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HUBERTO ROHDEN




ASSIM DIZIA
 O MESTRE
      UNIVERSALISMO
ASSIM DIZIA O MESTRE



Assim Dizia o Mestre é o terceiro volume da coleção “Sabedoria do
Evangelho”, da qual fazem parte Filosofia Cósmica do Evangelho, O Sermão
da Montanha e O Triunfo da Vida sobre a Morte, todos de autoria do educador
e filósofo, professor Huberto Rohden.

São tentativas do autor para expor e explicar, numa linguagem filosófica e dos
nossos tempos, os “ditos de Jesus”, originariamente compilados e escritos
pelos evangelistas do primeiro século – Mateus, Marcos, Lucas e João.

As palavras do Mestre são, quase todas, alegóricas e simbólicas; para
compreendê-las devemos transcender a faculdade mental e atingir o nível
intuitivo da razão, ou Lógos, pois, a experiência do Evangelho representa a
mais estupenda verticalidade mística.

Rohden faz ver que o cristianismo não é uma ideologia espiritualística. O
profeta de Nazaré não ensinou uma doutrina “de fuga do mundo”. O
cristianismo não é ascético-espiritualista, nem epicureu-materialista. O
cristianismo é essencialmente cósmico, univérsico, afirmando a bipolaridade da
natureza, fora e dentro do homem – a complementaridade das coisas materiais
e espirituais. Aliás, como podemos observar, a própria vida do Cristo é
genuinamente cósmica; o que lhe mereceu, por parte dos espiritualistas
ascéticos da época, a alcunha de “comilão e bebedor de vinho, amigo de
publicanos e pecadores”.

Explica Rohden: “Até ao presente dia é muito mais importante,
pedagogicamente, proclamar o Evangelho do recusar do que o Evangelho do
usar, porque o abusar é ainda o grande pecado original desta humanidade
profana. É até perigoso recomendar a um abusador do mundo que use esse
mundo, porque ele confundirá fatalmente o uso correto com o abuso incorreto a
que está habituado; o seu complacente egoísmo facilmente lhe fará crer que é
um homem cósmico, quando não saiu ainda das baixadas do homem telúrico.

Isto, todavia, não invalida a nossa tese de que o cristianismo é, em sua íntima
essência, a religião do uso, ou seja, da afirmação do mundo – naturalmente
para os que já se libertaram da velha escravidão do abuso das coisas
materiais.

O homem cósmico ou crístico, tem que passar pela escola ascética da
disciplina espiritual, a fim de atingir a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.
Verdadeiramente, são estas as palavras e a mensagem deste livro.
ADVERTÊNCIA



A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar
é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a
transição de uma existência para outra existência.

O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado.

Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.

A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se
aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa
mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer
convenções acadêmicas.
PRELÚDIO



A grande aceitação dos dois primeiros volumes desta série sobre a “Sabedoria
do Evangelho” – 1 – Filosofia Cósmica do Evangelho; 2 – O Sermão da
Montanha – evidenciou a necessidade de encararmos a mensagem do
Nazareno sob o ponto de vista puramente espiritual, independente de qualquer
teologia eclesiástica. A Era do Aquário em que acabamos de entrar exige uma
visão universalista do Evangelho, cujo caráter é essencialmente cósmico.

Dentro em breve, se Deus quiser, seguirá o quarto e último volume da série,
sob o título O Triunfo da Vida sobre a Morte, abrangendo as palavras
proferidas pelo divino Mestre na última semana da sua vida mortal e no período
após a sua ressurreição.

A grande dificuldade de compreendermos o espírito da Sabedoria do
Evangelho está na falta de vivência do seu conteúdo. Ninguém sabe e
compreende, de fato, senão aquilo que vive intimamente, ou melhor, aquilo que
ele é nas últimas profundezas do seu ser. Saber é ser. Só quando o homem se
despoja de vez do “homem velho”, que anda ao sabor das suas
concupiscências, e se reveste do “homem novo, feito em verdade, justiça e
santidade”, é que ele compreende realmente a alma do Evangelho. E, porque
poucos praticam esse misterioso “egocídio”, são muitos os chamados e poucos
os escolhidos.

Para que o homem cruze a invisível fronteira que medeia entre a simples
análise mental e teológica do Evangelho e sua intuição espiritual e cósmica, é
necessário que ele crie dentro de si um clima ético favorável, porque a vivência
ética é o preliminar indispensável para a experiência mística, sem a qual o
Evangelho continua um “tesouro oculto”.

Essa experiência íntima abrirá ao homem purificado as portas secretas para
novos mundos, nunca dantes sabidos nem saboreados.

A “via purgativa” precede necessariamente a “via iluminativa”, e esta é
precursora da “via unitiva”. Ninguém sabe o que é Deus e o Cristo sem esse
tríplice processo ascensional da purificação, iluminação e união.

“Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais entrou em coração
humano o que Deus preparou àqueles que o amam”.
“NINGUÉM VAI AO PAI A NÃO SER POR MIM.”



Nenhum judeu, nenhum muçulmano, nenhum chinês, nenhum persa estará
disposto a aceitar esta afirmação categórica de Jesus, no sentido em que
certos cristãos costumam tomá-la. A maioria da humanidade não pertence ao
cristianismo eclesiástico, organizado. Reconhecem como seus chefes
espirituais a Moisés, Maomé, Krishna, Buda, Zaratustra e outros.

Afirmação categórica como a que encima este capítulo, quando tomada no
sentido costumeiro, desune a humanidade, criando ódios sectários e guerras
de religião.

Entretanto, a culpa desses males não cabe ao inspirado autor destas palavras,
mas à falsa interpretação dos que se dizem seus discípulos, sem possuírem o
espírito do grande Iluminado.

Todo o mal está na confusão de dois elementos distintos: Jesus e o Cristo.

O Divino Logos, ou Verbo, se uniu inseparavelmente ao humano Jesus, mas
essa união não aniquilou a distinção entre os dois elementos, divino e humano.

O eterno Logos, depois de se unir a Jesus, filho de Maria, chama-se o
“Ungido”, ou, em grego, o “Christós”.

Nenhum homem que não receba essa mesma unção (“chrisma”) do espírito de
Deus pode ir ao Pai. Ninguém vai a Deus a não ser através da unção do
espírito de Deus. A nossa natureza humana deve ser tão penetrada e
permeada do espírito de Deus que possamos dizer com Jesus Cristo: “Eu e o
Pai somos um”.

É nisso que consiste a verdadeira redenção e salvação do homem: na
realização dessa suprema cristificação.

Por espaço de diversos anos fui discípulo de um grande mestre espiritual
oriental, e nunca ouvi de lábios cristãos maiores apoteoses ao Cristo do que da
parte desse gentio. Nas aulas de filosofia e nas funções litúrgicas, esse hindu
só falava no Cristo, e o volume de 101 orações por ele compostas só falavam
do Cristo como único caminho à comunhão com Deus. Nenhuma estranheza
nos causava a nós, discípulos do brâmane hindu, essa sua atitude
essencialmente cristã, porque todos nós sabíamos que pela palavra “Cristo”
não entendia ele algum indivíduo humano, fundador duma determinada religião
ou igreja: não entendia a Jesus de Nazaré, filho da Virgem Maria, mas sim o
eterno Lógos, o espírito de Deus de que fala o princípio do quarto Evangelho, o
espírito eterno, absoluto, infinito, que se fez carne e habitou – e continua a
habitar – em nós: “Eu estou convosco todos os dias até à consumação dos
séculos”, “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estou eu no
meio deles”.

Em tempo algum da história da humanidade deixou o divino Logos de habitar
em nós; mas nem sempre encontra veículos humanos assaz receptivos e puros
para se manifestar com tamanho esplendor como fez na pessoa de Jesus de
Nazaré, “cheio de graça e verdade”.

O divino Logos encarnou-se em Moisés, em Isaías, em Jó, em Krishna, em
Buda, em Zaratustra, em Maomé, em Gandhi, e muitos outros veículos
humanos. Quando colocamos uma luz sob um recipiente opaco, nada
percebemos dessa luz, embora ela esteja presente. Se lhe dermos um
invólucro translúcido, percebemos a sua presença de um modo indireto. Mas
se essa mesma luz dermos um cristal transparente, a veremos em toda a sua
claridade.

Em Jesus de Nazaré encontrou o divino Logos a mais perfeita expressão até
hoje conhecida aqui na Terra, e por isso nós cultuamos o Cristo em Jesus
como o apogeu das revelações da Divindade.

Grande parte da humanidade não consegue ainda compreender a verdade da
imanência de Deus no mundo, e a imanência do Cristo no homem. É bem mais
fácil, para o homem comum, compreender a transcendência de Deus e do
Cristo – o Deus para além do mundo, e o Cristo fora do homem – do que a sua
imanência no mundo e no homem. Muitos transcendentalistas receiam o
conceito da imanência porque lhes parece destruir a transcendência.
Entretanto, laboram em erro! A afirmação da imanência não nega a
transcendência: pelo contrário, esta inclui aquela, e aquela inclui esta. O Deus
que está para além do mundo está também dentro do mundo e o Cristo que
estava e está em Jesus está também em cada um de nós, uma vez que ele “é
a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo”. O Cristo
interno é o Cristo externo, assim como o Deus imanente é o Deus
transcendente.

Mas a compreensão dessa verdade supõe notável maturidade espiritual, que
nem todos os homens possuem ainda.

As formas visíveis do invisível Logos sucedem-se, no tempo e no espaço,
percorrendo diversos graus de perfeição ou imperfeição, consoante o maior ou
menor grau de receptividade de seus veículos humanos temporários. Mas o
eterno espírito de Deus, o Logos, paira acima dessas vicissitudes múltiplas e
multiformes – assim como as ondas na superfície do mar se sucedem em
formas várias sem que o oceano deixe de ser sempre um e o mesmo, assim
como a vida universal do cosmos se concretiza e visibiliza sem cessar em
milhares e milhões de organismos vivos individuais, sem aumentarem nem
diminuírem a Vida em si mesma.

                                      ***

Em véspera de sua morte, dirigindo-se ao Pai eterno, diz Jesus: “Glorifica-me,
ó Pai, com aquela glória que eu tinha em ti, antes que o mundo fosse feito!”

Quem tinha essa glória antes da creação do mundo?

Certamente não o Jesus humano, que não existia ainda, mas sim o Cristo
divino, que estava com Deus, e encarnou no filho de Maria.

“Ninguém vem ao Pai a não ser por mim.” Abraão, Moisés, Davi e muitos
outros foram ao Pai por meio do Cristo, muito antes que esse Cristo se tivesse
revelado em Jesus. A redenção vem do Cristo. “Eu sei que meu redentor vive!”
– exclama Jó, no meio dos seus sofrimentos, professando a fé no Cristo
Redentor, milênios antes do nascimento de Jesus.

                                      ***

O nosso tradicional dualismo ocidental opõe barreira à evolução dessa
consciência do nosso Cristo interno, imanente. Para a maioria dos cristãos, o
Cristo é apenas aquele homem que, há quase dois mil anos, viveu em terras
longínquas, e no qual se deve crer, sem jamais poder experimentá-lo
vitalmente, aqui na Terra, assim como Paulo de Tarso o vivia quando
exclamava: “Já não vivo eu – o Cristo é que vive em mim!”

Seria grotesco supor que Paulo acreditasse que a pessoa humana de Jesus
tivesse tomado posse dele, de maneira que nele houvesse uma duplicata de
personalidades, uma chamada Paulo e a outra chamada Jesus. O que o
apóstolo quer dizer é que nele acordou o Cristo que nele estivera dormente
tantos anos, o mesmo Cristo que em Jesus estava gloriosamente operante.

É, pois, necessário que todo homem que queira ir ao Pai acorde em si o Cristo
e o faça soberano da sua vida, porque a todos aqueles “que o recebem dá-lhes
ele o poder de se tornarem filhos de Deus”.

“Ninguém vem ao Pai senão por mim.”

Ninguém alcança a redenção, o reino dos céus, a não ser que nasça de novo
pelo espírito.
“ALEGRAI-VOS, PORQUE OS VOSSOS NOMES ESTÃO

                  ESCRITOS NO LIVRO DA VIDA ETERNA.”



Certo dia, regressaram os discípulos de Jesus de uma excursão apostólica e
referiram ao Mestre, cheios de jubiloso entusiasmo, que os próprios demônios
lhes estavam sujeitos. O Mestre, porém, replicou calmamente: “Não vos
alegreis pelo fato de que os demônios vos estejam sujeitos: alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos no livro da vida eterna.”

Com outras palavras: o alvo principal do apostolado não está nos resultados
visíveis da atividade externa, mas sim na invisível realidade da santidade
interna. Ser é mais importante que fazer.

Até os nossos dias, são bem mais numerosos os homens que põem maior
ênfase nas atividades externas do que na atitude interna; dificilmente
compreendem que esta é mais importante do que aquelas.

A atividade social não tem valor autônomo em si mesma, se não brotar da
atitude mística do homem. Pouco importa, afinal de contas, o que o homem
faça ou diga – o que importa, e muitíssimo, é o que o homem é. Podem os
trabalhos de Marta ser bons e louváveis em si mesmos, mas se não forem o
natural eflúvio e a manifestação espontânea da atitude interna de Maria, são
outros tantos zeros, pequenos e grandes, cuja soma ou produto será sempre
igual a zero. Somente o fator espiritual, o grande “1” vertical, é que pode
conferir valor e plenitude a essas vacuidades horizontais: 1.000.000.

Há nas atividades externas, quando dissociadas da realidade interna, dois
gravíssimos perigos.

1 – Essas atividades, facilmente, embalam seu autor numa falsa segurança,
criando nele uma complacente auto-suficiência em face dos resultados
colhidos, impedindo-o de passar para além daquilo que já realizou, ou julga ter
realizado. Essa suava auto-ilusão e complacente suficiência são o maior
desastre espiritual para o homem externamente ativo e internamente passivo,
porque o fazem entrar numa zona de estagnação espiritual. Ai do homem
plenamente satisfeito com seus trabalhos externos! O único fator que pode
preludiar a sua redenção é uma profunda insatisfação consigo mesmo.
Incomparavelmente mais importante que os mais gloriosos trabalhos no plano
horizontal é a intensificação do ser vertical. Pouco vale o fazer, o dizer e o ter
no mundo dos objetos quantitativos, se no mundo do sujeito qualitativo não
existir um profundo ser.

2 – O segundo perigo está em que esse homem exteriorizado julgue influir
sobre seus semelhantes com o que faz e diz – quando é impossível promover a
verdadeira conversão de outrem se eu mesmo não sou um genuíno e autêntico
convertido, isto é, um homem intimamente unido a Deus. Só o meu ser é que
pode influir sobre o ser de outros; mas, se o meu ser é fraco, não poderá dar
força aos fracos. Só um poderoso positivo é que pode atuar sobre os negativos
em derredor; se eu mesmo não for 100% positivo, por uma intensa e profunda
experiência de Deus, não poderei exercer influência real sobre os outros,
igualmente negativos. Podem os meus ouvintes ou leitores admirar-me, sim, e
aplaudir-me; mas não se sentirão com forças para abandonar o mundo noturno
das suas misérias morais e entrar no mundo diurno da virtude e santidade,
porque não veem esse mundo concretizado em minha pessoa. E mesmo no
caso favorável que julgassem esse mundo divino realizado em mim, não se
converteriam realmente a Deus, pois não são as aparências que atuam, mas
sim a realidade, realidade essa que, nesse caso, estaria ausente de mim.
Posso, sim, dizer mil vezes, com grande eloquência, que esse mundo do
espírito é grandioso e belo, e os meus ouvintes ou leitores, na melhor das
hipóteses, crerão nas minhas palavras – mas do crer ao ser vai distância
enorme. Crer é uma teoria longínqua e vaga – ser é uma realidade propínqua e
forte. É dificílima a transição do crer para o ser, e se ninguém vir esse ser
concretizado numa pessoa humana, dificilmente passará a encarnar o seu
longínquo crer num propínquo ser, isto é, não se converterá porque não me vê
convertido.

O convertido é aquele que pode, em verdade, dizer: “Eu e o Pai somos um”.
“Já não sou eu que vivo, o Cristo é que vive em mim.”

As minhas palavras de não-convertido eloquente, possivelmente, darão muita
luz aos ouvintes ou leitores: mas falta força, que não vem das palavras, mas da
realidade espiritual do indivíduo humano, no qual o “Verbo” se tenha feito carne
e habite substancialmente, “cheio de graça e de verdade”.

Pode ser que um determinado homem tenha a missão de pregar às multidões,
escrever livros ou exercer outro trabalho social qualquer – e deve cumprir esta
sua missão do melhor modo possível.

Mas ai dele se vir nessas atividades a principal tarefa da sua vida!

Há outra coisa, infinitamente mais importante, do que qualquer trabalho externo
– é o próprio homem, a sua plena realização crística, para o qual aqueles
trabalhos estão como meios para um fim. Atividades externas nunca devem ser
outra coisa a não ser um como que transbordamento espontâneo de uma
plenitude interior. Se essa plenitude não existe – que é que pode transbordar?
Alguma vacuidade camuflada em plenitude, isto é, uma grande mentira
apresentada com sendo verdade?... Fogo pintado não dá luz nem calor – ao
passo que a menor parcela de fogo real pode atear incêndios e iluminar
mundos inteiros.

Pouco importa o que o que o homem diga, faça ou tenha – tudo importa o que
ele é. O que ele é refere-se à qualidade do seu íntimo Eu – o que ele diz, faz
ou tem refere-se às quantidades do seu externo ego.

Referem os Atos dos Apóstolos que, quando os chefes espirituais da primitiva
igreja cristã perceberam que se iam dispersando em atividades externas e
trabalhos sociais de organização, disseram: “Não convém que nós sirvamos as
mesas; vamos nomear auxiliares idôneos para essa tarefa; nós, porém, vamos
dedicar-nos à oração e à pregação da palavra do Senhor.”

Sabiam esses discípulos do Cristo que o fator decisivo, em qualquer trabalho
de caráter espiritual, é a espiritualidade de quem preside a esse trabalho,
aquilo que ele é no seu íntimo ser, e não aquilo que ele realiza ou organiza no
plano externo.

A caridade social realiza grandes obras – mas só o Amor espiritual realiza o
homem.

Onde quer que exista um homem plenamente realizado pelo Amor, ali serão
realizadas grandes coisas, e essas coisas serão fecundas e benéficas; mas
onde não há realização pelo Amor, senão apenas caridade, ali se realizarão
ruidosos trabalhos externos, que, por melhores em si mesmo, correrão perigo
de colapso e desintegração, por falta de sacralidade interior.

Pouco importa o que o homem realize no mundo externo dos objetos – tudo
importa o que ele realiza em si mesmo. Uma única auto-realização supera
todas as alo-realizações.

“Se um único homem chegar à plenitude do Amor, neutralizará o ódio de
milhões” (Mahatma Gandhi).

Ainda que todos os demônios da Terra, todo o mundo material e astral, me
estivessem sujeitos, mas se o meu nome não estivesse escrito no livro da vida
eterna, não haveria redenção para mim.
“DEUS É DEUS DOS VIVOS, E NÃO DOS MORTOS,

                 PORQUE PARA ELE TODOS SÃO VIVOS.”



Na memorável dissertação que Jesus teve com os saduceus, que negavam a
ressurreição, profere ele palavras tão profundas que, por si sós, valem por uma
inteira filosofia cósmica.

Em primeiro lugar, desmascara o erro dos seus tentadores, fazendo-os ver
que, na futura “eternidade” (em grego: aion, ciclo de longa duração), não se
casa nem se dá em casamento, porque os que forem achados dignos dessa
futura “eternidade” são como os anjos de Deus nos céus, por serem filhos da
ressurreição; quer dizer, revestidos de corpo imortal e incorruptível. E, por isso,
não necessitam de casamento, porquanto já não há necessidade de
procriação, fim biológico do casamento. Num mundo onde cessou a destruição
do corpo pela morte não há razão para a construção de novos corpos, uma vez
que a existência do corpo se acha definitivamente estabilizada e garantida pela
incorruptibilidade. Só há necessidade de multiplicação quantitativa de corpos
enquanto o corpo não houver atingido o seu estágio definitivo de perfeição
qualitativa.

Quanto menos perfeito ou espiritual é um corpo, tanto maior é nele o instinto
sexual, que é a voz da mortalidade, a qual, sabendo serem os corpos dos
genitores mortais, procura criar outro corpo a fim de fugir à mortalidade. Onde
não há imortalidade individual reina a tendência de criar mortalidade racial; a
imortalidade da espécie ou raça tem de suprir a falta de imortalidade do
indivíduo. Mas onde esta se tornou gloriosa realidade, cessa a tendência
sexual da procriação de novos indivíduos. A grande vertical da imortalidade
individual suplantou a extensa horizontal das individualidades mortais. Por isso,
nos grandes gênios espirituais da história é mínimo ou nulo o instinto sexual; a
horizontal da espécie foi absorvida pela vertical do indivíduo. A mística
substituiu a erótica, nesses “eunucos do reino de Deus”.

Certas igrejas, seitas ou grupos religiosos compreenderam essa verdade; mas,
como os seus adeptos não haviam atingido a necessária maturidade espiritual
para neutralizar a horizontal do sexo pela vertical do indivíduo, essas
sociedades legislaram sobre o assunto, criando artificialmente a “lei do
celibato”, imposta a indivíduos espiritualmente imaturos, dando ensejo a um
doloroso dualismo de permanente hipocrisia: devem fazer o que fazer não
podem.
Quer dizer que nascimento e morte não fazem parte da natureza humana
quando ela atingir a sua perfeição suprema, mas são funções temporárias do
corpo humano em estado primitivo, material. Quem é “filho da ressurreição” é
como os “anjos de Deus nos céus”, isto é, realizou a transformação do seu
corpo material, corruptível, num corpo imaterial, incorruptível. A “ressurreição”
não é a revivência do corpo material, mas é a potencialização dinâmica do
corpo material num corpo espiritual, como é o das inteligências sobre-humanas
que comumente chamamos “anjos”, isto é, “emissários” [1].

--------------
[1] A palavra grega “ángelos”, em latim “angelus” (anjo), quer dizer literalmente “emissário”, “arauto”,
“mensageiro”, designando entidades conscientes e livres revestidas de corpo imaterial e invisível. Quando
um ser desses de alta hierarquia cósmica se opõe a Deus chama-se “satã”, palavra hebraica para
“adversário”, em grego “diábolos”, que quer dizer “opositor”. Quando essa entidade superior harmoniza
com o espírito de Deus e lhe transmite a vontade aos planos inferiores do cosmos, chama-se
significativamente “mensageiro” ou “ángelos” (anjo). Tanto anjo como diabo são “lúcifer”, mas, enquanto
aquele é um “lúcifer” harmonizado com Deus, este é hostil a Deus.

A nossa teologia fala na imortalidade da alma, ao passo que os livros sacros
consideram imortal o homem todo; verdade é que o grosso da humanidade não
alcançou ainda a imortalidade corpórea atual, o que não obsta a que essa
imortalidade do corpo exista, agora mesmo, em estado potencial. O corpo
humano, potencialmente imortal, pode tornar-se atualmente imortal; essa
transição da potência para o ato depende da maturação espiritual da alma.
Toda alma que tenha atingido, digamos, 100% da consciência espiritual
confere imortalidade atual a seu corpo. A alma imortal unida a um corpo imortal
é o estado natural do homem completo, do homem cósmico ou crístico.

O corpo espiritual é essencialmente idêntico ao corpo material; apenas o seu
modo de ser é diferente. A identidade é perfeita. O homem não terá diversos
corpos, sucessivos, mas um só corpo, com diversos graus de perfeição,
consoante o grau de consciência da alma. O corpo é um “templo em que habita
o espírito de Deus”, na expressão de Paulo; e nunca deixará de habitar nesse
santuário.

