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NOVO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO-
AMERICANO: PARADIGMA JURÍDICO EMERGENTE EM TEMPOS
DE CRISE PARADIGMÁTICA
Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega1
Vitor Sousa Freitas2
Resumo: Esse trabalho, elaborado no contexto da discussão sobre a crise de
paradigmas vivida nos tempos presentes, busca responder à pergunta pertinente à
caracterização do Novo Constitucionalismo Democrático Latino-americano como um novo
paradigma jurídico, ou sua localização dentro de um plano mais amplo de crise paradigmática.
Para tanto, vale-se das concepções de Thomas Kuhn e Boaventura de Sousa Santos para o um
conceito de paradigma que conduza a uma resposta possível à questão proposta. Busca, a
seguir, caracterizar o Novo Constitucionalismo Latino-americano de forma a se poder apontar
os elementos que permitem afirmar ou negar uma mudança paradigmática em curso. Conclui,
vislumbrando um contexto de crise paradigmática mais ampla, que o Novo
Constitucionalismo Democrático Latino-americano desponta como paradigma jurídico
emergente, uma vez que rompe com elementos constitutivos do direito moderno e de seu
direito constitucional, com especial centralidade da questão da participação popular.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Crise de paradigmas. Novo
Constitucionalismo Latino-Americano.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa a analisar a questão da crise paradigmática no direito,
especialmente no direito constitucional, num contexto de crises societais, epistemológicas,
1
Mestre e doutora em direito pela PUC SP. Professora titular na UFG.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Cursa Especialização em Direito Constitucional e
Mestrado em Direito Agrário também na UFG. Advogado.
2
enfim, crises paradigmáticas em diversos campos, todas como indício de uma crise
paradigmática de maior âmbito, centrada na derrocada do que se denomina modernidade.
Nesse contexto, o presente trabalho pretende responder ao questionamento sobre o
potencial dos movimentos de transformações constitucionais recentes na América Latina —
ocorridos na Venezuela, em 1999, Equador em 2008 e Bolívia, em 2009 —, que vem sendo
denominado de Novo Constitucionalismo Democrático Latino-americano, caracterizam, no
campo jurídico, a ascensão de um novo paradigma, tendo em vista a propalada crise do direito
moderno e, consequentemente, do direito constitucional a ele correspondente.
Para tanto, parte-se dos estudos de Thomas Kuhn, físico e filósofo da ciência, que
cunhou a atual concepção predominante de paradigma nas ciências, de modo a esclarecer de
que modo operam os paradigmas e como se configura uma crise de paradigmas. Além disso,
considerando-se a paulatina recepção desse conceito no âmbito das ciências sociais e do
direito, busca-se em Boaventura de Sousa Santos uma discussão do direito sob o ponto de
vista paradigmático que aponte para a atual crise dos modelos de juridicidade que sustentaram
a concepção atual e declinante de direito.
A partir dessa discussão, perquire-se em autores que tem se debruçado sobre o
tema no âmbito do direito constitucional, em especial aqueles que tem estudado o Novo
Constitucionalismo Democrático Latino-americano, para descrever as características
fundamentais do direito constitucional vigente e do direito constitucional ascendente a partir
das novas constituições acima mencionadas, de forma a podermos, considerados os elementos
da discussão sobre paradigmas trazida pelos autores acima mencionados, analisar em que
medida esse novo movimento constitucional caracteriza uma mudança paradigmática no
direito, tendo em vista uma crise paradigmática societal mais ampla.
Parte-se da hipótese de que há uma ampla crise civilizacional, filosófica, científica
em curso e que, nesse contexto, essa crise se irradia para campos sociais específicos. Não se
trataráccc dessa crise paradigmática geral, senão a mencionando, por meio dos autores
citados. O foco do trabalho se dá na hipótese de existência de uma crise no campo jurídico e
da ascensão de um novo modelo no continente latino-americano.
1. PONTO DE PARTIDA: A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN, OS
PARADIGMAS E SUAS CRISES
A filosofia e a história das ciências deve ao físico estadunidense Thomas Kuhn
(1922-1996) um pensamento crítico do desenvolvimento científico que, desde a publicação,
em 1962, da obra “The Structure of Scientific Revolutions”, estabelece a centralidade do
3
conceito de paradigma na explicação do funcionamento do labor científico, cujo conteúdo, ao
revelar a influências de fatores socioculturais, ocultados pelo positivismo, no estabelecimento
de modelos comumente utilizados pelos cientistas, bem como a importância de fatores
externos na geração de crises agudas nas teorias dominantes, passou a servir de referência não
só para o estudo das chamadas hard sciences, cuja atribuída exatidão e neutralidade também
são colocadas em jogo, mas também para as denominadas ciências humanas, cujo
protagonismo é realçado na obra de Kuhn, e cujo desenvolvimento também passou a ser
objeto de estudos referenciados na proposta desse autor.
Dessa forma, passam-se a ter exemplos de estudos dessa natureza na filosofia, na
sociologia e no direito. Para os fins do estudo que ora se apresenta, cabe mencionar dois
exemplos dessa assimilação teórica no campo de estudos jurídicos, quais sejam as obras do
português Boaventura de Sousa Santos, especialmente na sociologia jurídica, e do norte-
americano Bruce Ackerman, no âmbito do direito constitucional. O diálogo desses autores
com Kuhn irá nos ajudar a compreender de que forma o Novo Constitucionalismo Latino-
americano se insere no contexto de uma apontada crise paradigmática de âmbito geral e como
ele próprio se apresenta como uma proposta paradigmática emergente no âmbito do direito
constitucional e seu caminhar histórico. Esse dualismo na concepção de paradigma será
buscado em Kuhn, de cuja obra foram selecionados pontos que iluminaram o caminho que se
pretende percorrer a seguir.
Thomas Kuhn inicia sua obra apontando que, ao contrário do que se poderia
pensar, e ao contrário de como as próprias ciências se apresentam, elas não evoluem
cumulativamente ou por meio de descobertas individuais, como se por meio de um processo
gradativo, de adição e acumulação de itens, isoladamente ou em combinação, a um estoque
crescente que constitui o conhecimento e a técnica científicos (KUHN, 1998, p.20). Pelo
contrário, os primeiros estágios de desenvolvimento da maioria das ciências se caracterizam
pela contínua competição entre diversas concepções de natureza distintas e cada uma delas
parcialmente derivada e todas apenas aproximadamente compatíveis com os ditames da
observação e do método científico. O que diferencia essas escolas é a incomensurabilidade de
suas maneiras de ver o mundo e nele praticar a ciência. Assim, se a observação e a
experiência restringem a extensão das crenças admissíveis, elas não podem determinar um
conjunto específico dessas crenças. Elementos arbitrários são ingredientes formadores das
crenças de uma comunidade científica numa determinada época e esta não pode praticar seu
ofício sem um conjunto dado de crenças recebidas e com as quais o grupo está realmente
comprometido num dado momento (KUHN, 1998, p. 23). Dessa forma,
4
A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade
científica pense ter adquirido respostas seguras para perguntas como: quais são as
entidades fundamentais que compõem o universo? como interagem essas entidades
umas com as outras e com os sentidos? que questões podem ser legitimamente feitas
a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca de
soluções? (KUHN, 1998, p. 23)
Dessa forma, “a ciência normal”, atividade na qual a maioria dos cientistas
emprega inevitavelmente quase todo seu tempo, e para o qual são preparados por meio de um
rígido e rigoroso processo educativo, se baseia no pressuposto de que a comunidade científica
sabe como é o mundo e o sucesso do empreendimento científico depende da disposição da
comunidade para defender esse pressuposto — com custos consideráveis se necessário — de
forma a tentar vigorosa e devotadamente forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos
por essa educação profissional (KUHN, 1998, p.24).
Por “ciência normal”, portanto, deve-se entender “a pesquisa firmemente baseada
em uma ou mais realizações científicas passadas(...) reconhecidas durante algum tempo por
alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua
prática posterior” (KUHN, 1998, p.29). Ela se baseia em alguns trabalhos que servem para
definir implicitamente os problemas e métodos considerados legítimos para certo campo de
pesquisa e que deverão ser utilizados por gerações posteriores de praticantes de uma ciência.
Estes trabalhos são fundamentais porque suas realizações foram suficientemente sem
precedentes e abertas, de forma a atrair um grupo duradouro de partidários e deixar todos os
tipos de problema para serem resolvidos pelo grupo de praticantes da ciência (KUHN, 1998,
p. 30).
Essas realizações são denominadas por Kuhn de “paradigmas”, ou seja, exemplos
aceitos na prática científica (leis, teorias, instrumentação, aplicação) que proporcionam
modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica. Esses
paradigmas, estreitamente vinculados à ciência normal, são universalmente reconhecidos
durante algum tempo, fornecendo problemas e soluções modelares para uma comunidade de
praticantes de uma ciência, que servem de referência de partida para os mesmos (KUHN,
1998, p.13; p.30). Aqueles cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão
comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica, sendo que este
comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal,
para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa. A aquisição de um paradigma,
portanto, e o tipo de pesquisa que ele permite, a que Kuhn denomina de esotérica em virtude
5
do grau de especialização que a torna incompreensível para os não iniciados em determinado
campo de pesquisa, é um sinal de maturidade no desenvolvimento de um campo científico
dado (KUHN, 1998, p.30-31).
Estabelecido o paradigma, e, portanto, superada a fase pré-paradigmática na qual
competiam diferentes teorias, a ciência normal consistirá em operações de limpeza e estará
dirigida para a articulação dos fenômenos e teorias fornecidos pelo paradigma, sem
necessariamente ter de explicar todos os fatos com os quais se confronta, de forma a
concentrar-se numa faixa de problemas estudados com profundidade e detalhamento. Ao
mesmo tempo em que isso limita visão do cientista, é essa restrição que permite aos cientistas
desenvolverem as ciências (KUHN, 1998, p. 44-45). A ciência normal, nesse sentido, foca-se
em três classes de problemas: determinação do fato significativo; harmonização dos fatos com
a teoria, e articulação da teoria (KUHN, 1998, p. 55).
Esse processo faz com que a ciência normal tenha reduzido interesse em produzir
grandes novidades, seja no domínio dos conceitos ou dos fenômenos (KUHN, 1998, p. 57).
Embora trabalhe com um conjunto coerente de pressupostos, a maneira de obter resultados
que melhor articulem a ciência normal é o que desafia o cientista. Este trabalha como um
“solucionador de quebra-cabeças”. Ele sabe que o paradigma oferece solução, mas as formas
de atingir tal solução são variadas. Há um emaranhado complexo de conceitos, instrumentos e
cálculos a serem mobilizados para tanto. Assim, a ciência normal testa a habilidade e
engenhosidade dos cientistas em resolver quebra-cabeças, oferecendo as peças e regras
mínimas para tanto (KUHN, 1998, p. 59-66).
Os paradigmas, dessa maneira, tem prioridade sobre regras e métodos detalhados,
deles até mesmo prescindindo para se afirmarem. A ciência normal não necessita de um
conjunto complexo de regras. Ela precisa de um paradigma que dê unidade a conceitos, leis e
teorias. O que orienta a pesquisa é o paradigma e não um conjunto de métodos, regras,
padrões a serem seguidos (KUHN, 1998, p. 68-76).
Ao fim desse percurso, pode-se afirmar, e o próprio autor o reconhece, haver, no
mínimo, dois sentidos para “paradigma”. O primeiro é um sentido sociológico, que o define
como uma constelação de crenças, valores, técnicas, etc., partilhadas pelos membros de uma
comunidade determinada, e que, por via de consequência, faz-se reconhecer que uma
comunidade científica consiste em pessoas que partilham um paradigma. O segundo, que
denominaremos histórico, diz respeito a um tipo de elemento dessa constelação de crenças, ou
seja, as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos,
podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da
6
ciência normal, ou seja, realizações passadas dotadas de natureza exemplar (KUHN, 1998, p.
218-219).
Prosseguindo em sua construção, Kuhn aponta que no decorrer da existência da
ciência normal determinados fenômenos não são claramente explicados pelos paradigmas
vigentes. São anomalias. Até que sejam ajustadas teorias que assimilem e expliquem as
anomalias, elas são acientíficas. Nota-se que elas demandam ajustes no paradigma e quebram
as expectativas por ele oferecidas. Ajustam-se também procedimentos, categorias, conceitos.
Entretanto, as anomalias geram a abertura do paradigma para novas descobertas (KUHN,
1998, p. 77-92).
Entretanto, há anomalias persistentes, que não encontram solução num
determinado paradigma, demandando novas teorias, cuja emergência é geralmente precedida
por um período de insegurança profissional pronunciada, e exige a destruição em larga escala
de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. “Essa
insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em
produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca
de novas regras” (KUHN, 1998, p. 93-95). Entretanto, ressalva o autor que “a produção de
novos instrumentos é uma extravagância reservada para as ocasiões que o exigem” e que “o
significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião
para renovar os instrumentos” (KUHN, 1998, p. 105).
A resposta às crises deve considerar, no entanto, que uma teoria científica só é
considerada inválida quando há outra a substitui-lac. O fracasso de um paradigma se dá na sua
comparação com outro paradigma e na comparação de ambos com a natureza (KUHN, 1998,
p. 108). A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma não é um processo
cumulativo obtido pela articulação do velho paradigma. É a “reconstrução da área de estudos
a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais
elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações”. Ao se
completar a transição, “os cientistas terão modificado a sua concepção da área de estudos, de
seus métodos, e de seus objetivos” (KUHN, 1998, p. 116). “A transição para um novo
paradigma é uma revolução científica” (KUHN, 1998, p. 122).
Revoluções científicas, portanto, são episódios de desenvolvimento não-
cumulativo nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um
novo e incompatível com o anterior. Tal como nas revoluções políticas, as revoluções
científicas surgem de um sentimento crescente de que o paradigma existente deixou de
funcionar adequadamente e esse sentimento de funcionamento defeituoso é um pré-requisito
7
para a revolução (KUHN, 1998, p. 125-126). Dessa forma, quando mudam os paradigmas,
muda com eles o próprio mundo, porque os cientistas adotam novos instrumentos e orientam
seu olhar em novas direções.
Durante as revoluções, os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando,
empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados
anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente
transportada para um novo planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz
diferente e a eles se apregam objetos desconhecidos (...) as mudanças de paradigma
realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de
pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu único acesso a esse
mundo dá-se através do que vêem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que, após
uma revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente. (KUHN, 1998, p. 145-
146).
Não obstante, as revoluções são quase invisíveis. A ciência normal tende a ver a
atividade científica como um processo linear de evolução, que agrega as contribuições
anteriores, sem enxergar as novas teorias como revoluções científicas, mas como melhoria das
antigas teorias. Mas para fazer isso, essas antigas teorias são distorcidas, para que se adéqüem
aos padrões da ciência normal atual. Entretanto, como já dito, a atividade científica não é
linear. Ela se desenvolve de forma não-cumulativa. Desenvolve-se por rupturas (KUHN,
1998, p. 173-181). A revolução ocorre após uma disputa entre paradigmas, apesar de os
cientistas pertencentes a paradigmas diversos realizarem entre si um debate entre surdos.
Mesmo que tentem processos de convencimento recíproco, tal tentativa geralmente é
frustrada. O convencimento em torno de um paradigma pode envolver argumentos de
qualidade, de clareza, etc. Mas em geral a adesão a um paradigma novo se dá pela fé, pela
crença de que ele solucionará as anomalias não resolvidas pelo paradigma antigo. Em geral,
os velhos cientistas não cedem ao novo paradigma, tendo Max Planck, segundo Kuhn,
chegado a defender que uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes
e fazendo com que vejam a luz, mas triunfa porque seus oponentes finalmente morrem e uma
nova geração cresce familiarizada com ela (KUHN, 1998, p. 183-191).
Para Kuhn, como já mencionado, a ciência não progride linearmente. Só se pode
falar em progresso no âmbito da ciência normal. A ciência evolui a partir de um início
primitivo, mas não em direção a algo. A ciência não se desenvolve a partir de um objetivo
estabelecido de antemão pela natureza, ou rumo a uma verdade. Daí ser contraditório falar em
“evolução”, “desenvolvimento” e “progresso” na ciência (KUHN, 1998, p. 201-216).
Além do que acima foi exposto, uma das constatações de Kuhn que será
especialmente relevante nesse trabalho é a de que o que se denominou ciência é um fenômeno
8
europeu e cujo ponto de partida é possível de ser localizado na história. Para o autor, “a massa
dos conhecimentos científicos existentes é um produto europeu, gerado nos últimos quatro
séculos”, assim como “nenhuma outra civilização ou época manteve essas comunidades muito
especiais [de cientistas] das quais provêm a produtividade científica” (KUHN, 1998, p. 210).
A recepção da teoria de Thomas Kuhn no âmbito bastante amplo das
denominadass ciências sociais enseja o desafio a este próprio autor, que as considera pré-
paradigmáticas, em virtude da (quase) inexistência de consensos paradigmáticos. Nesse
sentido, convém citar a discussão de Boaventura de Sousa Santos com o mencionado autor:
Na teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn o atraso das ciências sociais é
dado pelo carácter pré-paradigmático destas ciências, ao contrário das ciências
naturais, essas sim, paradigmáticas. Enquanto, nas ciências naturais, o
desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um conjunto de
princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão por
toda a comunidade científica, conjunto que Kuhn designa por paradigma, nas
ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar
verticalmente todo o conhecimento adquirido. O esforço e o desperdício que isso
acarreta é simultaneamente causa e efeito do atraso das ciências sociais (SANTOS,
2009, p. 67).
Não obstante, em defesa das ciências sociais, Ruth Sautu, critica o ponto de vista
das ciências duras, para ponderar as especificidades da investigação social, e dando ênfase ao
caráter comunitário do fazer científico:
Com frequencia, algunas personas de las ciencias denominadas “duras” confundem
la variedad de enfoques y estilos de investigación en ciencias sociales con falta de
rigurosidad científica. Aunque existen textos escritos que nos categorizaríamos
como investigación científica, creemos que esa diversidad se debe al hecho de que lo
que se denomina ciencias sociales abarca muchas disciplinas, desde la economía y la
sociología hasta la psicología social; desde los estudios macrosociales y culturales
hasta la investigación del microcosmos del mundo cotidiano. Cada área disciplinaria
es una unidad en sí misma, con sus teorías, sus estilos de hacer investigación y
validarlos, con sus maneras de presentar el marco teórico y los objetivos. Dentro de
las áreas disciplinarias existen sub-universos con sus propias reglas. Después de
todo, teorías y metodologías son productos humanos; son los “miembros
practicantes” de esos sub-universos los que los crean y modifican. Algunos círculos
académicos son más influyentes, tienen más recursos, publican más. Sin embargo,
cada investigador, cada grupo tiene su proprio margen de acción que es más amplio
cuanto más reflexione críticamente sobre teorías y metodologías. (SAUTU, et. al,
2005, p. 23)
Feita essa exposição, resta esclarecer em que medida ela será importante para o
estudo proposto. Consideramos que a teoria de Kuhn enseja perguntas fundamentais para o
estudo da cientificidade do direito, uma vez que essa questão ainda não foi totalmente
esclarecida nessa área, tendo já mobilizado vários pensadores e muitos anos de trabalho e
9
discussão. Pensamos que para um estudo mais amplo, essa investigação poderia incluir um
conjunto inicial de questões, acompanhando de perto a proposta kuhneana: se partirmos do
pressuposto de que é possível afirmar haver uma ciência jurídica, como essa afirmativa é
sustentada? Quem são seus formuladores? Quando e onde surgiu, ou qual o início primitivo
do direito como ciência? Como foram formulados e quais os seus cânones? É possível afirmar
haver um paradigma dominante no direito? Como se deu sua especialização? Quais suas
categorias fundamentais? Como elas interagem entre si? Que questões podem ser
legitimamente postas a respeito de tais categorias e que técnicas podem ser empregadas na
busca de soluções? Como a ciência jurídica realização suas operações de limpeza? Como a
ciência do direito tem estabelecido seus fatos significativos, como os harmoniza com as
teorias existentes e de que forma tem sido articulada a teoria fundante? Podemos identificar
no direito um conjunto de crenças e um conjunto de soluções modelares partilhadas? Podemos
identificar em sua história anomalias e os meios utilizados para ajustar o paradigma em
buscas das respostas a tais anomalias? Entretanto, ainda persiste um conjunto de anomalias
para as quais o paradigma existente não dá solução e que demandam troca de instrumentos?
Em que medida o paradigma dominante no direito deixou de funcionar adequadamente? Se
elas persistem, temos uma teoria ou conjunto de teorias para substituir a teoria dominante
existente?
Este conjunto de perguntas enseja um trabalho de pesquisa a ser realizado com um
tempo mais alargado e não é possível, para seguir o modelo proposto por Kuhn, de ser
realizado sem considerar a existência de diferentes comunidades de pensadores que partilham
diferentes pontos de partida teóricos sobre o que o direito é e como ele se desenvolve.
Diante da dimensão do trabalho necessário para dar conta dos problemas
propostos, o que se pretende apresentar a seguir é, partindo de estudos de alguns autores que
vem se debruçando sobre o tema, numa perspectiva crítica da sociedade e do direito, mostrar
um caminho possível para responder a algumas dessas questões.
2. UMA DISCUSSÃO PARADIGMÁTICA SOBRE O DIREITO: o paradigma moderno
do direito e sua crise
A discussão acima proposta encontra a justificação de sua importância na
afirmação de que o direito do século XX desenvolve pretensões científicas já em
desenvolvimento desde o século XIX. Boaventura de Sousa Santos chega mesmo a afirmar
10
que “O cientificismo e o estatismo são as principais características do direito moderno”
(SANTOS, 2009, p. 141).
