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Ilustração de capa: Áxel Sande
P E D R O B A N D E I R A
ROCCO
JOVENS LEITORES
Capítulo1
Olha lá o Caramujo...
Sempre na dele, né?
É... Esse garoto não está nem aí...
Ele é assim...
Ao passar pelo corredor do colégio, Caramujo não ouviu
a conversa sussurrada entre duas alunas. Mesmo que
tivesse ouvido, fingiria não ouvir. Ele era assim.
Caramujo... Esse apelido é bem do jeitinho dele. Quem
foi que inventou?
Sei lá... Acho que já veio pra essa escola com o apelido
junto.
Quieto, sempre no seu canto, o rapaz nem se importava
que o chamassem de Caramujo. Seu pensamento era
difícil de compreender. Isolava-se, fechado dentro de si.
- Feito caramujo mesmo. Mas eu acho essa casca
bem bonitinha...
Fechado sim, mas, o que as duas meninas não sabiam é
que, nos fins de semana, Caramujo era diferente.
Aprendera com a mãe a gostar de cavalos. Mãe Mariana
nascera numa fazenda, no cerrado goiano, e mudara-se
para São Paulo para casar-se, trazendo consigo a paixão
pelos cavalos. Sempre que podia, a mãe arranjava um
jeito de levar o filho para algum sítio ou clube hípico
que alugasse bons cavalos e não cobrasse muito das
visitas. Nesses dias, os dois passavam o tempo
montados, com o vento a bater no rosto, ouvindo apenas
a respiração ruidosa ou o patear dos animais. Para mãe
e filho, era muito mais fácil compreender as manhas e
os caprichos dos cavalos do que das pessoas.
Uns quinze anos, né?
Acho que catorze.
Ele aparenta uns dezesseis...
Pode ser...
- Gozado... Nunca vi o Caramujo batendo papo com
ninguém. Ele tem algum amigo?
- Acho que não. Acho que não tem nenhum.
Os colegas eram colegas, apenas conhecidos, e nenhum
deles jamais pudera aprofundar-se na vida dele a ponto
de tornar-se algo parecido com um amigo.
- Hum... - fez a colega, com ar maroto. - E
namorada?
Nem pensar!
Eu queria saber quem é esse garoto na verdade... Quem
ele era de verdade era um problema só dele.
Ninguém tinha nada com isso. Sempre isolado, ele nada
fazia para mudar o que pensavam a seu respeito.
Você sabe o que ele fez no começo do semestre?
Não...
- Foi na prova de matemática da oitava. Me
contaram. Uma prova daquelas lascadas. Um garoto
sentado na frente do Caramujo trouxe uma cola. Um
papelzinho pequeno, bem-feito, com todas as fórmulas
anotadas. Mas pelo jeito estava nervoso e deixou a cola
cair no chão, bem à vista do professor.
- Ai, já imagino o desastre!
- Pois foi. É claro que o professor percebeu. E veio
lá do seu estrado, triunfante!
- Eu conheço esse professor. É um sádico.
Se é! Veio disposto a acabar com a vida do dono da cola.
Mas o papelzinho tinha caído do lado de um outro aluno
e o professor já veio acusando o colega inocente. O
coitado se defendeu, protestou, mas acabou fora da
classe e com um belo zero na prova.
Mas, e o que tem o Caramujo a ver com essa história?
É que, além do verdadeiro culpado, só Caramujo sabia
de quem era a cola!
Quem te disse? Ele mesmo? Ele disse que tinha visto a
cola cair?
Ora, o Caramujo nunca diz nada! Mas ele só podia
saber! O dono da cola se sentava bem na frente dele!
Mas ele podia estar envolvido na prova e não ter
percebido nada!
Ah, você não conhece o Caramujo... É claro que ele
sabia. Mas, como um caramujo, fechou-se na casca. E
foi isso que ele fez, quer dizer, que ele não fez: deixou de
fazer o que devia ter feito.
Tá bom, talvez ele tenha visto tudo mesmo. Mas vai ver
ele não queria delatar ninguém...
O Caramujo? Nada disso. O que ele não queria era
meter-se em confusão. Como sempre, ele fingiu que não
tinha nada com aquilo. Ele sempre foi desse jeito. Pra
falar a verdade, o Caramujo nunca mostrou que tinha
nada a ver com qualquer coisa.
Eu acho que mais culpado que ele foi o que estava
colando. O que estava colando é que devia ter
confessado e assumido a culpa.
É. Mas, além da covardia do culpado, só tinha o
Caramujo pra salvar o pescoço do inocente.
Você está dizendo que o Caramujo é covarde?
Sei lá. Os caramujos são covardes? Acho que não. São é
fechados mesmo.
Pode ser. Mas, se eu achasse um caramujo desses na
praia, não jogava de volta pro mar...
Capítulo2
- O Caramujo nem é muito bom de bola! Na hora do
racha no recreio, acaba ficando em um dos times, só pra
completar...
O garoto ficava lá pela lateral, entrando nas jogadas
quando dava. Preenchia seu espaço calado, fazendo seu
papel sem gritar com os outros, sem pedir a bola nem
reclamar aos berros, como fazem todos os garotos.
E lá veio o ponta do outro time, gingando, ciscando,
rápido e confiante em sua própria malandragem.
Olhava com o canto dos olhos para o Caramujo,
provocando e esperando o momento certo para o drible.
