1. O Milagre
João nascera, vermelho e pequenino, chorão e irrequieto.
Quando a irmãzita o viu espernear nos braços da Rosa Pomba, fugiu
a gritar pelo corredor: «Que feio, Pai ? Que feio !». Realmente a
criança não devia nada à formosura. No rosto diminuto e achatado,
os olhos eram enormes lanternas imóveis e sem brilho. Quando
chamaram o médico e ele a examinou, uma ruga profunda vincou-
lhe a testa ampla.
- Rosa, chegue-me uma vela...
- Credo, Sr. Dr.! Não me diga que quer chamuscar o pobre
anjinho...
- Já lhe disse, chegue-me uma vela!
- Acesa?
- Sim, mulher, acesa. Chegue a vela; quero ver uma coisa...
- «Sã» Telmo, Sr. Dr. ! Olhe que queima os olhos a este anjinho!!!
...
- Não, não queimo... É cego, Rosa!
- Cego!!! ...
A boa mulher abriu a boca desdentada e recebeu dos braços do
médico a criança. Depois, foi deitá-la silenciosamente no berço de
pinho enfeitado de chita cor de rosa.
Do lado veio a voz da mãe:
- Que disse o Sr. Dr., Rosa?
- A criança é cega, mulher! Cega !!! ...
Do corredor o homem perguntou:
- Então, que tal vai o «ganapo» ?
Fez-se um silêncio opressivo. De súbito, como um ruído de
cristais estilhaçados, o choro convulso da mãe rompeu na atmosfera
doentia do quarto...
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- Bom dia, Mãe...
A mulher volta-se, debruça-se toda para o lume e responde numa
voz fechada:
- Bom Dia! ...
- A criança parece hesitar... Depois:
- Vossemecê está zangada, Mãe?
- Não... (e quase mete o rosto na panela que lava...) Porquê?!
2. - É que Vossemecê parece que não tem a voz dos outros dias...
- ...
- Mãe, Vossemecê está a chorar...
Ela não responde. Ergue-se. Com a ponta do avental de riscado,
limpa o rosto sem expressão.
A voz é agora doce quase pacificante.
- Não andes mais filho. Olha aí esse cavaco... Aí, à tua frente. Vá,
dá um passo mais... Assim... Isso. Senta-te nesse canto.
- Não se incomode, Mãe. Eu sei por onde vou... Ah! Cá está o
banquinho... Vê como eu não caí?
- ...
Vossemecê...
- Vá, cala-te agora. Dói-me a cabeça...
- Tá bem...,
A mulher volta à panela. As mãos parecem argila. Torcidas,
enrugadas, moles como sabão esquecido na água. Esfregam-se uma
na outra contra o ferro da panela e traçam na água movimentos
irrequietos. As faces da mulher definem-se na sombra da lareira,
como se fossem esculpidas em bronze. Na fogueira, as achas
crepitam ruidosamente e parecem cantar o seu suplício vermelho.
- Mãe, a panela custa a lavar...
- Pois custa...
Novo silêncio. A porta bate e uma rajada de vento penetra,
fazendo rodopiar o fumo numa dança cinzenta. A criança, de olhos
parados, escuta... Depois:
- Mãe, amanhã vou para a Escola...
A mulher despeja a água gordurenta pelo postigo desmantelado e
fica de pé espreitando a eira.
- Vossemecê vai-me levar?
As frases ficam sem resposta um instante no ar impregnado de
cheiro resinoso...
- E se a Senhora não te quer lá? Tu queres ir, João?
A criança sorri. As mãos sobem-lhe ao rosto num gesto tímido. A
mãe olha-o num misto de piedade e desespero. Depois senta-se,
silenciosamente, esquecida da pergunta lançada.
Tudo nela é desilusão, quase amargura. As rugas do rosto falam
da miséria, cansaço, desalento, fome. As mãos falam de trabalho
escravo e do calor da enxada fendendo a terra rubra e juncada de
seixos. A blusa e a saia são farrapos unidos cuidadosamente, que as
3. pedras do rio limparam ano, após ano, numa esfrega extenuante.
Vida de preta! - diria o marido, se fosse vivo. Mas ele morreu na
soltura da represa. Ana cresceu e foi para a cidade servir. Às vezes,
vêm cartas perfumadas... e ela tem medo. A filha não é feia. E tem
só dezasseis anos...