Os tempos que vivemos podem ser objeto de variadas abordagens e aqui devemos
confessar, para sermos coerentes, com qual comunidade compartilhamos os referenciais
utilizados para a análise do paradigma vigente e dominante no direito. Como já dito acima, a
tradição que sustenta esse texto busca se localizar no âmbito das abordagens críticas do direito
e da sociedade, deitando raízes em caminhos traçados desde Marx, passando pelos pensadores
da Escola de Frankfurt, pelo marxismo heterodoxo, e pelas escolas críticas no direito, na
sociologia e na filosofia. Um dos pontos de partida das discussões empreendidas por tais
pensadores é considerar que vivemos uma crise do paradigma moderno de sociedade. A
modernidade, por sua vez, enquanto paradigma sociologicamente considerado calcado num
conjunto de crenças e práticas, representa a ascensão do sujeito racional como centro do
pensar, do homem enquanto centro do mundo, que deve se apropriar da natureza em nome do
progresso, que utiliza suas certezas científico-matemáticas pra criar métodos exatos de
apreensão do real, considerando possível explicá-lo com o rigor das hard sciences
(matemática, física, química, mas essencialmente a primeira). A régua moderna produz
igualmente um direito que se pretende universal, geral, abstrato, que contenha em si todos os
conteúdos possíveis da vida concreta, se aplicando a todos os conflitos, exigindo dele
controlar a realidade humana, seus conflitos, valendo-se da força estatal se preciso para
garantir seu império. O positivismo jurídico, melhor expressão desse modo de pensar
moderno, reflexo do Estado moderno, Estado de Direito, ainda busca se legitimar, mesmo
admitindo que hoje se apresente com um pós-positivismo, adicionando às exatas regras os
difusos princípios, mas todos direcionados à unidade, à afirmação da completude do sistema
jurídico, à legitimação do poder que se impõe e de uma certa forma de ser no mundo que se
pretende universal e que não admite a diferença.
Para o mencionado autor Boaventura de Sousa Santos o paradigma da
modernidade de que ora se trata está assentado em dois pilares fundamentais: o da regulação e
o da emancipação, cada um deles constituído por três princípios ou lógicas. O pilar da
regulação é constituído pelo princípio do Estado, pelo princípio do mercado e pelo princípio
da comunidade, formulados, fundamentalmente, e respectivamente por Hobbes, Locke e
Adam Smith, e por Rousseau, e consistindo na obrigação política vertical entre cidadãos e
Estado, na obrigação política horizontal individualista e antagônica entre os parceiros do
mercado e na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e entre
associações. O pilar da emancipação, por sua vez, é constituído pelas três lógicas de
11
racionalidade definidas por Max Weber: racionalidade estético-expressiva das artes e da
literatura, racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e racionalidade
moral-prática da ética e do direito (SANTOS, 2009, p. 50).
O paradigma da modernidade, portanto, pretende um desenvolvimento
harmonioso e recíproco do pilar da regulação e do pilar da emancipação, com a consequência
de que esse desenvolvimento se traduza na completa racionalização da vida colectiva e
individual. A dupla vinculação entre os dois pilares, e entre eles e a praxis social, vai garantir
a harmonização de valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e
autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade. (SANTOS, 2009, p. 50-51).
Entretanto, o desenvolvimento desses dois pilares se deu de forma desigual,
resultando na submissão daquele da emancipação àquele da regulação, com a especial
subordinação regulatória da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e
a subordinação da racionalidade moral-prática da ética e do direito à racionalidade científica.
Os critérios científicos de eficiência e eficácia se tornaram hegemônicos, promovidos pela
rápida conversão da ciência em força produtiva, e colonizaram os critérios racionais de outras
lógicas emancipatórias. A ciência moderna se converteu numa “instância moral suprema”,
para além do bem e do mal, e a gestão científica da sociedade é haurido como o critério de
valorização da micro-ética individual e do formalismo jurídico. A política, por sua vez, “se
transformou num campo social de caráter provisório com soluções insatisfatórias para
problemas que só poderiam ser convenientemente resolvidos se fossem convertidos em
problemas científicos ou técnicos” (SANTOS, 2009, p. 51).
Uma das características fundamentais da modernidade, portanto, é esta relação de
cooperação e circulação de sentido entre a ciência e o direito, sob a égide da ciência. O direito
é um alter ego da ciência e “a apresentação de afirmações normativas como afirmações
científicas e de afirmações científicas como afirmações normativas é um facto endémico no
paradigma da modernidade”. A lei enquanto norma é lei enquanto ciência e a ideia de criar
uma ordem social assentada na ciência significa uma ordem social onde as determinações do
direito sejam resultado das descobertas científicas sobre o comportamento social (SANTOS,
2009, p. 52-54).
Do ponto de vista filosófico, a dominância do pilar da regulação por meio da
ciência encontra sua fundamentação no positivismo, cujos cânones sustentam as bases da
ciência e do direito modernos:
12
O positivismo é a consciência filosófica do conhecimento-regulação. É uma filosofia
da ordem sobre o caos tanto na natureza como na sociedade. A ordem é a
regularidade, lógica e empiricamente estabelecida através de um conhecimento
sistemático. O conhecimento sistemático é o conhecimento das regularidades
observadas. A regulação sistemática é o controle efetivo sobre a produção e
reprodução das regularidades observadas. Forma, em conjunto, a ordem positivista
eficaz, uma ordem baseada na certeza, na previsibilidade e no controlo. A ordem
positivista tem, portanto, as duas faces de Janus: é, simultaneamente, uma
regularidade observada e uma forma regularizada de produzir a regularidade, o que
explica que exista na natureza e na sociedade. Graças à ordem positivista, a natureza
pode tornar-se previsível e certa, de forma a poder ser controlada, enquanto a
sociedade será controlada para que possa tornar-se previsível e certa. Isto explica a
diferença, mas também a simbiose, entre as leis científicas e as leis positivas. A
ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do conhecimento-regulação.
(SANTOS, 2009, p. 141)
O maior sustentáculo teórico do positivismo no direito será a obra do jurista
austríaco Hans Kelsen, que descreve o ordenamento jurídico como um sistema fechado de
normas que se vinculam umas às outras a partir de vínculos de imputação, confinando o
sistema jurídico num aparato meramente lógico. O conhecimento jurídico se torna, pois,
dogmático, uma vez que seu ponto de partida indiscutível são os textos normativos emanados
do Estado e sua preocupação fundamental é a explicação do direito posto, existente, buscando
sua máxima eficácia, ou melhor aplicação, e justificando-o sem questioná-lo. Na visão de
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, esse saber dogmático está bitolado por dois princípios: o da
inegabilidade dos pontos de partida e o da proibição do non liquet, ou compulsoriedade de
uma decisão, sendo que essa compulsoriedade confere ao saber dogmático a necessidade de
criar condições de decidibilidade. Essa uniformização de sentido promovida pela dogmática
tem a ver com um fator normativo de poder, o poder de violência simbólica. Trata-se do poder
capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no
fundamento da própria força. Assim, a dogmática do direito é um pensamento fechado à
problematização de seus pressupostos. Suas premissas e conceitos básicos são tomados como
pontos não problemáticos, a fim de cumprir sua função, qual seja criar condições para a ação.
O saber jurídico perdeu seu caráter ético para se converte em um saber tecnológico e fechado
para o entendimento da articulação do direito com o restante dos elementos componentes da
realidade social humana, uma vez que seu objeto é autossuficiente e independente (FERRAZ
JÚNIOR, 2007, passim).
A racionalidade jurídica moderna foi igualmente subordinada pelo princípio do
Estado, e o direito foi se tornando, ao mesmo tempo, estatal e científico. O Direito foi
politizado enquanto direito estatal, contribuindo para a reconstrução científica do Estado e
para a despolitização desse mesmo Estado, de forma a transformar a dominação política em
13
dominação técnico-jurídica. (SANTOS, 2009, p. 143). O direito agora exclusivamente estatal
e nacional nega juridicidade a ordens jurídicas não estabelecidas dentro desses marcos.
Concebido nestes moldes, a instrumentalidade técnica do direito estatal autónomo é
virtualmente infinita no seu alcance. O que caracteriza a especificidade funcional do
Estado moderno não é o número de funções que o Estado pode desempenhar, mas
sim a forma de desempenho. O estado mínimo do constitucionalismo liberal não só
contém, em si, as sementes do Estado-Providência benevolente do capitalismo
civilizado, mas também as do Estado fascista e do Estado estalinista. Nenhuma
destas formas de Estado pôde desprezar a positividade do direito como instrumento
potencialmente inesgotável de dominação, por mais subvertida e caricaturada que
fosse essa positividade nas duas últimas formas de Estado. Em suma, o cientificismo
e o estatismo moldaram o direito de forma a convertê-lo numa utopia automática de
regulação social, uma utopia isomórfica da utopia automática da tecnologia que a
ciência moderna criara. Quer isto dizer que, embora a modernidade considerasse o
direito um princípio secundário (e talvez provisório) de pacificação social
relativamente à ciência, uma vez submetido ao Estado capitalista o direito acabou
por se transformar num artefacto científico de primeira ordem. A partir daí, o
utopismo automático da tecnologia desenvolveu-se em articulação estreita com o
utopismo automático da engenharia jurídica e, na verdade, até hoje, estes dois
processos passaram a apoiar-se mutuamente (SANTOS, 2009, p. 143-144).
Ao lado do princípio do Estado, o direito moderno foi subordinado ao princípio do
Mercado, de forma a ajustar os ideais éticos e as promessas políticas às necessidades
regulatórias do capitalismo liberal.
A soberania do povo transformou-se na soberania do Estado-nação dentro de um
sistema inter-estatal; a vontade geral transformou-se na regra da maioria (obtida
entre as elites governantes) e na raison d’etat; o direito separou-se dos princípios
éticos e tornou-se um instrumento dócil da construção institucional e da regulação
do mercado; a boa ordem transformou-se na ordem tout court.
(...)
O aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência moderna e do
positivismo jurídico no direito e na dogmática jurídica podem considerar-se, em
ambos os casos, construções ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao
desenvolvimento capitalista, bem como imunizar a racionalidade contra a
contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer ela fosse Deus, a
religião ou a tradição, a metafísica ou a ética, ou ainda as utopias ou os ideais
emancipatórios. No mesmo processo, as irracionalidades do capitalismo passam a
poder coexistir e até a conviver com a racionalidade moderna, desde que se
apresentem como regularidades (jurídicas ou científicas) empíricas. (SANTOS,
2009, p. 140-141)
No mesmo sentido de crítica da vinculação do direito aos ditames do mercado,
Alysson Mascaro afirma que:
Afastando-se do caminho da filosofia originária — um caminho do ser e não do
dever-ser, que se pergunta pela totalidade ética e não pelos fragmentos legalistas —
a filosofia do direito moderna torna-se normativista e, além disso, individualista, por
conta do voluntarismo subjetivista em que se baseia. Ao fazer tabula rasa da vida
social e de suas carências, a modernidade inscreve na razão as divisas fundamentais
14
do futuro e da justiça. No entanto, a razão individualista, nos limites da
intersubjetividade, alcança só os horizontes do próprio interesse burguês. (...) A
razão burguesa é a antecipação miraculosa da inexorabilidade do capitalismo.
(MASCARO, 2008, p.151)
Desta forma, se às ciências sociais faltam elementos de consenso que possam
afirmar um paradigma, no âmbito do direito tal consenso parece não faltar. O paradigma do
direito moderno, na leitura acima realizada, ― e compartilhada por uma comunidade de
estudiosos críticos do direito, que tem buscado aprofundar essa crítica, ainda que de forma
minoritária ante à enormidade da comunidade de reprodutores, nem sempre conscientes, desse
direito que se critica — se assenta em um conjunto de crenças partilhadas e que o conduzem à
uma cientificidade com pretensões de regulação da sociedade, devidamente
instrumentalizadas pelas ferramentas estatais disponíveis para oferecer a coerção necessária
ao cumprimento dos ditames estabelecidos em documentos escritos, gerais e impessoais, que
servem como ponto de partida para o labor da comunidade de especialistas autorizados a
dizerem a verdade do direito. O saber jurídico se torna um direito esotérico, de conteúdo
inacessível e especializado, e que portanto exclui o cotidiano do direito das comunidades, e
seu conteúdo deixa de ter qualquer objetivo emancipatório, por estar a serviço de uma visão
politicamente liberal e materialmente capitalista. Afastado de suas origens políticas, o direito
se torna mera técnica.
Entretanto, este paradigma jurídico está em crise; a modernidade está em crise.
Este modelo, na cotidianidade, não se converteu nas promessas de liberdade, igualdade e
fraternidade prometidas pela modernidade e suas pretensões universalistas, racionais
instrumentais, que só admite soluções a partir do próprio modelo. Essas pretensões não
geraram um universo terreno igualitário, fraterno, e livre, mas sim a disseminação da miséria,
a assimilação de todos ao universo capitalista, tornando o homem um cidadão que se afirma
pelo consumo, deixando-se assim vítimas no meio do caminho. Culturas excêntricas
caminham para o desaparecimento, em direção à vala comum das demais culturas já
destruídas pela colonização europeia, e, dentro da própria Europa, pelo modo capitalista de
vida. A ciência, antes tão exata, que muitas vezes precisa matar o objeto para dissecá-lo e
conhecê-lo, armou a humanidade com todos os artefatos possíveis que podem levar à sua
própria destruição, ao mesmo tempo em que descobrimos a insignificância humana no
universo e a física quântica aponta que as ciências, longe da propalada certeza, trabalham
sobre um terreno dominado por juízos de probabilidade, que não levam necessariamente a
previsões certas, seguras e exatas.
15
Desta forma, nosso modo de vida, nossa forma de conceber, entender e explicar o
mundo, nosso modelo de organização política e de resolução de conflitos apresentam sérios
indícios de suas contradições e da urgência de sua desconstrução e substituição. Nesse
sentido, Eduardo Bittar inventaria alguns elementos dessa crise, com especial foco na sua
dimensão jurídica:
Os tradicionais paradigmas que serviram bem ao Estado de direito do século XIX
não se encaixam mais para formar a peça articulada de que necessita o Estado
contemporâneo para a execução de políticas públicas efetivas. Assim, perdem
significação: a universalidade da lei, pois os atores sociais possuem características
peculiares não divisáveis, que o torna formalmente isento de qualquer contaminação
de forças políticas, quando se sabe que toda legislação vem formulada na base de
negociações políticas e partidárias; a idéia da contenção do arbítrio pela lei, fator de
descrédito diante da ineficácia e da inefetividade das atitudes de combate à
corrupção e às taxas elevadíssimas de impunidade; a regra de igualdade perante a
lei, como garantia da indistinção e do deferimento dos mesmos direitos a sujeitos
igualmente capazes e produtivos no mercado, quando se sabe que as oportunidades
são maiores para uns e menores para outros; a idéia de que a codificação
representaria uma obra científico-legislativa, obra-prima do saber jurídico, com
disciplina única e sistemática das matérias por ele versadas, insuscetíveis de lacunas
e de erronias, possibilitando a exegese harmônica do sistema, quando se sabe que os
códigos possuem o mesmo potencial de dissincronia com as mudanças sociais que
os demais textos normativos; a tripartição clara das competências das esferas e das
instâncias do poder como forma de manter o equilíbrio do Estado, o que na prática
resulta em dissintonia entre as políticas legislativas, as políticas judiciárias e as
políticas administrativas e governamentais, criando Estados simultâneos orientados
por valores desconexos; a idéia da democracia representativa rousseauniana, quando
se sabe que a população vive à mercê dos usos e abusos da publicidade, no discurso
e na manipulação políticas; a intocabilidade da soberania, como forma de garantia
da esfera de atuação com exclusividade dos poderes legislativos, jurisdicionais e
executivos em bases territoriais fixas e determinadas na ordem internacional, quando
se sabe que a interface da internacionalização dos mercados e da interdependência
econômica tornam inevitável o processo de integração; a garantia de direitos
universais de primeira geração, como forma de expressar a proteção à pessoa
humana, o que na prática ainda pouco se incorporou às realizações socioeconômicas;
a garantia da existência da jurisdição como garantia de acesso a direito, quando se
sabe que, em verdade, a justiça se diferencia para ricos e pobres, pelos modos como
se pratica e pelas deficiências reais de acesso que possui. (BITTAR, 2009, p. 81-82)
A crítica dos limites do direito posto se compreende num contexto de
desconstrução das grandes narrações, dos projetos globais de humanidade modernos, do
racionalismo instrumental, de nossa organização político-econômico-jurídica, de nossas
tecnologias, etc. Nesse horizonte de incertezas, caminhos possíveis são apontados e nosso
tempo exige o apontamento desses caminhos. A crise de um paradigma se faz acompanhar de
um momento de transição paradigmática. E, seguindo novamente Boaventura de Sousa
Santos, “Como todas as transições são simultaneamente semi-invisíveis e semicegas, é
impossível nomear com exactidão a situação atual” (SANTOS, 2009, p. 49).
16
Defendo uma muito ampla concepção de transição paradigmática. A transição actual
não é apenas (ou não tanto) uma transição entre modos de produção estreitamente
definidos, mas entre formas de sociabilidade e no sentido mais lato, incluindo as
dimensões económica, social, política e cultural. O entrelaçar do projecto sócio-
cultural da modernidade com o desenvolvimento capitalista no século XIX conferiu
ao capitalismo uma densidade social e cultural que ultrapassou largamente as
relações económicas de produção. Esta facto foi de certo modo descurado por Marx
e, por isso, a sua visão da transição paradigmática partilha com o liberalismo muito
mais do que o que ele algumas vezes poderia admitir. São as seguintes as principais
cumplicidades entre marxismo e liberalismo: a confiança no poder libertador da
ciência moderna; o dualismo natureza/sociedade que subjaz à ciência moderna e as
pretensões epistemológicas que aí assentam; a ideia de um processo evolutivo linear
que há-de ter um fim (embora, para Marx, esse fim ainda estivesse para vir), seja ele
a sociedade industrial (Spencer), o estado positivo (Comte) ou a solidariedade
orgânica (Durkheim); a ideia de progresso, mesmo que descontínuo (através de
revoluções); a crença num desenvolvimento tecnológico contínuo e num
crescimento infindável; a concepção do capitalismo como fator civilizador
progressista, por mais brutal que fosse a opressão colonial e a destruição da
natureza.
(...)
Do ponto de vista da perspectiva ampla de transição que tenho vindo a defender, o
período de transição paradigmática por que estamos a passar começou com o
colapso epistemológico da ciência moderna e acabará por pôr em questão todas as
convicções mencionadas acima. Daí que exija uma transformação civilizacional.
Embora indiscutivelmente tributária do Marxismo, esta concepção de transição
paradigmática considera que a transição marxista convencional é, afinal de contas,
subparadigmática.
Defendo, assim, que a discussão paradigmática do direito moderno, em conjunto
com a da ciência moderna, irá esclarecer os termos e as direções possíveis da
transição para um novo paradigma societal. (SANTOS, 2009, P. 168-169)
Para esse autor, o défices e excessos da modernidade já se previam, mas os
excessos foram considerados desvios fortuitos e os défices como deficiências temporárias,
sendo que ambos poderiam ser resolvidos através de uma melhor utilização dos crescentes
recursos materiais, intelectuais e institucionais da modernidade. O que Boaventura denomina
de gestão reconstrutiva dos excessos e dos défices foi progressivamente confiada à ciência e,
de forma subordinada, ao direito. Mas essa gestão reconstrutiva dos excessos e dos défices da
modernidade necessitou da participação subordinada, mas central, do direito moderno.
Embora a racionalidade moral-prática do direito tenha tido de submeter, para ser eficaz, à
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, ou ser isomórfica dela, o direito protegeu,
por meio de sua integração normativa e sua força coerciva, a gestão científica da sociedade
contra eventuais oposições. Em outros termos, como já estudado anteriormente, segundo
Boaventura de Sousa Santos, “a despolitização científica da vida social foi conseguida através
da despolitização jurídica do conflito social e da revolta social” (SANTOS, 2009, p. 52-54).
Mas se ele considera legítimo pensar que a crise do paradigma da ciência moderna
acarretará a crise do paradigma do direito moderno, isto não significa, todavia, que as
condições da transição paradigmática na ciência sejam ou as mesmas, ou tão visíveis, ou que
17
atuem da mesma forma que as da transição paradigmática no direito (SANTOS, 2009, p. 164-
165).
Em primeiro lugar, porque mesmo que exista uma certa cumplicidade
epistemológica e uma circulação de sentido entre a ciência e o direito moderno,
resultantes da submissão da racionalidade moral-prática do direito e da ética à
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, o isomorfismo assim produzido é
de alcance limitado e de conteúdo epistemológico meramente derivado. Enquanto
domínio social funcionalmente diferenciado, o direito desenvolveu um
autoconhecimento especializado e profissionalizado, que se define como científico
(ciência jurídica), dando assim origem à ideologia disciplinar a que chamo
cientificismo jurídico. (...) Mas essa interligação mútua do cientificismo jurídico
com o estatismo jurídico revela também até que ponto o isomorfismo
epistemológico com a ciência moderna é limitado pela sua eficácia pragmática. O
saber jurídico tornou-se científico para maximizar a operacionalidade do direito
enquanto instrumento não científico de controlo social e de transformação social.
(...)