Caramujo entrou de leve e, sabe-se lá se por querer ou
não, puxou a bola com a ponta do tênis e, ato contínuo,
a bola escapou e milagrosamente passou por entre as
pernas do adversário. Desequilibrado, o ponta caiu
sentado na quadra. Uma jogada involuntária mas, para
quem o presenciou, foi um drible espetacular,
desmoralizante, que levantou uma onda de gargalhadas
entre os alunos que assistiam à partida.
Mal ouvindo as risadas, Caramujo já tinha dado a volta
no adversário caído e erguia os olhos para descobrir em
direção a quem ia livrar-se da bola conquistada com
aquela jogada que jamais fizera na vida, quando, por
trás, veio a vingança. O ponta erguia-se do chão onde
estatelara-se humilhado e girava a perna no ar, num
pontapé traiçoeiro.
Logo após a agressão, ouviu-se um gritinho de susto e
de pena, feminino.
Doeu. Doeu como fogo. Caramujo caiu de lado, surpreso,
agarrando o joelho ferido, e já o agressor pulava em
cima dele.
Do chão, o agredido girou a perna boa e acertou violenta
sarrafada no agressor.
- Sarrafada!
O ponta dobrou-se de dor e tombou de novo, com um
gemido surdo.
- Ahn...
E seus companheiros caíram em cima do Caramujo:
- Pega! Pega o Caramujo!
Antes que pudesse esboçar qualquer gesto de defesa,
outro incêndio explodia-lhe no rosto, esmurrado.
Se fosse possível, naquele momento teria lembrado do
que lhe dizia a mãe:
- Quando um cavalo fica agressivo, escoiceia, não
adianta gritar nem bater nele. Ele está com medo, está
nervoso. Você tem de acalmá-lo, senão ele fica mais
nervoso e agressivo ainda...
Com os cavalos, bastava treinamento, compreensão e
carinho. Não era como no futebol da vida.
A fúria adolescente perdia o controle, e Caramujo
defendia-se, agitando os braços às cegas, quando apa-
receu o bedel:
- Parem com isso! Cadê o Eduardo? "Caramujo" no
colégio, "Dudu" para a Mãe Mariana, "Eduardo" só na
hora da chamada.
O Caramujo?
É. O da oitava B.
Lá. No meio da confusão.
O bedel enfiou-se quadra adentro apartando a briga e
arrancando Caramujo do agarramento, um amontoado
de pernas, de braços e de raiva.
Parem com isso, moleques! Meio tonto, Caramujo pôs-se
de pé.
Eduardo, para a Diretoria, já!
Caramujo não disse nada. A culpa não era dele, mas
nenhum dos outros jogadores erguia a voz acusando a
deslealdade do ponta. De que adiantaria argumentar?
Agora seria a bronca do diretor e na certa uma
suspensão. Levantou-se, cerrando os punhos para não
chorar de dor.
Talvez a mesma voz do gritinho agora murmurava,
penalizada, vendo o garoto manquitolar na direção do
prédio da escola:
- Tadinho...
Quem seria? Alguma das meninas bonitas da sala? Não
ousou olhar. Para ele era mais fácil enfrentar o moleque
agressor do que encarar a garota. Depois, talvez, ele
sonhasse com ela, à noite, na solidão do quarto. Com
ela, com qualquer uma delas.
E em casa? Um castigo a mais por ter sido suspenso?
Mas nem para a Mãe Mariana ou para o pai ele iria
queixar-se da sarrafada desleal do ponta. Sofreria os
dois castigos e pronto.
Caramujo era assim.
Por que o bedel não mandava também o outro para a
Diretoria? Mas não perguntou. Ele era assim.
Capítulo3
O olho esmurrado estava roxo e já se fechara pelo
inchaço quando Caramujo entrou na sala do diretor.
Eduardo! O que houve com seu olho?
Nada. Eu caí.
Está doendo?
Não.
Naturalmente o diretor sabia o que significava olho
roxo em cara de moleque, mas não esticou o assunto.
Passou o braço pelos ombros do Caramujo e o conduziu
delicadamente até uma cadeira.
- Meu filho, sente-se. Precisamos conversar. Meu
filho?! Que história era aquela? Tudo o que aquele
diretor costumava dizer a quem era enviado à Diretoria
era "moleque incorrigível!". Agora ele vinha com meu
filho? Havia algo de estranho no ar...
- Meu filho, eu pedi que você viesse aqui porque...
bem...
Pelo jeito Caramujo não havia sido mandado pelo bedel
à Diretoria por causa da briga. A razão devia ser outra.
Caramujo esperou.
- Para mim não vai ser fácil dizer o que eu tenho de
dizer. Sabe, Eduardo, os seus pais... eles...
O diretor calou-se, como se tivesse esquecido o assunto
que tinha a tratar.
O rapazinho ergueu o rosto e falou, num fio de voz:
Meus pais? Eles não estão em casa. Foram a Santos,
assinar não sei o quê.
Pois é... Foram a Santos. Eles foram juntos... de carro,
não é? Sabe, Eduardo, é difícil...
A frente do olho são do Caramujo, a figura do diretor
parecia insegura, algo trêmula, como em um filme
desfocado.
- Eduardo, é terrível...
Por dentro do olho fechado, dolorido, uma imagem
começou a formar-se e foi ficando nítida aos poucos.
- ... um acidente...
Asfalto. Ferros retorcidos. Estilhaços de vidro. Sangue...
-... uma tragédia...
