1) Philippe Dubois deu uma entrevista sobre sua formação acadêmica e intelectual. 2) Ele estudou literatura na universidade, mas se apaixonou pelo cinema, embora não pudesse estudá-lo na época. 3) Seu primeiro livro sobre fotografia teve grande sucesso porque preencheu uma lacuna teórica na época.
1. ENTREVISTA
Entrevista com Phillippe Dubois
COl/cedida (.l Marieta de Moraes Ferreira e
Mônica Alllleida J(orllis
elll 2 de setelllbro de 2 003
Professor da Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle), onde
dirige a Unidade de Formação e Pesquisa "Cinema e Audiovisual", e conhecido
internacionalmente a partir da publicação de seu primeiro livro, O alOfOlOgráfico
e O/llros ellsaios, Philippe Dubois é hoje um dos maiores pesquisadores do campo
da imagem, particularmente no que concerne à reflexão sobre fotografia, cinema
e vídeo. Esta entrevisra foi concedida por ocasião das comemorações dos trinta
anos do CPDOC, em meio às quais Philippe Dubois proferiu uma palestra.
Fale sobre suas origem familiares, Sllaformação.
Nasci em 1952, numa pequena cidade do interior da Bélgica, peno de
Liége, numa família de classe média. Meu pai começou como funcionário de um
banco, ali fez carreira e terminou como diretor de uma agencia bancária, e minha
mãe era dona-de-casa. Trabalhou apenas no início do casamento e parou quando
ESl/ldos Hislóriws, Rio de Janeiro, nO 34, julho-dezembro de 2004� p. 139-156.
/39
2. ·sllldos llistóricos e 2004 - 34
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.
os filhos nasceram. Uma situação clássica desse meio, numa pequena cidade
burguesa do interior da Bélgica.
Desde criança, fui atraído por vários assuntos, o que me orientou na
escola para as disciplinas literárias. Depois de uma evolução normal na escola,
em 1970 entrei na Universidade de Liêge, para cursar filologia românica, que
abrange basicamente língua e literatura francesas.
Fiz minha trajetória de estudante de letras e aprendi muita coisa, em
particular aquilo que é uma especificidade da Universidade de Liege: uma
atenção parricular à análise da linguagem. A especialidade da formação de letras
que se obtém naquela universidade é o que chamamos de análise do texto, isto é,
decompor de forma bastante precisa um romance ou poema, estudar os níveis de
funcionamento etc.
Tendo sido um estudante universitário no início dos anos 70, entre 1970
e 1975, já me defrontei com um período de plena instalação do estruturalismo, da
semiologia nas ciências humanas e, portanto, também nos estudos literários. Na
minha universidade duas grandes correntes se enfrentavam violentamente: os
historiadores da literatura e os estruturalistas e semiólogos da literatura.
Essas duas escolas de pensamento estavam em guerra aberta e,
naturalmente, os estudantes não são neutros; naquela época, eu estava do lado
dos semiólogos e estruturalistas. Para mim, os historiadores eram arcaicos;
pensavam e estudavam a vida do escritor, suas amantes, seu estilo, enfim, coisas
que me pareciam completamente estranhas à riqueza e à realidade dos textos.
Assim, ou se era partidário da análise externa, que partia da história, ou da
análise interna, que partia da semiologia. Fiquei prisioneiro dessa luta e fiz um
trabalho centrado no estudo da narrativa entre os surrealistas, tomando
decididamente o partido da tendência estruturalista.
Outra coisa me perturbou muito naquela época: fazendo estudos de
literarura, portanto, interessado nos problemas da linguagem, comecei a curlir
uma paixão pelo cinema, ainda sem relação com minha vida de esrudante. Ia ao
cinema todos os dias, o que não era fácil numa pequena cidade do interior da
Bélgica, que não era Paris com seus quatrocentos cinemas. Eu tinha a cultura
possível numa cidade de província, mas era uma paixão que eu não vivia como
algo que se pudesse esrudar. Era apenas um prazer de cinéfilo.
Ainda não era muito consciente, mas já crescia em mim uma ambiva
lência entre o interesse pelo romance, a poesia e a literatura, de um lado; e pela
imagem em movimento, as histórias contadas por imagens e não pela linguagem
escrita, de outro. Um era objeto de estudo, o outro era objeto de prazer. E, na
quele estágio, eram coisas distintas.
Depois do trabalho de fim de curso, eu disse a mim mesmo: "No fundo,
as imagens me interessam." E iniciei um projeto que não cheguei a terminar:
/40
3. EI/tre"istfl com P/li//ippc DI/bois
estudos numa grande escola de cinema em Bruxelas, para aprender a fazer
filmes. Mas não fui longe, porque não suportei a disciplina da escola.
Lembro-me até de uma anedota. O professor de som, engenheiro de som - era o
primeiro curso e ainda lembro como se fosse ontem, e já faz 30 anos- passou um
•
trecho de um filme de Godard,A bom de soufJle, e nos disse: "Vocês não estão aqui
para aprender a fazer isso. Godard é o falso brilhante do cinema. Não sabe o que é
uma tomada de som, não sabe o que é uma mixagem sonora. Vocês estão aqui pa
ra aprender a fazer o verdadeiro cinema."
Na época, eu tinha 24, 25 anos, e como cinéfilo não consegui agüentar
esse discurso; para mim, Godard já era uma figura exemplar do cinema. Assim,
na primeira aula já comecei a discurir com o professor de som, e rodo o resto foi a
mesma coisa. Para mim, essa escola de cinema era rotalmente normativa: ensina
va a fazer cinema profissional de uma forma determinada a prior': como a única
aceitável. Tudo o que não era assim não tinha o direito de existir. Abandonei
rapidamente a escola.
Nesse meio-tempo, vários professores que conheci na universidade me
telefonaram propondo contratos para trabalhos de pesquisa. Assim, voltei à
universidade com um contrato que me permitiu fazer um segundo mestrado, e
escolhi estudar a imagem e o som; fiz um mestrado em comunicação, com opção
por cinema e audiovisual. Aí sim, o cinema se tornou meu objeto de estudo e não
mais apenas meu objeto de prazer. Portanto, possuo uma dupla formação como
estudante universitário, em literatura e em cinema e audiovisual. Essa é minha
trajetória escolar e universitária.