Quando os discípulos de Jesus, vendo o Mestre redivivo, cuidaram ver um
fantasma, apressou-se ele a provar-lhes a perfeita identidade do corpo do
ressuscitado com o corpo do crucificado, mostrando-lhes os sinais dos cravos e
da lança.

Ora, o que aconteceu com o corpo de Jesus acontecerá com os corpos de
todos os homens quando estes tiverem alcançado suficiente grau de
cristificação. Elias e Moisés, consoante as Escrituras, não passaram pela morte
física, mas transformaram os seus corpos materiais em corpos imateriais,
desaparecendo assim dos olhos que apenas percebem objetos materiais.
Quando a matéria se desmaterializa, passa, primeiramente, pelo estado de
energia luminosa, ainda focalizada e, por isso, visível; depois, essa mesma
energia luminosa se torna invisível, porque desfocalizada. Refere o texto que o
profeta Elias ascendeu às alturas arrebatado num “carro de fogo”; quer dizer
que o seu corpo desmaterializado pela força da alma foi visto como uma
nuvem, luminosa, passando depois ao estado da luz cósmica, invisível. De
Moisés refere o texto que foi levado por Deus às alturas do monte Nebo e ali
desapareceu misteriosamente, sem que jamais fosse encontrado vestígio do
corpo dele. Houve, pois, uma desmaterialização instantânea do corpo de
Moisés, de maneira que nem o estágio intermediário da energia luminosa foi
verificado. Durante a transfiguração de Jesus, reaparecem, visibilizados, os
corpos imateriais de Elias e Moisés, ao lado do corpo de Jesus, também em
estado de energia luminosa. Jesus, desde o início, possuía o poder de
desmaterializar e rematerializar o seu corpo, como mostrou diversas vezes
durante a sua vida mortal; afirma categoricamente: “Ninguém me tira a vida; eu
deponho a minha vida (física) e retomo a minha vida quando quero; porque
este poder me foi dado pelo meu Pai”. O que ele chama o “Pai” é o elemento
divino dele: “O Pai está em mim e eu estou no Pai”.

Há, sobretudo na Índia, diversos casos em que homens de alta espiritualidade
transformaram o seu corpo material em corpo imaterial, desaparecendo da
zona do visível sem terem morrido, e reaparecendo periodicamente, durante
séculos.

A ressurreição, ou transformação do corpo, é um ato do “poder de Deus”. Esse
poder de Deus está dentro de cada homem em forma de sua alma, o “espírito
de Deus que nele habita”, o nosso “Cristo interno”. Mas só quando a alma,
superando o testemunho dos sentidos e da mente, alcançar plena consciência
da sua essencial identidade com Deus, e viver essa sua divina identidade pelo
amor universal, é que ela conquista o “poder de se tornar filho de Deus”, e esse
poder divino, saturando todas as células do corpo, confere incorruptibilidade à
matéria corruptível. “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, porque para
ele todos são vivos”...
“AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, COM TODO O TEU CORAÇÃO,

           COM TODA A TUA ALMA, COM TODA A TUA MENTE

                    E COM TODAS AS TUAS FORÇAS.”



Não há cristão, nem outro homem religioso, que não afirme amar a Deus do
modo como vem expresso nestas luminosas palavras do divino Mestre.

Entretanto, vai nisso, quase sempre, uma grande ilusão. Por quê?

Porque é absolutamente impossível amar, real e intensamente, um Ser do qual
não se tenha experiência direta e imediata. A imensa maioria dos homens
religiosos apenas crê em Deus. Ora, o objeto da nossa crença ou fé nunca
pode ser objeto de um verdadeiro amor. Ninguém pode amar uma doutrina, um
dogma, um artigo de fé.

O crente, quando muito, quer amar, mas não ama de fato. Querer amar é um
ato volitivo, uma prova de boa vontade, mas não é amar. O amor, assim como
Jesus o descreve nas palavras acima, não é apenas um ato de boa vontade,
mas é o resultado de uma profunda, misteriosa e fascinante experiência vital do
homem em toda a sua plenitude – alma, coração, mente e corpo. Ninguém
pode amar um ser ausente, do qual ouviu falar e no qual crê apenas
volitivamente. O Deus da nossa crença é um Deus longínquo, transcendente –
ao passo que o Deus do nosso amor é um Deus propínquo, imanente. Quem
apenas crê num Deus distante, transcendente, pode, sim, querer amá-lo, mas
não o pode amar de fato. O amor real é algo intensamente próximo, íntimo,
ardente; é uma verdadeira fusão do amante e do amado – “eu e o Pai somos
um”, “o Pai está em mim, e eu estou no Pai”.

De maneira que, em última análise, há só uma classe de homens que, de fato,
amam a Deus – são os verdadeiros místicos, os intuitivos, os videntes do
mundo da Divindade, os que têm de Deus uma experiência vital, imediata; são
os que sabem o que é Deus em virtude de um contato direto, de uma vivência
onipenetrante. São estes os únicos que amam a Deus de todo o coração, de
toda a alma, de toda a mente e com todas as forças do seu corpo.

Mas, como os verdadeiros místicos são raros, bem poucos são os homens que
realmente amam a Deus de acordo com as palavras de Jesus. Talvez que, até
a presente data, um só homem tenha atingido as culminâncias desse amor
integral. E era precisamente esta a razão por que possuía “todo o poder no céu
e na Terra”, porquanto o verdadeiro amor é onipotente por sua própria
natureza.

Quem tudo compreende tudo ama.

Quem tudo ama tudo pode.

Compreender, amar e poder – essas três coisas são na realidade uma só.

Enquanto o homem ignora qualquer coisa não ama ainda integralmente,
porque o seu amor está limitado àqueles seres que se acham dentro do
luminoso círculo da sua compreensão, ao passo que os outros seres que ficam
fora dessa zona de compreensão não são nem podem ser objetos do seu
amor.

Amor universal supõe compreensão universal.

E uma vez que o homem tudo compreende e tudo ama – que limite poderia
haver ainda para o seu poder?

Se sem limites é o seu compreender e o seu amor, sem limites tem de ser,
necessariamente, o seu poder.

Onicompreensão é oniamor e onipotência!

                                      ***

O que no Evangelho de Jesus se chama “fé” é, de fato, uma experiência e uma
direta vivência da Suprema Realidade, mas o que as nossas teologias,
geralmente, entendem por “fé” não passa de um entender intelectivo ou de um
querer volitivo. E esse entender e esse querer, esse crer, ou esse querer-crer,
não podem deixar de ser fracos e insatisfatórios; nada têm da força irresistível
de um profundo e fascinante compreender e viver.

No momento em que o homem transpõe a fronteira do seu velho e débil “crer”,
entrando na zona de um novo e forte “compreender”, sabe ele pela primeira
vez o que Jesus quis dizer com as tão conhecidas e tão desconhecidas
palavras: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua
alma, de toda a tua mente e com todas as tuas forças.”

Alma, coração, mente, forças corpóreas – o homem integral!

Compreendemos que o homem possa amar a Deus com a alma, o espírito,
porque Deus é espírito.

Mas o que, à primeira vista, nos parece estranho é que o homem possa amar a
Deus também com o coração, com a mente e até com as forças do corpo.
Como posso amar afetiva, intelectiva e até fisicamente um Ser que é puro
espírito? Como podem o coração, a mente, o corpo atingir esse objeto de
amor?

De fato, se Deus fosse apenas um Deus transcendente, puro espírito abstrato,
só os puros espíritos o poderiam amar; mas, sendo Deus, além de
transcendente às suas obras, também imanente em cada uma das suas
creaturas, é possível que o amemos também com o coração, com a mente e
com o corpo.

Deus é inconsciente no mineral.

Deus é subconsciente no vegetal.

Deus é semiconsciente no animal.

Deus é egoconsciente no intelectual.

Deus é pleniconsciente no espiritual.

Deus é oniconsciente em si mesmo.

Se Deus não fosse imanente em suas obras, ninguém o poderia amar com as
faculdades do coração, da mente e do corpo.

Como Verdade, Deus é Transcendente.

Como Beleza, Deus é Imanente.

Quando a Verdade e a Beleza se fundem numa grandiosa sinfonia, surge a
estupenda Poesia do Cosmos, síntese de Verdade e Beleza.

A Verdade é infinitamente bela.

A Beleza é profundamente verdadeira.

Por isso, a Vida Eterna é necessariamente a eterna Beatitude, porque nasce do
consórcio do Verdadeiro e do Belo, que é Amor.

Enquanto o “amar Deus” é apenas um preceito ético, um dever, um imperativo
categórico da consciência moral, não despertou ainda a alma do amor; só
quando esse “amar a Deus” deixa de ser um compulsório dever e se
transforma num espontâneo querer, numa luminosa compreensão, num
irresistível entusiasmo – então é que o homem entra no “gozo do seu Senhor”.

Então sabe ele que é amor.

Sabe o que é o Cristo.

E sabe o que é ele mesmo.
“QUEM NÃO RENUNCIAR A TUDO QUE TEM

                    NÃO PODE SER MEU DISCÍPULO.”



Ter – ou Ser?

É a esses dois monossílabos que se reduz, em última análise, toda a filosofia
do Evangelho e toda a sabedoria dos séculos.

Ter – ou Ser?

Duas atitudes eternamente incompatíveis.

“Ninguém pode servir a dois senhores.”

O homem que tem algo não pode ser alguém e vice-versa.

O homem profano só conhece o ter, ou os teres, isto é, certo numero de
objetos quantitativos, que estão ao redor dele, no plano horizontal, e que ele
considera ingenuamente como sendo seus bens. O profano total nada sabe do
seu intimo ser, de algo que não é dele, mas que é ele mesmo. Pode alguém
ser milionário no plano horizontal dos seus teres, e ser ao mesmo tempo
mendigo indigente na zona vertical do seu ser. De tanto ter não chega a ser
alguém.

Outros, mais avisados, resolvem renunciar a todos os seus teres e se isolam
no puro ser, isto é, na divina essência do seu eterno Eu, sua alma, seu Cristo
interno. E, de tão enamorados desse seu verdadeiro ser, desprezam
soberanamente todos os ilusórios teres dos profanos. São os ascetas, os
místicos, os iogues, os austeros desertores de todas as coisas periféricas, os
impávidos bandeirantes da verdade central. E, por mais tenebrosa que a outros
pareça essa noite da renúncia absoluta e incondicional, ela é solene e
grandiosa, porque possui a fascinante sacralidade das noites estreladas...

É a estes que Jesus se refere nas palavras que encimam o presente capítulo:

“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”

Quer dizer quer qualquer ter, ou posse de objetos externos, impede o homem
de ser discípulo do Cristo, ele, que não tinha onde reclinar a cabeça – nada
tinha porque tudo era; porque o seu ter descera ao ínfimo nadir, quando o seu
ser atingira o supremo zênite. Por fim, renunciou também ao ter mais
intimamente ligado ao ser, o corpo físico. E assim acabou ele de “entrar em sua
glória”.

Pode parecer estranho e humanamente inexequível esse inexorável
radicalismo do Mestre. E não faltou quem mobilizasse contra essa sangrenta
verdade da renúncia absoluta e incondicional todas as legiões da dialética
mental, a ver se conseguia salvar do naufrágio ao menos alguns dos seus
queridos ídolos, a ver se conseguia passar pelo “fundo da agulha” pelo menos
com uma parte da bagagem que o profano costuma levar de reboque, nessa
jornada terrestre; habituado em todos os paraísos da Terra, tentam eles aplicar
essa sua política e diplomacia também ao Evangelho do reino de Deus.

Entretanto, as palavras do Mestre não admitem vestígio de dúvida; são
inexoravelmente claras: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser
meu discípulo” – tudo, sem exceção de coisa alguma! O episódio trágico do
jovem rico é uma ilustração clássica para essa verdade austera.

Tudo quanto o homem possui em bens terrestres torna-o dependente e
escravo; mas o reino dos céus é somente para as almas completamente livres.
Enquanto o homem tem algo que o mundo lhe possa tirar, ou deseja algo que o
mundo lhe possa dar, não é definitivamente livre, e por isso discípulo do Cristo.
Os nossos teres quantitativos nos excluem do reino dos céus – o nosso ser
qualitativo nos faz entrar no reino de Deus. Aproximamo-nos de Deus na razão
direta do que somos, e na razão inversa do que temos. O ter é nosso, o ser é
de Deus.

Mas, em que consiste esse ser?

Consiste na consciência da verdade sobre nós mesmos. Se conhecermos a
verdade sobre nós mesmos, seremos livres. “Conhecereis a verdade, e a
verdade vos libertará. E, se o Filho do homem vos libertar, sereis realmente
livres.”

Essa verdade libertadora sobre nós mesmos porém está na experiência íntima
da nossa essencial identidade com Deus – “eu e o Pai somos um” – e na
completa harmonia da nossa vivência cotidiana com essa verdade suprema.

                                       ***

Mas... não é necessário que o homem, aqui no mundo, possua certas coisas?
Poderá ele viver decentemente sem possuir nada? Bastará aqui na Terra o
simples e puro ser? E não é um certo ter compatível com esse ser?

É este, talvez, o ponto em que o cristianismo organizado falhou mais
deploravelmente, e, o que é pior, as próprias igrejas cristãs procuram justificar
esse espírito de possessividade de seus filhos – tanto mais que os próprios
chefes espirituais são, não raro, os maiores possuidores de bens materiais.
Será que a muitos desses chefes não caberiam as palavras veementes com
que o Cristo fulminou os guias de Israel? “Guias cegos guiando outros cegos,
mas se um cego guiar outro cego ambos acabarão por cair na cova! Ai de vós
doutores da lei! Roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus! Vós
não entrais nem permitis que outros entrem!”

Não há nada no Evangelho em que o divino Mestre insista com maior rigor e
frequência do que no espírito de absoluta e total renúncia aos bens terrenos;
por sinal que ele considera a posse desses bens como absolutamente
incompatível com o espírito do reino de Deus.

À primeira vista, parece possível e até necessário esse consórcio entre o ser e
o ter, razão por que os teólogos e moralistas cristãos de todos os tempos têm
tentado realizar esse congraçamento. Entretanto, continua a ser verdade
inconcussa que “ninguém pode servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro”.
Ter algo e ser alguém são duas antíteses tão inexoravelmente hostis que
nenhum tratado de paz é possível entre essa duas potências, assim como
impossível é um consórcio entre as trevas e a luz, entre o não e o sim, entre a
morte e a vida.

Entretanto, sem revogar o que acabamos de dizer, passaremos a explicar dois
termos: possuir e administrar. É possível que o homem seja discípulo do Cristo
e ao mesmo tempo administre parte dos bens de Deus em benefício dos outros
filhos de Deus, seus irmãos. Deus é o único dono, proprietário e possuidor de
todas as coisas que ele creou; nenhum homem é dono de coisa alguma e, se
ele se arroga o direito de ser proprietário disso ou daquilo, comete crime de
“apropriação indébita”, roubando a Deus e aos filhos de Deus algo que lhe não
pertence. Por isso, nenhum genuíno discípulo do Cristo se considera
possuidor, dono ou proprietário do dinheiro ou de quaisquer bens materiais
que, casualmente, estejam sob a sua administração; considera-se
invariavelmente como simples administrador desses bens, de cujo emprego
terá de dar estreitas contas ao legítimo senhor e proprietário.

Lemos nos Atos dos Apóstolos que entre os primeiros discípulos do Cristo não
havia propriedade particular, mas que todos os bens eram comuns. Não existia
nenhuma lei externa que obrigasse os cristãos a socializarem os seus bens,
mas havia neles a lei interna do amor nascido da compreensão da grande
verdade de que todas as coisas do mundo são de Deus e que nenhum filho de
Deus tem o direito de arrogar a posse exclusiva duma parte desses bens. A
administração desses bens deve ser entregue a pessoas que tenham maior
capacidade, e sobretudo maior espírito de desapego, mas o usufruto dos bens
deve reverter sempre em prol da humanidade como tal. Se os homens se
considerassem administradores, em vez de possuidores dos bens materiais,
seria proclamado o reino de Deus sobre a face da Terra; cessariam guerras,
explorações, brigas, roubos, assassinatos, etc. “A cobiça é a raiz de todos os
males”, dizem os livros sacros.

                                       ***

Esse conceito de administração, em vez de propriedade, é um simples e
espontâneo corolário da realização crística do homem. Em face do nascimento
do sol do ser empalidecem todas as estrelas noturnas do ter. O homem crístico
sente intuitivamente a total incompatibilidade entre o “ser discípulo do Cristo” e
“possuir bens terrenos”. Essa alternativa representa para ele um dilema de
lógica inexorável; ou isto – ou aquilo! Uma vez que ele conhece a sua sublime
dignidade em Cristo Jesus, como poderia ainda degradar-se ao ponto de
colocar a mão, pesadamente, sobre algum pedaço de matéria morta e declarar
enfaticamente: “Isto aqui é meu, e de mais ninguém!” Semelhante atitude lhe
pareceria tão incrivelmente ridícula e vergonhosa que ele não a perdoaria a si
mesmo. E se, pelas forças das circunstâncias, esse homem for obrigado a
assinar em cartório, com firma reconhecida, algum documento de propriedade,
tem ele plena constância de que esse instrumento de posse vigora apenas no
plano horizontal das pobres relações humanas, mas que nada significa na zona
vertical da sua atitude espiritual e ética perante Deus e seus irmãos humanos;
esse homem sabe que a despeito do que ele assinou sobre as infalíveis
estampilhas, testemunhas da humana desconfiança e inconfidência, continua a
não ser dono e proprietário de coisa alguma.

Também, como poderia um genuíno discípulo do Cristo declarar de boa fé
“este objeto me pertence”, quando ele mesmo já não se pertence, uma vez que
pertence a Deus e à humanidade? Como apropriar-se de um objeto, se ele já
desapropriou o próprio sujeito? Com o voluntário naufrágio do meu falso eu, do
ego personal, naufragaram também todos os bens que eu chamava falsamente
meus. A ideia do meu nasceu com a ideia do eu; quando esse eu morre,
morrem necessariamente todas as ilusões relacionadas com o meu. O EU
verdadeiro, divino, nada sabe de meus, porque o zênite do ser provoca o nadir
do ter; quem tudo é nada tem; a intensa luminosidade do ser aniquila todas as
trevas do ter. Quem de fato é discípulo do Cristo nada tem nem quer ter, para
si mesmo, embora possa prestar-se para administrador duma parte dos bens
de Deus em prol de seus irmãos.

O que eu considero meu só tem função enquanto ainda vive em mim a noção
do eu físico-mental; no momento em que o meu pequeno eu personal se afogar
nas profundezas do TU divino e no vasto NÓS da humanidade, deixa esse
conceito de meu ter razão de ser; é como um objeto suspenso no vácuo,
depois que se lhe foi subtraído o sujeito de inerência que lhe servia de base e
substrato.

Por isso, o homem que atingiu a plenitude do seu ser, pelo despontar da
consciência cósmica, perde toda a noção de posse e propriedade. Nada
adquire e nada perde. O fluxo e refluxo incerto de lucros e perdas deixou de
existir para ele, e com isso foi eliminada a fonte principal da inquietação que
atormenta os profanos. Nada possui que o mundo lhe possa tirar, e nada
deseja possuir que o mundo lhe possa dar. Entretanto, se as circunstâncias
terrenas o nomearam administrador do patrimônio de Deus e da humanidade,
esse homem administra com a máxima solicitude esse patrimônio terrestre
universal.

Pela mesma razão, o homem que se despojou dos teres pela maturação do ser
não experimenta a menor dificuldade nem tristeza em passar a outras mãos a
gestão dos negócios temporários que lhe foi confiada.

O grande industrial norte-americano R. G. Le Tourneau, fabricante de
possantes máquinas de terraplenagem, mandou colocar sobre a entrada de
uma das suas fábricas o seguinte letreiro:

“Não digas: Quanto do meu dinheiro eu dou a Deus?

Dize antes: Quanto do dinheiro de Deus eu guardo para mim?”

Esse homem descobriu que nós não temos dinheiro algum, mas que todas as
coisas do mundo são de Deus; entretanto, pode o administrador dos bens de
Deus tirar para si uma pequena “comissão”. Le Tourneau, no princípio, tirava
uma comissão de 90% para si, dando 10% a Deus, para fins de altruísmo e
religião; por fim inverteu as quotas, dando 90% a Deus e guardando 10% para
si. Entretanto, mesmo desses 10%, Le Tourneau não se considerava
proprietário, senão apenas administrador, porque também esse dinheiro
pertencia a Deus e à humanidade.

“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”
“QUEM DE VÓS ME ARGUIRÁ DE UM PECADO?”



O pecado só é possível na penumbra da egoconsciência, criada pelo intelecto.
Não é possível nas trevas da inconsciência, que envolve o mundo dos sentidos
materiais; nem é possível na luz meridiana da pleni-consciência, que ilumina as
alturas espirituais da razão, do Logos, que, em sua forma encarnada, se chama
o Cristo.

Nem a inconsciência nem a pleni-consciência conhecem o pecado. O pecado é
um fenômeno privativo da semi-consciência. Nem os sentidos nem a razão
podem pecar; nem o corpo nem a alma pecam – tão-somente a inteligência,
esse lúcifer do ego mental.

Ora, sendo o Cristo a Razão, o Logos, o Espírito divino – como poderia haver
pecado na zona da impecabilidade?

Deus é transcendente a tudo e imanente em tudo.

Na sua essência, é Deus totalmente presente e imanente em todas as coisas –
mas no plano da manifestação dessa sua essência há grandes diferenças.
Deus, embora imanente em cada ser, não se manifesta do mesmo modo em
todos os seres. A sua essência é invariável, mas a sua manifestação é variável.
Repetimos:

Deus é inconsciente no mineral.

Deus é subconsciente no vegetal.

Deus é semiconsciente no animal.

Deus é egoconsciente no intelectual.

Deus é pleniconsciente no racional.

Deus é oniconsciente em si mesmo.

Só na zona penumbral da egoconsciência é que é possível o pecado.

O pecado supõe consciência, porém uma consciência imperfeita.

O pecado consiste na ilusão da nossa separação de Deus, ilusão essa creada
pelo intelecto.
Somos distintos de Deus, é certo, porque Deus é transcendente a cada uma
das suas creaturas.

Mas não estamos separados de Deus, porque Deus está imanente em cada
uma das suas creaturas.

Não somos idênticos a Deus nem separados de Deus – mas somos distintos
dele, porque somos iguais a Deus pela essência divina universal – e somos
desiguais dele pela existência humana individual.

O dualista afirma a transcendência e nega a imanência.

O panteísta nega a transcendência e afirma a imanência.

O monoteísta absoluto, o monista ou universalista, afirma                 tanto a
transcendência como a imanência, atingindo assim a verdade total.

O intelecto separatista nos faz pecar – a razão unista nos redime do pecado.

O intelecto é o precursor da razão – a razão integra em si o intelecto.

Só nos pode redimir o que é remido.

Só o impecável nos pode purificar do pecado.

Ninguém vai ao Pai a não ser pelo Cristo – o Cristo, porém, como diz o quarto
Evangelho, é o divino Logos, a Razão suprema, que fez carne e habitou entre
nós.

Habitou entre nós, historicamente, na pessoa de Jesus de Nazaré – e habita
em cada um de nós, permanentemente, na forma daquela “luz que ilumina a
todo homem que vem a este mundo... e dá àqueles que a recebem o poder de
se tornarem filhos de Deus”; porque esse mesmo Cristo do passado está
presente em cada um de nós, “eu estou convosco todos os dias até à
consumação dos séculos”.

“Quem de vós me arguirá de pecado?” – assim poderá dizer todo homem no
qual o Cristo interno tenha despertado plenamente, redimindo a
egoconsciência pecadora de seu velho egoísmo e penetrando-a toda do amor
universal.
“QUEM NÃO ODIAR A SUA PRÓPRIA VIDA

                    NÃO PODE SER MEU DISCÍPULO.”



“Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo” – dura era
essa linguagem da renúncia aos bens externos – duríssima é a exigência de
odiarmos a nossa própria vida.

Há milhares de homens que fazem a sua meditação diária – entretanto,
pouquíssimos são os que conseguem cruzar a misteriosa fronteira que medeia
entre a consciência telúrica do profano e a consciência cósmica do iniciado: o
grande “Pentecostes”, o “renascimento pelo espírito”, a entrada no “terceiro
céu”.

Por quê?

Porque, para a maior parte das pessoas piedosas, a chamada meditação não
passa de um dulçoroso devaneio, uma espécie de cochilo devocional, um tal ou
qual namoro com o mundo espiritual, sem nenhum efeito radical decisivo sobre
a vida.

A verdadeira meditação, ou cosmo-meditação, porém, não é nada disso; é um
trabalho imensamente sério, doloroso e árduo, pelo menos no princípio, porque
é o rompimento duma barreira multissecular, ou, no dizer do divino Mestre, um
“caminho estreito e uma porta apertada”. O cochilo devocional é uma descida
para o plano subconsciente, ao passo que a verdadeira meditação é uma
subida ao plano superconsciente, uma entrada no misterioso mundo da
Divindade. “O reino dos céus sofre violência, e os que usam de violência o
tomam de assalto.”

Quem de fato entra em meditação ultrapassa não somente o mundo dos
objetos, físicos e mentais, sentimentos e pensamentos dos sentidos e do
intelecto, mas transcende também o próprio sujeito personal, o seu ego físico-
mental.

Ora, é precisamente essa ultrapassagem do sujeito personal que é
extremamente difícil, uma vez que esse ego personal se nos apresenta como
sendo o nosso verdadeiro Eu individual, o nosso Cristo interno, o espírito de
Deus em nós, a nossa alma.

Enquanto o homem não descobrir o seu verdadeiro Eu, não pode abrir mão do
seu pseudo-eu, seu ego personal, porque esse ego é, para ele, o que há de
mais alto e perfeito em sua natureza. A natureza tem “horror ao vácuo”. Não é
possível realizarmos uma vacuidade de sentimentos e pensamentos, enquanto
não tivermos uma plenitude maior que substitua essa vacuidade. A renúncia
meramente negativa é impossível. É lei de psicologia que o homem não possa
renunciar a um bem enquanto não conseguir outro bem maior. Só na presença
de algo maior é que desaparece o menor. Ninguém pode perder a consciência
físico-mental enquanto não adquirir a consciência espiritual. Ninguém, pode
abandonar o 10 enquanto não tiver a certeza de alcançar 15 ou 20 ou mais. A
renúncia é um ato eminentemente positivo. O seu fim não é empobrecer, mas
enriquecer o renunciante. Pela renúncia o homem “morre”, é verdade, mas
morre para o pouco a fim de viver para o muito; morre para uma vacuidade a
fim de viver para uma plenitude. Pela renúncia, o homem transcende o que ele
é, a fim de ascender ao que pode vir a ser; ultrapassa uma colina a fim de
atingir as alturas do Himalaia. Quem se agarra ao pouco não pode possuir o
muito – por falta de renúncia creadora!

Na verdade, não há nada mais positivo e creador do que a renúncia voluntária.

A renúncia espontânea é o teste da força do homem. Só o forte não tem medo
de parecer fraco – renunciando.

O fraco tem de aparentar força – não renunciando.

Uma vez claramente visualizado um bem maior, pode o homem abandonar
tranquilamente o bem menor, na certeza de que esse abandono não significa
empobrecimento, mas enriquecimento.

Toda renúncia supõe, portanto, a compreensão e posse de algo maior e mais
perfeito do que o objeto da renúncia.

Ninguém pode razoavelmente sacrificar a sua vida física enquanto não houver
compreendido, com suficiente nitidez e firmeza, que existe uma vida maior e
mais abundante do que a do corpo, e que a perda desta não é uma perda real,
uma vez que a pequena vida perdida está contida na grande vida recém-
adquirida.

Ninguém pode, por exemplo, renunciar ao impulso erótico enquanto não tiver
saboreado as glórias da mística, como “eunuco do reino de Deus”. Depois de
conhecer a mística por vivência própria, pode o homem abandonar a erótica,
porque já não representa uma perda em face daquele lucro maior. O menor
está sempre contido no maior. O menor sacrificado por causa do maior é uma
perda aparente, mas um lucro real, porque o menor integrado no maior adquire
maior realidade do que antes tinha, quando separado.

A mística não é uma virtude, no sentido comum do termo; é uma experiência,
uma sabedoria, a compreensão vital da Suprema Realidade. Enquanto o
homem ainda tem sentimentos de heroísmo e virtuosidade, por ser bom, não é
perfeito. A perfeição ignora esses complexos de heroísmo e virtuosidade,
porque é inteiramente natural e espontânea.

A plenitude do ser eclipsa todo o desejo de ter.

Todos os pequenos teres estão contidos no grande ser.

Renunciar aos teres do ego humano a fim de ser o grande EU crístico é lucro e
grande riqueza.

“Quem puder compreendê-lo, compreenda-o!”
“TENDE FÉ EM DEUS – E TENDE FÉ

                             EM MIM TAMBÉM!”



Há, nos livros sacros, duas palavras que, em nossos dias, são de uso e abuso
diário, mas perderam o seu sentido primitivo, que foi substituído, através dos
séculos, por outro, incomparavelmente inferior. Mas os que nada sabem dessa
paulatina deturpação do sentido inicial continuam a usar essas palavras e
chegam a conclusões totalmente errôneas. Ficou o invólucro externo, mudou o
conteúdo interno.

Essas duas palavras são fé e caridade. No presente capítulo trataremos
apenas do sentido da palavra “fé”.

O que, geralmente, se entende por esta palavra, em nossos dias, é um
sentimento intelectivo e volitivo, mais ou menos vago ou incerto, e uma
determinada doutrina, ou a confiança numa pessoa. Assim, por exemplo,
quando alguém deixa de pertencer a este ou àquele grupo religioso – digamos,
a certa igreja hierárquica – dizem os teólogos dessa igreja que fulano “perdeu a
fé”. Que foi que ele perdeu? Perdeu a crença numa determinada teologia ou
exegese engendrada por um grupo de homens. Em geral, essa “perda de fé” é
uma etapa necessária para a evolução do homem rumo à verdadeira fé.
Entretanto, o egoísmo sectário não tolera facilmente que alguém ultrapasse o
estágio evolutivo em que os adeptos dessa etapa se encontram. Para os
sacerdotes da sinagoga de Israel, Jesus tinha renegado a fé, quando afirmou
que o reino de Deus vinha de dentro do próprio homem, e não das mãos dos
doutores da Lei e sacerdotes.

O que os teólogos, por via de regra, chamam crer, ter fé, está para a fé real
assim como um fogo pintado está para o fogo real. Um fogo artificial, pintado
na tela, embora com absoluta fidelidade e arte incomparável, não dá luz nem
calor; com ele não se pode atear fogo em matéria alguma, por mais
combustível – ao passo que um fogo real, embora pequenino como uma chama
de fósforo, pode atear gigantescos incêndios, iluminar e acalentar o mundo
inteiro.

O fogo real tem a propriedade dinâmica de produzir “reação em cadeia”,
apoderando-se sucessivamente de todos os combustíveis ao seu alcance, ao
passo que o fogo artificial é essencialmente estático e inerte e não tende a
comunicar-se ao ambiente.
O que nós, geralmente, entendemos por crer, ter fé, consiste em atos do
intelecto e da vontade; mas o que Jesus e os gênios espirituais da humanidade
chamam fé é uma experiência direta e imediata do mundo espiritual, do mundo
invisível de Deus, é um contato vital com o Infinito, o Absoluto, o Eterno.

A fé verdadeira, como aparece nas páginas dos livros sacros, não é adesão a
uma determinada doutrina, nem a lealdade a esta ou àquela pessoa que
representa certa teologia; mas é uma experiência íntima, um compreender e
saber intuitivo, uma invasão ou eclosão do mundo divino no homem, uma como
que linha vertical que vem de ignotas alturas e vai a misteriosas profundidades;
a fé é um contato direto entre Deus e o homem, por mais inexplicável que seja
esse contato. Tudo que é anterior a essa fé e, por assim dizer, horizontal,
humano: nesse plano preliminar é o homem que age e produz; mas, quando a
misteriosa vertical corta a horizontal, é Deus mesmo que age e produz, suposto
que o homem se tenha tornado receptivo para essa invasão do mundo divino.
Tanto essa receptividade prévia como essa mesma experiência divina é que os
livros sacros chamam fé (em latim fides, em grego Pistis).

Para concretizarmos essa grande verdade, seja-nos permitido usar uma
comparação ingênua tirada da natureza orgânica.

Debaixo duma folha verde se acha um ovinho de borboleta. Esse ovinho é uma
borboleta?

É – e não é.

Atualmente não é borboleta – potencialmente, é. Em sua íntima essência, esse
minúsculo ovinho é uma borboleta; em sua existência externa, não é. Quer
dizer que a íntima essência ou potência do ovinho e da borboleta são idênticas;
a sua verdadeira natureza é uma só. Mas no plano evolutivo da existência ou
atualidade, há uma grande diferença entre o ovo e a borboleta nele contida
potencialmente. O lepidóptero adulto possui um maravilhoso corpo
trissegmentado, meia dúzia de perninhas duplamente articuladas; um par de
grandes olhos hemisféricos, cada um com diversos milhares de facetas visuais;
possui uma boca artística em forma de delicada espiral contrátil, com a qual
suga o néctar das flores; dispõe de dois pares de asas, que são obras-primas
de resistência, leveza e estética – nada disso se encontra, aparentemente, no
ovinho, que consiste apenas numa casquinha de quitina sólida e num conteúdo
líquido ou viscoso, sem nenhuma diferenciação visível.

No plano externo da existência, é enorme a diferença entre o ovinho e a
borboleta – mas no plano interno da essência não há diferença alguma; existe
perfeita identidade; a natureza do ovinho é a natureza da borboleta. De
maneira que o ovinho, animado de uma “fé” biológica intuitiva, poderia afirmar:
“Eu e a borboleta somos um”.
Coisa análoga poderíamos dizer do próximo estágio evolutivo desse inseto, a
lagarta, que, no plano existencial, não é nada parecida nem com o ovinho nem
com a borboleta, e, no entanto, lhes é idêntica no plano da essência.

O mesmo acontece ainda com o terceiro estado, a crisálida, ou casulo. Quem
poderia suspeitar que aquela bonequinha imóvel e aparentemente morta fosse
idêntica à lagarta comilona ou à borboleta volúvel e multicor?

Ora, que é que faz com que o ovo se transforme em lagarta, esta em crisálida,
e esta em borboleta?

É a fé na identidade da essência das quatro formas existencialmente tão
diferentes. Naturalmente, neste caso, é uma fé biológica, inconsciente ou
subconsciente.

Se o ovinho pudesse perder essa fé biológica na sua essencial identidade com
a lagarta, a crisálida e a borboleta, nunca atingiria nenhum desses estados
superiores. Se o ovinho não “cresse” intimamente que já é implicitamente, hoje
mesmo, o que pode vir a ser explicitamente amanhã, nunca se processaria
essa metamorfose. A realidade interna produz as formas externas. A essência
causa as existências. A causa invisível produz os efeitos visíveis. No momento
em que o ovinho, a lagarta ou a crisálida perdessem a sua fé biológica na
futura borboleta, estaria cortada a linha da continuidade vital, roto um elo, da
cadeia ovo-lagarta-crisálida-borboleta, e este último elo, desligado dos outros,
nunca apareceria como realidade definitiva. Estaria destruída a profunda
harmonia essencial que vigora entre a alma do ovinho e a alma da borboleta, e
seus intermediários, e, devido a essa falta de nexo e harmonia vital, não
haveria transição de uma forma de existir para outra, porque o que torna
possível essa transição de estado a estado é a fé numa profunda identidade
essencial a permear todas as diferenças existenciais. A fé afirma uma unidade
invisível no meio das diversidades visíveis.

                                      ***

Eis aí o perfeito simbolismo do que acontece entre o homem imperfeito de hoje
e o homem perfeito de amanhã – suposto que haja o misterioso vínculo de
continuidade que chamamos fé. Os homens ao redor de nós se encontram em
planos vários de evolução – ovo, lagarta, crisálida; as nossas formas
existenciais são mais ou menos primitivas e imperfeitas; mas pouco importam
essas imperfeições, contanto que através de todas elas o homem, em qualquer
estágio evolutivo, mantenha firme a linha reta da sua fé essencial no seu
estado perfeito de homem integral e crístico, “até que todos cheguem à
unidade da fé, ao pleno conhecimento do filho de Deus, ao estado do homem
perfeito, à medida da madureza da plenitude do Cristo” (Ef. 4,13).
Por maiores que, de momento, sejam as diferenças existenciais entre mim e o
Cristo que apareceu em Jesus, entre essa minha “lagarta” e a “borboleta” dele,
eu sei que, no plano da essência, há um elemento de identidade entre mim e o
Cristo. Diferente é o grau de evolução, idêntico é o elemento básico. Eu posso
ser explicitamente o que Cristo em Jesus era e é, por que implicitamente já sou
o que ele é. “Vós fareis as mesmas obras que eu faço, e fareis obras maiores
que estas”, disse ele a todos os seus seguidores. “Eu e o Pai somos um; o Pai
está em mim e eu estou no Pai; o Pai está em vós e vós estais no Pai”. “Não
sou eu que vivo – pode dizer cada um de nós –, o Cristo é que vive em mim”.
Em Cristo Jesus estava e está, em plena evolução, a consciência da sua
essencial identidade com o Pai – em mim está essa mesma consciência, mas
ainda obscuramente, num estágio primitivo, embrionário, incompleto.

                                         ***

Há para mim, e para todos os homens, dois grandes perigos nesse caminho de
evolução rumo ao Cristo: 1) o dualismo; 2) o panteísmo. Quem, em vista das
diferenças existenciais, não crê na sua identidade essencial com Deus não
pode chegar à “plena madureza com o Cristo”, porque cortou a linha vital da fé;
quem, por outro lado, em face da sua identidade essencial com Deus, perde de
vista as suas diferenças existenciais, identificando-se simplesmente com Deus,
esse não pode progredir rumo ao Cristo, porque já se julga temerariamente no
fim da jornada.

O dualista peca por deficiência da fé.

O panteísta peca por excesso de crença.

Mas tanto a deficiência de fé como o excesso de crença matam a verdadeira
fé.

Se um ovinho não crê que possa vir a ser borboleta, ou acha que já é borboleta
atualizada – nunca virá a ser borboleta. É necessário crer tanto na identidade
da essência como na diversidade da existência, para que a alma daquela
possa vivificar o corpo desta.

A fé verdadeira e genuína é, portanto, uma convicção íntima de que eu,
essencialmente, sou idêntico a Deus (“Vós sois deuses”, disse Jesus), mas
que, existencialmente, sou infinitamente inferior a Deus.

                                         ***

Que posso fazer para desenvolver em mim essa fé?

Sendo que a minha consciência telúrica, baseada no testemunho dos sentidos
e do intelecto, só conhece diferença e distância entre mim e Deus, tenho de
ultrapassar essa experiência física co-mental e entrar numa zona onde
desperte a minha consciência cósmica, que afirma a minha essencial
identidade com Deus. Ora, para que essa consciência cósmica possa falar, é
necessário que a consciência telúrica se cale, pelo menos de vez em quando,
até que aquela adquira suficiente poder sobre esta. Tenho de estabelecer, pois,
as minhas horas de contato direto com o mundo invisível, até que ele me torne
tão real como o mundo visível, ou mais real ainda. Impor silêncio temporário
aos sentidos e ao intelecto é indispensável para ouvir a voz silenciosa da razão
ou da alma, o Deus em mim.

Além disso, tenho de estabelecer perfeita harmonia ética entre o mundo da
minha fé e o mundo da minha vida cotidiana. Devo viver assim como se já
tivesse perfeita e definitiva experiência do mundo invisível. Essa vivência ética,
em sintonia com a minha fé, consiste numa permanente solidariedade com
toda e qualquer vida do universo – solidariedade para cima, para os lados e
para baixo, isto é, amor a Deus, aos homens e à natureza. Devo abranger no
meu amor, na minha caridade e na minha simpatia todo e qualquer ser vivo (e
não há nenhum ser morto no universo); devo sentir pulsar em minhas artérias
as pulsações da vida do cosmos, estabelecendo perfeita solidariedade entre
mim e tudo que vive fora de mim.

Essa vivência ética, pela solidariedade cósmica, me conferirá a sapiência
definitiva e completa, revelar-me-á a única e universal paternidade de Deus,
manifestada em universal fraternidade humana e simpatia infra-humana.
Sentirei e amarei a minha vida na vida de todos os seres vivos, porque é a vida
de Deus.

Na experiência íntima dessa solidariedade cósmica, atingirá a minha fé a sua
última e suprema perfeição, transformando-se em amor universal.

O homem que chegou a essa plenitude da fé experiencial, e essa maturidade
do amor universal, é onipotente, e compreenderá o que o divino Mestre quis
dizer com as palavras: “Se tiverdes fé, ainda que seja como um grão de
mostarda, e disserdes a este monte: sai daqui e lança-te ao mar, e se não
duvidardes em vosso coração, crede que assim acontecerá; porque tudo é
possível àquele que tem fé...”
“O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE

                             A UM FERMENTO.”



Desta vez foi o divino poeta-filósofo-profeta buscar a matéria-prima da sua
parábola no ambiente doméstico da dona-de-casa, quando, normalmente, a
encontra nos campos de lavoura do homem ou na via social. Entrou pela porta
da cozinha e viu uma mulher, talvez sua própria mãe, amassando a farinha
para o pão do dia seguinte, viu que tomou um pouco de fermento, previamente
preparado, e foi “escondê-lo”, como ele diz, em “três medidas” de farinha.
Depois cobriu a tina ou gamela com um pano e foi-se embora. E, na manhã
seguinte, a massa havia crescido grandemente, graças ao fermento nela
“escondido”.

Essa parábola frisa três aspectos característicos da ação do fermento do reino
de Deus no homem: a ação silenciosa, constante e infalível.

As “três medidas” da massa humana – isto é, alma, mente e corpo – têm de ser
totalmente levedadas, permeadas e vitalizadas pelo misterioso agente.

Os efeitos dessa fermentação interna são visíveis na vida ética do homem
renascido pelo espírito – mas a causa dessa transformação continua oculta.

A fermentação física consiste na atividade de certos seres microscópicos,
unicelulares, chamados fungos, que, quando encontram ambiente propício, se
multiplicam rapidamente, produzem gases e arejam a massa compacta da
farinha, fazendo-a “crescer” e tornando-a leve, porosa e de grato sabor. A
massa, depois de fermentada, vai para o forno, e dá em resultado um pão fofo
e arejado por milhares de pequeninos reservatórios de aberturas internas
produzidas pelos invisíveis agentes de fermentação.

É este símbolo material o perfeito paralelo do simbolizado espiritual do reino de
Deus no homem. O homem não deixa de ser o que é, mas o modo como ele é
o que é passa por uma grande transformação. A vida desse homem, interna e
externa, uma vez penetrada pelo divino fermento da experiência do reino de
Deus, perde o seu caráter duro e pesado, a sua compacta materialidade, e
assume algo de leve e arejado, que é mais fácil sentir do que definir. O homem
divinamente levedado já não se abate e acabrunha em face de acontecimentos
provindos das adversidades da natureza ou das perversidades dos homens,
porque tem o seu centro de gravitação em outras regiões, inacessíveis a esses
agentes externos: considera todos os eventos com certa leveza e serenidade, e
pode até sorrir calmamente em face duma tragédia que, outrora, o teria levado
ao desespero. Esse homem já vive, aqui mesmo, a vida eterna, porque
encontrou o seu “ponto de Arquimedes” onde aplicar a alavanca e suspender
mundos pesados, como se fossem teias de aranha. A morte repentina de um
parente próximo ou amigo querido repercute dolorosamente em seu ego
emocional, é certo, mas deixa o seu Eu espiritual perfeitamente equilibrado e
invulnerável, calmo e senhor de si e da situação. Uma falência econômica, uma
injustiça moral ou social atingem apenas a superfície desse homem, mas as
profundezas do seu ser continuam em perfeita paz e tranquilidade, como os
abismos do oceano quando a tormenta lhe revolve a superfície.

As “três medidas” da natureza humana foram levedadas pelo poderoso
fermento crístico que nele estava “escondido”. Sim, “escondido”, oculto, uma
vez que ninguém pode ver o invisível agente dessa transformação do homem.

                                       ***

A ação do fermento do reino de Deus no homem é silenciosa, como silenciosas
são todas as coisas grandes e sublimes. O que é realmente grande não
necessita de ruidosa publicidade para se manter e expandir, dispensa
deslumbrantes cartazes multicores e altissonante propaganda. Ruído é indício
de fraqueza e pequenez. Quanto maior o silêncio, tanto melhor para a
grandeza, porque a alma das coisas grandes está para além das categorias de
tempo e espaço, que não podem produzir nem destruir o que é eterno e infinito.

O homem primitivo, dentro ou fora da mata virgem, necessita de barulhos
múltiplos e violentos, tambores e trombetas, espocar de foguetes, e bombas,
gritaria selvagem e descompassada; só assim pode ele sentir suficientemente
a sua própria existência, que, sem isso como que se esvairia em tênue neblina
de incerteza. O homem primitivo necessita desses barulhos, porque só assim,
quando o seu sujeito se sente objetivado e refletido no espelho desses ruídos
externos, é que ele é capaz de sentir a sua própria existência. Daí a sua fome
instintiva por barulhos violentos. Parafraseando o conhecido “cogito, ergo sum”
(eu penso, logo existo), de Descartes, poderia o homem primitivo dizer: “Eu
faço barulho, logo existo!”. Se não fizesse barulho, não teria suficiente certeza
da sua existência. De maneira que a plenitude de todo esse barulho externo é
atestado da vacuidade interna de seu autor, porque o homem de plenitude
interna não tem necessidade dessa compensação externa.

O homem mais culto, intelectualmente erudito, necessita, geralmente, de outra
espécie de ruído, necessita do ruído articulado de discursos, conversas,
sermões, conferências, etc. O intelectual necessita de auditórios de
intelectuais, e o veículo para transmitir o ruído mental dos seus pensamentos é
o ruído verbal de discursos, que nos ouvintes se converte novamente em ruído
mental dos pensamentos. Essa “luxúria” mental e verbal é característica no
mundo da intelectualidade. Poucos chegam à “castidade” do silêncio espiritual:
a mente prostituída dificilmente aceita essa “virgindade”.

Mas o homem, quando ultrapassa essas fronteiras evolutivas, entra na zona de
um maravilhoso silêncio, que lhe diz muito mais do que todos os ruídos
inarticulados e articulados, dos sentidos e da inteligência.

E é nesse silêncio fecundo que o divino fermento começa a trabalhar
intensamente.

                                      ***

O fermento espiritual atua constantemente, sem falhas nem intermitências. O
homem espiritual não depende do bom ou mau tempo, do estado favorável ou
desfavorável dos seus nervos, da plenitude ou vacuidade do estômago, dos
louvores ou vitupérios de outros homens – a sua fermentação interna é um
processo totalmente independente de fatores externos, porque esse homem
proclamou a independência do seu sujeito sobre a tirania de todos os objetos.
O seu ego físico-mental é servo de seu Eu espiritual. O Eu crístico conduz, e o
ego luciférico é conduzido. Mesmo quando o homem espiritual nada faz,
quando descansa ou dorme, a ação do fermento do reino de Deus continua
ininterruptamente a atuar no seu interior. A alma, sede desse processo, não
conhece sono.

                                      ***

Infalível é a ação do fermento divino no homem, porque é de ótima qualidade.
Em si mesmo não poderá jamais ser corrompido. O único obstáculo externo à
sua atuação pode ser a liberdade do homem que lhe obstrua os caminhos.
Mas, quando deixado a si mesmo, em plena liberdade, o fermento da reino de
Deus atua com infalível certeza e precisão.