Caramujo quase pôde ouvir a freada longa como o
guincho de um porco ao ser sacrificado. O asfalto ia se
tingindo de vermelho. Um rio vermelho. Uma cachoeira
vermelha. Um mar vermelho cobrindo a estrada,
descendo pela encosta, escorrendo pela Mata Atlântica
e indo tingir de sangue as águas poluídas do Gonzaga.
Trombada. Tromba-trombada. Sarrafada. Sarra-
sarrafada, sarra-trombada, tromba-sarrafada... Morte.
Agora ele estava só.
Capítulo4
Quem era aquela gorda que o abraçava tanto e chorava
como quem assiste a final de novela? E aquele que
apertava uma barriga imensa contra a sua? E o outro,
fedendo a cigarro, que ainda lhe sapecara um beijo
babado no rosto?
Caramujo não se mexia nem respondia aos votos de
pesar que toda aquela gente se achava obrigada a lhe
oferecer.
Seus olhos, ou melhor, seu único olho aberto estava fixo
nos dois caixões, lado a lado, iluminados por velas como
num duplo aniversário.
Nenhum dos olhos chorava. O garoto estava vazio por
dentro. Estava sem a Mãe Mariana, estava sem o pai,
estava sem tudo. Onde ir buscar as lágrimas?
Se alguém pudesse procurar algo dentro daquele
garoto, ele estava certo de que nada seria encontrado.
Na aparência, ele estava vivo. Mas estava agonizante
por dentro.
Mamãe... Mariana... Mãe Mariana... A habilidade para
montar, a paixão pelos cavalos... Estava tudo acabado.
O pai... Papai... Sempre sem tempo para conhecer
melhor o filho. E ele, sem oportunidade de revelar-se
para o pai. Agora não haveria mais nada. Nem tempo,
nem oportunidade.
Caixões separados. Seus pais iriam dormir para sempre
em caixões separados. A morte era uma espécie de
divórcio.
Os caixões. Eram do mesmo tamanho. Pretos, retintos,
brilhantes. Tinham os mesmos enfeites prateados.
Pareciam a caixa de jóias da mãe, onde o pouco dinheiro
só deixava guardar bijuterias. Mas Caramujo nunca
tinha visto flores na caixa de jóias. Nem cadáveres.
Caramujo ficou imaginando a caixa de jóias cheia de
flores pequenas para dar proporção. Violetas ou
margaridinhas? E, dentro, o quê? O que caberia na
caixa de jóias, toda com enfeites prateados como um
caixão? Um rato, talvez?
Olhou para o perfil do rosto da mãe, destacando-se só
um tantinho acima da borda do caixão. E pensou:
"Mãe, levanta daí! Vamos cavalgar, mamãe..."
O perfil imóvel, pálido, respondia com o silêncio eterno
ao desespero do filho.
"Respira, mãe... Faz um esforço! Eu estou aqui... Estou
sozinho, mãe..."
Naquele instante, a dor e o desespero foram invadidos
como se uma revoada de gralhas cobrisse o céu de negro
para saquear o interior de sua alma:
- Meu queridinho! O que aconteceu com seu olho?
Queridinho! Coitadinho de você!
Ai, aquela voz irritante só podia ser da tia Alzira, a
irmã mais velha de seu pai! Ai, por que ela sempre se
enchia tanto de perfume? Por que se perfumar tanto
para vir a um velório? E logo o velório do irmão e da
cunhada?
- Meu queridinho! O que vai ser de você agora, sem
papai, sem mamãe?
O ambiente estava na penumbra. Caramujo só podia
ver silhuetas de pessoas dançando pelas paredes à
medida que a brisa da noite balançava a chama das
velas. Todas cochichando, que era para não acordar o
casal de cadáveres.
- Eu adoraria que você viesse morar com a gente,
queridinho. Mas o meu marido... Você sabe, não é? Sabe
o jeito do Arnaldo...
Estava abafado. Lá fora, alguns homens contavam
piadas, que é o que fazem todos os homens em todos os
velórios. Uma gargalhada externa juntou-se a um
soluço fingido ao lado dos caixões.
Estava abafado. O cheiro de dezenas de axilas suadas
misturava-se ao cheiro de velas, ao perfume da tia
Alzira, ao cheiro de flores murchando e a um vago odor
ácido que vinha dos caixões.
- Acho que você ficará muito melhor com a sua avó.
Você sabe, a sua avó Ana, lá no Encantado, lá em Goiás,
na Fazenda do Encantado. Que nome lindo, não acha?
Você vai ficar "encantado"! Ih, ih, ih...
Os cheiros entravam-lhe pelo nariz e a voz irritante
pelos ouvidos. Tudo ia juntar-se no estômago, formando
um bolo. Sem uma palavra, o rapaz apertava as mãos
com tal força, que haveria de ferir as palmas, se as
unhas estivessem compridas.
- Eu já passei um telegrama para a sua avó. Ih, ih!
Você sabe, não é? Naquele lugar atrasado não tem nem
telefone! Mas o correio chega na vila próxima. A essa
hora, sua vovó já deve ter recebido meu telegra-minha.
Sua vovó vai cuidar muito bem de você. Esteja
sossegadinho, queridinho...
Caramujo deixou tia Alzira falando sozinha e correu
para fora, nauseado, à procura de ar puro e isolamento.
Escondido sob a escuridão de uma árvore nos jardins do
velório, o garoto enfim conseguiu transformar a náusea
em lágrimas.
Chorou baixinho, sozinho, tão sozinho...