A partir dali, engajei-me numa tese de dourorado, feita igualmente na
Universidade de Liege, e que era ambígua, porque eu não soube escolher entre a
questão literária e a questão da imagem. Fiz uma tese que privilegiava a
literatura, porque academicamente era mais simples fazer uma tese em lelras; ali
por 1974, 1975 ainda não existia doutorado em cinema. Do ponto de vista
acadêmico, minha tese é em literatura, mas meu tema era a dimensão visual da
literarura, especialmente da poesia. Esrudei os problemas de organização plás
tica, de lipografia, de composição dos poemas, o trabalho de "significantes do
texto", como chamávamos na época, num sentido quase visual. Por isso, é uma
rese um pouco híbrida, fruto dessas duas dimensões.
Como disse, eu tinha um contraro de pesquisa com a Fondation Na
tional de la Recherche Scientifique (FNRS)- o equivalente belga do Centre Na
tional de la Recherche Scientifique (CNRS)- e era muito confortável, porque era
pago para fazer pesquisa, não tinha nenhuma obrigação particular. Devia ajudar
um pouco meu professoI; fazendo correções, cópias, coisas assim, e descobri o
que era a vida numa instituição universitária, que eu desconhecia. Quando era
estudante, jamais tive o projero de me rornar professor universitário.
141
4. estudos históricos e 2004 - 34
Durante quatro anos fui inteiramente livre; foi um período muito
interessante de minha vida, porque minha única obrigação era fazer pesquisa,
sendo pago para isso. Nenhuma preocupação, era formidável. Elaborei a tese em
quatro anos; terminei em 1980 e logo depois consegui um cargo estável na
universidade, como professor titular. Naquele momento, o Departamento de
Comunicação estava em fase de constituição, e fui rapidamente integrado a ele.
Era um tempo de desenvolvimento das universidades, diferentemente de hoje
em dia, em que esramos presos a projetos de restrições, de contenção. Inte
grei-me muito bem nesse cargo de professor de cinema e audiovisual, de análise
da imagem.
Ainda me sentia um pouco frusrrado, porque tinha começado numa
disciplina literária e cada vez mais sentia que meu desejo, minha área de trabalho
era muito mais a imagem do que a literatura. Mas logo em seguida à tese me
disseram: "Olha, talvez fosse bom escrever um livro." Em vez de escrever sobre
teoria da literatura, respondi: "Sim, gosto muito da idéia, mas vou fazer um livro
sobre a imagem." E antes de mergulhar no cinema, onde não me sentia muito
sólido, porque ainda não dominava o campo teórico do cinema, escolhi a
fotografia. Era também um pouco virgem no tema. Tinha lido praticamente tudo
o que havia sido escrito sobre a fotografia, mas não era muita coisa, dois ou três
livros apenas, e alguns textos históricos mais antigos. Havia o célebre livro de
Roland Barthes, La chall/bre elaire, publicado em J 979, e estava sendo preparada
uma série de livros. Acompanhei a discussão e, sob esse ponto de vista, escolhi o
bom momento, da efervescência teórica sobre a fotografia, no início dos anos 80.
A teoria da fotografia ocupa seis ou sere anos apenas dos anos 80. Afora
os textos históricos, o verdadeiro pomo de partida é La [hall/bre c/aire, de J 979, e o
"pomo final", digamos, é o livro de J ean-Marie Shaeffel; L'illlage précaire, de 1987.
Entre os dois foram publicados cinco ou seis livros, entre os quais o meu, que vão
instalar a fotografia como objeto de reflexão teórica.
Escrevi o livro em um ano e meio, e ele foi publicado em 1983, sob o tí
tulo [;acte photographiq/le, pouco depois do livro de Susan Somag, La pllOto
graphie, de 1979, mas ao mesmo tempo que o livro de Henri Vanlier, Philosophie
de la pllOtographie, de 1983. Shaeffer veio depois. Naquele momento, ainda não
havia estudos históricos sobre a fotografia; era um período totalmente estrutu
ralista e fenomenológico.
Sell livro teve lima receptividade mllilO grallde.
•
E verdade, e basicamente porque naquele período não havia nada, pois a
história da fotografia ainda não estava inaugurada como disciplina, o que SÓ
aconteceria nos anos 90. Isto não quer dizer que não houvesse uma história da
fotografia, mas era a "velha" história, a história de Beaumont Newhall, por
142
5. Elltrcllista COIII PhilliPIJC Dl/bois
exemplo, e alguns textos teóricos, como certos textos de Walter Benjamin e de
André Bazin, mas são escriros dos anos 30,40, que tinham um valor histórico.
Surgiu, então, uma verdadeira mania, que evoluiu nos anos 80, e ponamo meu
livro caiu bem, no contexto geral de reflexão das ciências humanas sobre as
imagens e sobre a fotografia em particular.
Outra coisa que pode explicar o grande sucesso do livro na época - e
ainda hoje, pois foi traduzido em várias línguas e se tornou um clássico - foi que
evitei dois obstáculos: primeiro, não quis escrever um ensaio, como Banhes, ou
seja, algo que testemunhasse a subjetividade daquele que escreve sobre imagens,
que trabalha com problemas da emoção, da percepção afetiva da imagem. Não
quero negar essa dimensão, mas não quis fazer de meu livro um ensaio. Não quis
me incluir no movimento banhesiano.
Em segundo lugar, tampouco quis fazer um livro "acadêmico", austero,
que dominasse todo o conhecimento, cheio de referências bibliográficas. Tentei
ficar no meio-termo entre o ensaio subjetivo e O pensamento acadêmico, massu
do, pesado. Digo isso meio retrospectivamente, mas essa escolha já estava clara
para mim desde o início. Trabalhei em torno de um conceito que me ajudou
muito, essa noçao de índice, essa dimensão indicadora da imagem fotográfica,
que encontrei na semiologia americana de Charles Sanders Peirce, descoberto
naquele momento na França- cle era mais conhecido nos Estados Unidos, mas
acabava de ser traduzido na França.
Assim, baseando-me nessa noção, consegui me desincumbir de [arma
bastante coerente e legível-eu queria um livro legível, e não uma obra complexa,
difícil. Acho que encontrei o tom adequado para tornar o assunto bem claro, sem
cair no ensaio subjetivo nem na austeridade excessivamente universitária. Tinha
acabado de defender minha tese, ponanto tentei evitar fazer uma coisa que se
parecesse demais com outra tese.
E funcionou muito bem. Em razão do contexto da época e da estratégia
para sua elaboração, rapidamente o livro se tornou uma referência por toda pane.