- Gostava tanto, Mãe!
- Gostava tanto, Mãe!
A criança responde à pergunta anterior, mas ela não ouve.
Continua mergulhada nas suas dolorosas cogitações. Só. Com
aquele cangalho... É dura a vida, para ela, habituada a cortar fundo
e longe, quando da união com o marido. Agora, está pobre e com
um filho cego!...
Cego!... Espevita o lume que dança em labaredas gritantes, e
enxuga uma lágrima furtiva...
- Vossemecê leva-me, Mãe?
A criança insiste, mas ela não ouve. A Ana pode perder-se... A
filha faz-lhe lembrar a videira plantada à beira do silvado... Frágil e
pequena. E tem medo...
- Vossemecê não está aí, Mãe? Mãe, vossemecê está a ouvir?
Desperta. Sacode a saia...
- Estou... estão... Amanhã... Amanhã, vou-te levar...
- Ó Mãe, como estou contente! ...
A criança inclina-se toda e adormece sobre a lareira iluminada.
As chamas erguem-se mais e mais, até encher de luz amarelada a
cozinha escura e fria.
A mãe fica de joelhos perdidos no fogo, monologando, sofrendo.
No dia seguinte, de novo a enxada, os seixos cinzentos, o andar
hesitante do filho procurando de mãos estendidas um ponto de guia
e apoio. E sempre aquele bom dia, mesmo que seja noite! E sempre
aquele sorriso, mesmo que a pense chorosa!... Uma dor surda entra-
lhe na alma e num gesto de revolta espalha a fogueira que se desfaz
em mil rastos de brasas e fumo. Fica de pé como uma estátua, na
semi-penumbra, sob a chaminé enegrecida...
O filho mexe-se:
- Mãe !!!
A mulher cai de joelhos junto do filho adormecido, e por
momentos, no silêncio profundo da cozinha a voz dela ergue-se
num brado surdo de desespero e dor:
4. - Senhor! Não, o meu menino não irá à escola... para quê! Para
quê, se não pode ver a luz do Sol nem conhecer os braços que o
acarinham?... Meu filho! Meu filho!
E fica ali prostrada, até que o frio e o sono a tomam. Noite alta,
ergue-se. Deita o filho e ela própria de olhos no espaço, hirta como
um cadáver, suspensa dum letargo sem limites, estende-se no catre
ouvindo dentro de si uma sinfonia estranha irreal, desconhecida e
inesperada. O filho, apesar de cego, é o seu amor, a sua mais
próxima riqueza.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
- Mãe, de que cor é o Sol?
- O Sol...
- Eu sei, Mãe... A Senhora contou-me... Deve ser assim... assim...
Dizem que é cor de fogo! Ela contou-me, Mãe. E disse que há flores
lindas que cheiram bem, parecidas com seda...
E pôs-mas aqui nas mãos... Que macias, Mãe! E ensinou-me que
o Céu é muito azul!... E pareceu-me que o via...
É tão bom ir à Escola, Mãe! Ela põe-se a falar de mansinho e eu
ouço... E fala-me e pega-me nas mãos, quando os outros andam à
roda... E eu canto com eles: - «Vai numa roda, numa roda é qu'é...»
Que lindo, Mãe!... Quem me dera ver o Céu! E ser como os outros.
Mas não. Fico-me caladinho no meu lugar e ouço, ouço, ouço...
Tantas coisas que não sei...
Vem um e diz: - «Quem sou eu?» E eu logo: «- És o Zé».
Eles então chamam a senhora e gritam: «Ele adivinha!» Ela vem
e ri-se alto... E diz: «Foi o Jesus que lhe disse...» E eu fico contente,
tão contente, Mãe! E quando entro na sala adivinho sempre se ela lá
está... Deve ser linda, Mãe?!
- ...
E a criança, de olhos transparentes, fica a olhar o vácuo...
Depois...
- Mãe, ontem rezei!...
- Também eu, filho!
- Vossemecê sabe rezar?
- Sei...
- Mas nunca me ensinou!...
- Pois não...
5. - Mas a Senhora ensinou-me... Começa assim: «Jesus, que estás
no Céu, faz um milagre para eu poder conhecer a minha
Mãezinha...»
- ...