Capítulo5
"Atenção, passageiros do vôo 5123 com destino a
Curitiba, Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires:
queiram dirigir-se ao portão 12 para embarque e boa
viagem..."
No saguão de espera do aeroporto, uma palmeira
raquítica e duas dúzias de pontas de cigarro estavam
enterradas numa floreira ao lado do banco onde se
sentava Caramujo. À sua frente, um homenzinho não
sabia se lia um jornal ou cuidava da malinha de
executivo que trazia sobre os joelhos.
"Se essa malinha fosse um bebê", pensou Caramujo,
"acho que esse sujeito não se preocuparia tanto..."
E com ele? Quem haveria de preocupar-se? Ele tivera
pai e mãe. Agora não tinha mais nada. Não sobrara
nada. Ele estava indo para onde tinham mandado que
ele fosse. Mas nada esperava desse porvir desconhecido.
Naquele momento, Caramujo não tinha futuro.
"Your attention, please, ladies and gentlemen,
passengers of the flight 5123..."
Estava sozinho no imenso salão de espera do aeroporto
de Cumbica. Ele e mais algumas centenas de pessoas
estavam sozinhos, cada uma cuidando de sua vida como
se não houvesse ninguém em um raio de dez
quilômetros.
O motorista do táxi que o trouxera ao aeroporto
entregara-lhe um papel:
- Você é o Eduardo? A corrida já está paga. Mandaram
que eu lhe entregasse este bilhete.
Caro rapaz, sua tia irá encontrá-lo no guiché da Varig
com a passagem e a autorização para a viagem.
Arnaldo
A tia não estava no guiché da companhia aérea mas,
logo que se identificou, uma funcionária solícita
entregou-lhe a passagem e a autorização junto com o
segundo bilhete:
Queridinho, infelizmente não pude esperá-lo no
aeroporto. Mas fique descansado que tudo está em
ordem. Sua tia providenciou tudinho. Obedeça à sua
avó Ana e não esqueça de escrever de vez em quando
para a sua titia, hein? Beijos.
Tia Alzira
"Até o bilhete fede a perfume!", pensou Caramujo ao
amassar os dois papéis e enfiá-los na floreira junto com
as pontas de cigarro.
Uma gargalhada feminina, clara como champanhe
derramando em cristal, ressoou atrás dele. Voltou-se,
esperançoso, aguardando a chegada calorosa da Mãe
Mariana, para o preenchimento do vazio em que se
encontrava.
Não havia ninguém. Apenas um grupo de passageiros
em alegre despedida. Ninguém que lhe dissesse
respeito. Ninguém que preenchesse aquilo que pela
primeira vez ele sentia. O que era aquele sentimento?
Solidão? Para ele, a existência de Mãe Mariana nunca
permitira que ele percebesse a própria solidão. Talvez
solidão fosse mesmo aquela nova sensação. Talvez
fosse...
"Atenção, passageiros do vôo 3502 com destino a Belo
Horizonte, Brasília e Manaus: queiram dirigir-se ao
portão 9 para embarque e boa viagem..."
Caramujo pegou sua bagagem de mão, levantou-se e
disse para si mesmo, olhando para um dos alto-falantes:
"Para onde eu vou? Para o inferno? Então, adeus..."
Foi o avião, foi uma refeição com gosto de plástico, foi
uma escala, foi Brasília.
Foi um táxi, foi aquela arquitetura de concreto, asfalto
e desolação, foi o calor sem oxigênio do Planalto
Central.
Foi um ônibus, foi a secura vermelha do cerrado, foi o
pó que emplastra o cabelo, seca a boca, resseca a alma.
Seco, tudo seco, tudo vazio do modo que Caramujo se
sentia antes de ser trazido àquele destino. Seco, vazio,
árvores retorcidas e esturricadas que mal faziam
sombra. Parecia que o Sol estava ao mesmo tempo no
nascente, no poente, no Norte e no Sul.
Mesmo sacolejando, mesmo com sede, mesmo com pó,
mesmo com todo aquele nada em que sua vida tinha se
transformado, Caramujo adormeceu.
Capítulo6
Rapaz, acorde. Chegamos.
Hein? Chegamos onde?
Não sei - respondeu o motorista. - Acho que a lugar
nenhum. Mas o bilhete que me entregaram na última
parada mandava que você desembarcasse aqui.
Caramujo não discutiu. Sua vida estava sendo
comandada por bilhetinhos. Desceu e aceitou a ajuda do
motorista para desembarcar a pequena bagagem.
O barulho do ônibus afastou-se até desaparecer, mas a
nuvem de poeira vermelha continuou suspensa no ar.
Em torno, com a visão meio encoberta pela poeira,
Caramujo via uma paisagem única, diferente de tudo o
que conhecia. Pequenas árvores de troncos retorcidos e
recurvados, de folhas grossas, espalhavam-se esparsas
sobre uma vegetação rala e rasteira. Alvoroços de
pássaros coloridos sacudiam as copas. Tudo seco e
escaldante, manchas de verde pintalgavam moitas e
arbustos descorados, como se a natureza só fornecesse
água para alguns privilegiados. Ao longe, divisava-se
uma mata toda verde, mais extensa, de árvores não
muito altas. Além, por todos os lados, áreas imensas
sem árvores, cobertas pela mesma vegetação rala e
seca, exibiam o gado que ali pastava livre, como
inúmeros pontinhos escuros na desolação amarelada.