Para o Brasil o livro veio mais tarde, quando me propuseram uma tradução em
português para uma editora brasileira que se chamava Papirus. A edição bra
sileira também fez grande sucesso; foram seis ou sete edições, não estou bem
certo. O livro também fez bastame sucesso em países como a Itália, a Espanha, e
se tornou uma obra de referência.
E na França.'
Certamente. Já estamos na nona edição francesa, atualmente pela edi
tora NaLhan. A primeira editora era belga, a Labor, em 1983; em 1990 fiz uma
edição bastante aumentada, foram mais 150 novas páginas de texto. Pensei que
depois de sete anos e do sucesso do livro, era preciso atualizá-lo com aquilo que
143
6. estudos históricos e 2004 - 34
tinha sido feilO entre 1983 e 1990, por isso acrescentei uma nova dimensão,
-
menos teórica e mais histórica. E a diferença entre as duas edições: a segunda
tem mais objelOs históricos - aliás, é a edição que [oi traduzida no Brasil, a de
1990.
Depois de vime aI/OS, o livro comiuua ocupando o mesmo lugar em suas
preocupações?
Sinto-me contente pela existência do livro, independentemente de sua
notoriedade, mas do pontO de vista do conteúdo. Para mim, é um texto que assu-
-
mo ainda hoje. Não digo: "Ah, não! E um texto de juventude, cheio de erros ... "
Claro que contém algwna ingenuidade, coisas que eu não escreveria mais hoje
em dia, mas o movimento que me levou a escrevê-lo ainda é muito forte. Não o
releio freqüentemenre, mas quando aconrece de rever duas ou três coisas, en
conrro no livro um movimemo que me agrada ainda hoje, um grande enru
siasmo. Persigo uma idéia, que considerava e ainda considero boa, mesmo se
depois ela se IOrnou banal, e essa idéia serviu de motor ao livro.
Mas é evidenreque hoje não trabalho mais dessa maneira e,se me pedem
para fazer conferências ou dar cursos sobre fotografia, levo bastante tempo para
expor as coisas de forma diferente, não falo mais da mesma forma, já que essa
noção de índice se tornou bastante comum; não é mais nenhuma novidade, ao
contrário. Além disso, mudei muito a respeito da questão da fotografia. Eu diria
que é um livro que foi forçado, no início dos anos 80, a relletir sobre a grande
pergunta que lOdos faziam: o que caracteriza a imagem fotográfica, em oposiçao
aos ouu·os tipos de imagem: cinema, pinrura, televisão?
Era o tempo em que se refletia sobre especificidades; era típico dos anos
80 e do espírito pós-estruturalista. Atualmente, o estruturalismo não domina
mais as ciências humanas nem o discurso sobre a especificidade. Eu próprio já
escrevi mais de uma vez que não existe especificidade, que a única coisa in
teressante na fotografia ou no cinema ou mesmo na pintura são os problcmas
transversais, isto é, aquilo que os três têm em comum, muito mais do que aquilo
que os separa: refletir sobre os problemas do espaço, do tempo, do enqua
dramento, da profundidade na imagem. Evidentemente, o cinema não trabalha
isso da mesma maneira que a fotografia, mas é porque os dois lidam com cate
gorias transversais que podemos fazer perguntas pertinentes. Não mais per
guntas sobre especificidade, mas questões de transversalidade, que podemos
avançar na reflexão sobre esse tipo de problema.
Mais ainda: a semiologia não é mais a disciplina dominante; houve
vários movimentos, como o da história, de um lado, e da filosofia e da estética, de
outro.
Depois da tese e de ter publicado esse livro sobre a fotografia, continuei
na Universidade de Liêge, mas comecei a percorrer vários departamentos.
144
7. Elltrevista COIII Phillippc Dubois
Inicialmente, como disse, era o único a trabalhar com a imagem e confesso que
me aborrecia um pouco, porque a discussão intelectual se reduzia a duas ou três
pessoas. Eu não me via como professor daquela universidade durante 25 anos,
mais ou menos isolado. Assim, logo depois de defender a tese procurei outros
pontos de contato, porque minha tese foi elaborada na Bélgica, mas a partir de
um primeiro projeto de tese em filosofia que enviei a Paris, a um filósofo,
Jean-François Lyotard, e também a um semiólogo da literatura, Gérard Genene.
Entretanto, meu contrato com o FNRS me obrigou a el.borar a tese na Bélgica.
Mas meus contatos franceses começaram a me dizer que eu precisava
mudar de universidade, e em 1988 consegui um lugar na Universidade de Paris
UI, já como titular - na época chamava-se professor conferencista. Por algum
tempo ainda me mantive ligado à Universidade de Liege, mas depois me instalei
definitivamente em Paris, onde estou até hoje no Departamento de Cinema e
Audiovisual - era tão grande, que se transformou numa faculdade. Uma coisa
enorme, com 1.400 estudantes, quase cem professores, todos grandes e conhe
cidos especialistas de cinema, da imagem, da televisão.
No fim dos allos 80, o debate na universidade se travava elUre os historiadores e os
sellliólogos. O senhor poderia falar um pouco sobre esse debate'
Basicamente, os anos 80 foram os anos de apogeu da semiologia e viram a
instalação dessa abordagem: estudar os níveis de significação, a denotação, a co
notação, todos os aspectos mais técnicos desenvolvidos pela semiologia. Tudo se
tornou tão especializado, que passamos a ter o sentimento de perda do prazer da
imagem. Houve, então, um movimento de reação; muita gente continuou a estu
dar semiologia, mas, diante da dominação que ela teve nos anos 80, o que emer
giu foi a abordagem histórica e a abordagem estética.
Em minha trajetória, prestei bastante atenção a essas dimensões.
Atualmente, não faço mais nada parecido com semiologia - o que não significa
que me arrependa de ter feito, pois considero inipona11le para a constituição do
espírito a capacidade de análise que a semiologia proporcionou a toda uma
geração, no sentido do rigor, da desconstrução dos mecanismos de um objeto.
Mas a questão da história e da estética ressurgiu, não mais como era an
tes; a história que surgiu nesse momento não era mais uma história factual, his
toriográfica. O estruturalismo e as ciências humanas também haviam dado às
disciplinas históricas sua contribuição. A História Nova, que se tornou a refe
rência dominante, de Georges Duby a Michel Foucault, de Michel de Certeau
a todos os grandes historiadores daquela época, em particular os franceses,
jogou sobre os fenômenos históricos um olhar basicamente sobre a proble
mática. A história passou a funcionar, não mais a partir de fatos, mas de pro
blemáticas.