O homem intelectual julga poder traçar o itinerário da sua vida; o seu estreito
luciferismo se arroga à competência de poder dirigir a sua vida. Só depois de
muitos sofrimentos e derrotas trágicas é que ele aprende, finalmente, que só
Deus pode traçar o itinerário da sua vida.

E então começa o fermento a tomar conta das “três medidas” da natureza
humana – alma, mente e corpo...
“SAIU O SEMEADOR A SEMEAR

                            A SUA SEMENTE.”



Certas parábolas de Jesus – como as do semeador e do joio entre o trigo –
atuam como terremotos sobre a nossa teologia tradicional.

Afirma o Mestre que o semeador – isto é, ele mesmo, o Cristo encarnado – foi
semear a boa semente da palavra de Deus – onde?

Parte à beira da estrada, onde nem sequer germinou, mas foi calcada aos pés
pelos transeuntes e devorada pelos passarinhos. Parte caiu em terreno
pedregoso, onde brotou, mas não tardou a morrer, por falta de umidade. Outra
parte caiu no meio dos espinhos, onde brotou, cresceu precariamente, foi
sufocada pelos espinheiros, e não frutificou.

Apenas pequena parte – talvez 25% – caiu em terreno bom, brotou, cresceu,
floresceu e frutificou. Mas nem essa semente produziu toda o mesmo fruto;
parte dessa sementeira deu trinta, outra parte sessenta e ainda outra cem
grãos por um.

Mas, porque não escolheu o semeador somente terra boa? Por que desperdiça
uns 75% da divina semente à beira do caminho, entre pedras e espinheiros?
Não sabia ele, de antemão, que em nenhum desses terrenos ia a semente
produzir fruto?

Quer dizer, Deus não escolhe cuidadosamente o terreno propício para
conseguir uma colheita 100% satisfatória; espalha a semente do seu verbo em
profusão, a esmo, como se lhe fosse indiferente a frutificação ou a
esterilização. E mesmo o terreno bom é vastamente heterogêneo, tanto assim
que parte da semente aí lançada produz trinta grãos por um, outra sessenta e
outra cem.

Verdade é que, na parábola, se trata do terreno consciente e livre da alma
humana, e a dureza do caminho, o impróprio das pedras e a asfixia pelos
espinheiros correm por conta e risco do uso ou abuso da liberdade humana –
mas, mesmo assim, não parece bem estranho que o divino semeador não faça
nenhuma seleção de terreno, quando ele previa esses resultados negativos?...

Segundo certas teorias nossas, Deus creou todas as almas iguais e deu a
todos os homens a mesma possibilidade de evolução. Afirmamos afoitamente
que a diferença da frutificação vem unicamente do homem – mas o teor dessa
parábola parece desmentir semelhante postulado. Não parece ter havido,
desde o início, terrenos de diferente receptividade? Efeito do uso ou abuso da
liberdade humana? Mas por que é que alguns homens usam e outros abusam
da sua liberdade, se, no princípio, todos eram perfeitamente iguais, com a
mesma facilidade de praticar o bem? Por que uns fizeram da sua alma terreno
estéril, outros semi-estéril e outros plenamente fecundo?...

Essa teoria da perfeita igualdade inicial de todos os homens cabe, certamente,
nas ideologias democráticas do nosso tempo – mas será Deus o “grande
Democrata”? Não parece ele antes o “grande Aristocrata”? E não parece todo o
seu Universo, desde o mineral até aos anjos, uma gigantesca hierarquia? Não
predomina a ideia hierárquica da desigualdade em todos os departamentos da
natureza, visível e invisível?

Deveras, quem contempla sem prevenções a ordem do Universo não se pode
furtar à impressão de que todo ele é uma imensa “Hierarquia Cósmica...” Não
há dois seres iguais, e a desigualdade vem desde o princípio da sua existência.
Nada é padronizado, nada feito pelo mesmo modelo ou chavão.

Há quem descubra “injustiça” neste fato de haver Deus creado seres com
diversas possibilidades de evolução; acham que, para evitar “injustiça”, todos
os seres deveriam ter a mesma possibilidade de aperfeiçoamento; que todos
os minerais deveriam ter a potência de, um dia, passar a ser vegetais, estes
deveriam poder evolver para animais, estes para homens, e os homens
deveriam desenvolver-se em anjos, arcanjos, etc.

O mundo de Deus, porém, a despeito das nossas mais belas teorias de
igualdade democrática, não é nada democraticamente igual, ignora totalmente
essa decantada “igualdade de direitos”. Mas não há nisso injustiça alguma,
como a nossa acanhada inteligência nos que fazer crer. Se Deus tivesse
prometido a todos os minerais a evolvibilidade até à altura dos vegetais, e se
depois não cumprisse essa sua promessa (concretizada na potencialidade, dos
minerais), então, sim, teríamos injustiça, porque “o prometido é devido”, mas
essa promessa tácita, ou potencialidade, não existe em todos os minerais. Se
alguma substância mineral de fato evolve em organismo vegetal, é
simplesmente uma “graça” divina, e não um “direito”, que o mineral possa
reclamar.

O mundo de Deus é baseado sobre o princípio hierárquico da diversidade
graciosa, e não da monotonia obrigatória. Deus nada deve a ninguém. Tudo
que as creaturas são e recebem é inteiramente gratuito, seja pouco, seja muito.

Nenhum mineral tem o direito de reclamar, dizendo “por que não me fizeste
vegetal, animal ou homem?”

                                      ***
Voltando à parábola do semeador, não é provável que todos os terrenos nela
mencionados fossem simples creação do livre-arbítrio do homem. Todos
tinham, de início, graus diversos de facilidade ou dificuldade para fazer frutificar
a semente da palavra de Deus. Não há liberdade completa em nenhuma
creatura; só o Creador é que é absolutamente livre. Liberdade é potência,
plena liberdade é plena potência ou onipotência. Se o homem fosse totalmente
livre seria onipotente igual a Deus. Os diversos graus de liberdade são herança
inicial de cada indivíduo, e essa herança, na primeira etapa, não corre por
conta da liberdade dele; é dom gratuito de Deus, é graça divina. Deus dá a
cada homem o grau de liberdade que lhe apraz. O homem é suficientemente
livre para ser responsável por seus atos conscientes, sendo por isso autor
responsável pelo bem e pelo mal que praticar; mas o grau de liberdade e
responsabilidade ética não é o mesmo em todos os homens.

Há quem se arvore em advogado da Providência Divina, julgando de seu dever
justificar meticulosamente todos os atos do governo de Deus no Universo. No
fim de todas essas bem-intencionadas apologias, porém, resta sempre vasto
resíduo de mistérios inexplicáveis, que formam pedra de tropeço para muitos
cépticos e ateus. Partem de uma falsa premissa – de que todas as obras de
Deus devam ser justificáveis à luz do intelecto – e depois se escandalizam por
que o Deus no Universo não corresponde ao padrão do Deus das suas teorias
intelectualistas.

Jesus nunca tentou “explicar” os mistérios de Deus. Tudo quanto se “explica”
complica-se, destrói-se até. No fim de todas as “explicações” meramente
analítico-intelectuais está o caos ou o nada. Saber explicar o explicável e
adorar em silêncio o inexplicável – é grande sabedoria.

                                        ***

Ai de nós se não houvesse mistérios inexplicáveis! Insuportável nos seria este
mundo... Quem “explica” a Deus é ateu!...

Na parábola dos “trabalhadores na vinha” reaparece esse mesmo mistério da
desigualdade.

Em vez de tentarmos explicar o inexplicável e reduzir a fascinante Hierarquia
de Deus a uma fastidiosa democracia dos homens, não seria melhor que cada
um de nós trabalhasse jubilosamente com os dotes que lhe couberem, a fim de
preencher plenamente o lugar, humilde ou sublime, que ocupa nessa
“Hierarquia Cósmica” de Deus?...

                                        ***

A explicação que o próprio Jesus dá desta parábola não alude a esse aspecto
metafísico, que o auditório não comportava; limita-se a encarar o sentido ético
da parábola.
Há homens que não produzem fruto espiritual, porque o seu terreno interior é
por demais profano e devassado, como uma estrada pública, onde a semente
da palavra de Deus é logo calcada aos pés dos transeuntes e devorada por
entidades estranhas ao mundo espiritual. Nem sequer chega a brotar.

Outra classe de ouvintes são almas puramente sentimentais; ouvem a palavra
de Deus com gosto, ao ponto de verterem lágrimas de emoção; mas logo que a
realização dessa palavra lhes custe sacrifício pessoal, desfalecem, por falta de
profundidade e experiência espiritual. Nessas pessoas, a semente divina brota
rapidamente, mas não frutifica.

Outros ainda, depois de receberem a palavra de Deus, sufocam-na sob um
acervo de prazeres e solicitudes mundanas, de maneira que o sujeito do seu
Eu divino é asfixiado pelos objetos do seu ego humano, e não produzem fruto.

Só uma pequena porcentagem de almas humanas oferece ao verbo de Deus
terreno propício para brotar, florescer e frutificar. Mas, mesmo entre esses, há
notável diferença de fertilidade. O “terreno bom” dessas almas não é todo igual.
Todos produzem, mas o resultado é variado, consoante a maior ou menor
receptividade de cada um. Essa receptividade, porém, é fruto da liberdade
humana.
“UM HOMEM TINHA DOIS FILHOS...”



A rainha das parábolas de Jesus, chamada, geralmente, a do filho pródigo, não
devia ser focalizada num capítulo como este, mas numa obra monumental;
porque essa parábola representa um dos mais estupendos documentos do
drama multimilenar da evolução do homem rumo a Deus.

O que, em geral, se diz desta parábola, nas igrejas e nos colégios, é apenas o
aspecto moral da mesma – mas por debaixo dessa conhecida superfície se
estende a incomensurável profundidade cósmica que só uma intensa intuição
espiritual pode atingir em silenciosa vivência.

Quem é esse jovem inexperiente que deseja abandonar a casa paterna?

Quem é esse pai que não tenta dissuadi-lo do seu intento com uma só palavra?
E por que não aparece nenhuma mãe a chorar?

E que significa essa “porção de substância” a que o filho mais jovem diz ter
direito?

Por que o pai não pede ao menos que o jovem aventureiro lhe deixe o
endereço do seu paradeiro? Por que, durante a longa ausência, não lhe manda
um mensageiro para saber da sua situação?

Nada disso acontece. A parábola do filho pródigo está envolta em mistério e
permeada de enigmas. Tudo que a nossa inteligência analítica teria esperado
acontecesse não acontece – e nada daquilo que acontece teríamos esperado.
É que essa parábola é, mais que outra qualquer, obra de gigante e de gênio.

O perfeito paralelo dessa parábola se encontra nas primeiras páginas do
Gênesis – Moisés e o Cristo traçam o roteiro eterno da humanidade em
evolução, esses dois intérpretes máximos do sub e do superconsciente da
humanidade. Dia Moisés, no Gênesis, que o homem do Éden transpôs a
fronteira dessa sua vida subconsciente e entrou na zona egoconsciente, graças
ao despertar da “serpente” da inteligência. É a história da egoficação luciférica
do homem, mais tarde completada por sua cristificação espiritual.

É o drama telúrico-cósmico de Lúcifer e Logos, a trajetória da inteligência e da
razão.

Quando a inteligência desperta no homem, começa ele a afastar-se da “casa
paterna”, inicia o seu movimento centrífugo, porque sente o despertar da sua
personalidade, da autonomia do ego personal, que só se pode desenvolver
plenamente no longínquo ateísmo de uma separação consciente de seu centro.

Nesse estágio evolutivo sente o homem a imperiosa necessidade de proclamar
em cheio a sua independência, o seu afastamento da escravizante soberania
de Deus – falou a “serpente”, e o homem lhe escutou a voz sedutora. O homem
abandona o Éden da casa paterna, na crescente consciência do seu ego
luciférico, e ainda longe do seu Eu crístico.

E começa o grande drama da evolução luciférico-crística, através do qual
alguns conquistam o mais alto Evereste do Himalaia, ao passo que outros se
enamoram das sedutoras esplanadas da montanha ou perecem nos
tenebrosos precipícios que a rodeiam...

O “filho mais jovem” do pai reclama a “porção da substância” a que tem direito,
diz a Vulgata latina; o texto grego do primeiro século diz que o jovem reclamou
o “epibállon tés ousías”, literalmente: “o que convém à natureza”. Que
conveniência é essa que o jovem reclama? É aquela parte da sua “ousia”
(natureza) que exige evolução longe da casa paterna, isto é, o ego personal, o
ego separatista, o Lúcifer, dormente na natureza humana.

E o pai entrega ao filho a parte da sua natureza, a porção da sua substância, o
elemento personal para que vá e o desenvolva, segundo as eternas leis da
Constituição Cósmica. O pai não protesta, não incrimina, não dissuade o filho,
porque sabe que assim deve ser. Também, como poderia Deus protestar
contra suas próprias leis? Como poderia ele proibir o homem de cometer a felix
culpa e o peccatum necessarium (como diz a liturgia da Páscoa) de abandonar
o Éden da sua primitiva inconsciência, cair no meio dum campo de “espinhos e
de abrolhos” e, por fim, “esmagar a cabeça da serpente” rastejante para ser
remido pela “serpente erguida às alturas”?...

E o jovem aventureiro lá se vai, firme e confiante, em demanda de “um país
desconhecido” – a zona incógnita da personalidade, da autonomia do ego. Que
região sedutora!...

E com isso principia a “vida dissoluta” e o “esbanjamento da substância” que
levara da casa paterna. Esbanjar de fato essa substância não o consegue,
geralmente, o homem; extinguir totalmente em si o elemento divino é difícil.
Mas o homem, nas vias da evolução personal, se esquece complacentemente
da sua verdadeira “ousia” (natureza) divina e se porta como simples
personalidade humana, autônoma. O ego humano, porém, é formado de corpo
e mente. O corpo exige satisfações carnais; a inteligência se identifica com
seus pensamentos de orgulho.

Passam-se longos anos no plano dessa evolução físico-mental. O homem
atinge o extremo limite das suas satisfações; esbanja tudo – e então lhe
sobrevém a grande fome de uma incompreendida insatisfação, não só com o
mundo, mas sobretudo consigo mesmo. Mas o homem não sabe ainda com
que encher esse vácuo; já sente, e cada vez mais dolorosamente, a
insatisfação das coisas, dos sentidos e do intelecto, mas não encontrou ainda o
objeto de uma verdadeira satisfação e felicidade.

Então tentou o jovem aventureiro em Terra estranha conquistar a felicidade
agarrando-se – o texto grego diz “aglutinando-se”, a Vulgata diz “aderindo” – a
um cidadão daquela Terra flagelada por terrível carestia. Como um náufrago se
agarra a uma prancha em pleno mar, assim se agarrou esse náufrago do ego à
primeira tábua semipodre que pôde apanhar. Esse cidadão a que o filho
pródigo se agarrou era habitante antigo nessa Terra, algum inveterado egoísta,
que já não tinha a possibilidade de sentir a sua infelicidade, e era por isso
horrorosamente feliz em sua miséria...

Mas esse velho cidadão satisfeito consigo mesmo, graças a sua obtusidade
espiritual, não pôde transferir a sua infeliz satisfação para o infeliz insatisfeito
que a ele se agarra; neste grande naufrágio, esse jovem não estava ainda
suficientemente fossilizado no seu egoísmo para não sentir a sua profunda
infelicidade. O velho egoísta satisfeito manda o jovem egoísta insatisfeito para
sua granja, com a ordem de lhe guardar os porcos. Mas as vagens indigestas
que os porcos comiam não eram alimento para a fome do jovem. Por algum
tempo, sentado no meio da imunda manada, andou ele invejando o crepitante
apetite com que os suínos mastigavam o seu grosseiro repasto – e veio-lhe o
desejo de pelo menos “encher a barriga” – implere ventrem suum, como diz
cruamente o texto – já que não podia matar a fome com as vagens que davam
plena satisfação aos irracionais. Talvez os porcos não fossem felizes, cismava
o jovem, mas ao menos não eram infelizes como ele. Tenta então camuflar
com ilusões temporárias a sua infelicidade e narcotizar artificialmente uma voz
interna que não lhe dava sossego. Mas não havia quem lhe desse essas
vagens dos irracionais. Ele, o ser humano, não podia involver, regredir ao plano
dos seres inconscientes, e gozar da infeliz felicidade que eles gozavam...

E essa impossibilidade de involução animalesca foi para o jovem o maior dos
benefícios. Descer abaixo do nível do ego não lhe era possível; ficar nesse
nível lhe era insuportável tortura – resolveu então ultrapassar o seu próprio
plano e evolver em vez de involver ou estagnar...

Seria de esperar que aquele cidadão que o contratara lhe desse pelo menos
como passadio as vagens que os porcos comiam, mas, diz o Mestre
admiravelmente, tal não aconteceu. Nem podia acontecer! Ninguém dá o que
não tem. Como podia aquele velho egoísta, autocomplacente e satisfeito
consigo, dar satisfação ao jovem egoísta, insatisfeito com o que era?...

E foi nesse transe doloroso, humilhante e angustiante, que aconteceu o mais
glorioso dos prodígios: o jovem pastor de suínos “entrou em si mesmo”. Depois
do egresso da casa paterna, faz o ingresso para dentro do próprio Eu,
preparando o regresso para sua definitiva redenção. Entre o egresso e o
regresso está invariavelmente esse misterioso ingresso, esse “caminho
estreito”, essa “porta apertada”, esse “fundo de agulha”; quem conseguir
passar por esse desfiladeiro está salvo.

“Entrou em si mesmo”, pela primeira vez na vida, porque até essa data tinha
ele estado fora de si, andando num círculo vicioso ao redor de si, pelas
periferias do ego físico-mental. Depois de tantas evasões centrífugas, o jovem
iniciando realiza, finalmente, a feliz invasão centrípeta; ultrapassa o ego
humano e encontra-se com seu Eu divino!...

E terminou o ocaso em plena alvorada!...

E logo despontou na sua alma a verdade sobre si mesmo. Desanuviaram-se os
horizontes... Dissiparam-se as trevas... Houve um grande fiat lux...

E fez-se a luz... O jovem viu claramente que ele não era escravo daquele tirano
que o mandara guardar os porcos, nem era pastor de animais imundos; viu que
isso não passava de funções temporárias e fictícias da sua humana
personalidade, mas não era a verdadeira natureza da sua divina
individualidade, do seu ser real... Verificou, com exultante surpresa, que ainda
não esbanjara totalmente o “quinhão da sua natureza”, era ainda filho daquele
pai que abandonara; a centelha divina, que tanto tempo dormia sob as cinzas,
acabava de romper em vívida chama, ao sopro da tempestade...

Conheceu a verdade sobre si mesmo – e a verdade o libertou...

Terminado o período egressivo do seu ego luciférico – começa o período
regressivo do seu Eu crístico...

E a luz da verdade foi seguida de perto pela força da realização prática.

Levantou-se, deixou os porcos e seu velho tirano – e foi em demanda de seu
pai. Este lhe corre ao encontro; por sinal que esperava o filho e tinha certeza
de seu regresso. Abraça-o, beija-o, manda vestir-lhe a preciosa túnica, põe-lhe
no dedo um anel e calçado nos pés – e segue-se grande solenidade, com
banquete, música e bailados, isto é, todas as manifestações de alegria e júbilo
pela plena realização de um homem.

Nisto chega do campo o filho mais velho e, sabendo do que se tratava, recusa-
se a tomar parte nos festejos. Tenta o pai persuadi-lo da conveniência da
solenidade, mas o filho continua inflexível; nada compreende do lado positivo
do acontecimento; enxerga apenas o aspecto negativo e lembra que ele, há
tantos anos, serve ao pai em perfeita obediência, e este nunca lhe dera um
cabrito para ele celebrar um banquete com seus amigos.
O pai lhe fala no “irmão” dele; o despeitado, porém, só lhe chama “teu filho”. E
não tem ele razão? Já não existe afinidade entre os dois, entre o profano e o
iniciado, entre o homem que espera recompensa por ser bom e aquele que é
bom por amor.

Não basta cumprir os mandamentos do Pai, não basta evitar o mal e praticar o
bem – tudo isso é necessário, mas não é suficiente para a plena realização do
Eu – é necessário ser bom, que é incomparavelmente mais do que fazer o
bem. Fazer o bem é do plano moral, indispensável como preliminar; é ainda a
ética pré-mística sacrificial mercenária, que espera ser recompensada – o
iniciado, porém, que é intimamente bom, não espera nada disto – ama
simplesmente e é feliz nesse amor.

E assim termina o Mestre a mais profunda das suas parábolas – a parábola
sobre a auto-realização ou cristificação do homem, que percorreu todos os
estágios da sua evolução e culminou no homem integral.
“COMO ENTRASTE AQUI

                      SEM TERES A VESTE NUPCIAL?”



Em todos os livros sacros da humanidade, é a união da alma com Deus
simbolizada por uma festa nupcial. O amor entre esposo e esposa serve de
ilustração para o amor do Ser Infinito para com o ser finito.

Eros tem de emprestar as suas vestes multicores para solenizar a luz incolor
da experiência mística.

Na erótica temos a integração do masculino no feminino; para realizar o
“anthropos” completo na mística, temos a integração da creatura no Creador.

Lá, o êxtase da carne – aqui, o êxtase do espírito.

Era costume, por ocasião das festas nupciais no Oriente, que o chefe da casa
entregasse a cada convidado uma preciosa veste.

Aconteceu, porém, diz o Mestre, que aparecesse na sala do banquete um
intruso, sem trajar a veste nupcial. E o pai de família disse a esse conviva:
“Amigo, como entraste aqui sem teres a veste nupcial?”

O interpelado emudeceu, porque não tinha palavras com que justificar a sua
entrada ilegal. E o dono da casa deu ordem para que esse homem fosse atado
de pés e mãos e lançado nas trevas de fora.

Esse homem usurpara o inexorável dispositivo da Constituição Cósmica,
segundo a qual nenhum profano (o de fora) pode entrar na zona dos iniciados
(os de dentro). Esse homem era um exotérico que, de contrabando, se metera
no meio dos esotéricos. Não estava interiormente maduro para participar do
banquete nupcial, porque não havia em sua alma a experiência de Deus, a
fusão do finito no Infinito, do individual no Universal.

Como entrara esse homem na sala do banquete? Ele que, internamente, não
estava onde externamente se achava? Ele, completamente fora do seu
ambiente evolutivo?

Entrara, ou por conta própria, ou por proteção alheia.

Mas ninguém pode entrar no reino dos céus nem pelas forças do ego personal
nem em virtude de algum ritualismo externo; só a verdadeira e genuína
maturidade espiritual é que lhe pode dar o direito de tomar parte no banquete
nupcial com o divino Esposo. Esse homem estava – ou fingia estar –
externamente onde internamente não estava, nem podia estar.

                                       ***

A fim de que o homem seja digno e idôneo para tomar parte nesse banquete, é
necessário que sua alma se ache ornada de uma veste especial, nova e
imaculada, dada como dom gratuito pelo senhor das núpcias. Não se admite
homem algum em trajo profano. A profanidade é do ego físico-mental, a
sacralidade é do Eu espiritual. Nem pela magia mental, nem pelo ritualismo
eclesiástico pode o homem merecer essa vestimenta; ela é essencialmente
uma “graça”, e por isso mesmo de graça.

A iniciação no reino dos céus não é alguma espécie de continuação de coisa
velha, preexistente, mas é um novo início, uma “iniciação”. Não se trata de
emendar, consertar, corrigir precariamente a “roupa velha” do homem profano,
tornando-o um pouco menos profano e pecador, cosendo-lhe na roupa de
“homem velho” um “remendo novo”. O homem não se torna crístico pelo fato de
ser cristão, ou por diminuir um pouco a sua cobiça, luxúria ou ambição; nem
basta acrescentar ao rol das virtudes antigas algumas virtudes novas. Não!
Importa que o homem “nasça de novo pelo espírito”, que se torne uma “nova
creatura em Cristo”.