- O Pai sabia rezar, Mãe?
- Sabia...
- E rezava, Mãe?
- Antes de nasceres...
- E depois?
- Depois, não...
- Porquê?
- Porque... (e fica suspensa...)
- Vossemecê não diz, mas eu sei... Ele depois não rezava, porque
eu nasci cego...
- João!!!...
- Vossemecê está a chorar, Mãe? Olhe que eu não choro... A
Senhora disse que Jesus gostava muito de mim, porque eu era
amigo de toda a gente... E se rezasse, havia de fazer-me um
milagre... Nem parece que sou cego, Mãe! Ontem encontrei no
caminho o Zé Toinho a chorar, porque lhe tinha caído o pião ao
ribeiro, e depois eu desci a buscá-lo...
A mãe grita:
- E não caíste?
- Não vossemecê não se aflija, que eu nunca caio...
E apanhei o pião...
- Tem cautela, meu filho!
- Ó Mãe, eu rezo sempre, por isso nunca caio...
- ...
- Rezo sempre... sempre... Nunca caio, Mãe!
- Fazes bem, filho. E pela Ana também... E pelo milagre...
- Há de fazer, Mãe! Há de fazer...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
- Tens frio, João?
- Não, Mãe. A noite está fria...
- Eu tenho...
A criança volta-se para a lareira quase apagada. Sente que o calor
diminui e sabe que não há em casa mais um graveto para espevitá-
la... A mãe, doente, embrulhada numa velha manta, dormita, mas a
tosse sufoca-a, por vezes. A mãe tem frio... E não há lenha para
espevitar o lume. E se ele...
6. - Mãe, vossemecê quer que feche a porta?
- ...
A mulher, encolhida na manta, não responde. Dorme. João
arrasta-se em silêncio e sai para a noite escura e gélida. As nuvens
são flocos de algodão, mas ele não pode vê-las...
A mãe tem frio... A mãe está doente... A mãe não pode morrer de
frio... E pela primeira vez sente-se desesperado ao peso da sua
invalidez... Os pés enterram-se-lhe no chão espumoso de lama...
Onde ir? Onde procurar ajuda, se a noite é de neve? As mãos
dançam-lhe no espaço... E da alma sobe-lhe a prece feita choro:
«Jesus, que estás no Céu...»
E vai caminhando, às cegas... Tropeça e cai a soluçar, enrolando-
se na lama do barranco, como um farrapo velho e apodrecido.
Encontram-no na madrugada inerte, de mãos estendidas, voltadas
para o chão, num gesto de defender a cabecita ferida nos seixos
limosos da levada.
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- Como vai o pequeno?
- Ai, mulher que não há mezinha que o cure! Está para ali há dois
dias como morto sem falar, o meu menino, o meu menino... O
senhor tenha piedade de mim que sou uma infeliz...
A vizinha vai adiante, que o jantar se tarda... E ela fica-se ali
meditando as estranhas palavras do médico que socorreu a
criança...
- M...ã...ãe...e !...
- Meu filho!
E os braços da mulher, sôfregos e tensos, apertam o pequeno
num abraço de desesperada surpresa. Depois:
- Vossemecê sabe uma coisa?
E as mãos da criança são gaivotas, esvoaçando sobre a cabeça
grisalha da mãe...
- Não, meu Amor!
- Eu vejo-a, Mãe!!!...
A mulher ergue-se transfigurada. Depois, cai a soluçar, de joelhos
gritando como louca:
- Milagre! Milagre!!!
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
7. Quando ela se foi e me disse adeus, talvez para sempre, fiquei-me
a vê-la desaparecer, toda inclinada para o lado direito, pelo peso da
mala, na curva do caminho poeirento. E meditei por largos
momentos a estranha história desse rapazito que ela me acabava de
contar, história dum milagre que ela ajudara a realizar...
E, hoje, quando entro na sala e olho a secretária que ela outrora
ocupou, parece-me escutar, no silêncio povoado de coisas invisíveis,
as últimas palavras que me dirigiu: - «Ensine-os a rezar...»
Agora... Recordo-a. Onde foi? Não sei. Mas a história deste
estranho milagre ficou-me na alma…
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973.
Data da conclusão da edição no blogue – 22 de maio de 2012.
http://mariahelenaamaro.blogspot.com/