145
8. estudos históricos e 2004 - 34
Já havia a tradição de Mare Bloeh e Luciell Févre...
Evidemememe, havia toda essa tradição, mas, nesse momemo, eu des
cobri a História Nova. Como não tive formação de historiador, fui meio autodi
data na matéria, e tardiameme, não em meus anos de formação imelectual; foi
depois do doutorado e depois do livro sobre a fotografia. Por volta de 1984, 85,
comecei a me imeressar pelos estudos históricos, a lê-los. Minha principal refe
rência foi mesmo Michel Foucault, filósofo e historiador; era o que me imeres
sava nele. Depois, a partir dele, li e apreciei muito outros histOriadores, sobre
tudo na minha área. Eu não podia fazer um estudo histórico do campesinato
francês na Idade Média, mas no campo do estudo das imagens modernas fui bas
tame influenciado pela história.
Fiquei distame dessa abordagem purameme a-histórica da semiologia,
que jamais se perguma de que contexto vêm os objetos em estudo. Uma das críti
cas que podemos fazer à primeira parte de meu livro, J:aCle plzolOgrajique, é que é
totalmente a-histórica; essa dimensão não é levada em coma.
Assim, remei refletir sobre a fotografia, mas também sobre o cinema,
que ganhou muito espaço, mas, dessa vez, propondo uma reflexão em que os de
safios históricos tinham seu lugar. Primeiro, passei a trabalhar com um con
teúdo mais determinado, pois em J:acre plzolograjique, em sua primeira versão,
não havia comeúdo; eraa fotografia como caregoria conceitual. Na segunda edi
ção, trabalhei com um comeúdo mais preciso, como, por exemplo, a fotografia
ciemítica do último quartel do século XIX. Ou ainda, com conteúdos bastante
determinados, de fotógrafos, escritores de meados do século XX.
Em segundo lugar, desenvolvi um imeresse por certas problem,íticas ao
mesmo tempo históricas e filosóficas, que atravessam as imagens. Por exemplo,
uma problemática que cominua a me interessar muito é como, num certo mo
memo da história das imagens, produzem-se fenômenos que remetem à idéia de
•
que as imagens guardaram traços de coisas que não estão visívcis. E o que chamo
-
de "imagem do invisível". E uma problemática filosófica, mas que me imeressou
muito, a idéia de que há nas imagens um pensamento inconsciente e que certos
momemos históricos são mais particularmente importantes. Para mim, é uma
forma de articular história e filosofia a respeito de imagens.
O exemplo no qual sempre insisto são as imagens correspondemes ao
período da Segunda Guerra Mundial. O que se passa no cinema, mas também na
fotografia, emre 1940 e 1945? Essa idéia de que captamos as coisas mas não sou
bemos vê-Ias, de que foram necess,írios anos de distância para aprender a ver o
que, entretamo, já eSlava lá, bem visível, debaixo dos nossos olhos, é um pro
blema ao mesmo tempo da filosofia e da história, porque é a questão da cegueira
histórica sobre os campos de concentração. Por que não vimos? Porque não pu-
•
demos imaginar, não pudemos pensar. E impensável, portamo não é visível.
146
9. EJltrc,/Ístn COIII Pllillippe DJlboÍs
Portanto, é um problema histórico e filosófico apresentado pelas imagens, e são
coisas assim que, posteriormente, passaram a me interessar no campo da foto
grafia, do cinema e da imagem eletrônica.
o cinema ganhou emão espaço 110 seu campo de imeresse...
Ah, sim, desde o início eu sabia que o cinema era o que me interessava,
como expliquei a vocês, mas precisei de muito tempo para fazer dele um objero
de trabalho. Sempre fui muito impressionado pelQ cinema, mais do que pela li
teratura. O cinema sempre me pareceu uma espécie de monumento- não apenas
um documento, mas um monumenro, para reromar a velha oposição de Michel
Foucault- e, como diante de qualquer monumento, nós nos sentimos pequenos
diante dele. Por isso, antes de me decidir a enfrentar o assunto, foi preciso tem
po; precisei passar pela literatura, trabalhar com a forografia, antes de chegar lá.
Atualmente, em tudo o que faço, mesmo quando não falo diretamente de cine-
o
ma, ele é o centro real e virtual de meu trabalho. E difícil explicar por quê, de
maneira puramente lógica; para mim, isso entra um pouco na subjetividade, na
reatividade pessoal às coisas.
Tenho uma fé- posso dizer isso, embora não seja cristão - no poder da
imagem e considero que o cinema, muito mais que a fotogralia ou a pintura, foi o
que pôs em atividade essa fé. Um cineasta, mais que rodos os outros, sempre me
pareceu ser aquele que encarnou a fé no poder da imagem: é Godard, natu
ralmente. Ele é para mim mais do que um cineasta, é alguém que conseguiu me
fazer compreender que as imagens em geral, e as do cinema em particular, são
coisas que a linguagem verbal, escrita jamais conseguiu enfraquecer.
No domínio da imagem há, basicamente, duas grandes tendências. Exis
tem aqueles que dizem quea linguagem é muito mais forre que a imagem,porque
podemos articular os sentidos, enquanto diante da imagem não sabemos fazê-lo,
porque ela não quer dizer nada ou quer dizer tudo. Só a linguagem pode comu-
o
nicar um sentido articulado. E o poder da linguagem, o poder do sentido formu-
lado. Mas há também os que consideram que a imagem tem mais poder que a lin
guagem, porque passa justamente por outras coisas além do sentido atualizado
pelas palavras; é um pensamento que se exprime de outra forma que não a dis
cursiva. Entre o pensamento discursivo e o pensamenlO visual existe um velho
campo que a filosofia conhece bem e que já foi trabalhado mil vezes.
Nesse debate eu me situo mais do lado do pensamento visual, sabendo
muito bem que não se trata de afirmar um e punira outro; há uma dialética com
plexa entre os dois. Mas tenlO sempre defender a idéia de que o pensamento vi
sual é algo que não se consegue ver inteiramente. No campo da história, con
sidero que os historiadores tradicionais estão IOtalmente do lado do pensamento
discursivo. E que a imagem é algo que não lhes parece apreensível de outra forma
/47
10. estudos ilistór;clls. 2004 - 34
que não seja a da linguagem. Certamente, há historiadores que sabem lidar com a
imagem de outra maneira, mas não é a corrente dominante.
