mais ou menos assim: “aqui, nesta sala iluminada, conversando com você, não acredito não, mas em noite de lua cheia, andando sozinho no mato, meu amigo... acredito sim e você também”. O medo está presente em nossa vida desde que nascemos. Medo do bicho-papão, da alma penada, do escuro, de não sermos amados por nossos pais são somente alguns pesadelos que povoam nossa infância. São os lobos infantis que rondam nossos sonhos e enchem de uivos nossa imaginação. Não é à toa que os acalantos com os quais somos embalados já nos avisam dos perigos e nos orientam sobre o que esperar da vida que se inicia.“Dorme neném que a Cuca vem pegar / Papai foi à roça, mamãe foi trabalhar” ou “Bicho-papão em cima do telhado / Deixa meu menino dormir sono sossegado.” Com ouvidos adultos, parece-nos bem pouco provável que uma criança adormeça ouvindo sobre perigos tão próximos ou ameaças tão aterrorizantes, mas o fato de um adulto compartilhar com ela o conhecimento da presença do monstro, aliado ao aconchego e à voz que a embala, dá-lhe a certeza de não estar sozinha e a faz relaxar. Não é à toa, também, que as histórias de fadas clássicas vêm sendo contadas, através dos séculos, a crianças que nelas encontram alívio para os mais diferentes sentimentos. Poder ouvir que a madrasta inveja a beleza de Branca de Neve; que o Pequeno Polegar consegue ludibriar o terrível gigante; que Dona Baratinha, após chorar a morte de D. Ratão, volta à janela para procurar outro noivo; que Cinderela, desobedecendo as ordens da madrasta, vai ao baile proibido e consegue casar com o príncipe; que João e Maria conseguem sobreviver apesar do abandono de seus pais é sinalizar que nem tudo está perdido. É saber que não somos os únicos a sentir inveja, que mesmo a força poderosa de um gigante pode ser vencida se usarmos a cabeça, que às vezes é preciso enfrentar as situações para conseguirmos o que desejamos, que mesmo após as grandes perdas a vida continua, e que, mesmo nossos pais, são capazes de sentimentos ruins. Ouvir que outras pessoas compartilham de nossos sentimentos nos faz menos sozinhos. 24 Quando mudamos as estruturas destas histórias numa tentativa de torná-las menos tristes, tiramos das crianças a oportunidade de vivenciar seus medos, compartilhar com os personagens seus sentimentos menos nobres, enfim, acalmar seus lobos. Se ressuscitamos D. Ratão, por exemplo, dando-lhe um bom banho e o casamos com D. Baratinha, teremos não só negado à criança que nos escuta uma excelente oportunidade de aprender a lidar com perdas, como criado, aí sim, uma história de terror imensurável. Imaginem o fruto deste casamento - um rato e uma barata - nem Lovecraft, em seu mais louco devaneio, seria capaz de pensar semelhante horror! À medida que vamos crescendo e que o mundo a nossa volta vai se modificando, os lobos vão ganhando novos nomes e contornos. Podemos chamá-los de morte, solidão, doença, guerra, separação, desemprego, violência, fome... O nome varia, mas o sentimento de impotência que nos invade é o mesmo. Como já não temos quem nos tome nos braços e acalme nosso coração, procuramos outros meios de enfrentar a alcatéia faminta que nos rodeia. Num tempo de alta tecnologia, onde o homem é capaz de brincar de Deus clonando animais e ensaiando a clonagem de pessoas, nunca se estudou tanto as profecias ou se consultou tantos astrólogos e videntes, numa tentativa de adivinhar o futuro e acalmar nossos temores. Como não temer o dia de amanhã se acompanhamos ao vivo e a cores, confortavelmente instalados em nossas salas, o desmoronamento de dois símbolos do maior império contemporâneo? Se o lobo já entra em nossa casa não só pela porta, mas também através do cabo da televisão, é preciso usarmos todos os meios possíveis para, pelo menos, enjaulá-lo. A arte, sempre cronista de seu tempo, nos sinaliza caminhos e escapes. Os filmes
  • 25. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR coleção “Ciência e religião têm uma origem comum: a necessidade humana de controle do medo.” Marcelo Gleiser Físico. de terror lotam as salas dos cinemas, os livros sobre bruxaria alcançam as listas dos mais vendidos, os jornais e revistas se esgotam ao falarem do crime organizado. O outdoor de propaganda de uma revista nos alerta - Bons tempos em que só se sentia medo de bandido solto. Precisamos desesperadamente de alguém que converse e compartilhe conosco, seja em que linguagem for, dos nossos medos, pois, como diz João Carlos Rodrigues em seu artigo, “nenhuma ficção pode ser hoje mais amedrontadora do que a realidade.” No entanto, são as histórias - ficcionais ou não -, livros, filmes, músicas, peças de teatro e novelas, as armas com que podemos nos municiar para