Verdade é que uma moral sincera e pura pode e deve servir de estágio
preliminar para essa entrada no reino dos céus – mas nem toda moral é
suficiente para garantir ao homem essa entrada. Ela não é causa, é apenas
condição.

O cristianismo não é um movimento meramente moral – é uma experiência
mística; é, a bem dizer, o próprio Cristo através dos séculos. O cristianismo não
está baseado numa doutrina moral, mas é uma fato metafísico e místico, uma
realidade objetiva e ontológica a perpetuar-se através dos séculos. A
encarnação do Logos é um fato permanente, e não apenas um acontecimento
histórico no passado.

A essência do homem crístico não é a soma total dos seus atos virtuosos, que,
em última análise, são outras tantas linhas horizontais, cuja multiplicação,
embora indefinida, nunca dará a vertical. Os atos morais são outros tantos
zeros, de todos os tamanhos e cores, quer dizer, fatores espiritualmente
negativos, e vácuos; mas a soma total de zeros negativos, ou vácuos, nunca
dará algo positivo ou pleno.

O homem crístico não é um homem “remendado” por atos de moral humana,
mas é um homem “remido” pela atitude mística do Cristo. Não é um doente que
aplique às suas velhas chagas mais uma pomada lenitiva ou um emplastro
para melhorar ligeiramente o seu estado pela supressão de sintomas – mas é
Huberto Rohden  - Assim Dizia o Mestre
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Huberto Rohden - Assim Dizia o Mestre