,
E um pouco parecido com a antropologia. Existe a antropologia em geral
e a antropologia visual, um pequeno grupo que tenta considerar que a imagem é
essencial e escapa à articulação pela linguagem. Mas a antropologia visual é
também uma tendência minoritária, que enfrenta dificuldades para existir. A
anrropologia tradicional resiste muito à antropologia visual. Ainda não passa
mos a utilizar o termo história visual, que não existe como disciplina, mas penso
que se pode estabelecer o paralelo entre antropologia e história.
O terreno em que essa visão poderosa do visual foi mais teorizada, creio,
foi o campo da história e da teoria da arte contemporânea. Evidentemente, a his
tória da arte contemporânea também tem divisões; há os historiadores tradi
cionais da arte, a herança da escola de Panofsky, representada na França por An
dré Chastel, pela grande tradição francesa da história da arte. Mas existe o campo
da bistória da arte que se esforça para revalorizar o poder visual em si mesmo, o
pensamento visual da pintura. Penso que foi nesse campo que houve mais teo
rização desse poder visual da imagem e do subsídio que ele pode trazer para a his·
tória. Para mim, existe a esse respeito um grande distanciamento entre a história
da arte e a história.
Obviamente, a história da arte se interessa mais pela imagem do que a
história em geral, e fez da imagem algo que não é simplesmente uma fonte de sa
ber, mas uma forma de pensamento. A história, no sentido amplo do lermo, ain
da não aceitou verdadeiramente essa idéia, na minha opinião. Mesmo que, em
alguns casos, como certos estudos de Michel Foucault e de Michel de Certeau, se
tenha tentado trabalhar esse tipo de conceito. Mas não é uma verdadeira disci
plina no interior da história.
,
E por isso que O senhor vê relações positivas ell/re o cinema e as art es plásticas'
Certamente. Como é no domínio da arte que esse pensamento sobre o vi
sual foi mais rrabalhado e mais desenvolvido, é algo que conheço bem, que sigo
com muita atenção. Hoje em dia, tudo o que faço articula o pensamento pro
priamente visual que a arte permitiu trazer à tona com aquilo que o cinema re
presenta, em seu funcionamento.
O sellhor rambémJaz exposições?
Ah, sim, pois minhas atividades se diversificaram. Embora eu ainda não
seja um velho, depois dos 50 anos, todos começamos a olhar o que já fizemos, o
caminho que percorremos, e o ensino universitário é algo que já domino, porque
estou na universidade há 25 anos e conheço o ofício. Tenho muito mais respon
sabilidades administrativas, mas a relação com os estudantes, a direção de pes-
148
11. Elltl'Cl/istfl COIII Phil/jpJ1c DI/bois
quisa, é o que me interessa mais na minha profissão. Com tudo isso, já tenho uma
relação sólida e estabelecida na universidade, onde não consigo mais descobrir
novos aspectos, novas invenções. Já criei um hábito de trabalho, que continua a
me dar um enorme prazer.
O que é formidável naquilo que [aço é que cada ano há sempre pessoas no
vas a encontrar, novos pesquisadores. Sei que exerço um papel determinante, por
que formo mentalidades, e isso é essencial. Posso observar a evolução de um estu
dante que encontro em seu terceiro, quarto ano e que acompanho até o doutorado,
um percurso que dura sete, oito, às vezes dez anos. Fico contente porque sei que
'
construí algo para uma geração que ainda vai se desenvolver muito.
Essas atividades continuam a me dar muito prazer, mas sinto grande ne
cessidade de encontrar outras coisas além do funcionamento normal da institui
ção universitária: ensinar, dirigir o departamento, organizar as atividades de
pesquisa. Assim, depois de alguns anos encontrei uma abertura na área das ex
posições de imagens. Fiz também alguns filmes, mas é muito complicado; fiquei
muito desencorajado quando me defrontei com a verdadeira batalha que se tra
va. Fazer um filme é, inicialmente, passar dois anos correndo atrás de dinheiro, é
insuportável.
Deve ser muito difícil para quem/em uma vida ulliversitária, 111110 profISSão
acadêmica.
Certamente. Por isso, fiz três ou quatro filmes e desisti. De outro lado,
montar exposições é uma atividade que me entusiasma muito atualmente e é
também uma maneira de dar à imagem seu verdadeiro lugar. Não estamos mais
no campo da reprodução nem da análise, estamos temando construir com as
imagens um objeto visual, que é uma exposição.
Fazer uma exposição é praticamente a mesma coisa que fazer um filme;
apenas é mais fácil. Não precisamos produzir as imagens, pois elas existem, mas
construímos algo que leva em conta o que é cada imagem, seja uma pintura, uma
•
foto ou um filme. E preciso compreender o que essa imagem sugere; além do mais, é
preciso construir algo com isso. Portanto, trata-se de uma dimensão bastante impor
tante. Para mim, a montagem de uma exposição é essencial. Acho que me interesso
mais pelo cinema do que por outras formas de imagem porque o cinema não se re
sume a uma única imagem; é uma construção de várias imagens. Uma exposição é a
mesma coisa: a construção de várias imagens que produz, em si mesma, uma ima
gem global. E essa questão da montagem, da construção é muito importante.
Como o sellhor avalia o problema das imagens digitais.'
Depois de ter trabalhado com a literatura e com a fotografia, tendo sem
pre o cinema corno pano de fundo, como já contei, comecei aos poucos a traba
lhar com o cinema e lidei bastante com a imagem eletrônica, não da televisão,
/49
12. estudos históricos e 2004 - 34
mas do vídeo, e entTerive durante algum tempo um projeto que me tomou uns
dez anos, de escrever um livro sobre a imagem eletrônica. O livro foi escrito cin
co ou seis vezes, com variaçôes; o primeiro título seria L 'écrilure élél1"Olliqlle, e de
pois passaria a ser Vidéo, ergo 1/0/1 sum (Vejo, logo não existo). Este título me parecia
definir bem o problema.
Escrevi muitos artigos para várias revistas e, quando desejei sintetizar
tudo de um pOntO de vista um pouco mais teórico - quis escrever um livro que
fosse um pouco como [;acle plzolograplzique , tentando definir ou apreender esse
-
lipo de imagem, renunciei ao projeto, depois de dez anos.