Enquanto na ciência o saber iria gerar poder, no direito, do século XIX em diante, o
poder (estatal) iria gerar saber (profissional). Compreende-se, assim, que o
positivismo jurídico reclamasse para si uma capacidade operacional com o qual o
conhecimento da ordem e da transformação social não podia competir, pois esse
conhecimento teria ainda de ser desenvolvido pelas ciências sociais, que eram então
pouco mais que incipientes. Este desajustamento é, de facto, endémico na cultura
jurídica do Estado moderno. Do positivismo jurídico à autopoiese, o pressuposto
ideológico foi sempre o de que o direito devia desconhecer, por ser irrelevante, o
conhecimento social científico da sociedade e, partindo dessa ignorância, deveria
construir uma afirmação epistemológica própria (“direito puro”, “direito auto-
referencial”, “subjectividade epistémica do direito”).
Esta é a segunda razão pela qual as condições teóricas da transição paradigmática da
ciência moderna não vigoram da mesma forma no domínio do direito. Como as
pretensões epistemológicas do direito são derivadas e, no fundo, assentam num
défice de conhecimento científico sobre a sociedade, as condições teóricas do
conhecimento jurídico estão subordinadas às condições sociais do poder jurídico,
das quais, até certo ponto, têm de ser deduzidas. A autonomia, universalidade e
generalidade do direito assentam numa ligação a um determinado Estado concreto,
cujos interesses servem, independentemente de estes serem autónomos ou de classe,
gerais ou particulares. (SANTOS, 2009, p 165)
Se os tempos ora vividos são tempos de crise e de transição, o futuro que se
anuncia não é, por certo, previsível, mas sua as soluções que se busca construir para a crise já
podem prenunciar caminhos por onde podemos nos guiar. Muitas são as nuances da crise da
modernidade, enquanto paradigma considerado em sentido amplo. No plano do direito,
também diversas tem sido as críticas formuladas ao positivismo enquanto paradigma do
direito moderno e as soluções que se apresentam oscilam entre tentativas de rearranjos do
paradigma, buscando corrigir excessos e défices do positivismo, mas mantendo seus cânones,
— tal como as teorias principiológicas do direito — e propostas mais ousadas de negação do
positivismo-normativismo caracterizadores do direito moderno, que se fazem acompanhar da
denúncia do exclusivismo estatal do direito, de seu caráter excludente e da necessidade de
reconhecimento de outras formas de juridicidade e de abertura da construção do direito para
18
os povos, de forma a combater seu caráter elitista, burocrático e à serviço de minorias
governantes e privilegiadas. Para concluir este tópico, convém citar mais uma vez Boaventura
de Sousa Santos, que tem nos guiado até aqui, quando este analisa o tempo da transição
paradigmática:
O tempo da transição paradigmática é um tempo muito contestado, sobretudo por
englobar múltiplas temporalidades. Dado que os conflitos paradigmáticos (as
contradições internas) coexistem com os conflitos subparadigmáticos (os excessos e
os défices), a própria transição é, em si mesma, um fenómeno intrinsecamente
contestado. O horizonte temporal daqueles para quem apenas existem conflitos
subparadigmáticos é forçosamente mais estreito e curto do que o daqueles para
quem esses conflitos são manifestações visíveis de um conflito paradigmático
latente. Mesmo os que admitem a existência de uma transição paradigmática podem
não concordar quanto à identificação ou natureza do paradigma cessante, ou quanto
à duração e sentido da transição iminente. Acresce que as tendências seculares, que
são a temporalidade da transição, têm de ser reduzidas, enquanto representação
social, à duração do ciclo da vida humana, a fim de que as lutas paradigmáticas
sejam politicamente eficazes. Dado este condicionalismo, poderá ser necessário
conceptualizar essas lutas como lutas paradigmáticas (contradições internas), mas
conduzi-las como se fossem subparadigmáticas (excessos e défices). A luta
paradigmática é, portanto, uma utopia cuja eficácia pode residir nos recursos
intelectuais e políticos que fornece às lutas subparadigmáticas. A meu ver, isto
explica a opacidade e, simultaneamente, a turbulência e a vibratilidade, os equívocos
e as inesperadas convergências que caracterizam ab ovo a transição paradigmática
enquanto fenômeno cultural, societal e político. (SANTOS, 2009, p. 168)
A partir da análise acima desenvolvida, passaremos a tratar de uma das
experiências políticas que tem desafiado os modelos com os quais o direito vinha se
construindo até os tempos de hoje. Essas experiências se fazem acompanhar de perspectivas
teóricas igualmente desafiadoras e contestadoras do paradigma moderno do direito. A seguir,
buscaremos visualizar até que ponto o Novo Constitucionalismo Latino-Americano se mostra
com uma experiência típica da transição paradigmática e até que ponto sua construção
teórico-político-jurídica aponta para a correção de excessos e défices ou para emergência de
um novo paradigma no direito, enquanto novo conjunto de modelos partilhados pelos
profissionais do direito, no contexto de emergência de um novo paradigma societal, no
sentido amplo de superação da modernidade.
3. A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO PARADIGMA DO DIREITO MODERNO
3.1. O constitucionalismo a ser superado e sua crise
A crítica acima articulada nos conduz agora à possibilidade de mostrar a presença
dos elementos do paradigma moderno do direito no âmbito do direito constitucional. Ao
19
direito moderno corresponde um constitucionalismo moderno, entendido como movimento
teórico-doutrinário, como movimento político e como construção normativa.
O discurso majoritário presente nos manuais de direito constitucional dão conta de
que a essência do constitucionalismo e o problema fundamental do direito constitucional é
sempre limitar ao Príncipe, controlar o poder, parar permitir a liberdade política dos cidadãos
e o gozo de seus direitos fundamentais. Cidadãos esses que, enquanto povo, são a origem e
fundamento do poder do Estado. O Estado de Direito onde esse constitucionalismo opera é
assim salvaguardado para que nele operem, dentro de seus limites, a soberania popular e o
princípio democrático.
Para José Joaquim Gomes Canotilho, a acepção histórico-descritiva do
constitucionalismo moderno o designa como um movimento político, social e cultural que, a
partir de meados do século XVIII, questiona política, filosófica e juridicamente os esquemas
tradicionais de domínio político, sugerindo a invenção de uma nova forma de ordenação e
fundamentação do poder político. Ele opõe-se ao chamado constitucionalismo antigo,
entendido como um conjunto de princípios escritos ou consuetudinários que sustentavam
direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitavam seu poder
(CANOTILHO, 2003, p. 52).
Este mesmo autor nos conduz, entretanto, a um entendimento multidimensional
do constitucionalismo moderno e que nos será útil para a compreensão de seus elementos
constitutivos e modeladores de sua construção paradigmática. Mais do que um movimento de
direção única, a consolidação do paradigma do constitucionalismo moderno se deu por
movimentos nem sempre coordenados e nem sempre ausentes de contradições.
O movimento constitucional gerador da constituição em sentido moderno tem várias
raízes localizadas em horizontes temporais diacrónicos e em espaços históricos
geográficos e culturais diferenciados. Em termos rigorosos, não há um
constitucionalismo mas vários constitucionalismos (o constitucionalismo inglês, o
constitucionalismo americano, o constitucionalismo francês). Será preferível dizer
que existem diversos movimentos constitucionais com corações nacionais mas
também com alguns momentos de aproximação entre si, fornecendo uma complexa
tessitura histórico-cultural. E dizemos ser mais rigoroso falar de vários movimentos
constitucionais do que de vários constitucionalismos porque isso permite recortar
desde já uma noção básica de constitucionalismo. Constitucionalismo é a teoria (ou
ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos
direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma
comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica
específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de
constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma
teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do
liberalismo. (CANOTILHO, 2003, p. 51)
20
Para este autor, portanto, os temas centrais do constitucionalismo são a “fundação
e legitimação do poder político” e a “constitucionalização das liberdades”, sendo que a
captação de seu sentido comporta, ao menos, três modelos de compreensão: o modelo
historicista, o modelo individualista e o modelo estadualista, cada qual correspondendo à
contribuição, respectivamente, dos constitucionalismos inglês, francês e estadunidense, para a
consolidação do paradigma constitucional de que se trata e que hoje é submetido à crítica. A
contribuição do modelo historicista do constitucionalismo inglês — cujos documentos
fundamentais são a Magna Charta (1215), a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Act
(1679) e o Bill of Rights (1689) — centra-se: na garantia de direitos adquiridos, especialmente
do “binômio subjetivo” liberty and property, na qual a liberdade é entendida com liberdade
subjetiva e pessoal de todos os ingleses e como segurança da pessoa e dos bens de que se é
proprietário; na garantia da liberdade e da segurança por meio de um processo justo regulado
por lei (due process of law), no qual estão estabelecidas as regras de privação da liberdade e
da propriedade; na sedimentação do direito comum de todos os ingleses (common law) pela
interpretação das leis do país pelos juízes; na invenção das categorias políticas de
representação e soberania parlamentar, com estatuto constitucional, especialmente após a
Revolução Gloriosa (1688-89), necessárias à estruturação de um governo moderado, sendo
que a noção de soberania parlamentar é o fundamento da ideia de que o poder supremo
deveria expressar-se na forma da lei do parlamento, o que está na gênese da rule of law,
princípio básico do constitucionalismo moderno. Por sua vez, o modelo individualista, do
constitucionalismo revolucionário francês, haurido num contexto de rompimento com o
Ancien Régime, rompimento não observável no constitucionalismo inglês que mantinha
privilégios estamentais típicos do medievo, edifica uma ordem fundada em direitos
individuais, direitos de homens naturalmente livres e iguais em direitos, que legitimam e
fundam o poder político, o inventam e reinventam, dando a si próprios uma lei fundamental,
de uma ordem por eles querida, conformada por acordo entre eles, ou seja, um contrato social
assente nas vontades individuais e documentado em uma constituição escrita que garanta
direitos e conforme o poder político estabelecido, juntamente com a constituição, por um
“poder constituinte” — originário, autônomo e independente — pertencente à Nação e criador
da lei superior, ou seja, a constituição. Por fim, o modelo estadualista do constitucionalismo
estadunidense nos legou a possibilidade de limitação normativa do governo e do parlamento
por meio de uma lei escrita superior que condensa os princípios fundamentais da comunidade
e os direitos dos particulares, elaborada através de tomadas de decisão pelo povo, em raros
“momentos constitucionais” e sob condições especiais, isto é, no exercício do poder
21
constituinte, — porque as decisões frequentes são atribuídas ao governo e não ao povo
(democracia dualista) — e que o assegure contra uma possível tirania da maioria, limitando o
domínio político e tornando nulas quaisquer leis inferiores infringentes dos preceitos
constitucionais, de forma a elevar o poder judicial ao status de defensor da constituição e
guardião dos direitos e liberdades, de forma a permitir que os juízes, tão pouco confiáveis aos
franceses, operem a fiscalização de constitucionalidade e se coloquem entre o povo e o
legislador (CANOTILHO, 2003, p. 55-60).
Os argumentos de Canotilho somados aos que a seguir serão articulados, seguindo
o caminho crítico anteriormente iniciado, colaboram para o reforço da tese de que os
princípios do Estado e do mercado submeteram o princípio da comunidade. Nesse sentido,
Ricardo Sanín Restrepo defende que o constitucionalismo moderno, que ele denomina de
liberal contemporâneo, aniquilou a democracia, uma vez que o direito nega suas origens
políticas e, por consequência, nega o povo como poder constituinte. O direito, tornado técnica
com pretensões científicas excludentes e especializadas, se constitui em um megatexto
jurídico que sequestra o “demos” da democracia e o normatiza, de forma que o objeto (norma
fundamental) deixa de ser criado pelo sujeito (povo). Assim, a norma passa a definir o sujeito
e o poder constituinte se dilui atrás da norma fundamental, que repele a democracia como sua
condição de existência (SANÍN RESTREPO, 2009, p. 25-26).
À estatização do direito corresponde a cooptação da democracia pelo Estado, a
separação entre constituição e povo e a redução da constituição política a uma mera norma
formal, com a consequente apropriação do lugar do poder constituinte pelo poder constituído
(juiz constitucional), implicando na usurpação do lugar de enunciação da linguagem política.
Nesse contexto, os juristas protagonizaram uma marcha frenética rumo à sofisticação e
complicação dos conteúdos constitucionais, que foram tornados um material completamente
desligado da experiência democrática. Os juristas se tornaram pontífices, donos das chaves
dos textos e bloquearam o conteúdo da constituição, de forma a obrigar o povo a ter que dela
se reaproximar por outras vias (SANÍN RESTREPO, 2009, p. 27).
Nesse processo, o direito para lograr cumprir com sua pretensão de
sistematicidade, completude e coerência se converteu no lugar do absoluto, no lugar onde
nasce a ordem simbólica que cria as fantasias que vivemos como realidade, desde a fantasia
de uma sociedade transparente até a do sujeito de direito autónomo e universal dos direitos
humanos. Essa aparição totalitária do direito impediu que existissem sujeitos, política ou
linguagem fora do direito (SANÍN RESTREPO, 2009, p.28).
22
As constituições oriundas desse constitucionalismo somente cumpriram os
objetivos determinados pelas elites: a organização do poder do Estado e a manutenção de
elementos básicos de um sistema democrático formal. O controle do poder dos representantes
do povo, portanto representantes da soberania popular, ser converteu em controle da própria
soberania popular, transformando em conteúdo vazio qualquer discurso no sentido de dizer
que o poder emana do povo. A essência do constitucionalismo é controlar o poder de rebelião
e criação normativa do povo por meio da política, mantendo o direito em sua clausura técnica
e a serviço da burocracia e do mercado. O poder constituinte, assim, foi esvaziado de seu
conteúdo político mais radical. Seu fundamento deixou de ser a potência do povo para se
reduzir a mero elemento de um aparato lógico formal de legitimação de processos
constituintes realizados sem a efetiva participação popular e para afastar do controle das
funções do Estado moderno essa mesma participação popular. Além dos procedimentos, em
termos de conteúdo, esse constitucionalismo se baseou na defesa dos direitos individuais,
desenvolvidos em torno da liberdade e da propriedade, cuja realização plena não se pode
observar se não em relação a elites dirigentes e detentoras do poder econômico. Ainda que a
plasticidade do direito moderno tenha suportado a emergência do que se denominou
constitucionalismo social, os direitos humanos de segunda ou terceira dimensão (direitos
sociais, ambientais, etc.) ainda tem seu eixo lógico e ideológico baseado e/ou subordinado aos
direitos de primeira dimensão (direito individuais), uma vez que o fundamento do direito
continua o mesmo desde a consolidação do direito moderno, o que acima melhor se
desenvolveu.
Não obstante, ainda na Europa, nas últimas décadas do século XX, uma reação
garantista dos conteúdos que o constitucionalismo social exigiu para a constituição, um difuso
movimento denominado neoconstitucionalismo, insistiu na diferença entre o conceito formal e
material de Estado constitucional, ao defender que este não é apenas o que conta com um
texto que se autodenomina constituição, mas sim o que conta com uma constituição fruto da
legitimidade democrática e dotada de instrumentos garantidores da limitação do poder e da
efetividade dos direitos contemplados no texto constitucional. De acordo com esta concepção,
o Estado constitucional é um conceito em constante construção e que deve lutar para efetivar
seus dois elementos fundamentais: legitimidade democrática e normatividade. A constituição
é, então, a juridificação das decisões políticas fundamentais adotadas pela soberania popular,
é o elemento de enlace entre política e direito e o mecanismo de legitimação democrática
deste. Não basta uma constituição, se o ordenamento jurídico não está “impregnado” de
normas constitucionais (em sentido material). Assim, propõe-se sete condições de
23
constitucionalização efetiva do sistema jurídico: a rigidez constitucional, a garantia
jurisdicional da constituição, sua força vinculante, a sobreinterpretação da constituição, a
aplicação direta das normas constitucionais, a interpretação das leis conforme a constituição, e
a influência da constituição sobre as relações políticas (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ
DALMAU, 2010, p.15-16). Mas tal posição, embora acuse os limites do constitucionalismo
moderno e seu déficit democrático, não logrou influência decisiva no contexto histórico e
social onde foi desenvolvida. Para Roberto Viciano Pastor e Rubén Martínez Dalmau, foi na
América Latina, a partir da década de 1990, que ditas teorias garantistas foram assumidas por
um novo constitucionalismo nascente e que assumiu uma radical aplicação da teoria
democrática da constituição, de forma a superar o conceito de constituição como limitadora
do poder constituído e se avançar na definição da constituição como fórmula democrática
onde o poder constituinte, a soberania popular, expressa sua vontade sobre a configuração e
limitação do Estado e da própria sociedade (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU,
2010, p.16).
Desta forma, pode-se afirmar que os conflitos gerados pela dinâmica da sociedade
e do direito modernos ensejaram levantes contestadores de sua lógica. Mais recentemente,
como já afirmado acima, na América Latina tem-se vivido movimentos de organização
política de forte conotação popular que logrou elaborar constituições com um perfil
diferenciado e que apontam para mudanças na forma e no conteúdo do direito que
conhecemos. As constituições surgidas desses movimentos serviram de documentos basilares
para o que se tem denominado Novo Constitucionalismo Latino-Americano, que, desde a
última década do século XX, está se desenvolvendo em diferentes lugares e tem se inspirado e
servido de inspiração para diferentes desenvolvimentos teóricos e diferentes práticas políticas,
todos apontando para um momento de transição paradigmática no direito moderno e no seu
constitucionalismo. A seguir, analisaremos alguns traços dessas mudanças e dessa transição.
3.2 O constitucionalismo moderno na América Latina
Não consideramos ser possível tratar do Novo Constitucionalismo Latino-
Americano sem ao menos tecer considerações sobre a maneira como se desenvolveu o
constitucionalismo na América Latina. A tão só delimitação geográfica e histórica do
fenômeno analisa aponta para o fato de que estamos a tratar, antes de tudo, de uma realidade
marcada pelo colonialismo e pela dependência. A independência formal das antigas colônias
de Portugal e Espanha no continente americano não significou sua emancipação cultural,
política, e econômica. Internamente, os novos países independentes não lograram modificar
24
sua estrutura social, econômica e política. Já estavam nelas internalizados os ideários do
capitalismo, do liberalismo e do positivismo tão criticados acima. O processo de dominação
cultural colonial repercutiu também no plano jusfilosófico e a fundamentação e concretização
do direito nacional dos países latino-americanos reproduziu, acriticamente, os modelos
trazidos da Europa, sem considerar que tais modelos estavam associados a contextos locais e a
interesses que não se aproximavam de nossa realidade. Operou-se um verdadeiro processo de
alienação em relação a esse direito importado, que não interessava senão às elites que se
locupletaram de seu caráter excludente e mistificador da realidade, de forma que essa
importação serviu aos propósitos de dominação das elites nacionais e de garantia de seus
negócios com as metrópoles de onde emanam as diretrizes do sistema capitalista em ascensão,
especialmente contra as comunidades originárias do continente, bem como contra a população
pobre de origem escrava ou imigrante.
Tem sido próprio na tradição latino-americana, seja na evolução teórica, seja na
institucionalização formal do Direito, que as constituições políticas consagrassem,
abstratamente, igualdade formal perante a lei, independência de poderes, soberania
popular, garantia liberal de direitos, cidadania culturalmente homogênea e a
condição idealizada de um “Estado de Direito” universal. Na prática, as instituições
jurídicas são marcadas por controle centralizado e burocrático do poder oficial;
formas de democracia excludente; sistema representativo clientelista; experiências
de participação elitista; e por ausências históricas das grandes massas campesinas e
populares. Certamente, os documentos legais e os textos constitucionais elaborados
na América Latina, em grande parte, têm sido a expressão da vontade e do interesse
de setores das elites hegemônicas, formadas e influenciadas pela cultura europeia ou
anglo-americana. Poucas vezes, na história da região, as constituições liberais e a
doutrina clássica do constitucionalismo político reproduziram, rigorosamente, as
necessidades de seus segmentos sociais majoritários, como as nações indígenas, as
populações afro-americanas, as massas de campesinos agrários e os múltiplos
movimentos urbanos. (WOLKMER, 2010, p. 147)
O constitucional moderno europeu não conseguiu, nessas sociedades, destituir os
privilégios das elites e nem mesmo universalizar os direitos por ele propalados, quantos
menos efetivar o princípio da soberania. Ao se aproximar do século XXI, esse processo
histórico culmina com a subordinação das mesmas ao novo caráter do capitalismo mundial,
isto é, ao neoliberalismo, que fortaleceu as mazelas sociais ao buscar, repetindo a implantação
do modelo na Europa e nos Estados Unidos da América, reduzir o caráter protetivo do estado,
revogar direitos sociais e impor medidas econômicas às economias dependentes para servir
aos interesses do capital transnacional sediados nas metrópoles desse sistema. Neste processo,
não se pode olvidar que o avanço das relações capitalistas na América Latina causou, ao lado
da destruição de culturas, uma fortíssima destruição ambiental, que continua em marcha.