Uma rajada de vento quente levantou mais poeira e
entrou-lhe nos olhos.
O joelho quase já não doía. O pontapé não pegara tão
em cheio quanto o agressor gostaria. E o garoto ficou
ali, de pé, com suas bagagens cobrindo-se de poeira, à
espera.
À espera de quê? Será que ele tinha sido abandonado
naquele semideserto para morrer de sede antes de
morrer de fome? Que lugar seria aquele? Que vida seria
a sua, agora?
Mas medo ele não teve. Nem chorou. Ainda que uma
lágrima pudesse ser uma bênção líquida no meio
daquela secura, daquela desolação.
Um vento quente mantinha no ar a poeira que o ônibus
levantara ao perder-se na distância, e um zumbido
incessante parecia envolver o garoto.
Caramujo procurou descobrir de onde vinha aquele
zumbido.
A poucos metros, viu uma caveira de boi, com seus
chifres, meio enterrada no pó. A caveira zumbia.
Uma colmeia havia se instalado dentro da caveira,
fabricando o mel da morte.
O garoto sentiu-se subitamente preso em uma cela
imensa, envolvido por um zumbido torturante, sufocado
por uma poeira seca que parecia não baixar nunca.
E a poeira riu.
Bem, dizer que riu seria dizer pouco, porque a poeira
gargalhou.
O garoto olhou em volta. Aquilo não era só um deserto
infernal. Era o verdadeiro inferno, e os demônios já
tinham chegado para atormentar-lhe a vida.
Só que aquela não tinha sido uma gargalhada
demoníaca. Tinha sido a risada mais alegre, mais gos-
tosa e franca que Caramujo já tinha ouvido.
Aos poucos, a poeira começou a tomar forma, e a
sombra escura de um cavalo com sua charrete destacou-
se do pó, como se o mais fabuloso dos mágicos
resolvesse apresentar seu espetáculo àquela platéia,
lotada de vazio, poeira, urubus e carcaças ressecadas.
Mas havia também um garoto para assistir à função. E
a mágica revelou um velho. O velho do cavalo, o velho
da charrete, o velho da gargalhada.
De punhos cerrados, ele contra-atacou.
- Quem é você? O que quer? Está rindo de quê? De
mim?
A enxurrada de perguntas jorrou contra o velho como se
Caramujo quisesse construir uma barreira de palavras
afiadas e atrás dela esconder-se das ameaças que
estavam por vir.
O velho estava de pé, na boléia da charrete, segurando
as rédeas com uma das mãos e batendo com a outra na
coxa, para marcar o ritmo incessante de suas
gargalhadas.
- Ora, vejam só! Teso e tinhoso feito um garrote! E
esse olhinho roxo? Ah, invocado e brigão! Eu só queria
ver o jeito que ficou o outro que te roxeou desse jeito!
- Quem é você? - repetiu Caramujo.
- Eu sou aquele que veio para levá-lo ao seu des-
tino. É logo ali. Suba, Garrote!
De um dia para outro, Eduardo tinha passado de
Caramujo a Garrote.
Capítulo7
O "logo ali" que o velho tinha dito quando o garoto
perguntou onde ficava o Encantado era muito mais
longe do que qualquer além que ele pudesse ter
imaginado.
Por isso, enquanto o cavalinho trotava em direção à
Fazenda do Encantado, onde sabia poder encontrar
água e algumas espigas de milho para mastigar, aquela
estranha dupla tinha todo o tempo que quisesse para
aprender a se gostar. Ou a se odiar.
- Então é você, não é? - ria-se o velho. - Um garrote, o
Garrote! Olhe que não aparecia ninguém da família de
Nhá Nana aqui no Encantado desde que Nhazinha
Mariana foi pra São Paulo. E novidade, novidade e
tanto! Quem diria! Xucro e invocado feito um garrote.
Macho e brigão. Ah! Um garrote, o Garrote!
Caramujo sentia como se ele fosse um castelo e
estivesse sendo invadido por uma horda de hunos às
gargalhadas. Por que aquele velho não o deixava em
paz?
- Meu nome é Eduardo, não é Garrote. Pode me
chamar de Caramujo, se quiser.
O velho largou as rédeas e fez um ruído com os lábios:
- Ptuí! Cara-sujo? Isso não serve pra um machinho
como você. Vai ser Garrote mesmo. Pode crer: nome que
o Velho Santinho batiza nem o Canhoto consegue
mudar. Aqui no Encantado, os touros, os cavalos e as
galinhas de botar têm nome inventado e registrado pela
língua do Velho Santinho. Só não dou nome no que não
vale a pena chamar.
O garoto baixou os olhos, percebendo que não adiantava
lutar contra a teimosia daquele velho. Ele não sabia
como esconder-se de uma gargalhada. Era preciso dizer
alguma coisa, desviar a conversa daquela história de
Garrote.
E você? Quem lhe botou o apelido de Velho Santinho?
Ah, de Velho, foi o tempo. De Santinho, acho que já
nasci assim, embora meu nome, por gosto de mãe e
decisão de pai, seja Santelmo Braz Martim de Oliveira.
Nome comprido, não é? Comprido como a minha vida.
Mas eu vou viver além do Oliveira. Hei de durar até o
último sobrenome da Terra. Hei de acabar no Z e
começar tudo de novo pelo A!
Passavam ao lado de árvores que protegiam, sob sua
sombra, um tipo de capim robusto, que crescia além da
altura de um homem.