Por que decidiu /lão escrever o livro?
Não foi por razões circunstanciais, porque me dediquei a esse trabalho,
cheguei mesmo a escrever um esboço, mas jamais publiquei porque cheguei à
conclusão de que não era possível, teórica ou epistemologicamente falando. A
imagem eletrônica não é um objeto teórico, não é um objeto cujo pensamento se
possa expressar. Para mim, aquela imagem não tem um pensamento, como existe
um pensamemo do cinema, da fotografia, da pimura; não existe um pensamento
da imagem eletrônica. Temando compreender esse pensamenro, a cada vez eu
chegava à mesma conclusão: isto não existe, essa imagem não tem um pensa
mento.
Muita gente escreveu sobre a imagem eletrônica. Baudrillard, Paul Viri
lia e todos os teóricos das novas mídias. Quando os li, rive o mesmo semimemo;
eles escrevem sobre algo que não existe como conceito, como pensamento. De
resto, a maior parte dos textos é de discursos apocalípticos. O texto de Baudril
lard é um discurso sobre o vazio, e também o de Virilio; só existe o simulacro, a
simulação, a ausência do real; ou, ao conrrário, são os grandes profetas. Ou é um
discurso sobre o Apocalipse ou sobre a profecia, como o discurso do diretor do
Festival Imagina, que diz: "Tudo vai se tornar digital, o resto não existe mais, não
tem importância. Desde Platão só há uma coisa que conta: o futuro radioso da
eletrônica absoluta." Ou seja, discurso profético é igual a discurso apocalíptico,
com sinal trocado.
Mas nos dois casos não há consistência no objeto conceitual do discurso,
,
não há nada. E por isso que imaginei esse titulo, Vidéo, ergonO/l Slllll (Vejo, logo não
existo). Era para negar a existência do sujeito, porque não existe sujeito nesse tipo
de imagem. Assim, chegou o dia em que tive de aceitar que não havia sujeito e
decidi que não podia escrever um livro sobre a imagem eletrônica, um livro que
se obrigaria a constituir algo que não tem consistência. Basicamente, foi por isso
que abandonei o projeto.
Isso não me impede, no enranto, de me manter muito atento a tudo o que
se faz na área eletrônica. Freqüento regularmente os festivais de vídeo e quando
150
13. Elltrcvi.Hn
faço exposições eu os utilizo muito freqüentemente, porque há coisas interes
santes. Mas no campo da episteme desse tipo de imagem não há como conceituar
teoricamente um verdadeiro sujeito visual.
Quanto ao cinema, o sel/hor lraballia exclusivamellle com o cinema de awor, como
-
Godard? E seu gosto pessoal que o guia nesse campo?
Não apenas isso. Trabalho com Godard, porque é quem tem a mais alta
consciência desses problemas. Eu lhes disse que Godard não é apenas um
cineasta, mas alguém capaz de pensar, muito além de seu aparato técnico, o
problema da imagem, da representação visual eni todas as suas dimensões pic
tóricas, fotográficas, cinematográficas. EvidenLemente, o cinema é seu terri
tório, mas pouco importa; é alguém que pensa o mundo, mais que simplesmente
o cinema como tal. Mas não é só Godard que me interessa; trabalho igualmente
bem com cineastas específicos, como, por exemplo, Chris Marker, que também
me interessa muito e sobre quem acabo de publicar um número especial da
Revista. Há muitos outros, mas também me interessa bastanLe a produção mais
comercial.
O cinema americano atual, que muitos universitários desprezam, ale
gando que nao passa de efeitos especiais, de pirotecnia sem conteúdo, é muito in
teressante em vários aspectos, porque trabalha verdadeiramente nossa maneira
de pensar em certo número de realidades. Nosso conceito sobre o corpo, por
exemplo; para o nosso imaginário do corpo, o cinema americano e seus efeitos es
peciais são um sinLoma bastante interessante. O conceito de corpo digital foi
criado visualmente pelo cinema. Basta ver todos os filmes com personagens ro
bôs, murantes, exterminadores e outros filmes nulos, sofríveis e estúpidos do
ponto de vista de roteiro, mas que criaram um imaginário visual interessante,
muito mais poderoso em nosso espírito do que o que os programas de televisão
podem nos explicar sobre a importância do digital na construção das imagens. O
impacto é extraordinário.
Os esrudanLes que chegam à universidade com 19 anos, desde os 12 anos
vêem imagens como essas; eles têm cinco ou seis anos de relacionamento com es
sas imagens e nunca viram as imagens mais anLigas. Estão completamente apri
sionados pela imagem digital: o videogame, os gome boys, os tiros, os corpos ex
plodindo. Essa idéia de um corpo que não tem carne está extremamenLe entra
nhada no imaginário deles. Já nós viemos de uma geração de corpos bastanLe pa
recidos, bastante uniformes, uma geração em que a fotografia e o cinema cons
truíram nosso imaginário do corpo na imagem, e eles não.
Entendo que O cinema comercial, muito freqüentemente, não é interes
sante no plano narrativo. Para mim, o cinema é interessante, inicialmenLe, em
/5/
14. estudos históricos e 2004 - 34
suas formas plásticas, em sua relação com a imagem, mas não no conteúdo e na
construçao das histórias. Sob esse ponto de vista, se sabemos olhar as imagens e
não a história, não há diferença entre o cinema de autor e o cinema comercial.
Atualmente, estou muito interessado no que se passa no cinema asiático, que está
em plena efervescência. O cinema americano já sabemos o que é há muito tempo,
o cinema de autor é uma invenção francesa dos anos 60, basicamente, e também
sabemos o que é, não é mais tão novo. Onde acho que algo de novo foi inventado
•
no campo do cinema é a Asia. Existem historicamente o cinema japonês e o cine-
ma chinês, mas arualmente o cinema explodiu em todos os países asiáticos.
Acabo de chegar de uma viagem à Coréia. O cinema coreano é espanto
SOl Está sendo descoberto agora no Ocidente e apresenta uma maneira de traba
lhar que não se inscreve nem na lógica hollywoodiana do cinema comercial nem
•
na lógica européia do cinema de autor. E um cinema espantoso, perturbador,
com muitas idéias novas. Isso me interessa bastame. Também estou muito inte
ressado pelo cinema de documentário, pelo cinema experimental. Não tenho ne
nhuma restrição no cinema nem na fotografia, nem mesmo na lÍlerarura. In
teresso-me ramo pelo romance como pela poesia, tamo pelos textos medievais
como pelos comemporâneos. Jamais adotei um critério de crítica externa para
determinar aquilo que me interessa. Permaneço como alguém oriundo da análi-
se mterna.