25
Por sua vez, se consideramos que o constitucionalismo moderno se consolidou
com uma “teoria normativa da política”, essa teoria política hoje, especialmente em nosso
continente, se encontra extremamente distanciada da prática política. Nesse sentido,
Boaventura de Sousa Santos considera que esse distanciamento, e a ausência de claridade
conceitual que ele gera para quem pretende compreender a realidade latino-americana, se
deve a quatro fatores: em primeiro lugar, porque a teoria política foi desenvolvida no Norte
global — basicamente, na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos
—, onde, desde de meados do século XIX, se consolidou um marco teórico pretensamente
universal e aplicável a todas as sociedades e cujos conceitos temos dificuldades de aplicar em
nossas sociedades latino-americanas, em virtude de sua inadequação; em segundo lugar,
porque a teoria política desenvolveu teorias da transformação social tal como ela ocorreu no
Norte, restando muito distantes das práticas transformadoras em geral, porque, nos últimos
trinta anos, as grandes práticas transformadoras vem do Sul, acarretando que os grandes
teóricos (que sequer falam português, espanhol, ou, sequer, as várias línguas dos povos
originários) não se deem conta de toda a realidade transformadora das práticas e,
consequentemente, as invisibilizam ou marginalizam; o terceiro fator é que a teoria política é
monocultural, tem como marco histórico a cultura eurocêntrica que se adapta mal a contextos
onde essa cultural eurocêntrica tem que conviver com culturas e religiões de outro tipo, não
ocidentais, como as culturas indígenas; e, por fim, o quarto fator é que a teoria crítica não se
deu conta de um fenômeno que hoje é mais central, que é o fenômeno do colonialismo,
porque a teoria política e as ciências sociais acreditavam que a independências dos países da
América Latina tinha posto fim ao colonialismo sem reparar que, depois da independência, o
colonialismo continuou sobre outras formas, como a do colonialismo social ou colonialismo
interno, e não o consideraram um tema da antropologia ou da sociologia jurídica, tendo o
relegado a apenas um tema da história (SANTOS, 2007, p. 12-13).
Os conflitos daí surgidos e a organização de setores populares em torno de
partidos de esquerda lograram fortalecer propostas de um novo constitucionalismo, como
expressão de um novo direito que contivesse e se articulasse com um projeto político voltado
à solução dos “excessos e défices” da modernidade, a partir do conhecimento da realidade
social específica da América Latina, de forma a se concretizar um almejado direito
democrático, autêntico e com o objetivo de sanar a desigualdade e os problemas sociais e
ambientais sofridos pela população do continente.
26
4. O NOVO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO:
emergência de um novo paradigma em tempos de transição paradigmática
O movimento de construção de um novo constitucionalismo na América Latina,
como expressão de uma luta ampla de negação dos efeitos perversos do direito moderno no
continente, não caminhou em uma única direção e não se deu de uma vez. Ele ainda está em
desenvolvimento, experimentando diferentes soluções e sobre o qual incidem abordagens
diversas.
Antônio Carlos Wolkmer defende que vivemos a terceira fase de desenvolvimento
deste novo constitucionalismo na América Latina. A primeira fase teria tido por resultado as
constituições do Brasil (1988) e da Colômbia (1991), ambas com forte caráter socializante e
reconhecedor de direitos coletivos e plurais. O segundo ciclo, representado pela constituição
da Venezuela (1999), se caracteriza por um constitucionalismo participativo e pluralista. Por
fim, o terceiro ciclo desse novo constitucionalismo é representado pelas recentes e
vanguardistas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), cujas novidades incluem
um constitucionalismo plurinacional comunitários, identificado com um paradigma não
universal e único de Estado de Direito, reconhecedor da coexistência de experiências de
sociedades interculturais (sejam indígenas, comunais, urbanas, e camponesas) e com práticas
de pluralismo igualitário jurisdicional, de forma a conviverem instâncias legais diversas em
igual hierarquia — jurisdição ordinária estatal e jurisdição indígena/camponesa. Essas
mudanças políticas e constitucionais e os processos sociais de luta que as engendram
materializam novos atores sociais, realidades plurais e práticas desafiadoras, reconhecem a
diversidade cultural e culturas minoritárias, com especial ênfase do protagonismo dos povos
indígenas. Daí que Wolkmer denomine esse constitucionalismo de Constitucionalismo
Pluralista Intercultural (andino ou indígena) (WOLKMER, 2010, p. 153-154).
Por certo, estas três constituições documentam os traços fundamentais da
construção do novo paradigma constitucional de que se trata. Contra os efeitos indesejados do
direito e de seu constitucionalismo moderno, elas contém um conjunto de características
comuns, especialmente alicerçados na ativação direta do poder constituinte e na necessidade
de romper com o sistema anterior. Essas características comuns, por certo, não escondem
diferenças próprias oriundas de histórias constitucionais diferentes, questões nacionais
próprias e típicas da experimentação necessária à gestação de um novo modelo.
27
Donde puede afirmarse con rotundidad que se produjo el primer proceso
constituyente conforme a los requisitos marcados por el nuevo constitucionalismo,
rescatando la originaria teoría democrática de la Constitución, fue en Venezuela en
1999. En dicho proceso no sólo se dieron los elementos centrales de los procesos
constituyentes ortodoxos – referéndum activador del proceso constituyente y
referéndum de aprobación del texto constitucional incluidos –, sino que se
vislumbraron con nitidez tanto la necesidad constituyente, manifestada en la crisis
social y política de finales de los ochenta y la década de los noventa, como la
exigencia de rigidez para la reforma del nuevo texto constitucional, que excluyó la
posibilidad de que pudiese ser reformada por el poder constituido.
Una nueva fase, sin duda, de los procesos constituyentes latinoamericanos,
caracterizada en particular por elementos formales de las constituciones, la
conforman los dos procesos que tuvieron lugar como continuación de aquéllos: el
ecuatoriano de 2007-2008, cuyo texto se caracteriza principalmente por la
innovación en el catálogo de derechos y por la definición del Estado como Estado
constitucional; y el boliviano de 2006-2009, el más difícil de todos los habidos, y
cuyo resultado, la Constitución boliviana de 2009, es seguramente uno de los
ejemplos más rotundos de transformación institucional que se ha experimentado en
los últimos tiempos, por cuanto avanza hacia el Estado plurinacional, la simbiosis
entre los valores poscoloniales y los indígenas, y crea el primer Tribunal
Constitucional elegido directamente por los ciudadanos.
Cada una de las experiencias constituyentes mencionadas se conforma en sí misma
como un modelo teórico-práctico diferente del resto de los procesos constituyentes.
Pero todas ellas cuentan con un denominador común que es necesario resaltar:
asumen la necesidad de legitimar la voluntad social de cambio mediante un
intachable proceso constituyente de hechura democrática y, aunque los resultados
son en buena medida desiguales, consiguen aprobar constituciones que apuntan, en
definitiva, hacia el Estado constitucional. Teoría y práctica se unen, por lo tanto, en
el nuevo constitucionalismo latinoamericano (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ
DALMAU, 2010, p.25-26)
Ao tratar dos fundamentos do Novo Constitucionalismo Democrático Latino-
Americano, Roberto Viciano Pastor e Rubén Martínez Dalmau, juristas espanhóis que
assessoram os três processos constituintes de que resultaram as cartas constitucionais
analisadas, defendem que a principal aposta deste Novo Constitucionalismo é a busca de
instrumentos que reponham à perdida relação entre soberania popular e governo, por meio do
estabelecimento de mecanismos de legitimidade e controle sobre o poder constituído mediante
novas formas de participação vinculantes, que, por sua vez, constitucionalizam vários
instrumentos de participação e as ânsias democráticas do continente. As formas diretas de
participação popular não questionam, todavia, a essência do sistema de democracia
representativa, amplamente presente em todas as constituições, e não substituem
definitivamente a representação, mas se configuram como complemento à legitimidade e um
avanço na democracia. A ação direta do povo limita a posição tradicional dos partidos
políticos, ainda que estes também se mantenham, numa lógica de absorção do Estado pelo
coletivo, de forma a reconstruir a unidade entre Estado e sociedade na decisão política, de
forma a se confundir a vontade de um e outro, por mecanismos distintos ao partidocrático
(VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p. 34-35). Um dos resultados deste
28
objetivo é a configuração de procedimento de reforma constitucional com a participação do
constituinte originário, na qual a iniciativa popular é uma das vias para invocar a modificação
constitucional, sendo que certos conteúdos são protegidos do poder de emenda ou reforma
parcial (estrutura fundamental da constituição, caráter e elementos constitutivos do Estado) e
os procedimento de aprovação demandam maioria qualificada e só se concluem mediante
referendo (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.63).
O segundo aspecto sobrelevado por estes autores é a profusa carta de direitos das
novas constituições, não mais limitadas a estabelecer direitos de forma genérica, sem se
preocupar com sua individualização ou coletivização. Estas constituições, pelo contrário,
identificam grupos débeis — tais como mulheres, crianças e jovens, deficientes, idosos — e
ampliam os beneficiários dos direitos. Na busca da máxima efetividade dos direitos sociais,
essas constituições recepcionam os documentos internacionais de direitos humanos, buscam
critérios mais favoráveis às pessoas, buscam ações diretas de amparo e reconfiguram a
nomenclatura tradicional do direito. Mais ainda, essas constituições promovem, em maior ou
menor medida e de acordo com a realidade social, a integração de setores historicamente
marginalizados, como os povos indígenas. Nesse sentido, a constituição boliviana foi a que
mais avançou, ao estabelecer um Estado plurinacional — contestando o primado do
constitucionalismo liberal de que Estado e nação se confundiam, e reconhecendo uma
multiplicidade de nações dentro do mesmo Estado —, materialmente consolidado por meio do
reconhecimento da autonomia indígena, do pluralismo jurídico, de um sistema de jurisdição
indígena sem relação de subordinação com a jurisdição ordinária, de um amplo catálogo de
direitos dos povos indígenas, da eleição de seus representantes através de formas próprias, e
da criação de um Tribunal Constitucional Plurinacional com a presença da jurisdição indígena
(VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.35-37).
Quanto a este novo e amplo rol de direitos, Carlos Manuel Villabella Armengol,
destaca a Constituição do Equador na qual se inscreve a noção de “buen vivir” (“Sumak
Kawsay”, em língua do povo Quíchua), na qual se integram várias facetas de materialização
da dignidade humana, dentre elas, o direito à alimentação, à agua, ao ambiente são, à
comunicação e informação, ao respeito à identidade cultural, à educação, ao habitat adequado
e à moradia segura, à saúde, ao trabalho, à seguridade social. A nova dogmática constitucional
que se projeta conta ainda com os seguintes aspectos: enunciação de que não há hierarquia
entre direitos, abrindo portas a uma hermenêutica de ponderação como via de solução ao
confronto de direitos; validade dos tratados e acordos internacionais ratificados cujo conteúdo
é a proteção de direitos; agregação às tradicionais formas de proibição de discriminação outas
29
como a orientação sexual, a identidade de gênero, origem, nacionalidade, filiação política ou
filosófica, a condição econômica e social, a deficiência, a gravidez, etc.; extensão legitimação
de direitos sociais, econômicos e culturais e consagração junto a estes da obrigação do Estado
com respeito aos mesmos; reconhecimento do direito à identidade cultural das minorias
étnicas e grupos originários; reconhecimentos a grupos em situação, como a infância, os
adultos maiores, os deficientes, os privados de liberdade, os usuários e consumidores, e as
pessoas com enfermidades catastróficas; legitimação de novas figuras-direitos, como o direito
à agua e o direito à alimentação; abordagem de temas em fase de moralidade crítica mas que
ainda não configuram direito, como o caso das doações ou transplantes de células, tecidos ou
órgãos; reconhecimento da titularidade de direitos a pessoas coletivas, como comunidades,
povos e nacionalidades; inclusão de novas facetas em direitos clássicos como o de liberdade,
em que se introduz a possibilidade de adotar decisões livres e voluntárias sobre a sexualidade
individual ou tomar decisões independentes e responsáveis sobre a vida reprodutiva;
reconhecimento da natureza como sujeito de proteção, a respeito que se identifica a
necessidade de fomentar sua proteção, restauração e reprodução, criando uma justiça
ambientalista (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.60).
Ainda com relação às inovações trazidas no âmbito do reconhecimento e garantia
de direitos, é de se destacar a perspectiva de refundação do Estado, ao reconhecer que o
mesmo não guarda mais a clássica identidade com uma nação, mas com as várias nações que
o compõe. Esse novo modelo de Estado, Estado plurinacional e intercultural, promove ampla
proteção das minorias étnicas e grupos originários, como já dito. Nesse sentido, empregam-se
amplamente frases e imagens em línguas originárias, especialmente nas constituições do
Equador e da Bolívia. Esse novo Estado reconhece a existência da cultura indígena,
depositária de saberes, conhecimentos, valores, espiritualidades e cosmovisões. Assim,
garante-se o reconhecimento do seu autogoverno, a admissão de uma justiça própria com
princípios igualmente próprios, a sua cultura e a legitimação de uma ampla quantidade de
direitos. Dentre esses direitos é de destacar o seguinte: direito à terra; ao uso e aproveitamento
exclusivo dos recursos naturais localizados em seu habitat; a manter e promover suas próprias
práticas econômicas e atividades tradicionais; a manter sua identidade étnica e cultural,
valores espiritualidade e lugares sagrados e de culto; direito a um modelo de saúde integral
que considere suas práticas e culturas; direito a que haja um sistema de educação intercultural
bilíngue; direito a contar com serviços de formação profissional e capacitação; a proteger
conhecimentos coletivos baseadas em suas ciências, tecnologias e saberes ancestrais; a
proteger seu patrimônio cultural e histórico; a impulsionar o uso das vestimentas, dos
30
símbolos e emblemas que os identifiquem; a serem consultados antes da adoção de uma
medida legislativa que poça afetar qualquer de seus direitos coletivos; a aplicar seu direito
próprio nos marcos do respeito ao direito nacional; a possuir suas próprias formas de
convivência e organização social; a governar-se por suas estruturas de representação; direito à
definição de seu projeto de vida de acordo com seus critérios culturais e princípios de
convivência harmônica com a natureza (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.58-60).
Este amplo conjunto de direitos se faz acompanhar de um conjunto de medidas
visando sua proteção, incluindo um extenso número de procedimentos judiciais
constitucionalmente previstos e manejáveis por via individual ou coletiva — ação de defesa,
ação de amparo constitucional, ação de proteção de privacidade, ação de
inconstitucionalidade, ação de cumprimento, ação popular, ação de proteção de privacidade,
ação de amparo à liberdade e seguridade, ação de proteção, habeas corpus, habeas data, ação
por incumprimento, ação extraordinária de proteção, defensoria do povo, reclamação por
omissão legislativa, etc. —. Além disso, aos direitos se acompanham deveres constitucionais
mais amplos que aqueles típicos do constitucionalismo, podendo-se destacar entre eles:
difundir a prática dos valores e princípios proclamados pela constituição; contribuir ao direito
à paz, denuncia e combater os atos de corrupção, resguardar o patrimônio natural, econômicos
e cultural, proteger os recursos naturais e contribuir para seu uso sustentável; não ser ociosos,
não mentir, ou roubar; exercer a profissão ou ofício com sujeição à ética; respeitar as
diferenças étnicas, nacionais, sociais, geracionais, de gênero e orientação e identidade sexual,
entre outros (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.61-62).
Além da dimensão política, é de suma relevância para o Novo Constitucionalismo
a normatividade constitucional, uma vez que as novas constituições negam o nominalismo
anterior e proclamam o caráter normativo e superior da constituição frente ao resto do
ordenamento jurídico, aprofundando o controle concentrado de constitucionalidade, ao lado
do já existente controle difuso. E para a questão suscitada acerca do controle democrático dos
tribunais constitucionais, a constituição boliviana criou a eleição direta de magistrados, bem
como, assim com a constituição equatoriana, buscou resguardar a interpretação do texto
buscando vinculá-la, por meio de critérios de interpretação expressamente previstos, à
vontade do constituinte, ou à melhor concretização dos direitos na constituição contidos
(VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p. 37). Nas constituições de que
tratamos verifica-se a presença de preâmbulos que as dotam de espiritualidade, ao conectar o
texto com a história do país e dotá-lo de conteúdo programático, em conjunto com capítulos
que estabelecem conceitos e princípios que se consideram bases do pacto constitucional.
31
Nesse sentido, é preciso dizer que essas constituições são dotadas de alta carga de normas-
princípios e preceitos teleológicos e axiológicos, enunciadores de valores superiores ou
princípios ético-morais, como unidade, inclusão, dignidade, liberdade, solidariedade,
reciprocidade, respeito, complementariedade, harmonia, transparência, equilíbrio, igualdade
de oportunidades, equidade social e de gênero na participação, responsabilidade, justiça
social, redistribuição equitativa dos produtos e bens sociais, democracia, responsabilidade
social, premência dos direitos humanos, pluralismo político (VILLABELLA ARMENGOL,
2010, p.58).
Por fim, estas constituições contam com amplos capítulos de conteúdo
econômico, pois visam superar as desigualdades econômicas e sociais e promover
constitucionalmente o novo papel do Estado na economia. Vários modelos econômicos são
incorporados, desde a livre iniciativa e a justiça redistributiva até a proteção da economia
comunitária, com o elemento comum da presença do Estado, cuja participação se traduz em
aspectos tão relevantes como a decisão pública sobre os recursos naturais ou a regulação da
atividade financeira, na perspectiva de um desenvolvimento econômico alternativo. Além
disso, no plano internacional, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano estabelece um
compromisso com uma integração latino-americana, mais ampla que a puramente econômica,
e que considera a possibilidade real de integração dos povos e pretende compatibilizar a
necessidade de integração com um conceito recuperado de soberania (VICIANO PASTOR;
MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.37-38). Enfatiza-se a função social e ambiental com a qual
se delineia a propriedade privada e sua convivência com outros tipos de propriedade, como a
individual, a coletiva pública, a estatal, a comunitária, a associativa e a mista. Além disso, o
estado assume os deveres garantir o acesso à educação, à saúdo, ao trabalho e ao demais
direitos, assume a tarefa de construir uma sociedade justa e harmoniosa, garantir o bem-estar,
a segurança e igual dignidades das pessoas. Ao Estado também cabe reafirmar e consolidar a
unidade do país, preservar a diversidade plurinacional na diversidade, promover e garantir o
aproveitamento responsável e planificado dos recursos naturais, desenvolver o exercício
democrático da vontade popular, promover a prosperidade e bem-estar do povo, garantir e
defender a soberania nacional, planificar o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza,
promover o desenvolvimento sustentável e a redistribuição equitativa dos recursos, proteger o
patrimônio natural e cultura do país, garantir o direito a uma cultura de paz, a segurança
integral e a viver em uma sociedade democrática e livre de corrupção (VILLABELLA
ARMENGOL, 2010, p.59; 62).
32
Resguardadas por esses fundamentos, as constituições de que se trata buscam o
máximo de legitimidade para atender a necessidades reais da população e a um anseio de
ruptura com a ordem anterior e, diante desses objetivos, apresentam algumas características
formais que caracterizam o Novo Constitucionalismo: originalidade, amplitude, complexidade
e rigidez. Isso se deve ao seu conteúdo inovador, a extensão dessas constituições, a
capacidade de conjugar elementos tecnicamente complexos com linguagem acessível, e ao
fato de que se aposta na ativação do poder constituinte do povo ante qualquer mudança
constitucional.
A capacidade inovadora é essencial aos objetivos de transformação empunhados
pelo Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ante a inabilidade do velho
constitucionalismo para resolver problemas fundamentais da sociedade. Assim, o Novo
Constitucionalismo tem sido capaz de construir uma nova institucionalidade e determinadas
características que contam com a finalidade de promover a integração social, criar maior bem-
estar e estabelecer elementos de participação que legitimem o exercício do governo por parte
do poder constituído. Sem modelos prévios, sem transplantes ou enxertos constitucionais, se
aproveita o momento de atividade constituinte para repensar a singularidade dos problemas
vividos em cada contexto local. Donde também se denominar esse constitucionalismo de
“experimental” (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.28). Essas novas
constituições se fundamentam essencialmente em inúmeros princípios, implícitos e explícitos,
em detrimento das regras, que ocupam lugar limitado aos casos concretos em que sua
presença é necessária para articular a vontade constituinte. Esses princípios atuam
principalmente como critérios de interpretação e, em determinadas ocasiões, se faz referência
expressa a eles ao se determinar a vinculação dos tribunais com base no teor literal do texto.
Os princípios clássicos convivem com novas fórmulas, simbióticas, que devem ser
consideradas como verdadeiras inovações (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU,
2010, p.29).
As novas constituições são também extensas e complexas em seu conteúdo,
porque sua redação considera que o texto constitucional deve ser capaz de dar respostas
àquelas necessidades que o povo solicita ao mudar sua constituição, sem que o espaço ou a
busca de simplicidade se tornem obstáculos a esse intento. Sem serem breves, mas também
sem serem códigos, busca-se a permanência da vontade do constituinte, que buscar ser
resguarda para se evitar seu esquecimento ou seu abandono por parte dos poderes
constituídos, após o ingresso da Constituição em sua etapa de normalidade. A necessidade de
expressar claramente a vontade do poder constituinte pode significar uma maior quantidade
33
de disposições, cuja existência busca limitar os poderes constituídos — especialmente o
parlamento e o tribunal constitucional —, impedindo-os de desentranhar do texto
constitucional um sentido contrário ao que foi a vontade do constituinte. Desta forma, a
constituição venezuelana conta com trezentos e cinquenta artigos, equatoriana com
quatrocentos e quarenta e quatro e a boliviana com quatrocentos e onze artigos. A extensão se
faz acompanhar de complexidade institucional com vistas à superação de problemas concretos
suportados por diferentes povos. Mas a complexidade vem acompanhada de simplicidade
linguística, com vistas a popularizar o constitucionalismo e negar o constitucionalismo de
elites. Trata-se, portanto, de textos tecnicamente complexos e semanticamente simples, que se
fazem acompanhar de iniciativos de formação, acesso e explicação sobre o novo texto
constitucional para a população (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.30-
31).