tentar, pelo menos, domesticar nossos lobos particulares e ajudar nossos alunos a enfrentarem os seus. Por que não voltarmos com eles ao tempo de embalá-los com histórias e leituras que lhes permitam elaborar e compartilhar seus sentimentos? Ao trabalharmos o medo de monstros imaginários, estaremos fortalecendo-os para lidar com os medos reais. Ao falarmos abertamente de medos contemporâneos, estaremos lhes dando a oportunidade de exorcizarem suas preocupações e temores. É preciso vencer o medo de falar do medo. O diálogo aberto, a história bem contada, a leitura compartilhada nos permitirão olhar o lobo de frente e construir casas resistentes que não caiam com um mero sopro, atravessar florestas sabendo como não cair em conversa de estranhos, saber a quem devemos ou não abrir a porta de nossa casa e nos mantermos alertas à aproximação das feras. Aí sim, como já dizia Cascudo, só sentiremos medo de lobos e lobisomens no meio do mato em noite de lua cheia, e não nas salas iluminadas. Histórias de bruxas,fantasmas e outros habitantes do universo do terror sempre fizeram parte do imaginário infanto-juvenil. E que atire a primeira pedra quem nunca conferiu se havia um monstro embaixo da cama ou deixou a luz acesa em noite de tempestade. MARIA CLARA DE CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE Psicóloga e especialista em Literatura Infanto-juvenil e Leitura. 25 ONDE OS MELHORES AUTORES SE ENCONTRAM www.record.com.br
  • 26. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR MEDO DE QUÊ, TATIANA MILANEZ Fanny Joly adora rir. Foi rindo que ela escreveu seu primeiro texto, um monólogo cômico para a irmã mais velha, a atriz Sylvie Joly. Isso foi há quase trinta anos. Hoje, aos 47, um marido e três filhos, a escritora continua se divertindo com o trabalho. Apesar da Licenciatura em Letras, Fanny confessa que sua formação não foi na universidade. Seu aprendizado foi no trabalho. Começou como redatora publicitária, uma profissão que, segundo ela, lhe ensinou a ser direta no texto, dado essencial na literatura infantil. Fanny também escreveu roteiros para o cinema e televisão, além de esquetes para o teatro. Mas o que mais lhe dá prazer são as histórias para crianças. Foram mais de 130 livros traduzidos em 14 línguas, entre eles a conhecida coleção Quem tem medo de. Nas paredes em volta de sua mesa de trabalho, vários desenhos de pequenos leitores. É nesta sala, num apartamento claro e confortável, a poucos metros da Torre Eiffel, em Paris, que Fanny Joly recebeu a repórter de Leituras Compartilhadas: LC: Os seus livros da coleção Quem tem medo de falam de medos infantis que parecem universais. A senhora acredita que existam medos que todas as crianças sentem em determinada idade ? Fanny: Esta coleção é dirigida às crianças entre 3 e 8 anos. Nesta fase existem medos quase instintivos que encontramos em todas as crianças. Quando começamos a pensar nesta coleção, fizemos uma lista de medos. Escolhemos então doze temas que nos pareciam universais. Nós até fizemos um teste: perguntamos a algumas crianças quais os medos que elas tinham. Nós terminamos por escolher temas que nos permitiam uma história tranquilizadora e engraçada. A idéia era mostrar o medo num contexto onde não haveria razão para que ele existisse, como medo de dragão, medo de rato, medo de escuro... Eliminamos os temas que falavam de coisas que realmente dão medo e que são perigosas, como por exemplo, o fogo. A gente preferiu se concentrar em medos de conto de fada, quase míticos. LC: E por que escrever sobre o medo? Quando criança, a senhora tinha medo? Fanny: Eu era muito medrosa, muito mesmo. Na verdade, eu não escolhi escrever sobre este tema. Como na época eu já era uma autora mais ou menos conhecida dos editores, me propuseram fazer essa coleção em torno do medo. E como de fato eu era muito medrosa quando criança, achei a idéia interessante e me deu vontade de fazer. LC: Hoje em dia a educação infantil se preocupa em ajudar as crianças a perder o medo. Mas antigamente o medo era utilizado como método de educação como, por exemplo, “tem um monstro no teu quarto que vai te pegar, se você não dormir”. A senhora acredita que 26 muito dos medos infantis foram criados pelos adultos? Fanny: Usar o medo da criança como método de educação – entre aspas - ou como meio de obter o que se quer como o exemplo que você utilizou, eu acho que é algo realmente nocivo. Para mim, o medo é um elemento muito negativo no dia-a-dia. Ele nos impede de ir para a frente, nos bloqueia, nos freia, nos faz andar para trás. Acho então que é um elemento que deve ser combatido. É verdade que hoje em dia nós, adultos, temos razão de ter medo. A mídia nos submete a uma enorme quantidade de notícias, nós somos bombardeados de imagens que nos transtornam, é difícil de lidar com tudo isso! Mas se eu tivesse que escrever, por exemplo, “Quem tem medo de seqüestro?”, num contexto onde isso pode acontecer, não sei o que faria... Porque o que as crianças amam nestas histórias sobre o medo é que elas se sentem tranqüilas. O fio condutor da história é “você tem medo de rato?”, “mas o rato não vai te comer!”, “você tem medo de aranha?”, “mas, olha, a tua avó pega a aranha com a mão...”