•
Qual é sua opiuião sobre a queS/{/o do método para aI/alisar as imagens?
A resposta é muito simples: não existe método. Mas, ao dizer isso, per
manece a questão: como fazer? Nâo existe um único método. Amigamente, a
semiologia acreditava que ela própria podia ser o método. Mas eu diria que, mais
do que um problema de método, é um problema de atirude. As imagens são
realidades e, como sempre, é nossa atirude analítica em relação às imagens que
determinará a qualidade do trabalho que faremos sobre elas.
Muitas atirudes são possíveis. Mas existem ao menos algumas grandes
categorias de atitudes que podemos identificar. Basicamente, uma primeira
atirude basrante disseminada é a que toma a imagem como um objeto a serviço de
uma interpretação, de uma abordagem histórica, como O lugar da mulher na so
ciedade francesa dos anos 50, por exemplo. Nesse caso, a imagem é totalmente
instrumentalizada, é urna ilustração de algo que existe ames dela e fora dela. Seja
para urna abordagem histórica ou sociológica, não importa, essa atitude não me
interessa de rodo, pois é a instrumentalização da imagem.
Meu ponto de vista é justamente o oposto: de partir da idéia de que a
imagem que temos diante de nós é ao mesmo tempo um objeto de cultura e um
•
objeto por natureza. E um objeto de cultllra sobre o qual existe um enorme saber,
/52
15. Elltrcllista COIll Phillil'l'c DI/vois
e é preciso dominar esse saber para abordar essa imagem. Se estou diante de um
quadro do Renascimento, é evidente que não posso compreender minimamente
o que está em jogo nesse quadro se não possuo um conhecimento que diga res
peito a ele.
Minha posição se opõe às teorias impressionistas, que afirmam que não é
necessário conhecer as teorias sobre o Renascimento para apreciar um quadro
daquela época. Considero que, em termos de objeto de esrudo, conhecer é funda
mental. A imagem como objeto de culrura requer um conhecimento maisou me
nos refinado, desenvolvido, e os historiadores estão aí justamente para fornecer
muito material a esse saber - o campo da história da arte é extraordinário a esse
respeito. O conhecimento acumulado sobre os quadros do século XX é fabuloso,
inaudito quase; o que se conhece sobre um quadro é incrível.
Mas também é preciso desconfiar. Tratar o objeto imagem unicamente
em termos de saber, de conhecimento, puro objeto de culrura, é também perder
muita coisa. A essa posição junta-se OUITa - e a aniculação entre as duas é toda a
questão, todo o problema. A imagem é também algo em si, que tem um poder que •
lhe é próprio e que não se origina do saber constituído a seu respeito. E também
um objelO por natureza e não apenas um objetO de cultura. Essa é uma afirmação
perigosa, porque é muito perigoso dizer isso, pois devolver a imagem a uma
siruação de coisa em si é um ponto de vista um tanto ontológico, que consiste em
considerar a imagem pura, a imagem destacada, a imagem objeto, sem nada que
lhe venha acrescentar uma significação ou um sentido.
•
E isso que tento trabalhar. Entre a questão mais histórica do conhe-
cimento, que faz da imagem um objeto de cultura, e a questão que chamo de fe
nomenológica, que toma a imagem como um fenômeno, um even to para o olhar.
E o olhar que se aproxima da imagem como um evento é um olhar que deve
tentar não deixar interferir um saber prévio sobre ela. O olhar deve se pretender
modesto, o mais despojado possível de saber. Ao mesmo tempo, esse olhar jamais
é neutro, mas pelo menos - por isso afirmo que é um problema de atirude- é um
olhar que, com relação às imagens, consiste em dizer que é ela própria que deve
produzir alguma coisa. Não sou eu, que a olho, que devo produzir qualquer coisa
sobre ela.
•
E a idéia de que a imagem produz o pensamento por si mesma, como
imagem. Não sou eu, aquele que olha, O analista, quem deve produzir o pen
samento sobre a imagem. Devo ser capaz de escutar, de olhar, de apreender esse
pensamento que vem da própria imagem. Este é um ponto de vista fenome
nológico, que pode ser objelO de muitas interpretações complexas, de má com
preensão, pode abrir a porta a alguns excessos, como "a imagem fala sozinha, não
sou ninguém diante da imagem". Mais do que impressionista, é quase uma epi-
1 53
16. estlldos históricos e 2004 - 34
fania: "A imagem é o absoluro. Ela sabe tudo, é mais fone do que eu, não sou
•
nada diante dela." E urna espécie de idolatria, de consideração da imagem como
todo-poderosa.
•
E evideme que não defendo essa idéia, mas não devemos cair no
extremo oposro, de dizer que a imagem não é nada, e que é o conhecimento que
•
temos a respeiro dela que é estruturante. E por isso que digo que é no equilíbrio
entre essas duas posições que se encomra, na minha opinião, o ponto de vista
essencial.
Existem, a esse respeito, três grandes campos estruturantes nas atitudes
diante da imagem, se eliminarmos a imagem corno ilustração, como pretexto.
Trata-se, na minha opinião, das atitudes fenomenológica, esu'uturalista e
histórica em relação à imagem. Se tornarmos essas três atirudes e conseguirmos
equilibrá-las, estruturá-las, compensá-las, sem cair no extremo fenomenológico,
estruturalista ou histórico, penso que alcançaremos a melhor maneira possível
de manter uma relação com a imagem.
A abordagem que emerge do histórico é a que recorre ao conhecimento
sobre a imagem; a abordagem estruturalista é a que torna a imagem em si mesma,
mas do ponro de vista de sua construção interna; e o pomo de vista fenomeno
lógico é aquele que roma corno ponto de partida o faro de que a imagem, à parte a
construção interna que a caracteriza, produz alguma coisa a seu próprio respeito,
e portanro eu não posso saber. Uma imagem pode registrar alguma coisa que
mesmo um especialista pode não ver.