Por fim, estas constituições eliminam o poder constituinte constituído, poder
constituinte derivado, ou poder de reforma, ao proibir que os poderes constituídos disponham
de capacidade de reformar a constituição, de forma a se buscar conservar a forte relação ente a
modificação da constituição e a soberania popular. Mas essa rigidez constitucional não busca
fazer com que a constituição perdure indefinidamente, mas sim que sua modificação se dê
exclusivamente pelo poder constituinte originário e desde que o texto final aprovado pela
assembleia constituinte seja referendado pelo povo. Assim, esse constitucionalismo é também
caracterizado com sendo de transição rumo a um modelo de Estado que ainda não está
plenamente incorporado às novas constituições, que ainda não lograram resolver todos os
problemas identificados e que, portanto, se encontram abertas a futuras modificações
(VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.32-34)
Sob essa orientação, as constituições da Venezuela, do Equador e da Bolívia
apresentaram ao direito moderno em crise, e ao seu direito constitucional, uma série de
novidades, com efeitos sobre todas as disciplinas do direito e que desafiam nosso modelo de
racionalidade jurídica. A proximidade deste Novo Constitucionalismo com o
Constitucionalismo Social e sua doutrina, o Neoconstitucionalismo, pode fazer parecer crer
que se trata de mera importação deste modelo em nosso continente e que não estaríamos a
tratar de uma mudança paradigmática em termos de direito e de direito constitucional, uma
vez que o modelo seria o mesmo já consolidado no pensamento europeu e testado nas
Constituições do Brasil (1988) e da Colômbia (1991). Esta proximidade revela um desafio ao
Novo Constitucionalismo, que é o de se colocar entre dois caminhos: o da manutenção do
paradigma do direito e do constitucionalismo moderno, acrescidos de mecanismos de
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  • 1. NOVO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO- AMERICANO: PARADIGMA JURÍDICO EMERGENTE EM TEMPOS DE CRISE PARADIGMÁTICA Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega1 Vitor Sousa Freitas2 Resumo: Esse trabalho, elaborado no contexto da discussão sobre a crise de paradigmas vivida nos tempos presentes, busca responder à pergunta pertinente à caracterização do Novo Constitucionalismo Democrático Latino-americano como um novo paradigma jurídico, ou sua localização dentro de um plano mais amplo de crise paradigmática. Para tanto, vale-se das concepções de Thomas Kuhn e Boaventura de Sousa Santos para o um conceito de paradigma que conduza a uma resposta possível à questão proposta. Busca, a seguir, caracterizar o Novo Constitucionalismo Latino-americano de forma a se poder apontar os elementos que permitem afirmar ou negar uma mudança paradigmática em curso. Conclui, vislumbrando um contexto de crise paradigmática mais ampla, que o Novo Constitucionalismo Democrático Latino-americano desponta como paradigma jurídico emergente, uma vez que rompe com elementos constitutivos do direito moderno e de seu direito constitucional, com especial centralidade da questão da participação popular. Palavras-chave: Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Crise de paradigmas. Novo Constitucionalismo Latino-Americano. INTRODUÇÃO O presente artigo visa a analisar a questão da crise paradigmática no direito, especialmente no direito constitucional, num contexto de crises societais, epistemológicas, 1 Mestre e doutora em direito pela PUC SP. Professora titular na UFG. 2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Cursa Especialização em Direito Constitucional e Mestrado em Direito Agrário também na UFG. Advogado.
  • 2. 2 enfim, crises paradigmáticas em diversos campos, todas como indício de uma crise paradigmática de maior âmbito, centrada na derrocada do que se denomina modernidade. Nesse contexto, o presente trabalho pretende responder ao questionamento sobre o potencial dos movimentos de transformações constitucionais recentes na América Latina — ocorridos na Venezuela, em 1999, Equador em 2008 e Bolívia, em 2009 —, que vem sendo denominado de Novo Constitucionalismo Democrático Latino-americano, caracterizam, no campo jurídico, a ascensão de um novo paradigma, tendo em vista a propalada crise do direito moderno e, consequentemente, do direito constitucional a ele correspondente. Para tanto, parte-se dos estudos de Thomas Kuhn, físico e filósofo da ciência, que cunhou a atual concepção predominante de paradigma nas ciências, de modo a esclarecer de que modo operam os paradigmas e como se configura uma crise de paradigmas. Além disso, considerando-se a paulatina recepção desse conceito no âmbito das ciências sociais e do direito, busca-se em Boaventura de Sousa Santos uma discussão do direito sob o ponto de vista paradigmático que aponte para a atual crise dos modelos de juridicidade que sustentaram a concepção atual e declinante de direito. A partir dessa discussão, perquire-se em autores que tem se debruçado sobre o tema no âmbito do direito constitucional, em especial aqueles que tem estudado o Novo Constitucionalismo Democrático Latino-americano, para descrever as características fundamentais do direito constitucional vigente e do direito constitucional ascendente a partir das novas constituições acima mencionadas, de forma a podermos, considerados os elementos da discussão sobre paradigmas trazida pelos autores acima mencionados, analisar em que medida esse novo movimento constitucional caracteriza uma mudança paradigmática no direito, tendo em vista uma crise paradigmática societal mais ampla. Parte-se da hipótese de que há uma ampla crise civilizacional, filosófica, científica em curso e que, nesse contexto, essa crise se irradia para campos sociais específicos. Não se trataráccc dessa crise paradigmática geral, senão a mencionando, por meio dos autores citados. O foco do trabalho se dá na hipótese de existência de uma crise no campo jurídico e da ascensão de um novo modelo no continente latino-americano. 1. PONTO DE PARTIDA: A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE THOMAS KUHN, OS PARADIGMAS E SUAS CRISES A filosofia e a história das ciências deve ao físico estadunidense Thomas Kuhn (1922-1996) um pensamento crítico do desenvolvimento científico que, desde a publicação, em 1962, da obra “The Structure of Scientific Revolutions”, estabelece a centralidade do
  • 3. 3 conceito de paradigma na explicação do funcionamento do labor científico, cujo conteúdo, ao revelar a influências de fatores socioculturais, ocultados pelo positivismo, no estabelecimento de modelos comumente utilizados pelos cientistas, bem como a importância de fatores externos na geração de crises agudas nas teorias dominantes, passou a servir de referência não só para o estudo das chamadas hard sciences, cuja atribuída exatidão e neutralidade também são colocadas em jogo, mas também para as denominadas ciências humanas, cujo protagonismo é realçado na obra de Kuhn, e cujo desenvolvimento também passou a ser objeto de estudos referenciados na proposta desse autor. Dessa forma, passam-se a ter exemplos de estudos dessa natureza na filosofia, na sociologia e no direito. Para os fins do estudo que ora se apresenta, cabe mencionar dois exemplos dessa assimilação teórica no campo de estudos jurídicos, quais sejam as obras do português Boaventura de Sousa Santos, especialmente na sociologia jurídica, e do norte- americano Bruce Ackerman, no âmbito do direito constitucional. O diálogo desses autores com Kuhn irá nos ajudar a compreender de que forma o Novo Constitucionalismo Latino- americano se insere no contexto de uma apontada crise paradigmática de âmbito geral e como ele próprio se apresenta como uma proposta paradigmática emergente no âmbito do direito constitucional e seu caminhar histórico. Esse dualismo na concepção de paradigma será buscado em Kuhn, de cuja obra foram selecionados pontos que iluminaram o caminho que se pretende percorrer a seguir. Thomas Kuhn inicia sua obra apontando que, ao contrário do que se poderia pensar, e ao contrário de como as próprias ciências se apresentam, elas não evoluem cumulativamente ou por meio de descobertas individuais, como se por meio de um processo gradativo, de adição e acumulação de itens, isoladamente ou em combinação, a um estoque crescente que constitui o conhecimento e a técnica científicos (KUHN, 1998, p.20). Pelo contrário, os primeiros estágios de desenvolvimento da maioria das ciências se caracterizam pela contínua competição entre diversas concepções de natureza distintas e cada uma delas parcialmente derivada e todas apenas aproximadamente compatíveis com os ditames da observação e do método científico. O que diferencia essas escolas é a incomensurabilidade de suas maneiras de ver o mundo e nele praticar a ciência. Assim, se a observação e a experiência restringem a extensão das crenças admissíveis, elas não podem determinar um conjunto específico dessas crenças. Elementos arbitrários são ingredientes formadores das crenças de uma comunidade científica numa determinada época e esta não pode praticar seu ofício sem um conjunto dado de crenças recebidas e com as quais o grupo está realmente comprometido num dado momento (KUHN, 1998, p. 23). Dessa forma,
  • 4. 4 A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade científica pense ter adquirido respostas seguras para perguntas como: quais são as entidades fundamentais que compõem o universo? como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? que questões podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? (KUHN, 1998, p. 23) Dessa forma, “a ciência normal”, atividade na qual a maioria dos cientistas emprega inevitavelmente quase todo seu tempo, e para o qual são preparados por meio de um rígido e rigoroso processo educativo, se baseia no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo e o sucesso do empreendimento científico depende da disposição da comunidade para defender esse pressuposto — com custos consideráveis se necessário — de forma a tentar vigorosa e devotadamente forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos por essa educação profissional (KUHN, 1998, p.24). Por “ciência normal”, portanto, deve-se entender “a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas(...) reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior” (KUHN, 1998, p.29). Ela se baseia em alguns trabalhos que servem para definir implicitamente os problemas e métodos considerados legítimos para certo campo de pesquisa e que deverão ser utilizados por gerações posteriores de praticantes de uma ciência. Estes trabalhos são fundamentais porque suas realizações foram suficientemente sem precedentes e abertas, de forma a atrair um grupo duradouro de partidários e deixar todos os tipos de problema para serem resolvidos pelo grupo de praticantes da ciência (KUHN, 1998, p. 30). Essas realizações são denominadas por Kuhn de “paradigmas”, ou seja, exemplos aceitos na prática científica (leis, teorias, instrumentação, aplicação) que proporcionam modelos dos quais brotam as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica. Esses paradigmas, estreitamente vinculados à ciência normal, são universalmente reconhecidos durante algum tempo, fornecendo problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência, que servem de referência de partida para os mesmos (KUHN, 1998, p.13; p.30). Aqueles cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica, sendo que este comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, para a gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa. A aquisição de um paradigma, portanto, e o tipo de pesquisa que ele permite, a que Kuhn denomina de esotérica em virtude
  • 5. 5 do grau de especialização que a torna incompreensível para os não iniciados em determinado campo de pesquisa, é um sinal de maturidade no desenvolvimento de um campo científico dado (KUHN, 1998, p.30-31). Estabelecido o paradigma, e, portanto, superada a fase pré-paradigmática na qual competiam diferentes teorias, a ciência normal consistirá em operações de limpeza e estará dirigida para a articulação dos fenômenos e teorias fornecidos pelo paradigma, sem necessariamente ter de explicar todos os fatos com os quais se confronta, de forma a concentrar-se numa faixa de problemas estudados com profundidade e detalhamento. Ao mesmo tempo em que isso limita visão do cientista, é essa restrição que permite aos cientistas desenvolverem as ciências (KUHN, 1998, p. 44-45). A ciência normal, nesse sentido, foca-se em três classes de problemas: determinação do fato significativo; harmonização dos fatos com a teoria, e articulação da teoria (KUHN, 1998, p. 55). Esse processo faz com que a ciência normal tenha reduzido interesse em produzir grandes novidades, seja no domínio dos conceitos ou dos fenômenos (KUHN, 1998, p. 57). Embora trabalhe com um conjunto coerente de pressupostos, a maneira de obter resultados que melhor articulem a ciência normal é o que desafia o cientista. Este trabalha como um “solucionador de quebra-cabeças”. Ele sabe que o paradigma oferece solução, mas as formas de atingir tal solução são variadas. Há um emaranhado complexo de conceitos, instrumentos e cálculos a serem mobilizados para tanto. Assim, a ciência normal testa a habilidade e engenhosidade dos cientistas em resolver quebra-cabeças, oferecendo as peças e regras mínimas para tanto (KUHN, 1998, p. 59-66). Os paradigmas, dessa maneira, tem prioridade sobre regras e métodos detalhados, deles até mesmo prescindindo para se afirmarem. A ciência normal não necessita de um conjunto complexo de regras. Ela precisa de um paradigma que dê unidade a conceitos, leis e teorias. O que orienta a pesquisa é o paradigma e não um conjunto de métodos, regras, padrões a serem seguidos (KUHN, 1998, p. 68-76). Ao fim desse percurso, pode-se afirmar, e o próprio autor o reconhece, haver, no mínimo, dois sentidos para “paradigma”. O primeiro é um sentido sociológico, que o define como uma constelação de crenças, valores, técnicas, etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada, e que, por via de consequência, faz-se reconhecer que uma comunidade científica consiste em pessoas que partilham um paradigma. O segundo, que denominaremos histórico, diz respeito a um tipo de elemento dessa constelação de crenças, ou seja, as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da
  • 6. 6 ciência normal, ou seja, realizações passadas dotadas de natureza exemplar (KUHN, 1998, p. 218-219). Prosseguindo em sua construção, Kuhn aponta que no decorrer da existência da ciência normal determinados fenômenos não são claramente explicados pelos paradigmas vigentes. São anomalias. Até que sejam ajustadas teorias que assimilem e expliquem as anomalias, elas são acientíficas. Nota-se que elas demandam ajustes no paradigma e quebram as expectativas por ele oferecidas. Ajustam-se também procedimentos, categorias, conceitos. Entretanto, as anomalias geram a abertura do paradigma para novas descobertas (KUHN, 1998, p. 77-92). Entretanto, há anomalias persistentes, que não encontram solução num determinado paradigma, demandando novas teorias, cuja emergência é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, e exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. “Essa insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras” (KUHN, 1998, p. 93-95). Entretanto, ressalva o autor que “a produção de novos instrumentos é uma extravagância reservada para as ocasiões que o exigem” e que “o significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos” (KUHN, 1998, p. 105). A resposta às crises deve considerar, no entanto, que uma teoria científica só é considerada inválida quando há outra a substitui-lac. O fracasso de um paradigma se dá na sua comparação com outro paradigma e na comparação de ambos com a natureza (KUHN, 1998, p. 108). A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma não é um processo cumulativo obtido pela articulação do velho paradigma. É a “reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações”. Ao se completar a transição, “os cientistas terão modificado a sua concepção da área de estudos, de seus métodos, e de seus objetivos” (KUHN, 1998, p. 116). “A transição para um novo paradigma é uma revolução científica” (KUHN, 1998, p. 122). Revoluções científicas, portanto, são episódios de desenvolvimento não- cumulativo nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo e incompatível com o anterior. Tal como nas revoluções políticas, as revoluções científicas surgem de um sentimento crescente de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente e esse sentimento de funcionamento defeituoso é um pré-requisito
  • 7. 7 para a revolução (KUHN, 1998, p. 125-126). Dessa forma, quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo, porque os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. Durante as revoluções, os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidos (...) as mudanças de paradigma realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu único acesso a esse mundo dá-se através do que vêem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente. (KUHN, 1998, p. 145- 146). Não obstante, as revoluções são quase invisíveis. A ciência normal tende a ver a atividade científica como um processo linear de evolução, que agrega as contribuições anteriores, sem enxergar as novas teorias como revoluções científicas, mas como melhoria das antigas teorias. Mas para fazer isso, essas antigas teorias são distorcidas, para que se adéqüem aos padrões da ciência normal atual. Entretanto, como já dito, a atividade científica não é linear. Ela se desenvolve de forma não-cumulativa. Desenvolve-se por rupturas (KUHN, 1998, p. 173-181). A revolução ocorre após uma disputa entre paradigmas, apesar de os cientistas pertencentes a paradigmas diversos realizarem entre si um debate entre surdos. Mesmo que tentem processos de convencimento recíproco, tal tentativa geralmente é frustrada. O convencimento em torno de um paradigma pode envolver argumentos de qualidade, de clareza, etc. Mas em geral a adesão a um paradigma novo se dá pela fé, pela crença de que ele solucionará as anomalias não resolvidas pelo paradigma antigo. Em geral, os velhos cientistas não cedem ao novo paradigma, tendo Max Planck, segundo Kuhn, chegado a defender que uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes e fazendo com que vejam a luz, mas triunfa porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela (KUHN, 1998, p. 183-191). Para Kuhn, como já mencionado, a ciência não progride linearmente. Só se pode falar em progresso no âmbito da ciência normal. A ciência evolui a partir de um início primitivo, mas não em direção a algo. A ciência não se desenvolve a partir de um objetivo estabelecido de antemão pela natureza, ou rumo a uma verdade. Daí ser contraditório falar em “evolução”, “desenvolvimento” e “progresso” na ciência (KUHN, 1998, p. 201-216). Além do que acima foi exposto, uma das constatações de Kuhn que será especialmente relevante nesse trabalho é a de que o que se denominou ciência é um fenômeno
  • 8. 8 europeu e cujo ponto de partida é possível de ser localizado na história. Para o autor, “a massa dos conhecimentos científicos existentes é um produto europeu, gerado nos últimos quatro séculos”, assim como “nenhuma outra civilização ou época manteve essas comunidades muito especiais [de cientistas] das quais provêm a produtividade científica” (KUHN, 1998, p. 210). A recepção da teoria de Thomas Kuhn no âmbito bastante amplo das denominadass ciências sociais enseja o desafio a este próprio autor, que as considera pré- paradigmáticas, em virtude da (quase) inexistência de consensos paradigmáticos. Nesse sentido, convém citar a discussão de Boaventura de Sousa Santos com o mencionado autor: Na teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn o atraso das ciências sociais é dado pelo carácter pré-paradigmático destas ciências, ao contrário das ciências naturais, essas sim, paradigmáticas. Enquanto, nas ciências naturais, o desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão por toda a comunidade científica, conjunto que Kuhn designa por paradigma, nas ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar verticalmente todo o conhecimento adquirido. O esforço e o desperdício que isso acarreta é simultaneamente causa e efeito do atraso das ciências sociais (SANTOS, 2009, p. 67). Não obstante, em defesa das ciências sociais, Ruth Sautu, critica o ponto de vista das ciências duras, para ponderar as especificidades da investigação social, e dando ênfase ao caráter comunitário do fazer científico: Com frequencia, algunas personas de las ciencias denominadas “duras” confundem la variedad de enfoques y estilos de investigación en ciencias sociales con falta de rigurosidad científica. Aunque existen textos escritos que nos categorizaríamos como investigación científica, creemos que esa diversidad se debe al hecho de que lo que se denomina ciencias sociales abarca muchas disciplinas, desde la economía y la sociología hasta la psicología social; desde los estudios macrosociales y culturales hasta la investigación del microcosmos del mundo cotidiano. Cada área disciplinaria es una unidad en sí misma, con sus teorías, sus estilos de hacer investigación y validarlos, con sus maneras de presentar el marco teórico y los objetivos. Dentro de las áreas disciplinarias existen sub-universos con sus propias reglas. Después de todo, teorías y metodologías son productos humanos; son los “miembros practicantes” de esos sub-universos los que los crean y modifican. Algunos círculos académicos son más influyentes, tienen más recursos, publican más. Sin embargo, cada investigador, cada grupo tiene su proprio margen de acción que es más amplio cuanto más reflexione críticamente sobre teorías y metodologías. (SAUTU, et. al, 2005, p. 23) Feita essa exposição, resta esclarecer em que medida ela será importante para o estudo proposto. Consideramos que a teoria de Kuhn enseja perguntas fundamentais para o estudo da cientificidade do direito, uma vez que essa questão ainda não foi totalmente esclarecida nessa área, tendo já mobilizado vários pensadores e muitos anos de trabalho e