O trote do cavalinho levantava uma poeira vermelha
que fazia coçar os olhos do garoto.
- Ah! Danada de poeira, não é? Aqui é sempre
assim. Isso é o inverno no cerrado. Tudo seco e Sol
queimando a cabeça da gente. Nem no verão a chuva
adianta. E só ela dar uma estiadazinha que lá vem a
poeira de novo! Isso é o talco que Belzebu usa depois do
seu banho de enxofre. Você há de se acostumar com a
poeira do cerrado do jeito que eu já me acostumei com
os meus calos! Ah, ah!
O velho falava demais, o garoto ansiava agora pelo
silêncio que havia antes de aquele tagarela ter-se
materializado à sua frente.
- Essa poeira faz parte dos meus ossos, Garrote.
Faz parte da minha vida. E há de fazer parte da sua
também. A vida de um boiadeiro é isso: poeira e campo
aberto. Já comi desse vermelhão pastoreando zebu na
Ilha de Bananal e até contrabandeando gado na divisa
do Rio Grande. Só não conheço duas coisas na vida: o
casamento e o mar. De casamento, ninguém me fale!
Filhos eu já tenho alguns, até na Argentina.
Mas, casamento! Já pensou, viver ao lado de uma
mulher que não fecha a boca um só minuto?
A gargalhada soltou-se forte, mas logo virou sorriso e os
olhos do Velho Santinho fixaram-se à frente, enquanto
as narinas tremiam como se uma brisa marinha
subitamente invadisse o cerrado.
- Mas o mar... ah, o mar! Eu não hei de morrer
antes de ver o mar!
Voltou-se para o rapaz e perguntou:
- Você já viu o mar, não viu, Garrote?
Antes que houvesse uma resposta, continuou:
- Você devia conhecer o Rio Grande. Não o Rio
Grande de hoje, que está virando um deserto, que está
desaparecendo o pampa, que está sumindo o gado, que
agora só tem soja.
Fez uma pausa, como se pensasse em algo desprezível,
e continuou:
- Soja! Deixaram de criar comida, deixaram de
plantar comida pra plantar soja...
- Mas a soja...
- É comida? É nada! Soja é comida de cachorro lá
na América. Não é comida de gente. Comida de gente é
carne e feijão. O boi come de um lado e esterca a terra
do outro. A soja come o leite da terra e só descome a
miséria das gentes. Nada disso. Você precisava ter
conhecido o Rio Grande em que eu vivi. É isso mesmo,
já fui boiadeiro da fronteira, já fui boiadeiro de São
Borja. Já trabalhei até na fazenda do Homem, sabia?
- Do homem? Que homem?
- Pois nunca ouviu falar? O Homem de São Borja só
tem um, é feito Deus no céu e pai na terra. Getúlio
Dornelles Vargas!
O velho riu novamente, fazendo com que sua lembrança
de um passado histórico se transformasse numa
reminiscência fabulosa, divertida.
- Você é novo demais, Garrote. Do Homem você só
ouviu falar nos livros, não é? Mas eu já tenho o tempo
que é preciso pra ter servido à História que você
aprende hoje. Sou velho, não sou? Sou mais, sou eterno
como o meu nome. Eterno como o fogo-de-santelmo,
aquela ilumiúra que o demônio bafeja dos infernos e faz
sair pelas covas dos cemitérios nas noites de lua cheia!
A risada explodiu de novo e espalhou-se pelo cerrado
sem encosta ou parede onde ecoar.
- Para todo o mundo eu sou o Velho Santinho.
Santinho, o maior de todos os cavaleiros que este país já
viu, desde as barrancas do Uruguai até onde o Planalto
Goiano vai misturar vermelho com verde na beira da
Floresta Amazônica. Se falassem de vaquejada do jeito
que falam de futebol, Velho Santinho seria tão
conhecido quanto Leônidas da Silva, o Diamante Negro!
Aquela voz e aquele entusiasmo eram ingredientes
estranhos à vida do Caramujo, que agora era Garrote.
- Quem é esse Leônidas?
Dessa vez, a gargalhada do Velho Santinho foi ainda
mais aberta, mais divertida que todas as outras.
Você não sabe nada do passado, não é, Garrote? E está
com medo do seu próprio futuro, não é, menino? Você
tem muito que aprender com o Velho Santinho. Não te
ensinaram nada na escola? De que mundo você veio?
Em que ano você estava lá na escola?
Quase no fim do primeiro grau. Eu ia para o segundo
grau no ano que vem.
Segundo degrau? Aqui você não precisa de escada,
Garrote! O cerrado é todo plano. Não tem pra onde
subir nem pra onde descer!
Surpreendendo-se com a própria piada, desta vez, a
gargalhada do Velho Santinho soltou-se para estourar
os tímpanos empoeirados do cerrado goiano.
- Veja, Garrote, estamos chegando. Logo ali é o
Encantado!
O recém-chegado não riu.
Capítulo8
Pesado de frutos que o garoto jamais havia visto antes e
com um tronco que parecia ter sido torcido pelas mãos
de um gigante, um copado pequizeiro erguia-se
formando o marco de uma nova paisagem. A partir da
árvore de pequi, começava uma espécie de rua larga,
poeirenta, ladeada por uma fileira de buritis pejados de
flores amarelas e por casinhas humildes na certa
ocupadas pelo pessoal de serviço de uma casa-grande,
que se espalhava como um enorme sapo sobre a terra
vermelha.