Isso já é célebre com os quadros. A história da arte é, ainda hoje, urna
disciplina que, retornando os mesmos quadros já comentados mais de cem vezes
e sobre os quais já existe uma dúzia de livros de especialistas, permite que se diga:
"Ah, tem isso? Não tínhamos visto." Com muita freqüência, não é um problema
de história, mas de evento da imagem.
Não tínhamos percebido que a rendeira no quadro de Vermeer tem um
pequeno filete vermelho, que se interpretava como um fio, apenas, um fio de linha
da renda. Mas não; é um fio de sangue que corre do pescoço, porque a moça tinha se
picado com a agulha. Isso muda as coisas, e foi a imagem que produziu isso; não
importa mais se é um fio de sangue ou urna linha vellllelha, mas existe na própria
fOllua da imagem algo que não tinha sido visto. Pouco importa se Vermeer queria
isso ou aquilo; há um evento próprio a essa imagem que faz sua força, faz com que ela
exerça sobre nós algo que vai além do saber, além da estrutura.
,
As vezes, são coisas surpreendentes. Há anos que esrou desenvolvendo o
projero de um livro que é uma tentariva de imagens de todo ripa, mas sobretudo
do cinema, de indicar esses fenômenos, que chamei de eventos da imagem, de
coisas que se produzem num momento dado e sobre as quais não existe saber
154
17. EI//r,pista com Pllil/ippe DI/úois
possível. E para isso é preciso um olhar virgem, é preciso reconhecer que não se
•
sabe nada a respeito de uma imagem, mesmo que se saiba basrante. E só com essa
condição, de aceitar não projetar nosso saber sobre a imagem, que poderemos ver
essas coisas. Se nos fiarmos no nosso saber, não conseguiremos ver, porque elas
estão na imagem, mas o conhecimento nos cega e nos impede de vê-Ias.
Há inúmeros exemplos mais ou menos interessantes a esse respeito. Em
relação ao trabalho de Chris Marker, que mencionei há pouco, há coisas espan
tosas, como uma imagem em que há uma forma que ninguém viu realmente,
porque passa muito depressa, que é um pássaro, ou que se parece com um pás
saro; ninguém afirmou que se tratava de um pássaro. Mas interrogando a mim
mesmo, pensei: "Vi uma coisa que não sei o que é." Depois, refleti e me dei conta
de que há muitos pássaros nos filme. Mas para isso era preciso esquecer tudo o
que sabia para ser capaz de receber esse evento, de identificar essa coisa.
Com o historiador acontece da mesma forma. Um historiador que estu-
-
da as imagens, dizendo: "E isso que eu estava procurando, porque essa imagem
se inscreve em tal contexto, pertence a tal situação", naturalmente vai encontrar
o que procura, mas não vai encontrar o que não estava procurando. Por isso, é
preciso não procurar nada numa imagem, para ser capaz de descobrir aquilo em
que não estávamos pensando, que não era imaginável a priori.
E há exemplos célebres, como uma imagem tomada durante a Segunda
Guerra Mundial, em 4 de abril de 1944, uma fotografia feita pelos Aliados em
reconhecimento aéreo sobre a cidade de Auschwitz. Eles queriam fotografar as
fábricas da IG Farben, e para eles essas imagens continham as fábricas. Todos os
analistas das forças americanas e os membros do serviço de informações que
analisaram detalhadamente as imagens não viram uma coisa: tinham fotogt'a
fado também o campo de concentração de Auschwitz, com as câmaras de gás, os
-
fornos crematórios. E incrível! Em 1944 não havia nenhuma imagem, nenhuma
prova da existência dos campos. Mesmo com essas fotografias, ninguém viu
nada. Por quê? Porque o que se queria com essas imagens era ver as fábricas da IG
Farben. Ninguém tinha noção de que ali havia um campo de concenu·ação.
Depois viram, mas era muito tarde. Esse exemplo é típico.
O historiador que procura alguma coisa numa imagem vai encontrar o
que procura, mas não vai ver o que talvez exista nela. Para que isso aconteça, é
-
preciso basicamente esquecer de procurar aquilo que já se conhece. E preciso
deixar a imagem falar, é preciso ter confiança na imagem, entender que ela tem
algo a nos dizer, sobre o qual não temos a menos idéia, mas é preciso ao mesmo
tempo desconfiar da imagem, porque ela é um artifício, é objeto de manipulação,
foi construída, organizada; jamais se pode tomá-Ia por transparente. Mas essa
dupla atitude, de confiar e de desconfiar, me parece essencial.
155
18. esturfos históricos e 2004 - 34
A imagem /em um pensamemo, mas a imagem produzida pelo cinema illdustrial está
dividida em gêneros: o western, o filme noir, a comédia musical etc. , que codificam,
de cerla maneira, o pensamelllo. Como analisar isso?
Os gêneros são totalmente artificiais, são categorias institucionais ou
críticas que [oram apostas ao cinema e que basicamente permitem à indústria
dividir as obras c permitem ao espectador ter sistemas de expectativa. Quando
vamos ver uma comédia musical, sabemos que haverá música e dança; quando
vamos ver um wesrem, sabemos que haverá liros e cavalgadas. São etiquetas que
servem ao mercado.
A partir do momento em que queremos interrogar a realidade na ima
gem de um gênero, isso funciona muito mal. O filme noir, por exemplo; vamos
tentar definir seus principais traços visuais: a obscuridade preto e branca bas
tante contrastada. Mas o cinema expressionista alemão é a mesma coisa. Os te
mas: o detetive particular, o gallgster, a noite. Mas um drama social pode se passar
em Chicago, durante a noite, com personagens suspeitos; não se trata de um
filme noir. Portanto, rodos os traços característicos de gênero, sob o plano visual,
são completamente incertos; basicamente, só servem para reassegurar as ex
pectativas que a instituição cinematográfica tenta estabelecer com o objetivo de
favorecer o consumo e a distribuição dos filmes. •
Na realidade das imagens não existe gênero. E por isso que considero a
divisão em gêneros uma construção verdadeiramente externa ao filme. Mesmo
se nos esforçamos para indicar características internas, jamais se pode verdadei
ramente dizer sobre um filme que é apenas um filme noir. Vamos encontrar num
filme noir elementos de todo tipo: de drama social, de filmes de combate, de co
média psicológica, todos misturados. A realidade dos objetos é sempre muito
mais complexa que as categorias externas que tentamos aplicar a ela e que indica
uma lógica mais de mercado do que interna.
7ral/Scrição e rradução de Luci HippolilO
a
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