  • 9. 9 discussão. Pensamos que para um estudo mais amplo, essa investigação poderia incluir um conjunto inicial de questões, acompanhando de perto a proposta kuhneana: se partirmos do pressuposto de que é possível afirmar haver uma ciência jurídica, como essa afirmativa é sustentada? Quem são seus formuladores? Quando e onde surgiu, ou qual o início primitivo do direito como ciência? Como foram formulados e quais os seus cânones? É possível afirmar haver um paradigma dominante no direito? Como se deu sua especialização? Quais suas categorias fundamentais? Como elas interagem entre si? Que questões podem ser legitimamente postas a respeito de tais categorias e que técnicas podem ser empregadas na busca de soluções? Como a ciência jurídica realização suas operações de limpeza? Como a ciência do direito tem estabelecido seus fatos significativos, como os harmoniza com as teorias existentes e de que forma tem sido articulada a teoria fundante? Podemos identificar no direito um conjunto de crenças e um conjunto de soluções modelares partilhadas? Podemos identificar em sua história anomalias e os meios utilizados para ajustar o paradigma em buscas das respostas a tais anomalias? Entretanto, ainda persiste um conjunto de anomalias para as quais o paradigma existente não dá solução e que demandam troca de instrumentos? Em que medida o paradigma dominante no direito deixou de funcionar adequadamente? Se elas persistem, temos uma teoria ou conjunto de teorias para substituir a teoria dominante existente? Este conjunto de perguntas enseja um trabalho de pesquisa a ser realizado com um tempo mais alargado e não é possível, para seguir o modelo proposto por Kuhn, de ser realizado sem considerar a existência de diferentes comunidades de pensadores que partilham diferentes pontos de partida teóricos sobre o que o direito é e como ele se desenvolve. Diante da dimensão do trabalho necessário para dar conta dos problemas propostos, o que se pretende apresentar a seguir é, partindo de estudos de alguns autores que vem se debruçando sobre o tema, numa perspectiva crítica da sociedade e do direito, mostrar um caminho possível para responder a algumas dessas questões. 2. UMA DISCUSSÃO PARADIGMÁTICA SOBRE O DIREITO: o paradigma moderno do direito e sua crise A discussão acima proposta encontra a justificação de sua importância na afirmação de que o direito do século XX desenvolve pretensões científicas já em desenvolvimento desde o século XIX. Boaventura de Sousa Santos chega mesmo a afirmar
  • 10. 10 que “O cientificismo e o estatismo são as principais características do direito moderno” (SANTOS, 2009, p. 141). Os tempos que vivemos podem ser objeto de variadas abordagens e aqui devemos confessar, para sermos coerentes, com qual comunidade compartilhamos os referenciais utilizados para a análise do paradigma vigente e dominante no direito. Como já dito acima, a tradição que sustenta esse texto busca se localizar no âmbito das abordagens críticas do direito e da sociedade, deitando raízes em caminhos traçados desde Marx, passando pelos pensadores da Escola de Frankfurt, pelo marxismo heterodoxo, e pelas escolas críticas no direito, na sociologia e na filosofia. Um dos pontos de partida das discussões empreendidas por tais pensadores é considerar que vivemos uma crise do paradigma moderno de sociedade. A modernidade, por sua vez, enquanto paradigma sociologicamente considerado calcado num conjunto de crenças e práticas, representa a ascensão do sujeito racional como centro do pensar, do homem enquanto centro do mundo, que deve se apropriar da natureza em nome do progresso, que utiliza suas certezas científico-matemáticas pra criar métodos exatos de apreensão do real, considerando possível explicá-lo com o rigor das hard sciences (matemática, física, química, mas essencialmente a primeira). A régua moderna produz igualmente um direito que se pretende universal, geral, abstrato, que contenha em si todos os conteúdos possíveis da vida concreta, se aplicando a todos os conflitos, exigindo dele controlar a realidade humana, seus conflitos, valendo-se da força estatal se preciso para garantir seu império. O positivismo jurídico, melhor expressão desse modo de pensar moderno, reflexo do Estado moderno, Estado de Direito, ainda busca se legitimar, mesmo admitindo que hoje se apresente com um pós-positivismo, adicionando às exatas regras os difusos princípios, mas todos direcionados à unidade, à afirmação da completude do sistema jurídico, à legitimação do poder que se impõe e de uma certa forma de ser no mundo que se pretende universal e que não admite a diferença. Para o mencionado autor Boaventura de Sousa Santos o paradigma da modernidade de que ora se trata está assentado em dois pilares fundamentais: o da regulação e o da emancipação, cada um deles constituído por três princípios ou lógicas. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, pelo princípio do mercado e pelo princípio da comunidade, formulados, fundamentalmente, e respectivamente por Hobbes, Locke e Adam Smith, e por Rousseau, e consistindo na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado, na obrigação política horizontal individualista e antagônica entre os parceiros do mercado e na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e entre associações. O pilar da emancipação, por sua vez, é constituído pelas três lógicas de
  • 11. 11 racionalidade definidas por Max Weber: racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura, racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e racionalidade moral-prática da ética e do direito (SANTOS, 2009, p. 50). O paradigma da modernidade, portanto, pretende um desenvolvimento harmonioso e recíproco do pilar da regulação e do pilar da emancipação, com a consequência de que esse desenvolvimento se traduza na completa racionalização da vida colectiva e individual. A dupla vinculação entre os dois pilares, e entre eles e a praxis social, vai garantir a harmonização de valores sociais potencialmente incompatíveis, tais como justiça e autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade. (SANTOS, 2009, p. 50-51). Entretanto, o desenvolvimento desses dois pilares se deu de forma desigual, resultando na submissão daquele da emancipação àquele da regulação, com a especial subordinação regulatória da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e a subordinação da racionalidade moral-prática da ética e do direito à racionalidade científica. Os critérios científicos de eficiência e eficácia se tornaram hegemônicos, promovidos pela rápida conversão da ciência em força produtiva, e colonizaram os critérios racionais de outras lógicas emancipatórias. A ciência moderna se converteu numa “instância moral suprema”, para além do bem e do mal, e a gestão científica da sociedade é haurido como o critério de valorização da micro-ética individual e do formalismo jurídico. A política, por sua vez, “se transformou num campo social de caráter provisório com soluções insatisfatórias para problemas que só poderiam ser convenientemente resolvidos se fossem convertidos em problemas científicos ou técnicos” (SANTOS, 2009, p. 51). Uma das características fundamentais da modernidade, portanto, é esta relação de cooperação e circulação de sentido entre a ciência e o direito, sob a égide da ciência. O direito é um alter ego da ciência e “a apresentação de afirmações normativas como afirmações científicas e de afirmações científicas como afirmações normativas é um facto endémico no paradigma da modernidade”. A lei enquanto norma é lei enquanto ciência e a ideia de criar uma ordem social assentada na ciência significa uma ordem social onde as determinações do direito sejam resultado das descobertas científicas sobre o comportamento social (SANTOS, 2009, p. 52-54). Do ponto de vista filosófico, a dominância do pilar da regulação por meio da ciência encontra sua fundamentação no positivismo, cujos cânones sustentam as bases da ciência e do direito modernos:
  • 12. 12 O positivismo é a consciência filosófica do conhecimento-regulação. É uma filosofia da ordem sobre o caos tanto na natureza como na sociedade. A ordem é a regularidade, lógica e empiricamente estabelecida através de um conhecimento sistemático. O conhecimento sistemático é o conhecimento das regularidades observadas. A regulação sistemática é o controle efetivo sobre a produção e reprodução das regularidades observadas. Forma, em conjunto, a ordem positivista eficaz, uma ordem baseada na certeza, na previsibilidade e no controlo. A ordem positivista tem, portanto, as duas faces de Janus: é, simultaneamente, uma regularidade observada e uma forma regularizada de produzir a regularidade, o que explica que exista na natureza e na sociedade. Graças à ordem positivista, a natureza pode tornar-se previsível e certa, de forma a poder ser controlada, enquanto a sociedade será controlada para que possa tornar-se previsível e certa. Isto explica a diferença, mas também a simbiose, entre as leis científicas e as leis positivas. A ciência moderna e o direito moderno são as duas faces do conhecimento-regulação. (SANTOS, 2009, p. 141) O maior sustentáculo teórico do positivismo no direito será a obra do jurista austríaco Hans Kelsen, que descreve o ordenamento jurídico como um sistema fechado de normas que se vinculam umas às outras a partir de vínculos de imputação, confinando o sistema jurídico num aparato meramente lógico. O conhecimento jurídico se torna, pois, dogmático, uma vez que seu ponto de partida indiscutível são os textos normativos emanados do Estado e sua preocupação fundamental é a explicação do direito posto, existente, buscando sua máxima eficácia, ou melhor aplicação, e justificando-o sem questioná-lo. Na visão de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, esse saber dogmático está bitolado por dois princípios: o da inegabilidade dos pontos de partida e o da proibição do non liquet, ou compulsoriedade de uma decisão, sendo que essa compulsoriedade confere ao saber dogmático a necessidade de criar condições de decidibilidade. Essa uniformização de sentido promovida pela dogmática tem a ver com um fator normativo de poder, o poder de violência simbólica. Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força. Assim, a dogmática do direito é um pensamento fechado à problematização de seus pressupostos. Suas premissas e conceitos básicos são tomados como pontos não problemáticos, a fim de cumprir sua função, qual seja criar condições para a ação. O saber jurídico perdeu seu caráter ético para se converte em um saber tecnológico e fechado para o entendimento da articulação do direito com o restante dos elementos componentes da realidade social humana, uma vez que seu objeto é autossuficiente e independente (FERRAZ JÚNIOR, 2007, passim). A racionalidade jurídica moderna foi igualmente subordinada pelo princípio do Estado, e o direito foi se tornando, ao mesmo tempo, estatal e científico. O Direito foi politizado enquanto direito estatal, contribuindo para a reconstrução científica do Estado e para a despolitização desse mesmo Estado, de forma a transformar a dominação política em
  • 13. 13 dominação técnico-jurídica. (SANTOS, 2009, p. 143). O direito agora exclusivamente estatal e nacional nega juridicidade a ordens jurídicas não estabelecidas dentro desses marcos. Concebido nestes moldes, a instrumentalidade técnica do direito estatal autónomo é virtualmente infinita no seu alcance. O que caracteriza a especificidade funcional do Estado moderno não é o número de funções que o Estado pode desempenhar, mas sim a forma de desempenho. O estado mínimo do constitucionalismo liberal não só contém, em si, as sementes do Estado-Providência benevolente do capitalismo civilizado, mas também as do Estado fascista e do Estado estalinista. Nenhuma destas formas de Estado pôde desprezar a positividade do direito como instrumento potencialmente inesgotável de dominação, por mais subvertida e caricaturada que fosse essa positividade nas duas últimas formas de Estado. Em suma, o cientificismo e o estatismo moldaram o direito de forma a convertê-lo numa utopia automática de regulação social, uma utopia isomórfica da utopia automática da tecnologia que a ciência moderna criara. Quer isto dizer que, embora a modernidade considerasse o direito um princípio secundário (e talvez provisório) de pacificação social relativamente à ciência, uma vez submetido ao Estado capitalista o direito acabou por se transformar num artefacto científico de primeira ordem. A partir daí, o utopismo automático da tecnologia desenvolveu-se em articulação estreita com o utopismo automático da engenharia jurídica e, na verdade, até hoje, estes dois processos passaram a apoiar-se mutuamente (SANTOS, 2009, p. 143-144). Ao lado do princípio do Estado, o direito moderno foi subordinado ao princípio do Mercado, de forma a ajustar os ideais éticos e as promessas políticas às necessidades regulatórias do capitalismo liberal. A soberania do povo transformou-se na soberania do Estado-nação dentro de um sistema inter-estatal; a vontade geral transformou-se na regra da maioria (obtida entre as elites governantes) e na raison d’etat; o direito separou-se dos princípios éticos e tornou-se um instrumento dócil da construção institucional e da regulação do mercado; a boa ordem transformou-se na ordem tout court. (...) O aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência moderna e do positivismo jurídico no direito e na dogmática jurídica podem considerar-se, em ambos os casos, construções ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao desenvolvimento capitalista, bem como imunizar a racionalidade contra a contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer ela fosse Deus, a religião ou a tradição, a metafísica ou a ética, ou ainda as utopias ou os ideais emancipatórios. No mesmo processo, as irracionalidades do capitalismo passam a poder coexistir e até a conviver com a racionalidade moderna, desde que se apresentem como regularidades (jurídicas ou científicas) empíricas. (SANTOS, 2009, p. 140-141) No mesmo sentido de crítica da vinculação do direito aos ditames do mercado, Alysson Mascaro afirma que: Afastando-se do caminho da filosofia originária — um caminho do ser e não do dever-ser, que se pergunta pela totalidade ética e não pelos fragmentos legalistas — a filosofia do direito moderna torna-se normativista e, além disso, individualista, por conta do voluntarismo subjetivista em que se baseia. Ao fazer tabula rasa da vida social e de suas carências, a modernidade inscreve na razão as divisas fundamentais
  • 14. 14 do futuro e da justiça. No entanto, a razão individualista, nos limites da intersubjetividade, alcança só os horizontes do próprio interesse burguês. (...) A razão burguesa é a antecipação miraculosa da inexorabilidade do capitalismo. (MASCARO, 2008, p.151) Desta forma, se às ciências sociais faltam elementos de consenso que possam afirmar um paradigma, no âmbito do direito tal consenso parece não faltar. O paradigma do direito moderno, na leitura acima realizada, ― e compartilhada por uma comunidade de estudiosos críticos do direito, que tem buscado aprofundar essa crítica, ainda que de forma minoritária ante à enormidade da comunidade de reprodutores, nem sempre conscientes, desse direito que se critica — se assenta em um conjunto de crenças partilhadas e que o conduzem à uma cientificidade com pretensões de regulação da sociedade, devidamente instrumentalizadas pelas ferramentas estatais disponíveis para oferecer a coerção necessária ao cumprimento dos ditames estabelecidos em documentos escritos, gerais e impessoais, que servem como ponto de partida para o labor da comunidade de especialistas autorizados a dizerem a verdade do direito. O saber jurídico se torna um direito esotérico, de conteúdo inacessível e especializado, e que portanto exclui o cotidiano do direito das comunidades, e seu conteúdo deixa de ter qualquer objetivo emancipatório, por estar a serviço de uma visão politicamente liberal e materialmente capitalista. Afastado de suas origens políticas, o direito se torna mera técnica. Entretanto, este paradigma jurídico está em crise; a modernidade está em crise. Este modelo, na cotidianidade, não se converteu nas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade prometidas pela modernidade e suas pretensões universalistas, racionais instrumentais, que só admite soluções a partir do próprio modelo. Essas pretensões não geraram um universo terreno igualitário, fraterno, e livre, mas sim a disseminação da miséria, a assimilação de todos ao universo capitalista, tornando o homem um cidadão que se afirma pelo consumo, deixando-se assim vítimas no meio do caminho. Culturas excêntricas caminham para o desaparecimento, em direção à vala comum das demais culturas já destruídas pela colonização europeia, e, dentro da própria Europa, pelo modo capitalista de vida. A ciência, antes tão exata, que muitas vezes precisa matar o objeto para dissecá-lo e conhecê-lo, armou a humanidade com todos os artefatos possíveis que podem levar à sua própria destruição, ao mesmo tempo em que descobrimos a insignificância humana no universo e a física quântica aponta que as ciências, longe da propalada certeza, trabalham sobre um terreno dominado por juízos de probabilidade, que não levam necessariamente a previsões certas, seguras e exatas.
  • 15. 15 Desta forma, nosso modo de vida, nossa forma de conceber, entender e explicar o mundo, nosso modelo de organização política e de resolução de conflitos apresentam sérios indícios de suas contradições e da urgência de sua desconstrução e substituição. Nesse sentido, Eduardo Bittar inventaria alguns elementos dessa crise, com especial foco na sua dimensão jurídica: Os tradicionais paradigmas que serviram bem ao Estado de direito do século XIX não se encaixam mais para formar a peça articulada de que necessita o Estado contemporâneo para a execução de políticas públicas efetivas. Assim, perdem significação: a universalidade da lei, pois os atores sociais possuem características peculiares não divisáveis, que o torna formalmente isento de qualquer contaminação de forças políticas, quando se sabe que toda legislação vem formulada na base de negociações políticas e partidárias; a idéia da contenção do arbítrio pela lei, fator de descrédito diante da ineficácia e da inefetividade das atitudes de combate à corrupção e às taxas elevadíssimas de impunidade; a regra de igualdade perante a lei, como garantia da indistinção e do deferimento dos mesmos direitos a sujeitos igualmente capazes e produtivos no mercado, quando se sabe que as oportunidades são maiores para uns e menores para outros; a idéia de que a codificação representaria uma obra científico-legislativa, obra-prima do saber jurídico, com disciplina única e sistemática das matérias por ele versadas, insuscetíveis de lacunas e de erronias, possibilitando a exegese harmônica do sistema, quando se sabe que os códigos possuem o mesmo potencial de dissincronia com as mudanças sociais que os demais textos normativos; a tripartição clara das competências das esferas e das instâncias do poder como forma de manter o equilíbrio do Estado, o que na prática resulta em dissintonia entre as políticas legislativas, as políticas judiciárias e as políticas administrativas e governamentais, criando Estados simultâneos orientados por valores desconexos; a idéia da democracia representativa rousseauniana, quando se sabe que a população vive à mercê dos usos e abusos da publicidade, no discurso e na manipulação políticas; a intocabilidade da soberania, como forma de garantia da esfera de atuação com exclusividade dos poderes legislativos, jurisdicionais e executivos em bases territoriais fixas e determinadas na ordem internacional, quando se sabe que a interface da internacionalização dos mercados e da interdependência econômica tornam inevitável o processo de integração; a garantia de direitos universais de primeira geração, como forma de expressar a proteção à pessoa humana, o que na prática ainda pouco se incorporou às realizações socioeconômicas; a garantia da existência da jurisdição como garantia de acesso a direito, quando se sabe que, em verdade, a justiça se diferencia para ricos e pobres, pelos modos como se pratica e pelas deficiências reais de acesso que possui. (BITTAR, 2009, p. 81-82) A crítica dos limites do direito posto se compreende num contexto de desconstrução das grandes narrações, dos projetos globais de humanidade modernos, do racionalismo instrumental, de nossa organização político-econômico-jurídica, de nossas tecnologias, etc. Nesse horizonte de incertezas, caminhos possíveis são apontados e nosso tempo exige o apontamento desses caminhos. A crise de um paradigma se faz acompanhar de um momento de transição paradigmática. E, seguindo novamente Boaventura de Sousa Santos, “Como todas as transições são simultaneamente semi-invisíveis e semicegas, é impossível nomear com exactidão a situação atual” (SANTOS, 2009, p. 49).