. É este tipo de coisa que tranqüiliza, mas é verdade que com um seqüestrador, por exemplo, você corre o risco de encontrá-lo e vai ser horrível! LC: Os seus livros são sempre engraçados, bem humorados. A senhora acredita no riso como arma contra o medo? Fanny: Ah, sim! Eu acredito no riso como arma contra quase tudo no mundo. Contra o medo,
  • 27. LEITURASCOMPARTILHADAS FASCÍCULO 6 | OUTUBRO DE 2002 | WWW.LEIABRASIL.ORG.BR FANNY JOLY? rir é uma arma fantástica. Quando você está com medo e alguém te faz rir, o medo se desfaz imediatamente. De qualquer maneira eu sou uma pessoa que adora rir e todos os meus livros têm um tom humorístico. Nessa coleção eu escolhi um estilo diferente. De todos os livros que escrevi, os livros Quem tem medo são os únicos nos quais eu falo com a criança na segunda pessoa. Geralmente nos livros para crianças a narração é feita na terceira ou na primeira pessoa. Nessa coleção eu escolhi falar diretamente com a criança. Ela é o herói da história. Quando o medo aparece de repente, ela se identifica ainda mais, ela está dentro da história. E o que acontece no livro, acontece com ela também. E eu acho que esse estilo funciona muito bem. Eu encontrei muitas crianças que leram esses livros. Na França, eles foram publicados há dez anos, então tive a oportunidade de encontrar muitas crianças e professores que me disseram que o texto na segunda pessoa fala diretamente às crianças, funciona. LC: Muitas crianças são reprimidas quando têm medo. Alguns pais dizem aos seus filhos que medo é sinal de fragilidade. A senhora acredita que é importante sentir medo? Fanny: Eu não acho que temos que eliminar o medo e sim tentar compreendê-lo e superá-lo. Tentar entender o porquê, se o medo tem razão de existir naquele momento. O fato de não termos medo não significa que está tudo bem, mas o importante é tentar ir em frente, supe- rar este medo. É uma etapa de crescimento, de maturidade. É bom poder falar. LC: A senhora acha que a série sobre o medo terminou ou acha que daria para escrever mais alguns livros sobre o tema? Fanny: Eu acho que acabou. Para mim a idéia original dessa coleção foi há dez anos. Ela foi criada num grande formato, depois relançamos a coleção num formato menor, mas não escrevi livros novos, ficamos com os doze temas. Foram os doze estabelecidos inicialmente. Aliás, o mais difícil para mim foi escrever o livro Quem tem medo do mar?. É verdade que existem crianças que têm medo da água e é verdade que depois que aprendemos a nadar perdemos esse medo e que no mar tem peixinhos. Mas, ao mesmo tempo, o mar pode ser perigoso. Quando eu te dizia que o fogo pode ser perigoso, o mar também pode ser perigoso, então não foi muito fácil. Foi o tema mais difícil a ser tratado. LC: E como você achou a solução para falar de um tema difícil? Fanny: Para mim a melhor solução seria não ter que escrever sobre o mar. Eu não gosto da idéia de ter que dizer: “não precisa ter medo do mar”. Por outro lado, o livro sobre o monstro, por exemplo, foi fantástico escrever, porque monstros não existem! É ótimo poder dizer no final da história: “os monstros são ótimos, mas felizmente não existem, só nos livros”. Sobre os extraterrestres, como eu não acredito neles, 27 adorei poder contar uma história delirante e saber que nunca vamos encontrar um. Houve uma idéia de fazer “Quem tem medo de ladrão?”, - parecido com a idéia do seqüestrador de que falamos agora há pouco - , mas decidimos não incluir este tema, porque no nosso espírito seguro e engraçado, não cabia ... LC: Hoje em dia as crianças enfrentam o medo do dia-a-dia: medo de terroristas, medo de bomba... A senhora acha, no entanto, que elas ainda têm medo de monstros e bruxas? Fanny: Sim, porque há um prazer de ter medo, que é o medo com o qual podemos brincar, sabendo que ele não existe de verdade. As crianças têm realmente medo quando vêem o noticiário com assuntos assustadores, mas elas adoram ter medo com os livros, com brinquedos... Elas brincam com o medo porque sabem que no fundo é mentira e que de alguma forma é um prazer ter medo. Quando estamos lendo, nossa vida não corre nenhum risco. TATIANA MILANEZ Jornalista Com colaboração de Ana Cláudia Maia