  • 1. HUBERTO ROHDEN ASSIM DIZIA O MESTRE UNIVERSALISMO
  • 2. ASSIM DIZIA O MESTRE Assim Dizia o Mestre é o terceiro volume da coleção “Sabedoria do Evangelho”, da qual fazem parte Filosofia Cósmica do Evangelho, O Sermão da Montanha e O Triunfo da Vida sobre a Morte, todos de autoria do educador e filósofo, professor Huberto Rohden. São tentativas do autor para expor e explicar, numa linguagem filosófica e dos nossos tempos, os “ditos de Jesus”, originariamente compilados e escritos pelos evangelistas do primeiro século – Mateus, Marcos, Lucas e João. As palavras do Mestre são, quase todas, alegóricas e simbólicas; para compreendê-las devemos transcender a faculdade mental e atingir o nível intuitivo da razão, ou Lógos, pois, a experiência do Evangelho representa a mais estupenda verticalidade mística. Rohden faz ver que o cristianismo não é uma ideologia espiritualística. O profeta de Nazaré não ensinou uma doutrina “de fuga do mundo”. O cristianismo não é ascético-espiritualista, nem epicureu-materialista. O cristianismo é essencialmente cósmico, univérsico, afirmando a bipolaridade da natureza, fora e dentro do homem – a complementaridade das coisas materiais e espirituais. Aliás, como podemos observar, a própria vida do Cristo é genuinamente cósmica; o que lhe mereceu, por parte dos espiritualistas ascéticos da época, a alcunha de “comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores”. Explica Rohden: “Até ao presente dia é muito mais importante, pedagogicamente, proclamar o Evangelho do recusar do que o Evangelho do usar, porque o abusar é ainda o grande pecado original desta humanidade profana. É até perigoso recomendar a um abusador do mundo que use esse mundo, porque ele confundirá fatalmente o uso correto com o abuso incorreto a que está habituado; o seu complacente egoísmo facilmente lhe fará crer que é um homem cósmico, quando não saiu ainda das baixadas do homem telúrico. Isto, todavia, não invalida a nossa tese de que o cristianismo é, em sua íntima essência, a religião do uso, ou seja, da afirmação do mundo – naturalmente para os que já se libertaram da velha escravidão do abuso das coisas materiais. O homem cósmico ou crístico, tem que passar pela escola ascética da disciplina espiritual, a fim de atingir a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”.
  • 3. Verdadeiramente, são estas as palavras e a mensagem deste livro.
  • 4. ADVERTÊNCIA A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea e nada se aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa mas se escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas.
  • 5. PRELÚDIO A grande aceitação dos dois primeiros volumes desta série sobre a “Sabedoria do Evangelho” – 1 – Filosofia Cósmica do Evangelho; 2 – O Sermão da Montanha – evidenciou a necessidade de encararmos a mensagem do Nazareno sob o ponto de vista puramente espiritual, independente de qualquer teologia eclesiástica. A Era do Aquário em que acabamos de entrar exige uma visão universalista do Evangelho, cujo caráter é essencialmente cósmico. Dentro em breve, se Deus quiser, seguirá o quarto e último volume da série, sob o título O Triunfo da Vida sobre a Morte, abrangendo as palavras proferidas pelo divino Mestre na última semana da sua vida mortal e no período após a sua ressurreição. A grande dificuldade de compreendermos o espírito da Sabedoria do Evangelho está na falta de vivência do seu conteúdo. Ninguém sabe e compreende, de fato, senão aquilo que vive intimamente, ou melhor, aquilo que ele é nas últimas profundezas do seu ser. Saber é ser. Só quando o homem se despoja de vez do “homem velho”, que anda ao sabor das suas concupiscências, e se reveste do “homem novo, feito em verdade, justiça e santidade”, é que ele compreende realmente a alma do Evangelho. E, porque poucos praticam esse misterioso “egocídio”, são muitos os chamados e poucos os escolhidos. Para que o homem cruze a invisível fronteira que medeia entre a simples análise mental e teológica do Evangelho e sua intuição espiritual e cósmica, é necessário que ele crie dentro de si um clima ético favorável, porque a vivência ética é o preliminar indispensável para a experiência mística, sem a qual o Evangelho continua um “tesouro oculto”. Essa experiência íntima abrirá ao homem purificado as portas secretas para novos mundos, nunca dantes sabidos nem saboreados. A “via purgativa” precede necessariamente a “via iluminativa”, e esta é precursora da “via unitiva”. Ninguém sabe o que é Deus e o Cristo sem esse tríplice processo ascensional da purificação, iluminação e união. “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais entrou em coração humano o que Deus preparou àqueles que o amam”.
  • 6. “NINGUÉM VAI AO PAI A NÃO SER POR MIM.” Nenhum judeu, nenhum muçulmano, nenhum chinês, nenhum persa estará disposto a aceitar esta afirmação categórica de Jesus, no sentido em que certos cristãos costumam tomá-la. A maioria da humanidade não pertence ao cristianismo eclesiástico, organizado. Reconhecem como seus chefes espirituais a Moisés, Maomé, Krishna, Buda, Zaratustra e outros. Afirmação categórica como a que encima este capítulo, quando tomada no sentido costumeiro, desune a humanidade, criando ódios sectários e guerras de religião. Entretanto, a culpa desses males não cabe ao inspirado autor destas palavras, mas à falsa interpretação dos que se dizem seus discípulos, sem possuírem o espírito do grande Iluminado. Todo o mal está na confusão de dois elementos distintos: Jesus e o Cristo. O Divino Logos, ou Verbo, se uniu inseparavelmente ao humano Jesus, mas essa união não aniquilou a distinção entre os dois elementos, divino e humano. O eterno Logos, depois de se unir a Jesus, filho de Maria, chama-se o “Ungido”, ou, em grego, o “Christós”. Nenhum homem que não receba essa mesma unção (“chrisma”) do espírito de Deus pode ir ao Pai. Ninguém vai a Deus a não ser através da unção do espírito de Deus. A nossa natureza humana deve ser tão penetrada e permeada do espírito de Deus que possamos dizer com Jesus Cristo: “Eu e o Pai somos um”. É nisso que consiste a verdadeira redenção e salvação do homem: na realização dessa suprema cristificação. Por espaço de diversos anos fui discípulo de um grande mestre espiritual oriental, e nunca ouvi de lábios cristãos maiores apoteoses ao Cristo do que da parte desse gentio. Nas aulas de filosofia e nas funções litúrgicas, esse hindu só falava no Cristo, e o volume de 101 orações por ele compostas só falavam do Cristo como único caminho à comunhão com Deus. Nenhuma estranheza nos causava a nós, discípulos do brâmane hindu, essa sua atitude essencialmente cristã, porque todos nós sabíamos que pela palavra “Cristo” não entendia ele algum indivíduo humano, fundador duma determinada religião ou igreja: não entendia a Jesus de Nazaré, filho da Virgem Maria, mas sim o
  • 7. eterno Lógos, o espírito de Deus de que fala o princípio do quarto Evangelho, o espírito eterno, absoluto, infinito, que se fez carne e habitou – e continua a habitar – em nós: “Eu estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos”, “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estou eu no meio deles”. Em tempo algum da história da humanidade deixou o divino Logos de habitar em nós; mas nem sempre encontra veículos humanos assaz receptivos e puros para se manifestar com tamanho esplendor como fez na pessoa de Jesus de Nazaré, “cheio de graça e verdade”. O divino Logos encarnou-se em Moisés, em Isaías, em Jó, em Krishna, em Buda, em Zaratustra, em Maomé, em Gandhi, e muitos outros veículos humanos. Quando colocamos uma luz sob um recipiente opaco, nada percebemos dessa luz, embora ela esteja presente. Se lhe dermos um invólucro translúcido, percebemos a sua presença de um modo indireto. Mas se essa mesma luz dermos um cristal transparente, a veremos em toda a sua claridade. Em Jesus de Nazaré encontrou o divino Logos a mais perfeita expressão até hoje conhecida aqui na Terra, e por isso nós cultuamos o Cristo em Jesus como o apogeu das revelações da Divindade. Grande parte da humanidade não consegue ainda compreender a verdade da imanência de Deus no mundo, e a imanência do Cristo no homem. É bem mais fácil, para o homem comum, compreender a transcendência de Deus e do Cristo – o Deus para além do mundo, e o Cristo fora do homem – do que a sua imanência no mundo e no homem. Muitos transcendentalistas receiam o conceito da imanência porque lhes parece destruir a transcendência. Entretanto, laboram em erro! A afirmação da imanência não nega a transcendência: pelo contrário, esta inclui aquela, e aquela inclui esta. O Deus que está para além do mundo está também dentro do mundo e o Cristo que estava e está em Jesus está também em cada um de nós, uma vez que ele “é a luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo”. O Cristo interno é o Cristo externo, assim como o Deus imanente é o Deus transcendente. Mas a compreensão dessa verdade supõe notável maturidade espiritual, que nem todos os homens possuem ainda. As formas visíveis do invisível Logos sucedem-se, no tempo e no espaço, percorrendo diversos graus de perfeição ou imperfeição, consoante o maior ou menor grau de receptividade de seus veículos humanos temporários. Mas o eterno espírito de Deus, o Logos, paira acima dessas vicissitudes múltiplas e multiformes – assim como as ondas na superfície do mar se sucedem em formas várias sem que o oceano deixe de ser sempre um e o mesmo, assim
  • 8. como a vida universal do cosmos se concretiza e visibiliza sem cessar em milhares e milhões de organismos vivos individuais, sem aumentarem nem diminuírem a Vida em si mesma. *** Em véspera de sua morte, dirigindo-se ao Pai eterno, diz Jesus: “Glorifica-me, ó Pai, com aquela glória que eu tinha em ti, antes que o mundo fosse feito!” Quem tinha essa glória antes da creação do mundo? Certamente não o Jesus humano, que não existia ainda, mas sim o Cristo divino, que estava com Deus, e encarnou no filho de Maria. “Ninguém vem ao Pai a não ser por mim.” Abraão, Moisés, Davi e muitos outros foram ao Pai por meio do Cristo, muito antes que esse Cristo se tivesse revelado em Jesus. A redenção vem do Cristo. “Eu sei que meu redentor vive!” – exclama Jó, no meio dos seus sofrimentos, professando a fé no Cristo Redentor, milênios antes do nascimento de Jesus. *** O nosso tradicional dualismo ocidental opõe barreira à evolução dessa consciência do nosso Cristo interno, imanente. Para a maioria dos cristãos, o Cristo é apenas aquele homem que, há quase dois mil anos, viveu em terras longínquas, e no qual se deve crer, sem jamais poder experimentá-lo vitalmente, aqui na Terra, assim como Paulo de Tarso o vivia quando exclamava: “Já não vivo eu – o Cristo é que vive em mim!” Seria grotesco supor que Paulo acreditasse que a pessoa humana de Jesus tivesse tomado posse dele, de maneira que nele houvesse uma duplicata de personalidades, uma chamada Paulo e a outra chamada Jesus. O que o apóstolo quer dizer é que nele acordou o Cristo que nele estivera dormente tantos anos, o mesmo Cristo que em Jesus estava gloriosamente operante. É, pois, necessário que todo homem que queira ir ao Pai acorde em si o Cristo e o faça soberano da sua vida, porque a todos aqueles “que o recebem dá-lhes ele o poder de se tornarem filhos de Deus”. “Ninguém vem ao Pai senão por mim.” Ninguém alcança a redenção, o reino dos céus, a não ser que nasça de novo pelo espírito.
  • 9. “ALEGRAI-VOS, PORQUE OS VOSSOS NOMES ESTÃO ESCRITOS NO LIVRO DA VIDA ETERNA.” Certo dia, regressaram os discípulos de Jesus de uma excursão apostólica e referiram ao Mestre, cheios de jubiloso entusiasmo, que os próprios demônios lhes estavam sujeitos. O Mestre, porém, replicou calmamente: “Não vos alegreis pelo fato de que os demônios vos estejam sujeitos: alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos no livro da vida eterna.” Com outras palavras: o alvo principal do apostolado não está nos resultados visíveis da atividade externa, mas sim na invisível realidade da santidade interna. Ser é mais importante que fazer. Até os nossos dias, são bem mais numerosos os homens que põem maior ênfase nas atividades externas do que na atitude interna; dificilmente compreendem que esta é mais importante do que aquelas. A atividade social não tem valor autônomo em si mesma, se não brotar da atitude mística do homem. Pouco importa, afinal de contas, o que o homem faça ou diga – o que importa, e muitíssimo, é o que o homem é. Podem os trabalhos de Marta ser bons e louváveis em si mesmos, mas se não forem o natural eflúvio e a manifestação espontânea da atitude interna de Maria, são outros tantos zeros, pequenos e grandes, cuja soma ou produto será sempre igual a zero. Somente o fator espiritual, o grande “1” vertical, é que pode conferir valor e plenitude a essas vacuidades horizontais: 1.000.000. Há nas atividades externas, quando dissociadas da realidade interna, dois gravíssimos perigos. 1 – Essas atividades, facilmente, embalam seu autor numa falsa segurança, criando nele uma complacente auto-suficiência em face dos resultados colhidos, impedindo-o de passar para além daquilo que já realizou, ou julga ter realizado. Essa suava auto-ilusão e complacente suficiência são o maior desastre espiritual para o homem externamente ativo e internamente passivo, porque o fazem entrar numa zona de estagnação espiritual. Ai do homem plenamente satisfeito com seus trabalhos externos! O único fator que pode preludiar a sua redenção é uma profunda insatisfação consigo mesmo. Incomparavelmente mais importante que os mais gloriosos trabalhos no plano horizontal é a intensificação do ser vertical. Pouco vale o fazer, o dizer e o ter
  • 10. no mundo dos objetos quantitativos, se no mundo do sujeito qualitativo não existir um profundo ser. 2 – O segundo perigo está em que esse homem exteriorizado julgue influir sobre seus semelhantes com o que faz e diz – quando é impossível promover a verdadeira conversão de outrem se eu mesmo não sou um genuíno e autêntico convertido, isto é, um homem intimamente unido a Deus. Só o meu ser é que pode influir sobre o ser de outros; mas, se o meu ser é fraco, não poderá dar força aos fracos. Só um poderoso positivo é que pode atuar sobre os negativos em derredor; se eu mesmo não for 100% positivo, por uma intensa e profunda experiência de Deus, não poderei exercer influência real sobre os outros, igualmente negativos. Podem os meus ouvintes ou leitores admirar-me, sim, e aplaudir-me; mas não se sentirão com forças para abandonar o mundo noturno das suas misérias morais e entrar no mundo diurno da virtude e santidade, porque não veem esse mundo concretizado em minha pessoa. E mesmo no caso favorável que julgassem esse mundo divino realizado em mim, não se converteriam realmente a Deus, pois não são as aparências que atuam, mas sim a realidade, realidade essa que, nesse caso, estaria ausente de mim. Posso, sim, dizer mil vezes, com grande eloquência, que esse mundo do espírito é grandioso e belo, e os meus ouvintes ou leitores, na melhor das hipóteses, crerão nas minhas palavras – mas do crer ao ser vai distância enorme. Crer é uma teoria longínqua e vaga – ser é uma realidade propínqua e forte. É dificílima a transição do crer para o ser, e se ninguém vir esse ser concretizado numa pessoa humana, dificilmente passará a encarnar o seu longínquo crer num propínquo ser, isto é, não se converterá porque não me vê convertido. O convertido é aquele que pode, em verdade, dizer: “Eu e o Pai somos um”. “Já não sou eu que vivo, o Cristo é que vive em mim.” As minhas palavras de não-convertido eloquente, possivelmente, darão muita luz aos ouvintes ou leitores: mas falta força, que não vem das palavras, mas da realidade espiritual do indivíduo humano, no qual o “Verbo” se tenha feito carne e habite substancialmente, “cheio de graça e de verdade”. Pode ser que um determinado homem tenha a missão de pregar às multidões, escrever livros ou exercer outro trabalho social qualquer – e deve cumprir esta sua missão do melhor modo possível. Mas ai dele se vir nessas atividades a principal tarefa da sua vida! Há outra coisa, infinitamente mais importante, do que qualquer trabalho externo – é o próprio homem, a sua plena realização crística, para o qual aqueles trabalhos estão como meios para um fim. Atividades externas nunca devem ser outra coisa a não ser um como que transbordamento espontâneo de uma plenitude interior. Se essa plenitude não existe – que é que pode transbordar?
  • 11. Alguma vacuidade camuflada em plenitude, isto é, uma grande mentira apresentada com sendo verdade?... Fogo pintado não dá luz nem calor – ao passo que a menor parcela de fogo real pode atear incêndios e iluminar mundos inteiros. Pouco importa o que o que o homem diga, faça ou tenha – tudo importa o que ele é. O que ele é refere-se à qualidade do seu íntimo Eu – o que ele diz, faz ou tem refere-se às quantidades do seu externo ego. Referem os Atos dos Apóstolos que, quando os chefes espirituais da primitiva igreja cristã perceberam que se iam dispersando em atividades externas e trabalhos sociais de organização, disseram: “Não convém que nós sirvamos as mesas; vamos nomear auxiliares idôneos para essa tarefa; nós, porém, vamos dedicar-nos à oração e à pregação da palavra do Senhor.” Sabiam esses discípulos do Cristo que o fator decisivo, em qualquer trabalho de caráter espiritual, é a espiritualidade de quem preside a esse trabalho, aquilo que ele é no seu íntimo ser, e não aquilo que ele realiza ou organiza no plano externo. A caridade social realiza grandes obras – mas só o Amor espiritual realiza o homem. Onde quer que exista um homem plenamente realizado pelo Amor, ali serão realizadas grandes coisas, e essas coisas serão fecundas e benéficas; mas onde não há realização pelo Amor, senão apenas caridade, ali se realizarão ruidosos trabalhos externos, que, por melhores em si mesmo, correrão perigo de colapso e desintegração, por falta de sacralidade interior. Pouco importa o que o homem realize no mundo externo dos objetos – tudo importa o que ele realiza em si mesmo. Uma única auto-realização supera todas as alo-realizações. “Se um único homem chegar à plenitude do Amor, neutralizará o ódio de milhões” (Mahatma Gandhi). Ainda que todos os demônios da Terra, todo o mundo material e astral, me estivessem sujeitos, mas se o meu nome não estivesse escrito no livro da vida eterna, não haveria redenção para mim.
  • 12. “DEUS É DEUS DOS VIVOS, E NÃO DOS MORTOS, PORQUE PARA ELE TODOS SÃO VIVOS.” Na memorável dissertação que Jesus teve com os saduceus, que negavam a ressurreição, profere ele palavras tão profundas que, por si sós, valem por uma inteira filosofia cósmica. Em primeiro lugar, desmascara o erro dos seus tentadores, fazendo-os ver que, na futura “eternidade” (em grego: aion, ciclo de longa duração), não se casa nem se dá em casamento, porque os que forem achados dignos dessa futura “eternidade” são como os anjos de Deus nos céus, por serem filhos da ressurreição; quer dizer, revestidos de corpo imortal e incorruptível. E, por isso, não necessitam de casamento, porquanto já não há necessidade de procriação, fim biológico do casamento. Num mundo onde cessou a destruição do corpo pela morte não há razão para a construção de novos corpos, uma vez que a existência do corpo se acha definitivamente estabilizada e garantida pela incorruptibilidade. Só há necessidade de multiplicação quantitativa de corpos enquanto o corpo não houver atingido o seu estágio definitivo de perfeição qualitativa. Quanto menos perfeito ou espiritual é um corpo, tanto maior é nele o instinto sexual, que é a voz da mortalidade, a qual, sabendo serem os corpos dos genitores mortais, procura criar outro corpo a fim de fugir à mortalidade. Onde não há imortalidade individual reina a tendência de criar mortalidade racial; a imortalidade da espécie ou raça tem de suprir a falta de imortalidade do indivíduo. Mas onde esta se tornou gloriosa realidade, cessa a tendência sexual da procriação de novos indivíduos. A grande vertical da imortalidade individual suplantou a extensa horizontal das individualidades mortais. Por isso, nos grandes gênios espirituais da história é mínimo ou nulo o instinto sexual; a horizontal da espécie foi absorvida pela vertical do indivíduo. A mística substituiu a erótica, nesses “eunucos do reino de Deus”. Certas igrejas, seitas ou grupos religiosos compreenderam essa verdade; mas, como os seus adeptos não haviam atingido a necessária maturidade espiritual para neutralizar a horizontal do sexo pela vertical do indivíduo, essas sociedades legislaram sobre o assunto, criando artificialmente a “lei do celibato”, imposta a indivíduos espiritualmente imaturos, dando ensejo a um doloroso dualismo de permanente hipocrisia: devem fazer o que fazer não podem.
  • 13. Quer dizer que nascimento e morte não fazem parte da natureza humana quando ela atingir a sua perfeição suprema, mas são funções temporárias do corpo humano em estado primitivo, material. Quem é “filho da ressurreição” é como os “anjos de Deus nos céus”, isto é, realizou a transformação do seu corpo material, corruptível, num corpo imaterial, incorruptível. A “ressurreição” não é a revivência do corpo material, mas é a potencialização dinâmica do corpo material num corpo espiritual, como é o das inteligências sobre-humanas que comumente chamamos “anjos”, isto é, “emissários” [1]. -------------- [1] A palavra grega “ángelos”, em latim “angelus” (anjo), quer dizer literalmente “emissário”, “arauto”, “mensageiro”, designando entidades conscientes e livres revestidas de corpo imaterial e invisível. Quando um ser desses de alta hierarquia cósmica se opõe a Deus chama-se “satã”, palavra hebraica para “adversário”, em grego “diábolos”, que quer dizer “opositor”. Quando essa entidade superior harmoniza com o espírito de Deus e lhe transmite a vontade aos planos inferiores do cosmos, chama-se significativamente “mensageiro” ou “ángelos” (anjo). Tanto anjo como diabo são “lúcifer”, mas, enquanto aquele é um “lúcifer” harmonizado com Deus, este é hostil a Deus. A nossa teologia fala na imortalidade da alma, ao passo que os livros sacros consideram imortal o homem todo; verdade é que o grosso da humanidade não alcançou ainda a imortalidade corpórea atual, o que não obsta a que essa imortalidade do corpo exista, agora mesmo, em estado potencial. O corpo humano, potencialmente imortal, pode tornar-se atualmente imortal; essa transição da potência para o ato depende da maturação espiritual da alma. Toda alma que tenha atingido, digamos, 100% da consciência espiritual confere imortalidade atual a seu corpo. A alma imortal unida a um corpo imortal é o estado natural do homem completo, do homem cósmico ou crístico. O corpo espiritual é essencialmente idêntico ao corpo material; apenas o seu modo de ser é diferente. A identidade é perfeita. O homem não terá diversos corpos, sucessivos, mas um só corpo, com diversos graus de perfeição, consoante o grau de consciência da alma. O corpo é um “templo em que habita o espírito de Deus”, na expressão de Paulo; e nunca deixará de habitar nesse santuário. Quando os discípulos de Jesus, vendo o Mestre redivivo, cuidaram ver um fantasma, apressou-se ele a provar-lhes a perfeita identidade do corpo do ressuscitado com o corpo do crucificado, mostrando-lhes os sinais dos cravos e da lança. Ora, o que aconteceu com o corpo de Jesus acontecerá com os corpos de todos os homens quando estes tiverem alcançado suficiente grau de cristificação. Elias e Moisés, consoante as Escrituras, não passaram pela morte física, mas transformaram os seus corpos materiais em corpos imateriais, desaparecendo assim dos olhos que apenas percebem objetos materiais.
  • 14. Quando a matéria se desmaterializa, passa, primeiramente, pelo estado de energia luminosa, ainda focalizada e, por isso, visível; depois, essa mesma energia luminosa se torna invisível, porque desfocalizada. Refere o texto que o profeta Elias ascendeu às alturas arrebatado num “carro de fogo”; quer dizer que o seu corpo desmaterializado pela força da alma foi visto como uma nuvem, luminosa, passando depois ao estado da luz cósmica, invisível. De Moisés refere o texto que foi levado por Deus às alturas do monte Nebo e ali desapareceu misteriosamente, sem que jamais fosse encontrado vestígio do corpo dele. Houve, pois, uma desmaterialização instantânea do corpo de Moisés, de maneira que nem o estágio intermediário da energia luminosa foi verificado. Durante a transfiguração de Jesus, reaparecem, visibilizados, os corpos imateriais de Elias e Moisés, ao lado do corpo de Jesus, também em estado de energia luminosa. Jesus, desde o início, possuía o poder de desmaterializar e rematerializar o seu corpo, como mostrou diversas vezes durante a sua vida mortal; afirma categoricamente: “Ninguém me tira a vida; eu deponho a minha vida (física) e retomo a minha vida quando quero; porque este poder me foi dado pelo meu Pai”. O que ele chama o “Pai” é o elemento divino dele: “O Pai está em mim e eu estou no Pai”. Há, sobretudo na Índia, diversos casos em que homens de alta espiritualidade transformaram o seu corpo material em corpo imaterial, desaparecendo da zona do visível sem terem morrido, e reaparecendo periodicamente, durante séculos. A ressurreição, ou transformação do corpo, é um ato do “poder de Deus”. Esse poder de Deus está dentro de cada homem em forma de sua alma, o “espírito de Deus que nele habita”, o nosso “Cristo interno”. Mas só quando a alma, superando o testemunho dos sentidos e da mente, alcançar plena consciência da sua essencial identidade com Deus, e viver essa sua divina identidade pelo amor universal, é que ela conquista o “poder de se tornar filho de Deus”, e esse poder divino, saturando todas as células do corpo, confere incorruptibilidade à matéria corruptível. “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, porque para ele todos são vivos”...
  • 15. “AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, COM TODO O TEU CORAÇÃO, COM TODA A TUA ALMA, COM TODA A TUA MENTE E COM TODAS AS TUAS FORÇAS.” Não há cristão, nem outro homem religioso, que não afirme amar a Deus do modo como vem expresso nestas luminosas palavras do divino Mestre. Entretanto, vai nisso, quase sempre, uma grande ilusão. Por quê? Porque é absolutamente impossível amar, real e intensamente, um Ser do qual não se tenha experiência direta e imediata. A imensa maioria dos homens religiosos apenas crê em Deus. Ora, o objeto da nossa crença ou fé nunca pode ser objeto de um verdadeiro amor. Ninguém pode amar uma doutrina, um dogma, um artigo de fé. O crente, quando muito, quer amar, mas não ama de fato. Querer amar é um ato volitivo, uma prova de boa vontade, mas não é amar. O amor, assim como Jesus o descreve nas palavras acima, não é apenas um ato de boa vontade, mas é o resultado de uma profunda, misteriosa e fascinante experiência vital do homem em toda a sua plenitude – alma, coração, mente e corpo. Ninguém pode amar um ser ausente, do qual ouviu falar e no qual crê apenas volitivamente. O Deus da nossa crença é um Deus longínquo, transcendente – ao passo que o Deus do nosso amor é um Deus propínquo, imanente. Quem apenas crê num Deus distante, transcendente, pode, sim, querer amá-lo, mas não o pode amar de fato. O amor real é algo intensamente próximo, íntimo, ardente; é uma verdadeira fusão do amante e do amado – “eu e o Pai somos um”, “o Pai está em mim, e eu estou no Pai”. De maneira que, em última análise, há só uma classe de homens que, de fato, amam a Deus – são os verdadeiros místicos, os intuitivos, os videntes do mundo da Divindade, os que têm de Deus uma experiência vital, imediata; são os que sabem o que é Deus em virtude de um contato direto, de uma vivência onipenetrante. São estes os únicos que amam a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente e com todas as forças do seu corpo. Mas, como os verdadeiros místicos são raros, bem poucos são os homens que realmente amam a Deus de acordo com as palavras de Jesus. Talvez que, até a presente data, um só homem tenha atingido as culminâncias desse amor integral. E era precisamente esta a razão por que possuía “todo o poder no céu
  • 16. e na Terra”, porquanto o verdadeiro amor é onipotente por sua própria natureza. Quem tudo compreende tudo ama. Quem tudo ama tudo pode. Compreender, amar e poder – essas três coisas são na realidade uma só. Enquanto o homem ignora qualquer coisa não ama ainda integralmente, porque o seu amor está limitado àqueles seres que se acham dentro do luminoso círculo da sua compreensão, ao passo que os outros seres que ficam fora dessa zona de compreensão não são nem podem ser objetos do seu amor. Amor universal supõe compreensão universal. E uma vez que o homem tudo compreende e tudo ama – que limite poderia haver ainda para o seu poder? Se sem limites é o seu compreender e o seu amor, sem limites tem de ser, necessariamente, o seu poder. Onicompreensão é oniamor e onipotência! *** O que no Evangelho de Jesus se chama “fé” é, de fato, uma experiência e uma direta vivência da Suprema Realidade, mas o que as nossas teologias, geralmente, entendem por “fé” não passa de um entender intelectivo ou de um querer volitivo. E esse entender e esse querer, esse crer, ou esse querer-crer, não podem deixar de ser fracos e insatisfatórios; nada têm da força irresistível de um profundo e fascinante compreender e viver. No momento em que o homem transpõe a fronteira do seu velho e débil “crer”, entrando na zona de um novo e forte “compreender”, sabe ele pela primeira vez o que Jesus quis dizer com as tão conhecidas e tão desconhecidas palavras: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de toda a tua mente e com todas as tuas forças.” Alma, coração, mente, forças corpóreas – o homem integral! Compreendemos que o homem possa amar a Deus com a alma, o espírito, porque Deus é espírito. Mas o que, à primeira vista, nos parece estranho é que o homem possa amar a Deus também com o coração, com a mente e até com as forças do corpo.
  • 17. Como posso amar afetiva, intelectiva e até fisicamente um Ser que é puro espírito? Como podem o coração, a mente, o corpo atingir esse objeto de amor? De fato, se Deus fosse apenas um Deus transcendente, puro espírito abstrato, só os puros espíritos o poderiam amar; mas, sendo Deus, além de transcendente às suas obras, também imanente em cada uma das suas creaturas, é possível que o amemos também com o coração, com a mente e com o corpo. Deus é inconsciente no mineral. Deus é subconsciente no vegetal. Deus é semiconsciente no animal. Deus é egoconsciente no intelectual. Deus é pleniconsciente no espiritual. Deus é oniconsciente em si mesmo. Se Deus não fosse imanente em suas obras, ninguém o poderia amar com as faculdades do coração, da mente e do corpo. Como Verdade, Deus é Transcendente. Como Beleza, Deus é Imanente. Quando a Verdade e a Beleza se fundem numa grandiosa sinfonia, surge a estupenda Poesia do Cosmos, síntese de Verdade e Beleza. A Verdade é infinitamente bela. A Beleza é profundamente verdadeira. Por isso, a Vida Eterna é necessariamente a eterna Beatitude, porque nasce do consórcio do Verdadeiro e do Belo, que é Amor. Enquanto o “amar Deus” é apenas um preceito ético, um dever, um imperativo categórico da consciência moral, não despertou ainda a alma do amor; só quando esse “amar a Deus” deixa de ser um compulsório dever e se transforma num espontâneo querer, numa luminosa compreensão, num irresistível entusiasmo – então é que o homem entra no “gozo do seu Senhor”. Então sabe ele que é amor. Sabe o que é o Cristo. E sabe o que é ele mesmo.