  • 16. 16 Defendo uma muito ampla concepção de transição paradigmática. A transição actual não é apenas (ou não tanto) uma transição entre modos de produção estreitamente definidos, mas entre formas de sociabilidade e no sentido mais lato, incluindo as dimensões económica, social, política e cultural. O entrelaçar do projecto sócio- cultural da modernidade com o desenvolvimento capitalista no século XIX conferiu ao capitalismo uma densidade social e cultural que ultrapassou largamente as relações económicas de produção. Esta facto foi de certo modo descurado por Marx e, por isso, a sua visão da transição paradigmática partilha com o liberalismo muito mais do que o que ele algumas vezes poderia admitir. São as seguintes as principais cumplicidades entre marxismo e liberalismo: a confiança no poder libertador da ciência moderna; o dualismo natureza/sociedade que subjaz à ciência moderna e as pretensões epistemológicas que aí assentam; a ideia de um processo evolutivo linear que há-de ter um fim (embora, para Marx, esse fim ainda estivesse para vir), seja ele a sociedade industrial (Spencer), o estado positivo (Comte) ou a solidariedade orgânica (Durkheim); a ideia de progresso, mesmo que descontínuo (através de revoluções); a crença num desenvolvimento tecnológico contínuo e num crescimento infindável; a concepção do capitalismo como fator civilizador progressista, por mais brutal que fosse a opressão colonial e a destruição da natureza. (...) Do ponto de vista da perspectiva ampla de transição que tenho vindo a defender, o período de transição paradigmática por que estamos a passar começou com o colapso epistemológico da ciência moderna e acabará por pôr em questão todas as convicções mencionadas acima. Daí que exija uma transformação civilizacional. Embora indiscutivelmente tributária do Marxismo, esta concepção de transição paradigmática considera que a transição marxista convencional é, afinal de contas, subparadigmática. Defendo, assim, que a discussão paradigmática do direito moderno, em conjunto com a da ciência moderna, irá esclarecer os termos e as direções possíveis da transição para um novo paradigma societal. (SANTOS, 2009, P. 168-169) Para esse autor, o défices e excessos da modernidade já se previam, mas os excessos foram considerados desvios fortuitos e os défices como deficiências temporárias, sendo que ambos poderiam ser resolvidos através de uma melhor utilização dos crescentes recursos materiais, intelectuais e institucionais da modernidade. O que Boaventura denomina de gestão reconstrutiva dos excessos e dos défices foi progressivamente confiada à ciência e, de forma subordinada, ao direito. Mas essa gestão reconstrutiva dos excessos e dos défices da modernidade necessitou da participação subordinada, mas central, do direito moderno. Embora a racionalidade moral-prática do direito tenha tido de submeter, para ser eficaz, à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, ou ser isomórfica dela, o direito protegeu, por meio de sua integração normativa e sua força coerciva, a gestão científica da sociedade contra eventuais oposições. Em outros termos, como já estudado anteriormente, segundo Boaventura de Sousa Santos, “a despolitização científica da vida social foi conseguida através da despolitização jurídica do conflito social e da revolta social” (SANTOS, 2009, p. 52-54). Mas se ele considera legítimo pensar que a crise do paradigma da ciência moderna acarretará a crise do paradigma do direito moderno, isto não significa, todavia, que as condições da transição paradigmática na ciência sejam ou as mesmas, ou tão visíveis, ou que
  • 17. 17 atuem da mesma forma que as da transição paradigmática no direito (SANTOS, 2009, p. 164- 165). Em primeiro lugar, porque mesmo que exista uma certa cumplicidade epistemológica e uma circulação de sentido entre a ciência e o direito moderno, resultantes da submissão da racionalidade moral-prática do direito e da ética à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, o isomorfismo assim produzido é de alcance limitado e de conteúdo epistemológico meramente derivado. Enquanto domínio social funcionalmente diferenciado, o direito desenvolveu um autoconhecimento especializado e profissionalizado, que se define como científico (ciência jurídica), dando assim origem à ideologia disciplinar a que chamo cientificismo jurídico. (...) Mas essa interligação mútua do cientificismo jurídico com o estatismo jurídico revela também até que ponto o isomorfismo epistemológico com a ciência moderna é limitado pela sua eficácia pragmática. O saber jurídico tornou-se científico para maximizar a operacionalidade do direito enquanto instrumento não científico de controlo social e de transformação social. (...) Enquanto na ciência o saber iria gerar poder, no direito, do século XIX em diante, o poder (estatal) iria gerar saber (profissional). Compreende-se, assim, que o positivismo jurídico reclamasse para si uma capacidade operacional com o qual o conhecimento da ordem e da transformação social não podia competir, pois esse conhecimento teria ainda de ser desenvolvido pelas ciências sociais, que eram então pouco mais que incipientes. Este desajustamento é, de facto, endémico na cultura jurídica do Estado moderno. Do positivismo jurídico à autopoiese, o pressuposto ideológico foi sempre o de que o direito devia desconhecer, por ser irrelevante, o conhecimento social científico da sociedade e, partindo dessa ignorância, deveria construir uma afirmação epistemológica própria (“direito puro”, “direito auto- referencial”, “subjectividade epistémica do direito”). Esta é a segunda razão pela qual as condições teóricas da transição paradigmática da ciência moderna não vigoram da mesma forma no domínio do direito. Como as pretensões epistemológicas do direito são derivadas e, no fundo, assentam num défice de conhecimento científico sobre a sociedade, as condições teóricas do conhecimento jurídico estão subordinadas às condições sociais do poder jurídico, das quais, até certo ponto, têm de ser deduzidas. A autonomia, universalidade e generalidade do direito assentam numa ligação a um determinado Estado concreto, cujos interesses servem, independentemente de estes serem autónomos ou de classe, gerais ou particulares. (SANTOS, 2009, p 165) Se os tempos ora vividos são tempos de crise e de transição, o futuro que se anuncia não é, por certo, previsível, mas sua as soluções que se busca construir para a crise já podem prenunciar caminhos por onde podemos nos guiar. Muitas são as nuances da crise da modernidade, enquanto paradigma considerado em sentido amplo. No plano do direito, também diversas tem sido as críticas formuladas ao positivismo enquanto paradigma do direito moderno e as soluções que se apresentam oscilam entre tentativas de rearranjos do paradigma, buscando corrigir excessos e défices do positivismo, mas mantendo seus cânones, — tal como as teorias principiológicas do direito — e propostas mais ousadas de negação do positivismo-normativismo caracterizadores do direito moderno, que se fazem acompanhar da denúncia do exclusivismo estatal do direito, de seu caráter excludente e da necessidade de reconhecimento de outras formas de juridicidade e de abertura da construção do direito para
  • 18. 18 os povos, de forma a combater seu caráter elitista, burocrático e à serviço de minorias governantes e privilegiadas. Para concluir este tópico, convém citar mais uma vez Boaventura de Sousa Santos, que tem nos guiado até aqui, quando este analisa o tempo da transição paradigmática: O tempo da transição paradigmática é um tempo muito contestado, sobretudo por englobar múltiplas temporalidades. Dado que os conflitos paradigmáticos (as contradições internas) coexistem com os conflitos subparadigmáticos (os excessos e os défices), a própria transição é, em si mesma, um fenómeno intrinsecamente contestado. O horizonte temporal daqueles para quem apenas existem conflitos subparadigmáticos é forçosamente mais estreito e curto do que o daqueles para quem esses conflitos são manifestações visíveis de um conflito paradigmático latente. Mesmo os que admitem a existência de uma transição paradigmática podem não concordar quanto à identificação ou natureza do paradigma cessante, ou quanto à duração e sentido da transição iminente. Acresce que as tendências seculares, que são a temporalidade da transição, têm de ser reduzidas, enquanto representação social, à duração do ciclo da vida humana, a fim de que as lutas paradigmáticas sejam politicamente eficazes. Dado este condicionalismo, poderá ser necessário conceptualizar essas lutas como lutas paradigmáticas (contradições internas), mas conduzi-las como se fossem subparadigmáticas (excessos e défices). A luta paradigmática é, portanto, uma utopia cuja eficácia pode residir nos recursos intelectuais e políticos que fornece às lutas subparadigmáticas. A meu ver, isto explica a opacidade e, simultaneamente, a turbulência e a vibratilidade, os equívocos e as inesperadas convergências que caracterizam ab ovo a transição paradigmática enquanto fenômeno cultural, societal e político. (SANTOS, 2009, p. 168) A partir da análise acima desenvolvida, passaremos a tratar de uma das experiências políticas que tem desafiado os modelos com os quais o direito vinha se construindo até os tempos de hoje. Essas experiências se fazem acompanhar de perspectivas teóricas igualmente desafiadoras e contestadoras do paradigma moderno do direito. A seguir, buscaremos visualizar até que ponto o Novo Constitucionalismo Latino-Americano se mostra com uma experiência típica da transição paradigmática e até que ponto sua construção teórico-político-jurídica aponta para a correção de excessos e défices ou para emergência de um novo paradigma no direito, enquanto novo conjunto de modelos partilhados pelos profissionais do direito, no contexto de emergência de um novo paradigma societal, no sentido amplo de superação da modernidade. 3. A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DO PARADIGMA DO DIREITO MODERNO 3.1. O constitucionalismo a ser superado e sua crise A crítica acima articulada nos conduz agora à possibilidade de mostrar a presença dos elementos do paradigma moderno do direito no âmbito do direito constitucional. Ao
  • 19. 19 direito moderno corresponde um constitucionalismo moderno, entendido como movimento teórico-doutrinário, como movimento político e como construção normativa. O discurso majoritário presente nos manuais de direito constitucional dão conta de que a essência do constitucionalismo e o problema fundamental do direito constitucional é sempre limitar ao Príncipe, controlar o poder, parar permitir a liberdade política dos cidadãos e o gozo de seus direitos fundamentais. Cidadãos esses que, enquanto povo, são a origem e fundamento do poder do Estado. O Estado de Direito onde esse constitucionalismo opera é assim salvaguardado para que nele operem, dentro de seus limites, a soberania popular e o princípio democrático. Para José Joaquim Gomes Canotilho, a acepção histórico-descritiva do constitucionalismo moderno o designa como um movimento político, social e cultural que, a partir de meados do século XVIII, questiona política, filosófica e juridicamente os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político. Ele opõe-se ao chamado constitucionalismo antigo, entendido como um conjunto de princípios escritos ou consuetudinários que sustentavam direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitavam seu poder (CANOTILHO, 2003, p. 52). Este mesmo autor nos conduz, entretanto, a um entendimento multidimensional do constitucionalismo moderno e que nos será útil para a compreensão de seus elementos constitutivos e modeladores de sua construção paradigmática. Mais do que um movimento de direção única, a consolidação do paradigma do constitucionalismo moderno se deu por movimentos nem sempre coordenados e nem sempre ausentes de contradições. O movimento constitucional gerador da constituição em sentido moderno tem várias raízes localizadas em horizontes temporais diacrónicos e em espaços históricos geográficos e culturais diferenciados. Em termos rigorosos, não há um constitucionalismo mas vários constitucionalismos (o constitucionalismo inglês, o constitucionalismo americano, o constitucionalismo francês). Será preferível dizer que existem diversos movimentos constitucionais com corações nacionais mas também com alguns momentos de aproximação entre si, fornecendo uma complexa tessitura histórico-cultural. E dizemos ser mais rigoroso falar de vários movimentos constitucionais do que de vários constitucionalismos porque isso permite recortar desde já uma noção básica de constitucionalismo. Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo. (CANOTILHO, 2003, p. 51)
  • 20. 20 Para este autor, portanto, os temas centrais do constitucionalismo são a “fundação e legitimação do poder político” e a “constitucionalização das liberdades”, sendo que a captação de seu sentido comporta, ao menos, três modelos de compreensão: o modelo historicista, o modelo individualista e o modelo estadualista, cada qual correspondendo à contribuição, respectivamente, dos constitucionalismos inglês, francês e estadunidense, para a consolidação do paradigma constitucional de que se trata e que hoje é submetido à crítica. A contribuição do modelo historicista do constitucionalismo inglês — cujos documentos fundamentais são a Magna Charta (1215), a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Act (1679) e o Bill of Rights (1689) — centra-se: na garantia de direitos adquiridos, especialmente do “binômio subjetivo” liberty and property, na qual a liberdade é entendida com liberdade subjetiva e pessoal de todos os ingleses e como segurança da pessoa e dos bens de que se é proprietário; na garantia da liberdade e da segurança por meio de um processo justo regulado por lei (due process of law), no qual estão estabelecidas as regras de privação da liberdade e da propriedade; na sedimentação do direito comum de todos os ingleses (common law) pela interpretação das leis do país pelos juízes; na invenção das categorias políticas de representação e soberania parlamentar, com estatuto constitucional, especialmente após a Revolução Gloriosa (1688-89), necessárias à estruturação de um governo moderado, sendo que a noção de soberania parlamentar é o fundamento da ideia de que o poder supremo deveria expressar-se na forma da lei do parlamento, o que está na gênese da rule of law, princípio básico do constitucionalismo moderno. Por sua vez, o modelo individualista, do constitucionalismo revolucionário francês, haurido num contexto de rompimento com o Ancien Régime, rompimento não observável no constitucionalismo inglês que mantinha privilégios estamentais típicos do medievo, edifica uma ordem fundada em direitos individuais, direitos de homens naturalmente livres e iguais em direitos, que legitimam e fundam o poder político, o inventam e reinventam, dando a si próprios uma lei fundamental, de uma ordem por eles querida, conformada por acordo entre eles, ou seja, um contrato social assente nas vontades individuais e documentado em uma constituição escrita que garanta direitos e conforme o poder político estabelecido, juntamente com a constituição, por um “poder constituinte” — originário, autônomo e independente — pertencente à Nação e criador da lei superior, ou seja, a constituição. Por fim, o modelo estadualista do constitucionalismo estadunidense nos legou a possibilidade de limitação normativa do governo e do parlamento por meio de uma lei escrita superior que condensa os princípios fundamentais da comunidade e os direitos dos particulares, elaborada através de tomadas de decisão pelo povo, em raros “momentos constitucionais” e sob condições especiais, isto é, no exercício do poder
  • 21. 21 constituinte, — porque as decisões frequentes são atribuídas ao governo e não ao povo (democracia dualista) — e que o assegure contra uma possível tirania da maioria, limitando o domínio político e tornando nulas quaisquer leis inferiores infringentes dos preceitos constitucionais, de forma a elevar o poder judicial ao status de defensor da constituição e guardião dos direitos e liberdades, de forma a permitir que os juízes, tão pouco confiáveis aos franceses, operem a fiscalização de constitucionalidade e se coloquem entre o povo e o legislador (CANOTILHO, 2003, p. 55-60). Os argumentos de Canotilho somados aos que a seguir serão articulados, seguindo o caminho crítico anteriormente iniciado, colaboram para o reforço da tese de que os princípios do Estado e do mercado submeteram o princípio da comunidade. Nesse sentido, Ricardo Sanín Restrepo defende que o constitucionalismo moderno, que ele denomina de liberal contemporâneo, aniquilou a democracia, uma vez que o direito nega suas origens políticas e, por consequência, nega o povo como poder constituinte. O direito, tornado técnica com pretensões científicas excludentes e especializadas, se constitui em um megatexto jurídico que sequestra o “demos” da democracia e o normatiza, de forma que o objeto (norma fundamental) deixa de ser criado pelo sujeito (povo). Assim, a norma passa a definir o sujeito e o poder constituinte se dilui atrás da norma fundamental, que repele a democracia como sua condição de existência (SANÍN RESTREPO, 2009, p. 25-26). À estatização do direito corresponde a cooptação da democracia pelo Estado, a separação entre constituição e povo e a redução da constituição política a uma mera norma formal, com a consequente apropriação do lugar do poder constituinte pelo poder constituído (juiz constitucional), implicando na usurpação do lugar de enunciação da linguagem política. Nesse contexto, os juristas protagonizaram uma marcha frenética rumo à sofisticação e complicação dos conteúdos constitucionais, que foram tornados um material completamente desligado da experiência democrática. Os juristas se tornaram pontífices, donos das chaves dos textos e bloquearam o conteúdo da constituição, de forma a obrigar o povo a ter que dela se reaproximar por outras vias (SANÍN RESTREPO, 2009, p. 27). Nesse processo, o direito para lograr cumprir com sua pretensão de sistematicidade, completude e coerência se converteu no lugar do absoluto, no lugar onde nasce a ordem simbólica que cria as fantasias que vivemos como realidade, desde a fantasia de uma sociedade transparente até a do sujeito de direito autónomo e universal dos direitos humanos. Essa aparição totalitária do direito impediu que existissem sujeitos, política ou linguagem fora do direito (SANÍN RESTREPO, 2009, p.28).
  • 22. 22 As constituições oriundas desse constitucionalismo somente cumpriram os objetivos determinados pelas elites: a organização do poder do Estado e a manutenção de elementos básicos de um sistema democrático formal. O controle do poder dos representantes do povo, portanto representantes da soberania popular, ser converteu em controle da própria soberania popular, transformando em conteúdo vazio qualquer discurso no sentido de dizer que o poder emana do povo. A essência do constitucionalismo é controlar o poder de rebelião e criação normativa do povo por meio da política, mantendo o direito em sua clausura técnica e a serviço da burocracia e do mercado. O poder constituinte, assim, foi esvaziado de seu conteúdo político mais radical. Seu fundamento deixou de ser a potência do povo para se reduzir a mero elemento de um aparato lógico formal de legitimação de processos constituintes realizados sem a efetiva participação popular e para afastar do controle das funções do Estado moderno essa mesma participação popular. Além dos procedimentos, em termos de conteúdo, esse constitucionalismo se baseou na defesa dos direitos individuais, desenvolvidos em torno da liberdade e da propriedade, cuja realização plena não se pode observar se não em relação a elites dirigentes e detentoras do poder econômico. Ainda que a plasticidade do direito moderno tenha suportado a emergência do que se denominou constitucionalismo social, os direitos humanos de segunda ou terceira dimensão (direitos sociais, ambientais, etc.) ainda tem seu eixo lógico e ideológico baseado e/ou subordinado aos direitos de primeira dimensão (direito individuais), uma vez que o fundamento do direito continua o mesmo desde a consolidação do direito moderno, o que acima melhor se desenvolveu. Não obstante, ainda na Europa, nas últimas décadas do século XX, uma reação garantista dos conteúdos que o constitucionalismo social exigiu para a constituição, um difuso movimento denominado neoconstitucionalismo, insistiu na diferença entre o conceito formal e material de Estado constitucional, ao defender que este não é apenas o que conta com um texto que se autodenomina constituição, mas sim o que conta com uma constituição fruto da legitimidade democrática e dotada de instrumentos garantidores da limitação do poder e da efetividade dos direitos contemplados no texto constitucional. De acordo com esta concepção, o Estado constitucional é um conceito em constante construção e que deve lutar para efetivar seus dois elementos fundamentais: legitimidade democrática e normatividade. A constituição é, então, a juridificação das decisões políticas fundamentais adotadas pela soberania popular, é o elemento de enlace entre política e direito e o mecanismo de legitimação democrática deste. Não basta uma constituição, se o ordenamento jurídico não está “impregnado” de normas constitucionais (em sentido material). Assim, propõe-se sete condições de
  • 23. 23 constitucionalização efetiva do sistema jurídico: a rigidez constitucional, a garantia jurisdicional da constituição, sua força vinculante, a sobreinterpretação da constituição, a aplicação direta das normas constitucionais, a interpretação das leis conforme a constituição, e a influência da constituição sobre as relações políticas (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.15-16). Mas tal posição, embora acuse os limites do constitucionalismo moderno e seu déficit democrático, não logrou influência decisiva no contexto histórico e social onde foi desenvolvida. Para Roberto Viciano Pastor e Rubén Martínez Dalmau, foi na América Latina, a partir da década de 1990, que ditas teorias garantistas foram assumidas por um novo constitucionalismo nascente e que assumiu uma radical aplicação da teoria democrática da constituição, de forma a superar o conceito de constituição como limitadora do poder constituído e se avançar na definição da constituição como fórmula democrática onde o poder constituinte, a soberania popular, expressa sua vontade sobre a configuração e limitação do Estado e da própria sociedade (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.16). Desta forma, pode-se afirmar que os conflitos gerados pela dinâmica da sociedade e do direito modernos ensejaram levantes contestadores de sua lógica. Mais recentemente, como já afirmado acima, na América Latina tem-se vivido movimentos de organização política de forte conotação popular que logrou elaborar constituições com um perfil diferenciado e que apontam para mudanças na forma e no conteúdo do direito que conhecemos. As constituições surgidas desses movimentos serviram de documentos basilares para o que se tem denominado Novo Constitucionalismo Latino-Americano, que, desde a última década do século XX, está se desenvolvendo em diferentes lugares e tem se inspirado e servido de inspiração para diferentes desenvolvimentos teóricos e diferentes práticas políticas, todos apontando para um momento de transição paradigmática no direito moderno e no seu constitucionalismo. A seguir, analisaremos alguns traços dessas mudanças e dessa transição. 3.2 O constitucionalismo moderno na América Latina Não consideramos ser possível tratar do Novo Constitucionalismo Latino- Americano sem ao menos tecer considerações sobre a maneira como se desenvolveu o constitucionalismo na América Latina. A tão só delimitação geográfica e histórica do fenômeno analisa aponta para o fato de que estamos a tratar, antes de tudo, de uma realidade marcada pelo colonialismo e pela dependência. A independência formal das antigas colônias de Portugal e Espanha no continente americano não significou sua emancipação cultural, política, e econômica. Internamente, os novos países independentes não lograram modificar
  • 24. 24 sua estrutura social, econômica e política. Já estavam nelas internalizados os ideários do capitalismo, do liberalismo e do positivismo tão criticados acima. O processo de dominação cultural colonial repercutiu também no plano jusfilosófico e a fundamentação e concretização do direito nacional dos países latino-americanos reproduziu, acriticamente, os modelos trazidos da Europa, sem considerar que tais modelos estavam associados a contextos locais e a interesses que não se aproximavam de nossa realidade. Operou-se um verdadeiro processo de alienação em relação a esse direito importado, que não interessava senão às elites que se locupletaram de seu caráter excludente e mistificador da realidade, de forma que essa importação serviu aos propósitos de dominação das elites nacionais e de garantia de seus negócios com as metrópoles de onde emanam as diretrizes do sistema capitalista em ascensão, especialmente contra as comunidades originárias do continente, bem como contra a população pobre de origem escrava ou imigrante. Tem sido próprio na tradição latino-americana, seja na evolução teórica, seja na institucionalização formal do Direito, que as constituições políticas consagrassem, abstratamente, igualdade formal perante a lei, independência de poderes, soberania popular, garantia liberal de direitos, cidadania culturalmente homogênea e a condição idealizada de um “Estado de Direito” universal. Na prática, as instituições jurídicas são marcadas por controle centralizado e burocrático do poder oficial; formas de democracia excludente; sistema representativo clientelista; experiências de participação elitista; e por ausências históricas das grandes massas campesinas e populares. Certamente, os documentos legais e os textos constitucionais elaborados na América Latina, em grande parte, têm sido a expressão da vontade e do interesse de setores das elites hegemônicas, formadas e influenciadas pela cultura europeia ou anglo-americana. Poucas vezes, na história da região, as constituições liberais e a doutrina clássica do constitucionalismo político reproduziram, rigorosamente, as necessidades de seus segmentos sociais majoritários, como as nações indígenas, as populações afro-americanas, as massas de campesinos agrários e os múltiplos movimentos urbanos. (WOLKMER, 2010, p. 147) O constitucional moderno europeu não conseguiu, nessas sociedades, destituir os privilégios das elites e nem mesmo universalizar os direitos por ele propalados, quantos menos efetivar o princípio da soberania. Ao se aproximar do século XXI, esse processo histórico culmina com a subordinação das mesmas ao novo caráter do capitalismo mundial, isto é, ao neoliberalismo, que fortaleceu as mazelas sociais ao buscar, repetindo a implantação do modelo na Europa e nos Estados Unidos da América, reduzir o caráter protetivo do estado, revogar direitos sociais e impor medidas econômicas às economias dependentes para servir aos interesses do capital transnacional sediados nas metrópoles desse sistema. Neste processo, não se pode olvidar que o avanço das relações capitalistas na América Latina causou, ao lado da destruição de culturas, uma fortíssima destruição ambiental, que continua em marcha.
  • 25. 25 Por sua vez, se consideramos que o constitucionalismo moderno se consolidou com uma “teoria normativa da política”, essa teoria política hoje, especialmente em nosso continente, se encontra extremamente distanciada da prática política. Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos considera que esse distanciamento, e a ausência de claridade conceitual que ele gera para quem pretende compreender a realidade latino-americana, se deve a quatro fatores: em primeiro lugar, porque a teoria política foi desenvolvida no Norte global — basicamente, na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos —, onde, desde de meados do século XIX, se consolidou um marco teórico pretensamente universal e aplicável a todas as sociedades e cujos conceitos temos dificuldades de aplicar em nossas sociedades latino-americanas, em virtude de sua inadequação; em segundo lugar, porque a teoria política desenvolveu teorias da transformação social tal como ela ocorreu no Norte, restando muito distantes das práticas transformadoras em geral, porque, nos últimos trinta anos, as grandes práticas transformadoras vem do Sul, acarretando que os grandes teóricos (que sequer falam português, espanhol, ou, sequer, as várias línguas dos povos originários) não se deem conta de toda a realidade transformadora das práticas e, consequentemente, as invisibilizam ou marginalizam; o terceiro fator é que a teoria política é monocultural, tem como marco histórico a cultura eurocêntrica que se adapta mal a contextos onde essa cultural eurocêntrica tem que conviver com culturas e religiões de outro tipo, não ocidentais, como as culturas indígenas; e, por fim, o quarto fator é que a teoria crítica não se deu conta de um fenômeno que hoje é mais central, que é o fenômeno do colonialismo, porque a teoria política e as ciências sociais acreditavam que a independências dos países da América Latina tinha posto fim ao colonialismo sem reparar que, depois da independência, o colonialismo continuou sobre outras formas, como a do colonialismo social ou colonialismo interno, e não o consideraram um tema da antropologia ou da sociologia jurídica, tendo o relegado a apenas um tema da história (SANTOS, 2007, p. 12-13). Os conflitos daí surgidos e a organização de setores populares em torno de partidos de esquerda lograram fortalecer propostas de um novo constitucionalismo, como expressão de um novo direito que contivesse e se articulasse com um projeto político voltado à solução dos “excessos e défices” da modernidade, a partir do conhecimento da realidade social específica da América Latina, de forma a se concretizar um almejado direito democrático, autêntico e com o objetivo de sanar a desigualdade e os problemas sociais e ambientais sofridos pela população do continente.