O Sol se punha além desse cenário, ofuscando o velho e
o garoto que se aproximavam no trote macio do cavalo.
Isso tudo é o Encantado?
É só o lugar onde dorme quem não tem de passar a
noite cuidando do gado, Garrote. O Encantado é muito
mais. Todo esse tempo, o cavalinho nos arrastou por
cima do Encantado. Aqui o Sol nasce e se põe sem
alumiar qualquer outra fazenda!
O cavalo ultrapassou o pequizeiro e começou a conduzi-
los pela avenida de terra.
De cada porta, de cada janela, primeiro cabeças, depois
corpos inteiros apareciam para recepcionar o passageiro
da charrete. Na certa aquela era uma chegada mais do
que anunciada. Uma quantidade inumerável de cães
magros misturava-se por todos os lados com galinhas,
patos e até uma cabra que, com o úbere estourando de
leite, badalava monotonamente um cincerro atado ao
pescoço.
A charrete avançava contra o Sol em direção à casa.
Com os olhos cheios de pó e de luz, Garrote mal
conseguia distinguir algumas sombras na varanda.
Mas, obedecendo à marcação de uma peça de teatro, as
sombras coadjuvantes dispunham-se de modo a
destacar a sombra principal.
Vestida de negro, lá estava ela. Alta e seca,
empertigada e rígida, soberana e altiva como a abelha-
rainha daquela colmeia do inferno, coroada por uma
cabeleira branca disciplinadamente esticada e
amarrada atrás da cabeça.
Garrote lembrou-se da caveira que zumbia na desolação
do cerrado. De repente, sentiu que o estavam enfiando à
força naquela caveira de boi, dentro da colmeia, para
ser recebido pela abelha-rainha.
E a abelha-rainha só podia ser sua avó Ana. Nhá Nana,
do modo que o velho da gargalhada havia falado nela.
O Velho Santinho puxou as rédeas e deteve a charrete a
poucos metros da varanda. O garoto voltou-se para ele.
O velho não parecia com vontade de rir. Seus olhos
estavam fixos na cena à frente da varanda.
Garrote seguiu-lhe o olhar. O Sol estava por trás da
cena e ele só percebia silhuetas imóveis em cima e à
frente da varanda.
Embaixo, dentro de um semicírculo formado por um
grupo de pessoas sem rosto, sem gestos e sem voz,
estavam duas silhuetas. Uma mulher, segurando
carinhosamente o braço de um menino. Pequeno, bem
pequeno, mais pela subalimentação do que pela pouca
idade.
Uma figurinha montada em uma égua castanha, todo
vestido em couro, falou. Voz submissa, mas afiada como
um alfanje:
- Esse é o Tiãozinho, Nhá Nana. E o filho da Barbina.
Foi ele que roubou o doce de abóbora da despensa...
A mulher chamada Barbina tremia. O menino
Tiãozinho choramingava um choro mudo, cheio de água.
- Perdão, Nhá Nana - balbuciou a mãe. - O Tião-
zinho é danado. Mas eu posso com ele. Juro que ele
nunca mais...
A voz da sombra principal despencou da varanda,
interrompendo e intimidando:
- Você jura? Então está jurado. E o que vamos fazer
com ele, mulher?
Os lábios de Barbina tremiam, prejudicando a dicção:
Eu... ele... a senhora pode dar o castigo agora... juro que
ele...
Eu? Dar o castigo? Eu não sou a mãe dele, mulher. Cria
nova recebe educação é da mãe. Adulto que rouba é
problema meu. Cria que rouba é problema da mãe. E
você quem deve decidir qual o castigo da sua cria.
A pobre mulher olhou para o filho, apertou um pouco
mais o bracinho magro e voltou os olhos para a sombra
principal:
É, Nhá Nana... pode deixar que eu... ele não vai mais...
Carne-Seca! - cortou a sombra, dirigindo-se ao
cavaleiro. - Ajude a mulher a educar a própria cria!
Empreste seu chicote para ela!
Garrote olhou com mais atenção para a figurinha
montada que falara antes e a quem Nhã Nana agora
chamava de Carne-Seca. Era miúdo, com o corpo todo
vestido de couro. Apenas as mãos pequenas e a cara
ficavam de fora daquela armadura. Seu rosto era
exatamente a sua caveira, apenas com dois olhos
pequenos e falsos como os de uma boneca, e uma pele
fina como um velho pergaminho a cobrir-lhe os ossos.
Era tudo ressecado e repuxado, dando a impressão de
que aquela figura sinistra estava sempre a rir, a rir de
alguém, a rir de todos que, se escapassem da rigidez de
Nhá Nana, cairiam no sadismo de Carne-Seca, o ca-
pataz do Encantado. Do jeito que tinha caído o menino
Tiãozinho, o pobre ladrão de doce de abóbora.
A autoridade do Carne-Seca estava no poder que lhe
conferia Nhá Nana, e no chicote que nunca lhe saía das
mãos: uma tira grossa de uns três palmos de couro,
atada a uma tíbia de porco. Mansamente, do alto da
égua, estendeu a mão, oferecendo o chicote à mulher,
como se lhe fizesse uma gentileza.
Barbina tremeu do modo que se arrepiaria se uma
lufada de vento gelado tivesse subitamente perturbado
a secura do poente no cerrado.
Pegou o chicote como se fosse um ferro em brasa.
Hesitante, olhou para a varanda.