  • 18. “QUEM NÃO RENUNCIAR A TUDO QUE TEM NÃO PODE SER MEU DISCÍPULO.” Ter – ou Ser? É a esses dois monossílabos que se reduz, em última análise, toda a filosofia do Evangelho e toda a sabedoria dos séculos. Ter – ou Ser? Duas atitudes eternamente incompatíveis. “Ninguém pode servir a dois senhores.” O homem que tem algo não pode ser alguém e vice-versa. O homem profano só conhece o ter, ou os teres, isto é, certo numero de objetos quantitativos, que estão ao redor dele, no plano horizontal, e que ele considera ingenuamente como sendo seus bens. O profano total nada sabe do seu intimo ser, de algo que não é dele, mas que é ele mesmo. Pode alguém ser milionário no plano horizontal dos seus teres, e ser ao mesmo tempo mendigo indigente na zona vertical do seu ser. De tanto ter não chega a ser alguém. Outros, mais avisados, resolvem renunciar a todos os seus teres e se isolam no puro ser, isto é, na divina essência do seu eterno Eu, sua alma, seu Cristo interno. E, de tão enamorados desse seu verdadeiro ser, desprezam soberanamente todos os ilusórios teres dos profanos. São os ascetas, os místicos, os iogues, os austeros desertores de todas as coisas periféricas, os impávidos bandeirantes da verdade central. E, por mais tenebrosa que a outros pareça essa noite da renúncia absoluta e incondicional, ela é solene e grandiosa, porque possui a fascinante sacralidade das noites estreladas... É a estes que Jesus se refere nas palavras que encimam o presente capítulo: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.” Quer dizer quer qualquer ter, ou posse de objetos externos, impede o homem de ser discípulo do Cristo, ele, que não tinha onde reclinar a cabeça – nada tinha porque tudo era; porque o seu ter descera ao ínfimo nadir, quando o seu ser atingira o supremo zênite. Por fim, renunciou também ao ter mais
  • 19. intimamente ligado ao ser, o corpo físico. E assim acabou ele de “entrar em sua glória”. Pode parecer estranho e humanamente inexequível esse inexorável radicalismo do Mestre. E não faltou quem mobilizasse contra essa sangrenta verdade da renúncia absoluta e incondicional todas as legiões da dialética mental, a ver se conseguia salvar do naufrágio ao menos alguns dos seus queridos ídolos, a ver se conseguia passar pelo “fundo da agulha” pelo menos com uma parte da bagagem que o profano costuma levar de reboque, nessa jornada terrestre; habituado em todos os paraísos da Terra, tentam eles aplicar essa sua política e diplomacia também ao Evangelho do reino de Deus. Entretanto, as palavras do Mestre não admitem vestígio de dúvida; são inexoravelmente claras: “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo” – tudo, sem exceção de coisa alguma! O episódio trágico do jovem rico é uma ilustração clássica para essa verdade austera. Tudo quanto o homem possui em bens terrestres torna-o dependente e escravo; mas o reino dos céus é somente para as almas completamente livres. Enquanto o homem tem algo que o mundo lhe possa tirar, ou deseja algo que o mundo lhe possa dar, não é definitivamente livre, e por isso discípulo do Cristo. Os nossos teres quantitativos nos excluem do reino dos céus – o nosso ser qualitativo nos faz entrar no reino de Deus. Aproximamo-nos de Deus na razão direta do que somos, e na razão inversa do que temos. O ter é nosso, o ser é de Deus. Mas, em que consiste esse ser? Consiste na consciência da verdade sobre nós mesmos. Se conhecermos a verdade sobre nós mesmos, seremos livres. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. E, se o Filho do homem vos libertar, sereis realmente livres.” Essa verdade libertadora sobre nós mesmos porém está na experiência íntima da nossa essencial identidade com Deus – “eu e o Pai somos um” – e na completa harmonia da nossa vivência cotidiana com essa verdade suprema. *** Mas... não é necessário que o homem, aqui no mundo, possua certas coisas? Poderá ele viver decentemente sem possuir nada? Bastará aqui na Terra o simples e puro ser? E não é um certo ter compatível com esse ser? É este, talvez, o ponto em que o cristianismo organizado falhou mais deploravelmente, e, o que é pior, as próprias igrejas cristãs procuram justificar esse espírito de possessividade de seus filhos – tanto mais que os próprios chefes espirituais são, não raro, os maiores possuidores de bens materiais.
  • 20. Será que a muitos desses chefes não caberiam as palavras veementes com que o Cristo fulminou os guias de Israel? “Guias cegos guiando outros cegos, mas se um cego guiar outro cego ambos acabarão por cair na cova! Ai de vós doutores da lei! Roubastes a chave do conhecimento do reino de Deus! Vós não entrais nem permitis que outros entrem!” Não há nada no Evangelho em que o divino Mestre insista com maior rigor e frequência do que no espírito de absoluta e total renúncia aos bens terrenos; por sinal que ele considera a posse desses bens como absolutamente incompatível com o espírito do reino de Deus. À primeira vista, parece possível e até necessário esse consórcio entre o ser e o ter, razão por que os teólogos e moralistas cristãos de todos os tempos têm tentado realizar esse congraçamento. Entretanto, continua a ser verdade inconcussa que “ninguém pode servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro”. Ter algo e ser alguém são duas antíteses tão inexoravelmente hostis que nenhum tratado de paz é possível entre essa duas potências, assim como impossível é um consórcio entre as trevas e a luz, entre o não e o sim, entre a morte e a vida. Entretanto, sem revogar o que acabamos de dizer, passaremos a explicar dois termos: possuir e administrar. É possível que o homem seja discípulo do Cristo e ao mesmo tempo administre parte dos bens de Deus em benefício dos outros filhos de Deus, seus irmãos. Deus é o único dono, proprietário e possuidor de todas as coisas que ele creou; nenhum homem é dono de coisa alguma e, se ele se arroga o direito de ser proprietário disso ou daquilo, comete crime de “apropriação indébita”, roubando a Deus e aos filhos de Deus algo que lhe não pertence. Por isso, nenhum genuíno discípulo do Cristo se considera possuidor, dono ou proprietário do dinheiro ou de quaisquer bens materiais que, casualmente, estejam sob a sua administração; considera-se invariavelmente como simples administrador desses bens, de cujo emprego terá de dar estreitas contas ao legítimo senhor e proprietário. Lemos nos Atos dos Apóstolos que entre os primeiros discípulos do Cristo não havia propriedade particular, mas que todos os bens eram comuns. Não existia nenhuma lei externa que obrigasse os cristãos a socializarem os seus bens, mas havia neles a lei interna do amor nascido da compreensão da grande verdade de que todas as coisas do mundo são de Deus e que nenhum filho de Deus tem o direito de arrogar a posse exclusiva duma parte desses bens. A administração desses bens deve ser entregue a pessoas que tenham maior capacidade, e sobretudo maior espírito de desapego, mas o usufruto dos bens deve reverter sempre em prol da humanidade como tal. Se os homens se considerassem administradores, em vez de possuidores dos bens materiais, seria proclamado o reino de Deus sobre a face da Terra; cessariam guerras,
  • 21. explorações, brigas, roubos, assassinatos, etc. “A cobiça é a raiz de todos os males”, dizem os livros sacros. *** Esse conceito de administração, em vez de propriedade, é um simples e espontâneo corolário da realização crística do homem. Em face do nascimento do sol do ser empalidecem todas as estrelas noturnas do ter. O homem crístico sente intuitivamente a total incompatibilidade entre o “ser discípulo do Cristo” e “possuir bens terrenos”. Essa alternativa representa para ele um dilema de lógica inexorável; ou isto – ou aquilo! Uma vez que ele conhece a sua sublime dignidade em Cristo Jesus, como poderia ainda degradar-se ao ponto de colocar a mão, pesadamente, sobre algum pedaço de matéria morta e declarar enfaticamente: “Isto aqui é meu, e de mais ninguém!” Semelhante atitude lhe pareceria tão incrivelmente ridícula e vergonhosa que ele não a perdoaria a si mesmo. E se, pelas forças das circunstâncias, esse homem for obrigado a assinar em cartório, com firma reconhecida, algum documento de propriedade, tem ele plena constância de que esse instrumento de posse vigora apenas no plano horizontal das pobres relações humanas, mas que nada significa na zona vertical da sua atitude espiritual e ética perante Deus e seus irmãos humanos; esse homem sabe que a despeito do que ele assinou sobre as infalíveis estampilhas, testemunhas da humana desconfiança e inconfidência, continua a não ser dono e proprietário de coisa alguma. Também, como poderia um genuíno discípulo do Cristo declarar de boa fé “este objeto me pertence”, quando ele mesmo já não se pertence, uma vez que pertence a Deus e à humanidade? Como apropriar-se de um objeto, se ele já desapropriou o próprio sujeito? Com o voluntário naufrágio do meu falso eu, do ego personal, naufragaram também todos os bens que eu chamava falsamente meus. A ideia do meu nasceu com a ideia do eu; quando esse eu morre, morrem necessariamente todas as ilusões relacionadas com o meu. O EU verdadeiro, divino, nada sabe de meus, porque o zênite do ser provoca o nadir do ter; quem tudo é nada tem; a intensa luminosidade do ser aniquila todas as trevas do ter. Quem de fato é discípulo do Cristo nada tem nem quer ter, para si mesmo, embora possa prestar-se para administrador duma parte dos bens de Deus em prol de seus irmãos. O que eu considero meu só tem função enquanto ainda vive em mim a noção do eu físico-mental; no momento em que o meu pequeno eu personal se afogar nas profundezas do TU divino e no vasto NÓS da humanidade, deixa esse conceito de meu ter razão de ser; é como um objeto suspenso no vácuo, depois que se lhe foi subtraído o sujeito de inerência que lhe servia de base e substrato. Por isso, o homem que atingiu a plenitude do seu ser, pelo despontar da consciência cósmica, perde toda a noção de posse e propriedade. Nada
  • 22. adquire e nada perde. O fluxo e refluxo incerto de lucros e perdas deixou de existir para ele, e com isso foi eliminada a fonte principal da inquietação que atormenta os profanos. Nada possui que o mundo lhe possa tirar, e nada deseja possuir que o mundo lhe possa dar. Entretanto, se as circunstâncias terrenas o nomearam administrador do patrimônio de Deus e da humanidade, esse homem administra com a máxima solicitude esse patrimônio terrestre universal. Pela mesma razão, o homem que se despojou dos teres pela maturação do ser não experimenta a menor dificuldade nem tristeza em passar a outras mãos a gestão dos negócios temporários que lhe foi confiada. O grande industrial norte-americano R. G. Le Tourneau, fabricante de possantes máquinas de terraplenagem, mandou colocar sobre a entrada de uma das suas fábricas o seguinte letreiro: “Não digas: Quanto do meu dinheiro eu dou a Deus? Dize antes: Quanto do dinheiro de Deus eu guardo para mim?” Esse homem descobriu que nós não temos dinheiro algum, mas que todas as coisas do mundo são de Deus; entretanto, pode o administrador dos bens de Deus tirar para si uma pequena “comissão”. Le Tourneau, no princípio, tirava uma comissão de 90% para si, dando 10% a Deus, para fins de altruísmo e religião; por fim inverteu as quotas, dando 90% a Deus e guardando 10% para si. Entretanto, mesmo desses 10%, Le Tourneau não se considerava proprietário, senão apenas administrador, porque também esse dinheiro pertencia a Deus e à humanidade. “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo.”
  • 23. “QUEM DE VÓS ME ARGUIRÁ DE UM PECADO?” O pecado só é possível na penumbra da egoconsciência, criada pelo intelecto. Não é possível nas trevas da inconsciência, que envolve o mundo dos sentidos materiais; nem é possível na luz meridiana da pleni-consciência, que ilumina as alturas espirituais da razão, do Logos, que, em sua forma encarnada, se chama o Cristo. Nem a inconsciência nem a pleni-consciência conhecem o pecado. O pecado é um fenômeno privativo da semi-consciência. Nem os sentidos nem a razão podem pecar; nem o corpo nem a alma pecam – tão-somente a inteligência, esse lúcifer do ego mental. Ora, sendo o Cristo a Razão, o Logos, o Espírito divino – como poderia haver pecado na zona da impecabilidade? Deus é transcendente a tudo e imanente em tudo. Na sua essência, é Deus totalmente presente e imanente em todas as coisas – mas no plano da manifestação dessa sua essência há grandes diferenças. Deus, embora imanente em cada ser, não se manifesta do mesmo modo em todos os seres. A sua essência é invariável, mas a sua manifestação é variável. Repetimos: Deus é inconsciente no mineral. Deus é subconsciente no vegetal. Deus é semiconsciente no animal. Deus é egoconsciente no intelectual. Deus é pleniconsciente no racional. Deus é oniconsciente em si mesmo. Só na zona penumbral da egoconsciência é que é possível o pecado. O pecado supõe consciência, porém uma consciência imperfeita. O pecado consiste na ilusão da nossa separação de Deus, ilusão essa creada pelo intelecto.
  • 24. Somos distintos de Deus, é certo, porque Deus é transcendente a cada uma das suas creaturas. Mas não estamos separados de Deus, porque Deus está imanente em cada uma das suas creaturas. Não somos idênticos a Deus nem separados de Deus – mas somos distintos dele, porque somos iguais a Deus pela essência divina universal – e somos desiguais dele pela existência humana individual. O dualista afirma a transcendência e nega a imanência. O panteísta nega a transcendência e afirma a imanência. O monoteísta absoluto, o monista ou universalista, afirma tanto a transcendência como a imanência, atingindo assim a verdade total. O intelecto separatista nos faz pecar – a razão unista nos redime do pecado. O intelecto é o precursor da razão – a razão integra em si o intelecto. Só nos pode redimir o que é remido. Só o impecável nos pode purificar do pecado. Ninguém vai ao Pai a não ser pelo Cristo – o Cristo, porém, como diz o quarto Evangelho, é o divino Logos, a Razão suprema, que fez carne e habitou entre nós. Habitou entre nós, historicamente, na pessoa de Jesus de Nazaré – e habita em cada um de nós, permanentemente, na forma daquela “luz que ilumina a todo homem que vem a este mundo... e dá àqueles que a recebem o poder de se tornarem filhos de Deus”; porque esse mesmo Cristo do passado está presente em cada um de nós, “eu estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos”. “Quem de vós me arguirá de pecado?” – assim poderá dizer todo homem no qual o Cristo interno tenha despertado plenamente, redimindo a egoconsciência pecadora de seu velho egoísmo e penetrando-a toda do amor universal.
  • 25. “QUEM NÃO ODIAR A SUA PRÓPRIA VIDA NÃO PODE SER MEU DISCÍPULO.” “Quem não renunciar a tudo que tem não pode ser meu discípulo” – dura era essa linguagem da renúncia aos bens externos – duríssima é a exigência de odiarmos a nossa própria vida. Há milhares de homens que fazem a sua meditação diária – entretanto, pouquíssimos são os que conseguem cruzar a misteriosa fronteira que medeia entre a consciência telúrica do profano e a consciência cósmica do iniciado: o grande “Pentecostes”, o “renascimento pelo espírito”, a entrada no “terceiro céu”. Por quê? Porque, para a maior parte das pessoas piedosas, a chamada meditação não passa de um dulçoroso devaneio, uma espécie de cochilo devocional, um tal ou qual namoro com o mundo espiritual, sem nenhum efeito radical decisivo sobre a vida. A verdadeira meditação, ou cosmo-meditação, porém, não é nada disso; é um trabalho imensamente sério, doloroso e árduo, pelo menos no princípio, porque é o rompimento duma barreira multissecular, ou, no dizer do divino Mestre, um “caminho estreito e uma porta apertada”. O cochilo devocional é uma descida para o plano subconsciente, ao passo que a verdadeira meditação é uma subida ao plano superconsciente, uma entrada no misterioso mundo da Divindade. “O reino dos céus sofre violência, e os que usam de violência o tomam de assalto.” Quem de fato entra em meditação ultrapassa não somente o mundo dos objetos, físicos e mentais, sentimentos e pensamentos dos sentidos e do intelecto, mas transcende também o próprio sujeito personal, o seu ego físico- mental. Ora, é precisamente essa ultrapassagem do sujeito personal que é extremamente difícil, uma vez que esse ego personal se nos apresenta como sendo o nosso verdadeiro Eu individual, o nosso Cristo interno, o espírito de Deus em nós, a nossa alma. Enquanto o homem não descobrir o seu verdadeiro Eu, não pode abrir mão do seu pseudo-eu, seu ego personal, porque esse ego é, para ele, o que há de
  • 26. mais alto e perfeito em sua natureza. A natureza tem “horror ao vácuo”. Não é possível realizarmos uma vacuidade de sentimentos e pensamentos, enquanto não tivermos uma plenitude maior que substitua essa vacuidade. A renúncia meramente negativa é impossível. É lei de psicologia que o homem não possa renunciar a um bem enquanto não conseguir outro bem maior. Só na presença de algo maior é que desaparece o menor. Ninguém pode perder a consciência físico-mental enquanto não adquirir a consciência espiritual. Ninguém, pode abandonar o 10 enquanto não tiver a certeza de alcançar 15 ou 20 ou mais. A renúncia é um ato eminentemente positivo. O seu fim não é empobrecer, mas enriquecer o renunciante. Pela renúncia o homem “morre”, é verdade, mas morre para o pouco a fim de viver para o muito; morre para uma vacuidade a fim de viver para uma plenitude. Pela renúncia, o homem transcende o que ele é, a fim de ascender ao que pode vir a ser; ultrapassa uma colina a fim de atingir as alturas do Himalaia. Quem se agarra ao pouco não pode possuir o muito – por falta de renúncia creadora! Na verdade, não há nada mais positivo e creador do que a renúncia voluntária. A renúncia espontânea é o teste da força do homem. Só o forte não tem medo de parecer fraco – renunciando. O fraco tem de aparentar força – não renunciando. Uma vez claramente visualizado um bem maior, pode o homem abandonar tranquilamente o bem menor, na certeza de que esse abandono não significa empobrecimento, mas enriquecimento. Toda renúncia supõe, portanto, a compreensão e posse de algo maior e mais perfeito do que o objeto da renúncia. Ninguém pode razoavelmente sacrificar a sua vida física enquanto não houver compreendido, com suficiente nitidez e firmeza, que existe uma vida maior e mais abundante do que a do corpo, e que a perda desta não é uma perda real, uma vez que a pequena vida perdida está contida na grande vida recém- adquirida. Ninguém pode, por exemplo, renunciar ao impulso erótico enquanto não tiver saboreado as glórias da mística, como “eunuco do reino de Deus”. Depois de conhecer a mística por vivência própria, pode o homem abandonar a erótica, porque já não representa uma perda em face daquele lucro maior. O menor está sempre contido no maior. O menor sacrificado por causa do maior é uma perda aparente, mas um lucro real, porque o menor integrado no maior adquire maior realidade do que antes tinha, quando separado. A mística não é uma virtude, no sentido comum do termo; é uma experiência, uma sabedoria, a compreensão vital da Suprema Realidade. Enquanto o homem ainda tem sentimentos de heroísmo e virtuosidade, por ser bom, não é
  • 27. perfeito. A perfeição ignora esses complexos de heroísmo e virtuosidade, porque é inteiramente natural e espontânea. A plenitude do ser eclipsa todo o desejo de ter. Todos os pequenos teres estão contidos no grande ser. Renunciar aos teres do ego humano a fim de ser o grande EU crístico é lucro e grande riqueza. “Quem puder compreendê-lo, compreenda-o!”
  • 28. “TENDE FÉ EM DEUS – E TENDE FÉ EM MIM TAMBÉM!” Há, nos livros sacros, duas palavras que, em nossos dias, são de uso e abuso diário, mas perderam o seu sentido primitivo, que foi substituído, através dos séculos, por outro, incomparavelmente inferior. Mas os que nada sabem dessa paulatina deturpação do sentido inicial continuam a usar essas palavras e chegam a conclusões totalmente errôneas. Ficou o invólucro externo, mudou o conteúdo interno. Essas duas palavras são fé e caridade. No presente capítulo trataremos apenas do sentido da palavra “fé”. O que, geralmente, se entende por esta palavra, em nossos dias, é um sentimento intelectivo e volitivo, mais ou menos vago ou incerto, e uma determinada doutrina, ou a confiança numa pessoa. Assim, por exemplo, quando alguém deixa de pertencer a este ou àquele grupo religioso – digamos, a certa igreja hierárquica – dizem os teólogos dessa igreja que fulano “perdeu a fé”. Que foi que ele perdeu? Perdeu a crença numa determinada teologia ou exegese engendrada por um grupo de homens. Em geral, essa “perda de fé” é uma etapa necessária para a evolução do homem rumo à verdadeira fé. Entretanto, o egoísmo sectário não tolera facilmente que alguém ultrapasse o estágio evolutivo em que os adeptos dessa etapa se encontram. Para os sacerdotes da sinagoga de Israel, Jesus tinha renegado a fé, quando afirmou que o reino de Deus vinha de dentro do próprio homem, e não das mãos dos doutores da Lei e sacerdotes. O que os teólogos, por via de regra, chamam crer, ter fé, está para a fé real assim como um fogo pintado está para o fogo real. Um fogo artificial, pintado na tela, embora com absoluta fidelidade e arte incomparável, não dá luz nem calor; com ele não se pode atear fogo em matéria alguma, por mais combustível – ao passo que um fogo real, embora pequenino como uma chama de fósforo, pode atear gigantescos incêndios, iluminar e acalentar o mundo inteiro. O fogo real tem a propriedade dinâmica de produzir “reação em cadeia”, apoderando-se sucessivamente de todos os combustíveis ao seu alcance, ao passo que o fogo artificial é essencialmente estático e inerte e não tende a comunicar-se ao ambiente.
  • 29. O que nós, geralmente, entendemos por crer, ter fé, consiste em atos do intelecto e da vontade; mas o que Jesus e os gênios espirituais da humanidade chamam fé é uma experiência direta e imediata do mundo espiritual, do mundo invisível de Deus, é um contato vital com o Infinito, o Absoluto, o Eterno. A fé verdadeira, como aparece nas páginas dos livros sacros, não é adesão a uma determinada doutrina, nem a lealdade a esta ou àquela pessoa que representa certa teologia; mas é uma experiência íntima, um compreender e saber intuitivo, uma invasão ou eclosão do mundo divino no homem, uma como que linha vertical que vem de ignotas alturas e vai a misteriosas profundidades; a fé é um contato direto entre Deus e o homem, por mais inexplicável que seja esse contato. Tudo que é anterior a essa fé e, por assim dizer, horizontal, humano: nesse plano preliminar é o homem que age e produz; mas, quando a misteriosa vertical corta a horizontal, é Deus mesmo que age e produz, suposto que o homem se tenha tornado receptivo para essa invasão do mundo divino. Tanto essa receptividade prévia como essa mesma experiência divina é que os livros sacros chamam fé (em latim fides, em grego Pistis). Para concretizarmos essa grande verdade, seja-nos permitido usar uma comparação ingênua tirada da natureza orgânica. Debaixo duma folha verde se acha um ovinho de borboleta. Esse ovinho é uma borboleta? É – e não é. Atualmente não é borboleta – potencialmente, é. Em sua íntima essência, esse minúsculo ovinho é uma borboleta; em sua existência externa, não é. Quer dizer que a íntima essência ou potência do ovinho e da borboleta são idênticas; a sua verdadeira natureza é uma só. Mas no plano evolutivo da existência ou atualidade, há uma grande diferença entre o ovo e a borboleta nele contida potencialmente. O lepidóptero adulto possui um maravilhoso corpo trissegmentado, meia dúzia de perninhas duplamente articuladas; um par de grandes olhos hemisféricos, cada um com diversos milhares de facetas visuais; possui uma boca artística em forma de delicada espiral contrátil, com a qual suga o néctar das flores; dispõe de dois pares de asas, que são obras-primas de resistência, leveza e estética – nada disso se encontra, aparentemente, no ovinho, que consiste apenas numa casquinha de quitina sólida e num conteúdo líquido ou viscoso, sem nenhuma diferenciação visível. No plano externo da existência, é enorme a diferença entre o ovinho e a borboleta – mas no plano interno da essência não há diferença alguma; existe perfeita identidade; a natureza do ovinho é a natureza da borboleta. De maneira que o ovinho, animado de uma “fé” biológica intuitiva, poderia afirmar: “Eu e a borboleta somos um”.
  • 30. Coisa análoga poderíamos dizer do próximo estágio evolutivo desse inseto, a lagarta, que, no plano existencial, não é nada parecida nem com o ovinho nem com a borboleta, e, no entanto, lhes é idêntica no plano da essência. O mesmo acontece ainda com o terceiro estado, a crisálida, ou casulo. Quem poderia suspeitar que aquela bonequinha imóvel e aparentemente morta fosse idêntica à lagarta comilona ou à borboleta volúvel e multicor? Ora, que é que faz com que o ovo se transforme em lagarta, esta em crisálida, e esta em borboleta? É a fé na identidade da essência das quatro formas existencialmente tão diferentes. Naturalmente, neste caso, é uma fé biológica, inconsciente ou subconsciente. Se o ovinho pudesse perder essa fé biológica na sua essencial identidade com a lagarta, a crisálida e a borboleta, nunca atingiria nenhum desses estados superiores. Se o ovinho não “cresse” intimamente que já é implicitamente, hoje mesmo, o que pode vir a ser explicitamente amanhã, nunca se processaria essa metamorfose. A realidade interna produz as formas externas. A essência causa as existências. A causa invisível produz os efeitos visíveis. No momento em que o ovinho, a lagarta ou a crisálida perdessem a sua fé biológica na futura borboleta, estaria cortada a linha da continuidade vital, roto um elo, da cadeia ovo-lagarta-crisálida-borboleta, e este último elo, desligado dos outros, nunca apareceria como realidade definitiva. Estaria destruída a profunda harmonia essencial que vigora entre a alma do ovinho e a alma da borboleta, e seus intermediários, e, devido a essa falta de nexo e harmonia vital, não haveria transição de uma forma de existir para outra, porque o que torna possível essa transição de estado a estado é a fé numa profunda identidade essencial a permear todas as diferenças existenciais. A fé afirma uma unidade invisível no meio das diversidades visíveis. *** Eis aí o perfeito simbolismo do que acontece entre o homem imperfeito de hoje e o homem perfeito de amanhã – suposto que haja o misterioso vínculo de continuidade que chamamos fé. Os homens ao redor de nós se encontram em planos vários de evolução – ovo, lagarta, crisálida; as nossas formas existenciais são mais ou menos primitivas e imperfeitas; mas pouco importam essas imperfeições, contanto que através de todas elas o homem, em qualquer estágio evolutivo, mantenha firme a linha reta da sua fé essencial no seu estado perfeito de homem integral e crístico, “até que todos cheguem à unidade da fé, ao pleno conhecimento do filho de Deus, ao estado do homem perfeito, à medida da madureza da plenitude do Cristo” (Ef. 4,13).
  • 31. Por maiores que, de momento, sejam as diferenças existenciais entre mim e o Cristo que apareceu em Jesus, entre essa minha “lagarta” e a “borboleta” dele, eu sei que, no plano da essência, há um elemento de identidade entre mim e o Cristo. Diferente é o grau de evolução, idêntico é o elemento básico. Eu posso ser explicitamente o que Cristo em Jesus era e é, por que implicitamente já sou o que ele é. “Vós fareis as mesmas obras que eu faço, e fareis obras maiores que estas”, disse ele a todos os seus seguidores. “Eu e o Pai somos um; o Pai está em mim e eu estou no Pai; o Pai está em vós e vós estais no Pai”. “Não sou eu que vivo – pode dizer cada um de nós –, o Cristo é que vive em mim”. Em Cristo Jesus estava e está, em plena evolução, a consciência da sua essencial identidade com o Pai – em mim está essa mesma consciência, mas ainda obscuramente, num estágio primitivo, embrionário, incompleto. *** Há para mim, e para todos os homens, dois grandes perigos nesse caminho de evolução rumo ao Cristo: 1) o dualismo; 2) o panteísmo. Quem, em vista das diferenças existenciais, não crê na sua identidade essencial com Deus não pode chegar à “plena madureza com o Cristo”, porque cortou a linha vital da fé; quem, por outro lado, em face da sua identidade essencial com Deus, perde de vista as suas diferenças existenciais, identificando-se simplesmente com Deus, esse não pode progredir rumo ao Cristo, porque já se julga temerariamente no fim da jornada. O dualista peca por deficiência da fé. O panteísta peca por excesso de crença. Mas tanto a deficiência de fé como o excesso de crença matam a verdadeira fé. Se um ovinho não crê que possa vir a ser borboleta, ou acha que já é borboleta atualizada – nunca virá a ser borboleta. É necessário crer tanto na identidade da essência como na diversidade da existência, para que a alma daquela possa vivificar o corpo desta. A fé verdadeira e genuína é, portanto, uma convicção íntima de que eu, essencialmente, sou idêntico a Deus (“Vós sois deuses”, disse Jesus), mas que, existencialmente, sou infinitamente inferior a Deus. *** Que posso fazer para desenvolver em mim essa fé? Sendo que a minha consciência telúrica, baseada no testemunho dos sentidos e do intelecto, só conhece diferença e distância entre mim e Deus, tenho de ultrapassar essa experiência física co-mental e entrar numa zona onde
  • 32. desperte a minha consciência cósmica, que afirma a minha essencial identidade com Deus. Ora, para que essa consciência cósmica possa falar, é necessário que a consciência telúrica se cale, pelo menos de vez em quando, até que aquela adquira suficiente poder sobre esta. Tenho de estabelecer, pois, as minhas horas de contato direto com o mundo invisível, até que ele me torne tão real como o mundo visível, ou mais real ainda. Impor silêncio temporário aos sentidos e ao intelecto é indispensável para ouvir a voz silenciosa da razão ou da alma, o Deus em mim. Além disso, tenho de estabelecer perfeita harmonia ética entre o mundo da minha fé e o mundo da minha vida cotidiana. Devo viver assim como se já tivesse perfeita e definitiva experiência do mundo invisível. Essa vivência ética, em sintonia com a minha fé, consiste numa permanente solidariedade com toda e qualquer vida do universo – solidariedade para cima, para os lados e para baixo, isto é, amor a Deus, aos homens e à natureza. Devo abranger no meu amor, na minha caridade e na minha simpatia todo e qualquer ser vivo (e não há nenhum ser morto no universo); devo sentir pulsar em minhas artérias as pulsações da vida do cosmos, estabelecendo perfeita solidariedade entre mim e tudo que vive fora de mim. Essa vivência ética, pela solidariedade cósmica, me conferirá a sapiência definitiva e completa, revelar-me-á a única e universal paternidade de Deus, manifestada em universal fraternidade humana e simpatia infra-humana. Sentirei e amarei a minha vida na vida de todos os seres vivos, porque é a vida de Deus. Na experiência íntima dessa solidariedade cósmica, atingirá a minha fé a sua última e suprema perfeição, transformando-se em amor universal. O homem que chegou a essa plenitude da fé experiencial, e essa maturidade do amor universal, é onipotente, e compreenderá o que o divino Mestre quis dizer com as palavras: “Se tiverdes fé, ainda que seja como um grão de mostarda, e disserdes a este monte: sai daqui e lança-te ao mar, e se não duvidardes em vosso coração, crede que assim acontecerá; porque tudo é possível àquele que tem fé...”