  • 26. 26 4. O NOVO CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO: emergência de um novo paradigma em tempos de transição paradigmática O movimento de construção de um novo constitucionalismo na América Latina, como expressão de uma luta ampla de negação dos efeitos perversos do direito moderno no continente, não caminhou em uma única direção e não se deu de uma vez. Ele ainda está em desenvolvimento, experimentando diferentes soluções e sobre o qual incidem abordagens diversas. Antônio Carlos Wolkmer defende que vivemos a terceira fase de desenvolvimento deste novo constitucionalismo na América Latina. A primeira fase teria tido por resultado as constituições do Brasil (1988) e da Colômbia (1991), ambas com forte caráter socializante e reconhecedor de direitos coletivos e plurais. O segundo ciclo, representado pela constituição da Venezuela (1999), se caracteriza por um constitucionalismo participativo e pluralista. Por fim, o terceiro ciclo desse novo constitucionalismo é representado pelas recentes e vanguardistas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), cujas novidades incluem um constitucionalismo plurinacional comunitários, identificado com um paradigma não universal e único de Estado de Direito, reconhecedor da coexistência de experiências de sociedades interculturais (sejam indígenas, comunais, urbanas, e camponesas) e com práticas de pluralismo igualitário jurisdicional, de forma a conviverem instâncias legais diversas em igual hierarquia — jurisdição ordinária estatal e jurisdição indígena/camponesa. Essas mudanças políticas e constitucionais e os processos sociais de luta que as engendram materializam novos atores sociais, realidades plurais e práticas desafiadoras, reconhecem a diversidade cultural e culturas minoritárias, com especial ênfase do protagonismo dos povos indígenas. Daí que Wolkmer denomine esse constitucionalismo de Constitucionalismo Pluralista Intercultural (andino ou indígena) (WOLKMER, 2010, p. 153-154). Por certo, estas três constituições documentam os traços fundamentais da construção do novo paradigma constitucional de que se trata. Contra os efeitos indesejados do direito e de seu constitucionalismo moderno, elas contém um conjunto de características comuns, especialmente alicerçados na ativação direta do poder constituinte e na necessidade de romper com o sistema anterior. Essas características comuns, por certo, não escondem diferenças próprias oriundas de histórias constitucionais diferentes, questões nacionais próprias e típicas da experimentação necessária à gestação de um novo modelo.
  • 27. 27 Donde puede afirmarse con rotundidad que se produjo el primer proceso constituyente conforme a los requisitos marcados por el nuevo constitucionalismo, rescatando la originaria teoría democrática de la Constitución, fue en Venezuela en 1999. En dicho proceso no sólo se dieron los elementos centrales de los procesos constituyentes ortodoxos – referéndum activador del proceso constituyente y referéndum de aprobación del texto constitucional incluidos –, sino que se vislumbraron con nitidez tanto la necesidad constituyente, manifestada en la crisis social y política de finales de los ochenta y la década de los noventa, como la exigencia de rigidez para la reforma del nuevo texto constitucional, que excluyó la posibilidad de que pudiese ser reformada por el poder constituido. Una nueva fase, sin duda, de los procesos constituyentes latinoamericanos, caracterizada en particular por elementos formales de las constituciones, la conforman los dos procesos que tuvieron lugar como continuación de aquéllos: el ecuatoriano de 2007-2008, cuyo texto se caracteriza principalmente por la innovación en el catálogo de derechos y por la definición del Estado como Estado constitucional; y el boliviano de 2006-2009, el más difícil de todos los habidos, y cuyo resultado, la Constitución boliviana de 2009, es seguramente uno de los ejemplos más rotundos de transformación institucional que se ha experimentado en los últimos tiempos, por cuanto avanza hacia el Estado plurinacional, la simbiosis entre los valores poscoloniales y los indígenas, y crea el primer Tribunal Constitucional elegido directamente por los ciudadanos. Cada una de las experiencias constituyentes mencionadas se conforma en sí misma como un modelo teórico-práctico diferente del resto de los procesos constituyentes. Pero todas ellas cuentan con un denominador común que es necesario resaltar: asumen la necesidad de legitimar la voluntad social de cambio mediante un intachable proceso constituyente de hechura democrática y, aunque los resultados son en buena medida desiguales, consiguen aprobar constituciones que apuntan, en definitiva, hacia el Estado constitucional. Teoría y práctica se unen, por lo tanto, en el nuevo constitucionalismo latinoamericano (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.25-26) Ao tratar dos fundamentos do Novo Constitucionalismo Democrático Latino- Americano, Roberto Viciano Pastor e Rubén Martínez Dalmau, juristas espanhóis que assessoram os três processos constituintes de que resultaram as cartas constitucionais analisadas, defendem que a principal aposta deste Novo Constitucionalismo é a busca de instrumentos que reponham à perdida relação entre soberania popular e governo, por meio do estabelecimento de mecanismos de legitimidade e controle sobre o poder constituído mediante novas formas de participação vinculantes, que, por sua vez, constitucionalizam vários instrumentos de participação e as ânsias democráticas do continente. As formas diretas de participação popular não questionam, todavia, a essência do sistema de democracia representativa, amplamente presente em todas as constituições, e não substituem definitivamente a representação, mas se configuram como complemento à legitimidade e um avanço na democracia. A ação direta do povo limita a posição tradicional dos partidos políticos, ainda que estes também se mantenham, numa lógica de absorção do Estado pelo coletivo, de forma a reconstruir a unidade entre Estado e sociedade na decisão política, de forma a se confundir a vontade de um e outro, por mecanismos distintos ao partidocrático (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p. 34-35). Um dos resultados deste
  • 28. 28 objetivo é a configuração de procedimento de reforma constitucional com a participação do constituinte originário, na qual a iniciativa popular é uma das vias para invocar a modificação constitucional, sendo que certos conteúdos são protegidos do poder de emenda ou reforma parcial (estrutura fundamental da constituição, caráter e elementos constitutivos do Estado) e os procedimento de aprovação demandam maioria qualificada e só se concluem mediante referendo (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.63). O segundo aspecto sobrelevado por estes autores é a profusa carta de direitos das novas constituições, não mais limitadas a estabelecer direitos de forma genérica, sem se preocupar com sua individualização ou coletivização. Estas constituições, pelo contrário, identificam grupos débeis — tais como mulheres, crianças e jovens, deficientes, idosos — e ampliam os beneficiários dos direitos. Na busca da máxima efetividade dos direitos sociais, essas constituições recepcionam os documentos internacionais de direitos humanos, buscam critérios mais favoráveis às pessoas, buscam ações diretas de amparo e reconfiguram a nomenclatura tradicional do direito. Mais ainda, essas constituições promovem, em maior ou menor medida e de acordo com a realidade social, a integração de setores historicamente marginalizados, como os povos indígenas. Nesse sentido, a constituição boliviana foi a que mais avançou, ao estabelecer um Estado plurinacional — contestando o primado do constitucionalismo liberal de que Estado e nação se confundiam, e reconhecendo uma multiplicidade de nações dentro do mesmo Estado —, materialmente consolidado por meio do reconhecimento da autonomia indígena, do pluralismo jurídico, de um sistema de jurisdição indígena sem relação de subordinação com a jurisdição ordinária, de um amplo catálogo de direitos dos povos indígenas, da eleição de seus representantes através de formas próprias, e da criação de um Tribunal Constitucional Plurinacional com a presença da jurisdição indígena (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.35-37). Quanto a este novo e amplo rol de direitos, Carlos Manuel Villabella Armengol, destaca a Constituição do Equador na qual se inscreve a noção de “buen vivir” (“Sumak Kawsay”, em língua do povo Quíchua), na qual se integram várias facetas de materialização da dignidade humana, dentre elas, o direito à alimentação, à agua, ao ambiente são, à comunicação e informação, ao respeito à identidade cultural, à educação, ao habitat adequado e à moradia segura, à saúde, ao trabalho, à seguridade social. A nova dogmática constitucional que se projeta conta ainda com os seguintes aspectos: enunciação de que não há hierarquia entre direitos, abrindo portas a uma hermenêutica de ponderação como via de solução ao confronto de direitos; validade dos tratados e acordos internacionais ratificados cujo conteúdo é a proteção de direitos; agregação às tradicionais formas de proibição de discriminação outas
  • 29. 29 como a orientação sexual, a identidade de gênero, origem, nacionalidade, filiação política ou filosófica, a condição econômica e social, a deficiência, a gravidez, etc.; extensão legitimação de direitos sociais, econômicos e culturais e consagração junto a estes da obrigação do Estado com respeito aos mesmos; reconhecimento do direito à identidade cultural das minorias étnicas e grupos originários; reconhecimentos a grupos em situação, como a infância, os adultos maiores, os deficientes, os privados de liberdade, os usuários e consumidores, e as pessoas com enfermidades catastróficas; legitimação de novas figuras-direitos, como o direito à agua e o direito à alimentação; abordagem de temas em fase de moralidade crítica mas que ainda não configuram direito, como o caso das doações ou transplantes de células, tecidos ou órgãos; reconhecimento da titularidade de direitos a pessoas coletivas, como comunidades, povos e nacionalidades; inclusão de novas facetas em direitos clássicos como o de liberdade, em que se introduz a possibilidade de adotar decisões livres e voluntárias sobre a sexualidade individual ou tomar decisões independentes e responsáveis sobre a vida reprodutiva; reconhecimento da natureza como sujeito de proteção, a respeito que se identifica a necessidade de fomentar sua proteção, restauração e reprodução, criando uma justiça ambientalista (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.60). Ainda com relação às inovações trazidas no âmbito do reconhecimento e garantia de direitos, é de se destacar a perspectiva de refundação do Estado, ao reconhecer que o mesmo não guarda mais a clássica identidade com uma nação, mas com as várias nações que o compõe. Esse novo modelo de Estado, Estado plurinacional e intercultural, promove ampla proteção das minorias étnicas e grupos originários, como já dito. Nesse sentido, empregam-se amplamente frases e imagens em línguas originárias, especialmente nas constituições do Equador e da Bolívia. Esse novo Estado reconhece a existência da cultura indígena, depositária de saberes, conhecimentos, valores, espiritualidades e cosmovisões. Assim, garante-se o reconhecimento do seu autogoverno, a admissão de uma justiça própria com princípios igualmente próprios, a sua cultura e a legitimação de uma ampla quantidade de direitos. Dentre esses direitos é de destacar o seguinte: direito à terra; ao uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais localizados em seu habitat; a manter e promover suas próprias práticas econômicas e atividades tradicionais; a manter sua identidade étnica e cultural, valores espiritualidade e lugares sagrados e de culto; direito a um modelo de saúde integral que considere suas práticas e culturas; direito a que haja um sistema de educação intercultural bilíngue; direito a contar com serviços de formação profissional e capacitação; a proteger conhecimentos coletivos baseadas em suas ciências, tecnologias e saberes ancestrais; a proteger seu patrimônio cultural e histórico; a impulsionar o uso das vestimentas, dos
  • 30. 30 símbolos e emblemas que os identifiquem; a serem consultados antes da adoção de uma medida legislativa que poça afetar qualquer de seus direitos coletivos; a aplicar seu direito próprio nos marcos do respeito ao direito nacional; a possuir suas próprias formas de convivência e organização social; a governar-se por suas estruturas de representação; direito à definição de seu projeto de vida de acordo com seus critérios culturais e princípios de convivência harmônica com a natureza (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.58-60). Este amplo conjunto de direitos se faz acompanhar de um conjunto de medidas visando sua proteção, incluindo um extenso número de procedimentos judiciais constitucionalmente previstos e manejáveis por via individual ou coletiva — ação de defesa, ação de amparo constitucional, ação de proteção de privacidade, ação de inconstitucionalidade, ação de cumprimento, ação popular, ação de proteção de privacidade, ação de amparo à liberdade e seguridade, ação de proteção, habeas corpus, habeas data, ação por incumprimento, ação extraordinária de proteção, defensoria do povo, reclamação por omissão legislativa, etc. —. Além disso, aos direitos se acompanham deveres constitucionais mais amplos que aqueles típicos do constitucionalismo, podendo-se destacar entre eles: difundir a prática dos valores e princípios proclamados pela constituição; contribuir ao direito à paz, denuncia e combater os atos de corrupção, resguardar o patrimônio natural, econômicos e cultural, proteger os recursos naturais e contribuir para seu uso sustentável; não ser ociosos, não mentir, ou roubar; exercer a profissão ou ofício com sujeição à ética; respeitar as diferenças étnicas, nacionais, sociais, geracionais, de gênero e orientação e identidade sexual, entre outros (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.61-62). Além da dimensão política, é de suma relevância para o Novo Constitucionalismo a normatividade constitucional, uma vez que as novas constituições negam o nominalismo anterior e proclamam o caráter normativo e superior da constituição frente ao resto do ordenamento jurídico, aprofundando o controle concentrado de constitucionalidade, ao lado do já existente controle difuso. E para a questão suscitada acerca do controle democrático dos tribunais constitucionais, a constituição boliviana criou a eleição direta de magistrados, bem como, assim com a constituição equatoriana, buscou resguardar a interpretação do texto buscando vinculá-la, por meio de critérios de interpretação expressamente previstos, à vontade do constituinte, ou à melhor concretização dos direitos na constituição contidos (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p. 37). Nas constituições de que tratamos verifica-se a presença de preâmbulos que as dotam de espiritualidade, ao conectar o texto com a história do país e dotá-lo de conteúdo programático, em conjunto com capítulos que estabelecem conceitos e princípios que se consideram bases do pacto constitucional.
  • 31. 31 Nesse sentido, é preciso dizer que essas constituições são dotadas de alta carga de normas- princípios e preceitos teleológicos e axiológicos, enunciadores de valores superiores ou princípios ético-morais, como unidade, inclusão, dignidade, liberdade, solidariedade, reciprocidade, respeito, complementariedade, harmonia, transparência, equilíbrio, igualdade de oportunidades, equidade social e de gênero na participação, responsabilidade, justiça social, redistribuição equitativa dos produtos e bens sociais, democracia, responsabilidade social, premência dos direitos humanos, pluralismo político (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.58). Por fim, estas constituições contam com amplos capítulos de conteúdo econômico, pois visam superar as desigualdades econômicas e sociais e promover constitucionalmente o novo papel do Estado na economia. Vários modelos econômicos são incorporados, desde a livre iniciativa e a justiça redistributiva até a proteção da economia comunitária, com o elemento comum da presença do Estado, cuja participação se traduz em aspectos tão relevantes como a decisão pública sobre os recursos naturais ou a regulação da atividade financeira, na perspectiva de um desenvolvimento econômico alternativo. Além disso, no plano internacional, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano estabelece um compromisso com uma integração latino-americana, mais ampla que a puramente econômica, e que considera a possibilidade real de integração dos povos e pretende compatibilizar a necessidade de integração com um conceito recuperado de soberania (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.37-38). Enfatiza-se a função social e ambiental com a qual se delineia a propriedade privada e sua convivência com outros tipos de propriedade, como a individual, a coletiva pública, a estatal, a comunitária, a associativa e a mista. Além disso, o estado assume os deveres garantir o acesso à educação, à saúdo, ao trabalho e ao demais direitos, assume a tarefa de construir uma sociedade justa e harmoniosa, garantir o bem-estar, a segurança e igual dignidades das pessoas. Ao Estado também cabe reafirmar e consolidar a unidade do país, preservar a diversidade plurinacional na diversidade, promover e garantir o aproveitamento responsável e planificado dos recursos naturais, desenvolver o exercício democrático da vontade popular, promover a prosperidade e bem-estar do povo, garantir e defender a soberania nacional, planificar o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, promover o desenvolvimento sustentável e a redistribuição equitativa dos recursos, proteger o patrimônio natural e cultura do país, garantir o direito a uma cultura de paz, a segurança integral e a viver em uma sociedade democrática e livre de corrupção (VILLABELLA ARMENGOL, 2010, p.59; 62).
  • 32. 32 Resguardadas por esses fundamentos, as constituições de que se trata buscam o máximo de legitimidade para atender a necessidades reais da população e a um anseio de ruptura com a ordem anterior e, diante desses objetivos, apresentam algumas características formais que caracterizam o Novo Constitucionalismo: originalidade, amplitude, complexidade e rigidez. Isso se deve ao seu conteúdo inovador, a extensão dessas constituições, a capacidade de conjugar elementos tecnicamente complexos com linguagem acessível, e ao fato de que se aposta na ativação do poder constituinte do povo ante qualquer mudança constitucional. A capacidade inovadora é essencial aos objetivos de transformação empunhados pelo Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ante a inabilidade do velho constitucionalismo para resolver problemas fundamentais da sociedade. Assim, o Novo Constitucionalismo tem sido capaz de construir uma nova institucionalidade e determinadas características que contam com a finalidade de promover a integração social, criar maior bem- estar e estabelecer elementos de participação que legitimem o exercício do governo por parte do poder constituído. Sem modelos prévios, sem transplantes ou enxertos constitucionais, se aproveita o momento de atividade constituinte para repensar a singularidade dos problemas vividos em cada contexto local. Donde também se denominar esse constitucionalismo de “experimental” (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.28). Essas novas constituições se fundamentam essencialmente em inúmeros princípios, implícitos e explícitos, em detrimento das regras, que ocupam lugar limitado aos casos concretos em que sua presença é necessária para articular a vontade constituinte. Esses princípios atuam principalmente como critérios de interpretação e, em determinadas ocasiões, se faz referência expressa a eles ao se determinar a vinculação dos tribunais com base no teor literal do texto. Os princípios clássicos convivem com novas fórmulas, simbióticas, que devem ser consideradas como verdadeiras inovações (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.29). As novas constituições são também extensas e complexas em seu conteúdo, porque sua redação considera que o texto constitucional deve ser capaz de dar respostas àquelas necessidades que o povo solicita ao mudar sua constituição, sem que o espaço ou a busca de simplicidade se tornem obstáculos a esse intento. Sem serem breves, mas também sem serem códigos, busca-se a permanência da vontade do constituinte, que buscar ser resguarda para se evitar seu esquecimento ou seu abandono por parte dos poderes constituídos, após o ingresso da Constituição em sua etapa de normalidade. A necessidade de expressar claramente a vontade do poder constituinte pode significar uma maior quantidade
  • 33. 33 de disposições, cuja existência busca limitar os poderes constituídos — especialmente o parlamento e o tribunal constitucional —, impedindo-os de desentranhar do texto constitucional um sentido contrário ao que foi a vontade do constituinte. Desta forma, a constituição venezuelana conta com trezentos e cinquenta artigos, equatoriana com quatrocentos e quarenta e quatro e a boliviana com quatrocentos e onze artigos. A extensão se faz acompanhar de complexidade institucional com vistas à superação de problemas concretos suportados por diferentes povos. Mas a complexidade vem acompanhada de simplicidade linguística, com vistas a popularizar o constitucionalismo e negar o constitucionalismo de elites. Trata-se, portanto, de textos tecnicamente complexos e semanticamente simples, que se fazem acompanhar de iniciativos de formação, acesso e explicação sobre o novo texto constitucional para a população (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.30- 31). Por fim, estas constituições eliminam o poder constituinte constituído, poder constituinte derivado, ou poder de reforma, ao proibir que os poderes constituídos disponham de capacidade de reformar a constituição, de forma a se buscar conservar a forte relação ente a modificação da constituição e a soberania popular. Mas essa rigidez constitucional não busca fazer com que a constituição perdure indefinidamente, mas sim que sua modificação se dê exclusivamente pelo poder constituinte originário e desde que o texto final aprovado pela assembleia constituinte seja referendado pelo povo. Assim, esse constitucionalismo é também caracterizado com sendo de transição rumo a um modelo de Estado que ainda não está plenamente incorporado às novas constituições, que ainda não lograram resolver todos os problemas identificados e que, portanto, se encontram abertas a futuras modificações (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010, p.32-34) Sob essa orientação, as constituições da Venezuela, do Equador e da Bolívia apresentaram ao direito moderno em crise, e ao seu direito constitucional, uma série de novidades, com efeitos sobre todas as disciplinas do direito e que desafiam nosso modelo de racionalidade jurídica. A proximidade deste Novo Constitucionalismo com o Constitucionalismo Social e sua doutrina, o Neoconstitucionalismo, pode fazer parecer crer que se trata de mera importação deste modelo em nosso continente e que não estaríamos a tratar de uma mudança paradigmática em termos de direito e de direito constitucional, uma vez que o modelo seria o mesmo já consolidado no pensamento europeu e testado nas Constituições do Brasil (1988) e da Colômbia (1991). Esta proximidade revela um desafio ao Novo Constitucionalismo, que é o de se colocar entre dois caminhos: o da manutenção do paradigma do direito e do constitucionalismo moderno, acrescidos de mecanismos de