  • 33. “O REINO DOS CÉUS É SEMELHANTE A UM FERMENTO.” Desta vez foi o divino poeta-filósofo-profeta buscar a matéria-prima da sua parábola no ambiente doméstico da dona-de-casa, quando, normalmente, a encontra nos campos de lavoura do homem ou na via social. Entrou pela porta da cozinha e viu uma mulher, talvez sua própria mãe, amassando a farinha para o pão do dia seguinte, viu que tomou um pouco de fermento, previamente preparado, e foi “escondê-lo”, como ele diz, em “três medidas” de farinha. Depois cobriu a tina ou gamela com um pano e foi-se embora. E, na manhã seguinte, a massa havia crescido grandemente, graças ao fermento nela “escondido”. Essa parábola frisa três aspectos característicos da ação do fermento do reino de Deus no homem: a ação silenciosa, constante e infalível. As “três medidas” da massa humana – isto é, alma, mente e corpo – têm de ser totalmente levedadas, permeadas e vitalizadas pelo misterioso agente. Os efeitos dessa fermentação interna são visíveis na vida ética do homem renascido pelo espírito – mas a causa dessa transformação continua oculta. A fermentação física consiste na atividade de certos seres microscópicos, unicelulares, chamados fungos, que, quando encontram ambiente propício, se multiplicam rapidamente, produzem gases e arejam a massa compacta da farinha, fazendo-a “crescer” e tornando-a leve, porosa e de grato sabor. A massa, depois de fermentada, vai para o forno, e dá em resultado um pão fofo e arejado por milhares de pequeninos reservatórios de aberturas internas produzidas pelos invisíveis agentes de fermentação. É este símbolo material o perfeito paralelo do simbolizado espiritual do reino de Deus no homem. O homem não deixa de ser o que é, mas o modo como ele é o que é passa por uma grande transformação. A vida desse homem, interna e externa, uma vez penetrada pelo divino fermento da experiência do reino de Deus, perde o seu caráter duro e pesado, a sua compacta materialidade, e assume algo de leve e arejado, que é mais fácil sentir do que definir. O homem divinamente levedado já não se abate e acabrunha em face de acontecimentos provindos das adversidades da natureza ou das perversidades dos homens, porque tem o seu centro de gravitação em outras regiões, inacessíveis a esses agentes externos: considera todos os eventos com certa leveza e serenidade, e
  • 34. pode até sorrir calmamente em face duma tragédia que, outrora, o teria levado ao desespero. Esse homem já vive, aqui mesmo, a vida eterna, porque encontrou o seu “ponto de Arquimedes” onde aplicar a alavanca e suspender mundos pesados, como se fossem teias de aranha. A morte repentina de um parente próximo ou amigo querido repercute dolorosamente em seu ego emocional, é certo, mas deixa o seu Eu espiritual perfeitamente equilibrado e invulnerável, calmo e senhor de si e da situação. Uma falência econômica, uma injustiça moral ou social atingem apenas a superfície desse homem, mas as profundezas do seu ser continuam em perfeita paz e tranquilidade, como os abismos do oceano quando a tormenta lhe revolve a superfície. As “três medidas” da natureza humana foram levedadas pelo poderoso fermento crístico que nele estava “escondido”. Sim, “escondido”, oculto, uma vez que ninguém pode ver o invisível agente dessa transformação do homem. *** A ação do fermento do reino de Deus no homem é silenciosa, como silenciosas são todas as coisas grandes e sublimes. O que é realmente grande não necessita de ruidosa publicidade para se manter e expandir, dispensa deslumbrantes cartazes multicores e altissonante propaganda. Ruído é indício de fraqueza e pequenez. Quanto maior o silêncio, tanto melhor para a grandeza, porque a alma das coisas grandes está para além das categorias de tempo e espaço, que não podem produzir nem destruir o que é eterno e infinito. O homem primitivo, dentro ou fora da mata virgem, necessita de barulhos múltiplos e violentos, tambores e trombetas, espocar de foguetes, e bombas, gritaria selvagem e descompassada; só assim pode ele sentir suficientemente a sua própria existência, que, sem isso como que se esvairia em tênue neblina de incerteza. O homem primitivo necessita desses barulhos, porque só assim, quando o seu sujeito se sente objetivado e refletido no espelho desses ruídos externos, é que ele é capaz de sentir a sua própria existência. Daí a sua fome instintiva por barulhos violentos. Parafraseando o conhecido “cogito, ergo sum” (eu penso, logo existo), de Descartes, poderia o homem primitivo dizer: “Eu faço barulho, logo existo!”. Se não fizesse barulho, não teria suficiente certeza da sua existência. De maneira que a plenitude de todo esse barulho externo é atestado da vacuidade interna de seu autor, porque o homem de plenitude interna não tem necessidade dessa compensação externa. O homem mais culto, intelectualmente erudito, necessita, geralmente, de outra espécie de ruído, necessita do ruído articulado de discursos, conversas, sermões, conferências, etc. O intelectual necessita de auditórios de intelectuais, e o veículo para transmitir o ruído mental dos seus pensamentos é o ruído verbal de discursos, que nos ouvintes se converte novamente em ruído mental dos pensamentos. Essa “luxúria” mental e verbal é característica no
  • 35. mundo da intelectualidade. Poucos chegam à “castidade” do silêncio espiritual: a mente prostituída dificilmente aceita essa “virgindade”. Mas o homem, quando ultrapassa essas fronteiras evolutivas, entra na zona de um maravilhoso silêncio, que lhe diz muito mais do que todos os ruídos inarticulados e articulados, dos sentidos e da inteligência. E é nesse silêncio fecundo que o divino fermento começa a trabalhar intensamente. *** O fermento espiritual atua constantemente, sem falhas nem intermitências. O homem espiritual não depende do bom ou mau tempo, do estado favorável ou desfavorável dos seus nervos, da plenitude ou vacuidade do estômago, dos louvores ou vitupérios de outros homens – a sua fermentação interna é um processo totalmente independente de fatores externos, porque esse homem proclamou a independência do seu sujeito sobre a tirania de todos os objetos. O seu ego físico-mental é servo de seu Eu espiritual. O Eu crístico conduz, e o ego luciférico é conduzido. Mesmo quando o homem espiritual nada faz, quando descansa ou dorme, a ação do fermento do reino de Deus continua ininterruptamente a atuar no seu interior. A alma, sede desse processo, não conhece sono. *** Infalível é a ação do fermento divino no homem, porque é de ótima qualidade. Em si mesmo não poderá jamais ser corrompido. O único obstáculo externo à sua atuação pode ser a liberdade do homem que lhe obstrua os caminhos. Mas, quando deixado a si mesmo, em plena liberdade, o fermento da reino de Deus atua com infalível certeza e precisão. O homem intelectual julga poder traçar o itinerário da sua vida; o seu estreito luciferismo se arroga à competência de poder dirigir a sua vida. Só depois de muitos sofrimentos e derrotas trágicas é que ele aprende, finalmente, que só Deus pode traçar o itinerário da sua vida. E então começa o fermento a tomar conta das “três medidas” da natureza humana – alma, mente e corpo...
  • 36. “SAIU O SEMEADOR A SEMEAR A SUA SEMENTE.” Certas parábolas de Jesus – como as do semeador e do joio entre o trigo – atuam como terremotos sobre a nossa teologia tradicional. Afirma o Mestre que o semeador – isto é, ele mesmo, o Cristo encarnado – foi semear a boa semente da palavra de Deus – onde? Parte à beira da estrada, onde nem sequer germinou, mas foi calcada aos pés pelos transeuntes e devorada pelos passarinhos. Parte caiu em terreno pedregoso, onde brotou, mas não tardou a morrer, por falta de umidade. Outra parte caiu no meio dos espinhos, onde brotou, cresceu precariamente, foi sufocada pelos espinheiros, e não frutificou. Apenas pequena parte – talvez 25% – caiu em terreno bom, brotou, cresceu, floresceu e frutificou. Mas nem essa semente produziu toda o mesmo fruto; parte dessa sementeira deu trinta, outra parte sessenta e ainda outra cem grãos por um. Mas, porque não escolheu o semeador somente terra boa? Por que desperdiça uns 75% da divina semente à beira do caminho, entre pedras e espinheiros? Não sabia ele, de antemão, que em nenhum desses terrenos ia a semente produzir fruto? Quer dizer, Deus não escolhe cuidadosamente o terreno propício para conseguir uma colheita 100% satisfatória; espalha a semente do seu verbo em profusão, a esmo, como se lhe fosse indiferente a frutificação ou a esterilização. E mesmo o terreno bom é vastamente heterogêneo, tanto assim que parte da semente aí lançada produz trinta grãos por um, outra sessenta e outra cem. Verdade é que, na parábola, se trata do terreno consciente e livre da alma humana, e a dureza do caminho, o impróprio das pedras e a asfixia pelos espinheiros correm por conta e risco do uso ou abuso da liberdade humana – mas, mesmo assim, não parece bem estranho que o divino semeador não faça nenhuma seleção de terreno, quando ele previa esses resultados negativos?... Segundo certas teorias nossas, Deus creou todas as almas iguais e deu a todos os homens a mesma possibilidade de evolução. Afirmamos afoitamente que a diferença da frutificação vem unicamente do homem – mas o teor dessa
  • 37. parábola parece desmentir semelhante postulado. Não parece ter havido, desde o início, terrenos de diferente receptividade? Efeito do uso ou abuso da liberdade humana? Mas por que é que alguns homens usam e outros abusam da sua liberdade, se, no princípio, todos eram perfeitamente iguais, com a mesma facilidade de praticar o bem? Por que uns fizeram da sua alma terreno estéril, outros semi-estéril e outros plenamente fecundo?... Essa teoria da perfeita igualdade inicial de todos os homens cabe, certamente, nas ideologias democráticas do nosso tempo – mas será Deus o “grande Democrata”? Não parece ele antes o “grande Aristocrata”? E não parece todo o seu Universo, desde o mineral até aos anjos, uma gigantesca hierarquia? Não predomina a ideia hierárquica da desigualdade em todos os departamentos da natureza, visível e invisível? Deveras, quem contempla sem prevenções a ordem do Universo não se pode furtar à impressão de que todo ele é uma imensa “Hierarquia Cósmica...” Não há dois seres iguais, e a desigualdade vem desde o princípio da sua existência. Nada é padronizado, nada feito pelo mesmo modelo ou chavão. Há quem descubra “injustiça” neste fato de haver Deus creado seres com diversas possibilidades de evolução; acham que, para evitar “injustiça”, todos os seres deveriam ter a mesma possibilidade de aperfeiçoamento; que todos os minerais deveriam ter a potência de, um dia, passar a ser vegetais, estes deveriam poder evolver para animais, estes para homens, e os homens deveriam desenvolver-se em anjos, arcanjos, etc. O mundo de Deus, porém, a despeito das nossas mais belas teorias de igualdade democrática, não é nada democraticamente igual, ignora totalmente essa decantada “igualdade de direitos”. Mas não há nisso injustiça alguma, como a nossa acanhada inteligência nos que fazer crer. Se Deus tivesse prometido a todos os minerais a evolvibilidade até à altura dos vegetais, e se depois não cumprisse essa sua promessa (concretizada na potencialidade, dos minerais), então, sim, teríamos injustiça, porque “o prometido é devido”, mas essa promessa tácita, ou potencialidade, não existe em todos os minerais. Se alguma substância mineral de fato evolve em organismo vegetal, é simplesmente uma “graça” divina, e não um “direito”, que o mineral possa reclamar. O mundo de Deus é baseado sobre o princípio hierárquico da diversidade graciosa, e não da monotonia obrigatória. Deus nada deve a ninguém. Tudo que as creaturas são e recebem é inteiramente gratuito, seja pouco, seja muito. Nenhum mineral tem o direito de reclamar, dizendo “por que não me fizeste vegetal, animal ou homem?” ***
  • 38. Voltando à parábola do semeador, não é provável que todos os terrenos nela mencionados fossem simples creação do livre-arbítrio do homem. Todos tinham, de início, graus diversos de facilidade ou dificuldade para fazer frutificar a semente da palavra de Deus. Não há liberdade completa em nenhuma creatura; só o Creador é que é absolutamente livre. Liberdade é potência, plena liberdade é plena potência ou onipotência. Se o homem fosse totalmente livre seria onipotente igual a Deus. Os diversos graus de liberdade são herança inicial de cada indivíduo, e essa herança, na primeira etapa, não corre por conta da liberdade dele; é dom gratuito de Deus, é graça divina. Deus dá a cada homem o grau de liberdade que lhe apraz. O homem é suficientemente livre para ser responsável por seus atos conscientes, sendo por isso autor responsável pelo bem e pelo mal que praticar; mas o grau de liberdade e responsabilidade ética não é o mesmo em todos os homens. Há quem se arvore em advogado da Providência Divina, julgando de seu dever justificar meticulosamente todos os atos do governo de Deus no Universo. No fim de todas essas bem-intencionadas apologias, porém, resta sempre vasto resíduo de mistérios inexplicáveis, que formam pedra de tropeço para muitos cépticos e ateus. Partem de uma falsa premissa – de que todas as obras de Deus devam ser justificáveis à luz do intelecto – e depois se escandalizam por que o Deus no Universo não corresponde ao padrão do Deus das suas teorias intelectualistas. Jesus nunca tentou “explicar” os mistérios de Deus. Tudo quanto se “explica” complica-se, destrói-se até. No fim de todas as “explicações” meramente analítico-intelectuais está o caos ou o nada. Saber explicar o explicável e adorar em silêncio o inexplicável – é grande sabedoria. *** Ai de nós se não houvesse mistérios inexplicáveis! Insuportável nos seria este mundo... Quem “explica” a Deus é ateu!... Na parábola dos “trabalhadores na vinha” reaparece esse mesmo mistério da desigualdade. Em vez de tentarmos explicar o inexplicável e reduzir a fascinante Hierarquia de Deus a uma fastidiosa democracia dos homens, não seria melhor que cada um de nós trabalhasse jubilosamente com os dotes que lhe couberem, a fim de preencher plenamente o lugar, humilde ou sublime, que ocupa nessa “Hierarquia Cósmica” de Deus?... *** A explicação que o próprio Jesus dá desta parábola não alude a esse aspecto metafísico, que o auditório não comportava; limita-se a encarar o sentido ético da parábola.
  • 39. Há homens que não produzem fruto espiritual, porque o seu terreno interior é por demais profano e devassado, como uma estrada pública, onde a semente da palavra de Deus é logo calcada aos pés dos transeuntes e devorada por entidades estranhas ao mundo espiritual. Nem sequer chega a brotar. Outra classe de ouvintes são almas puramente sentimentais; ouvem a palavra de Deus com gosto, ao ponto de verterem lágrimas de emoção; mas logo que a realização dessa palavra lhes custe sacrifício pessoal, desfalecem, por falta de profundidade e experiência espiritual. Nessas pessoas, a semente divina brota rapidamente, mas não frutifica. Outros ainda, depois de receberem a palavra de Deus, sufocam-na sob um acervo de prazeres e solicitudes mundanas, de maneira que o sujeito do seu Eu divino é asfixiado pelos objetos do seu ego humano, e não produzem fruto. Só uma pequena porcentagem de almas humanas oferece ao verbo de Deus terreno propício para brotar, florescer e frutificar. Mas, mesmo entre esses, há notável diferença de fertilidade. O “terreno bom” dessas almas não é todo igual. Todos produzem, mas o resultado é variado, consoante a maior ou menor receptividade de cada um. Essa receptividade, porém, é fruto da liberdade humana.
  • 40. “UM HOMEM TINHA DOIS FILHOS...” A rainha das parábolas de Jesus, chamada, geralmente, a do filho pródigo, não devia ser focalizada num capítulo como este, mas numa obra monumental; porque essa parábola representa um dos mais estupendos documentos do drama multimilenar da evolução do homem rumo a Deus. O que, em geral, se diz desta parábola, nas igrejas e nos colégios, é apenas o aspecto moral da mesma – mas por debaixo dessa conhecida superfície se estende a incomensurável profundidade cósmica que só uma intensa intuição espiritual pode atingir em silenciosa vivência. Quem é esse jovem inexperiente que deseja abandonar a casa paterna? Quem é esse pai que não tenta dissuadi-lo do seu intento com uma só palavra? E por que não aparece nenhuma mãe a chorar? E que significa essa “porção de substância” a que o filho mais jovem diz ter direito? Por que o pai não pede ao menos que o jovem aventureiro lhe deixe o endereço do seu paradeiro? Por que, durante a longa ausência, não lhe manda um mensageiro para saber da sua situação? Nada disso acontece. A parábola do filho pródigo está envolta em mistério e permeada de enigmas. Tudo que a nossa inteligência analítica teria esperado acontecesse não acontece – e nada daquilo que acontece teríamos esperado. É que essa parábola é, mais que outra qualquer, obra de gigante e de gênio. O perfeito paralelo dessa parábola se encontra nas primeiras páginas do Gênesis – Moisés e o Cristo traçam o roteiro eterno da humanidade em evolução, esses dois intérpretes máximos do sub e do superconsciente da humanidade. Dia Moisés, no Gênesis, que o homem do Éden transpôs a fronteira dessa sua vida subconsciente e entrou na zona egoconsciente, graças ao despertar da “serpente” da inteligência. É a história da egoficação luciférica do homem, mais tarde completada por sua cristificação espiritual. É o drama telúrico-cósmico de Lúcifer e Logos, a trajetória da inteligência e da razão. Quando a inteligência desperta no homem, começa ele a afastar-se da “casa paterna”, inicia o seu movimento centrífugo, porque sente o despertar da sua
  • 41. personalidade, da autonomia do ego personal, que só se pode desenvolver plenamente no longínquo ateísmo de uma separação consciente de seu centro. Nesse estágio evolutivo sente o homem a imperiosa necessidade de proclamar em cheio a sua independência, o seu afastamento da escravizante soberania de Deus – falou a “serpente”, e o homem lhe escutou a voz sedutora. O homem abandona o Éden da casa paterna, na crescente consciência do seu ego luciférico, e ainda longe do seu Eu crístico. E começa o grande drama da evolução luciférico-crística, através do qual alguns conquistam o mais alto Evereste do Himalaia, ao passo que outros se enamoram das sedutoras esplanadas da montanha ou perecem nos tenebrosos precipícios que a rodeiam... O “filho mais jovem” do pai reclama a “porção da substância” a que tem direito, diz a Vulgata latina; o texto grego do primeiro século diz que o jovem reclamou o “epibállon tés ousías”, literalmente: “o que convém à natureza”. Que conveniência é essa que o jovem reclama? É aquela parte da sua “ousia” (natureza) que exige evolução longe da casa paterna, isto é, o ego personal, o ego separatista, o Lúcifer, dormente na natureza humana. E o pai entrega ao filho a parte da sua natureza, a porção da sua substância, o elemento personal para que vá e o desenvolva, segundo as eternas leis da Constituição Cósmica. O pai não protesta, não incrimina, não dissuade o filho, porque sabe que assim deve ser. Também, como poderia Deus protestar contra suas próprias leis? Como poderia ele proibir o homem de cometer a felix culpa e o peccatum necessarium (como diz a liturgia da Páscoa) de abandonar o Éden da sua primitiva inconsciência, cair no meio dum campo de “espinhos e de abrolhos” e, por fim, “esmagar a cabeça da serpente” rastejante para ser remido pela “serpente erguida às alturas”?... E o jovem aventureiro lá se vai, firme e confiante, em demanda de “um país desconhecido” – a zona incógnita da personalidade, da autonomia do ego. Que região sedutora!... E com isso principia a “vida dissoluta” e o “esbanjamento da substância” que levara da casa paterna. Esbanjar de fato essa substância não o consegue, geralmente, o homem; extinguir totalmente em si o elemento divino é difícil. Mas o homem, nas vias da evolução personal, se esquece complacentemente da sua verdadeira “ousia” (natureza) divina e se porta como simples personalidade humana, autônoma. O ego humano, porém, é formado de corpo e mente. O corpo exige satisfações carnais; a inteligência se identifica com seus pensamentos de orgulho. Passam-se longos anos no plano dessa evolução físico-mental. O homem atinge o extremo limite das suas satisfações; esbanja tudo – e então lhe
  • 42. sobrevém a grande fome de uma incompreendida insatisfação, não só com o mundo, mas sobretudo consigo mesmo. Mas o homem não sabe ainda com que encher esse vácuo; já sente, e cada vez mais dolorosamente, a insatisfação das coisas, dos sentidos e do intelecto, mas não encontrou ainda o objeto de uma verdadeira satisfação e felicidade. Então tentou o jovem aventureiro em Terra estranha conquistar a felicidade agarrando-se – o texto grego diz “aglutinando-se”, a Vulgata diz “aderindo” – a um cidadão daquela Terra flagelada por terrível carestia. Como um náufrago se agarra a uma prancha em pleno mar, assim se agarrou esse náufrago do ego à primeira tábua semipodre que pôde apanhar. Esse cidadão a que o filho pródigo se agarrou era habitante antigo nessa Terra, algum inveterado egoísta, que já não tinha a possibilidade de sentir a sua infelicidade, e era por isso horrorosamente feliz em sua miséria... Mas esse velho cidadão satisfeito consigo mesmo, graças a sua obtusidade espiritual, não pôde transferir a sua infeliz satisfação para o infeliz insatisfeito que a ele se agarra; neste grande naufrágio, esse jovem não estava ainda suficientemente fossilizado no seu egoísmo para não sentir a sua profunda infelicidade. O velho egoísta satisfeito manda o jovem egoísta insatisfeito para sua granja, com a ordem de lhe guardar os porcos. Mas as vagens indigestas que os porcos comiam não eram alimento para a fome do jovem. Por algum tempo, sentado no meio da imunda manada, andou ele invejando o crepitante apetite com que os suínos mastigavam o seu grosseiro repasto – e veio-lhe o desejo de pelo menos “encher a barriga” – implere ventrem suum, como diz cruamente o texto – já que não podia matar a fome com as vagens que davam plena satisfação aos irracionais. Talvez os porcos não fossem felizes, cismava o jovem, mas ao menos não eram infelizes como ele. Tenta então camuflar com ilusões temporárias a sua infelicidade e narcotizar artificialmente uma voz interna que não lhe dava sossego. Mas não havia quem lhe desse essas vagens dos irracionais. Ele, o ser humano, não podia involver, regredir ao plano dos seres inconscientes, e gozar da infeliz felicidade que eles gozavam... E essa impossibilidade de involução animalesca foi para o jovem o maior dos benefícios. Descer abaixo do nível do ego não lhe era possível; ficar nesse nível lhe era insuportável tortura – resolveu então ultrapassar o seu próprio plano e evolver em vez de involver ou estagnar... Seria de esperar que aquele cidadão que o contratara lhe desse pelo menos como passadio as vagens que os porcos comiam, mas, diz o Mestre admiravelmente, tal não aconteceu. Nem podia acontecer! Ninguém dá o que não tem. Como podia aquele velho egoísta, autocomplacente e satisfeito consigo, dar satisfação ao jovem egoísta, insatisfeito com o que era?... E foi nesse transe doloroso, humilhante e angustiante, que aconteceu o mais glorioso dos prodígios: o jovem pastor de suínos “entrou em si mesmo”. Depois
  • 43. do egresso da casa paterna, faz o ingresso para dentro do próprio Eu, preparando o regresso para sua definitiva redenção. Entre o egresso e o regresso está invariavelmente esse misterioso ingresso, esse “caminho estreito”, essa “porta apertada”, esse “fundo de agulha”; quem conseguir passar por esse desfiladeiro está salvo. “Entrou em si mesmo”, pela primeira vez na vida, porque até essa data tinha ele estado fora de si, andando num círculo vicioso ao redor de si, pelas periferias do ego físico-mental. Depois de tantas evasões centrífugas, o jovem iniciando realiza, finalmente, a feliz invasão centrípeta; ultrapassa o ego humano e encontra-se com seu Eu divino!... E terminou o ocaso em plena alvorada!... E logo despontou na sua alma a verdade sobre si mesmo. Desanuviaram-se os horizontes... Dissiparam-se as trevas... Houve um grande fiat lux... E fez-se a luz... O jovem viu claramente que ele não era escravo daquele tirano que o mandara guardar os porcos, nem era pastor de animais imundos; viu que isso não passava de funções temporárias e fictícias da sua humana personalidade, mas não era a verdadeira natureza da sua divina individualidade, do seu ser real... Verificou, com exultante surpresa, que ainda não esbanjara totalmente o “quinhão da sua natureza”, era ainda filho daquele pai que abandonara; a centelha divina, que tanto tempo dormia sob as cinzas, acabava de romper em vívida chama, ao sopro da tempestade... Conheceu a verdade sobre si mesmo – e a verdade o libertou... Terminado o período egressivo do seu ego luciférico – começa o período regressivo do seu Eu crístico... E a luz da verdade foi seguida de perto pela força da realização prática. Levantou-se, deixou os porcos e seu velho tirano – e foi em demanda de seu pai. Este lhe corre ao encontro; por sinal que esperava o filho e tinha certeza de seu regresso. Abraça-o, beija-o, manda vestir-lhe a preciosa túnica, põe-lhe no dedo um anel e calçado nos pés – e segue-se grande solenidade, com banquete, música e bailados, isto é, todas as manifestações de alegria e júbilo pela plena realização de um homem. Nisto chega do campo o filho mais velho e, sabendo do que se tratava, recusa- se a tomar parte nos festejos. Tenta o pai persuadi-lo da conveniência da solenidade, mas o filho continua inflexível; nada compreende do lado positivo do acontecimento; enxerga apenas o aspecto negativo e lembra que ele, há tantos anos, serve ao pai em perfeita obediência, e este nunca lhe dera um cabrito para ele celebrar um banquete com seus amigos.
  • 44. O pai lhe fala no “irmão” dele; o despeitado, porém, só lhe chama “teu filho”. E não tem ele razão? Já não existe afinidade entre os dois, entre o profano e o iniciado, entre o homem que espera recompensa por ser bom e aquele que é bom por amor. Não basta cumprir os mandamentos do Pai, não basta evitar o mal e praticar o bem – tudo isso é necessário, mas não é suficiente para a plena realização do Eu – é necessário ser bom, que é incomparavelmente mais do que fazer o bem. Fazer o bem é do plano moral, indispensável como preliminar; é ainda a ética pré-mística sacrificial mercenária, que espera ser recompensada – o iniciado, porém, que é intimamente bom, não espera nada disto – ama simplesmente e é feliz nesse amor. E assim termina o Mestre a mais profunda das suas parábolas – a parábola sobre a auto-realização ou cristificação do homem, que percorreu todos os estágios da sua evolução e culminou no homem integral.
  • 45. “COMO ENTRASTE AQUI SEM TERES A VESTE NUPCIAL?” Em todos os livros sacros da humanidade, é a união da alma com Deus simbolizada por uma festa nupcial. O amor entre esposo e esposa serve de ilustração para o amor do Ser Infinito para com o ser finito. Eros tem de emprestar as suas vestes multicores para solenizar a luz incolor da experiência mística. Na erótica temos a integração do masculino no feminino; para realizar o “anthropos” completo na mística, temos a integração da creatura no Creador. Lá, o êxtase da carne – aqui, o êxtase do espírito. Era costume, por ocasião das festas nupciais no Oriente, que o chefe da casa entregasse a cada convidado uma preciosa veste. Aconteceu, porém, diz o Mestre, que aparecesse na sala do banquete um intruso, sem trajar a veste nupcial. E o pai de família disse a esse conviva: “Amigo, como entraste aqui sem teres a veste nupcial?” O interpelado emudeceu, porque não tinha palavras com que justificar a sua entrada ilegal. E o dono da casa deu ordem para que esse homem fosse atado de pés e mãos e lançado nas trevas de fora. Esse homem usurpara o inexorável dispositivo da Constituição Cósmica, segundo a qual nenhum profano (o de fora) pode entrar na zona dos iniciados (os de dentro). Esse homem era um exotérico que, de contrabando, se metera no meio dos esotéricos. Não estava interiormente maduro para participar do banquete nupcial, porque não havia em sua alma a experiência de Deus, a fusão do finito no Infinito, do individual no Universal. Como entrara esse homem na sala do banquete? Ele que, internamente, não estava onde externamente se achava? Ele, completamente fora do seu ambiente evolutivo? Entrara, ou por conta própria, ou por proteção alheia. Mas ninguém pode entrar no reino dos céus nem pelas forças do ego personal nem em virtude de algum ritualismo externo; só a verdadeira e genuína maturidade espiritual é que lhe pode dar o direito de tomar parte no banquete
  • 46. nupcial com o divino Esposo. Esse homem estava – ou fingia estar – externamente onde internamente não estava, nem podia estar. *** A fim de que o homem seja digno e idôneo para tomar parte nesse banquete, é necessário que sua alma se ache ornada de uma veste especial, nova e imaculada, dada como dom gratuito pelo senhor das núpcias. Não se admite homem algum em trajo profano. A profanidade é do ego físico-mental, a sacralidade é do Eu espiritual. Nem pela magia mental, nem pelo ritualismo eclesiástico pode o homem merecer essa vestimenta; ela é essencialmente uma “graça”, e por isso mesmo de graça. A iniciação no reino dos céus não é alguma espécie de continuação de coisa velha, preexistente, mas é um novo início, uma “iniciação”. Não se trata de emendar, consertar, corrigir precariamente a “roupa velha” do homem profano, tornando-o um pouco menos profano e pecador, cosendo-lhe na roupa de “homem velho” um “remendo novo”. O homem não se torna crístico pelo fato de ser cristão, ou por diminuir um pouco a sua cobiça, luxúria ou ambição; nem basta acrescentar ao rol das virtudes antigas algumas virtudes novas. Não! Importa que o homem “nasça de novo pelo espírito”, que se torne uma “nova creatura em Cristo”. Verdade é que uma moral sincera e pura pode e deve servir de estágio preliminar para essa entrada no reino dos céus – mas nem toda moral é suficiente para garantir ao homem essa entrada. Ela não é causa, é apenas condição. O cristianismo não é um movimento meramente moral – é uma experiência mística; é, a bem dizer, o próprio Cristo através dos séculos. O cristianismo não está baseado numa doutrina moral, mas é uma fato metafísico e místico, uma realidade objetiva e ontológica a perpetuar-se através dos séculos. A encarnação do Logos é um fato permanente, e não apenas um acontecimento histórico no passado. A essência do homem crístico não é a soma total dos seus atos virtuosos, que, em última análise, são outras tantas linhas horizontais, cuja multiplicação, embora indefinida, nunca dará a vertical. Os atos morais são outros tantos zeros, de todos os tamanhos e cores, quer dizer, fatores espiritualmente negativos, e vácuos; mas a soma total de zeros negativos, ou vácuos, nunca dará algo positivo ou pleno. O homem crístico não é um homem “remendado” por atos de moral humana, mas é um homem “remido” pela atitude mística do Cristo. Não é um doente que aplique às suas velhas chagas mais uma pomada lenitiva ou um emplastro para melhorar ligeiramente o seu estado pela supressão de sintomas – mas é