- Estamos esperando, mulher - a voz de Nhá Nana
estava carregada de uma cruel suavidade. - Queremos
ver se você sabe educar a sua cria...
O coração do garoto Garrote acelerou e ele levantou-se
na charrete. No meio do círculo, com as lágrimas a
escorrer fartas pelo rosto, a mãe começou a chicotear o
próprio filho, à frente de todos.
Lept, lept...
A voz da sombra principal não parecia satisfeita:
- Mais forte, mulher! Lept, lept...
O molequinho franzino não gritava nem se debatia,
como se compreendesse que não era a mãe quem o
torturava. A cada chicotada, correspondia apenas um
gemido, um gemido doído, baixo, que não vinha da
garganta de Tiãozinho, mas do desespero da mãe, que
chicoteava a própria alma.
Mais forte! Ou prefere que Carne-Seca a ajude a educar
direitinho a sua cria?
Upa! - fez o Velho Santinho, estalando as rédeas sobre o
dorso do cavalinho, que retomou a marcha na direção
da varanda.
A charrete chegou ao lado da mulher, e o Velho
Santinho estendeu o braço, tomando-lhe o chicote e
jogando-o de volta para Carne-Seca. Barbina abraçou o
filho e os dois desapareceram silenciosamente no meio
da pequena multidão.
O velho deteve o cavalinho e pôs-se de pé sobre a
charrete. Ria alto, como se aquela brutalidade nem
tivesse ocorrido, e exibia o garoto que trouxera através
do cerrado. Apresentava o rapaz e parecia um mascate
apregoando sua mercadoria:
- Povo do Encantado, aqui está o Garrote, filho de
Nhazinha Mariana. Parece até que a própria Nhazinha
Mariana está de volta para o Encantado, não é? Hein?
Ninguém vai tirar o chapéu para o Garrote? Hein?
A ordem era perfeitamente dispensável. Nenhum dos
homens tinha o chapéu sobre a cabeça, mas não era
pelo Garrote. Era pela presença da sombra principal. O
único que continuava com o chapéu na cabeça era o
Velho Santinho. Ao Garrote, pareceu que só o velho
tinha esse direito. Parecia ter mais. Parecia ter o direito
de interromper uma sessão de tortura ordenada pela
sombra principal do Encantado.
- Nhá Nana, aqui está o seu neto. Aqui está o
Garrote!
O garoto desceu da charrete, confuso com a cena brutal
que presenciara, aturdido com tantas mudanças, tonto
de tantas palavras, e agora também sentindo uma nova
emoção: frente àquela sombra, ofuscado pelo Sol,
Garrote sentiu medo.
A sombra falava e, naquele momento, nenhum outro
som se ouviu no cerrado.
- Vem cá.
A ordem seca como o pó ressoou por todos os lados: vem
cá... vem cá... vem cá...
O rapaz, sacudindo a poeira das roupas, caminhou até a
sombra.
Garrote... - murmurou a sombra depois de uma pausa,
avaliando o peso do novo apelido do seu neto, que ela
nunca conhecera. - Garrote...
É claro que fui eu que batizei assim, Nhá Nana -riu-se o
Velho Santinho.
A voz da sombra endureceu-se.
- Pois se é Garrote, vai ser Garrote mesmo. Ouçam
todos: este é o Garrote. É o meu neto. Não importa de
quem ele seja filho. Não quero mais ouvir o nome de
Mariana no Encantado. E isso serve também para você,
Santinho!
Ao dizer isso, o rosto da sombra virou-se para o velho.
Garrote, abaixo da varanda, pôde ver o perfil de cobre
da avó recortado contra o céu que, àquela hora, tingia-
se da cor da terra do cerrado.
Capítulo9
Não viu mais a avó naquela noite. Foi levado para
dentro da casa-grande por uma cabocla magra, vestida
com um tecido de algodão branco imaculado.
Logo depois da porta muito alta, por onde passaria um
gigante sem abaixar-se, havia uma sala ampla, na
frente ocupada por sofás e poltronas de vime e ao fundo
por uma mesa comprida onde se sentariam vinte
pessoas. Atrás da mesa, uma vasta janela envidraçada
revelava a amplidão do cerrado, já mergulhando na
escuridão. Entre os dois espaços, o que sobrava do chão
de tábuas caprichosamente enceradas daria para fazer
um baile. Só que teria de ser com música ao vivo, pois o
rapaz notou que não havia energia elétrica. A casa
inteira estava vagamente iluminada por vários
lampiões a querosene, espalhados por todos os lados.
O ar era tão pesado que ninguém poderia imaginar uma
banda ali.
"Só se for para tocar música fúnebre...", pensou o
Garoto.
No meio da sala, à esquerda, outra porta grande
deveria dar para a cozinha, mas a moça guiou-o para a
porta da direita, que se abria para um corredor, ladeado
de mais portas.
A moça abriu uma delas e estirou o braço com um
lampião, iluminando o interior. Era um quarto amplo,
no qual poderiam dormir várias pessoas.
- Entre, Nhozinho Garrote. Este é o seu quarto.
Acho que primeiro o senhor vai querer tirar a poeira
dos ossos, não é? O banheiro fica ao lado, aquela porta
ali. E água fria, viu? Não é feito água quente da cidade.
Mas... com esse calor... não é? Até que é bom, não é? Se
quiser, posso preparar um banho de bacia, com água
esquentada no fogão...
- Pode deixar. Eu tomo frio mesmo. A moça pareceu
aliviada:
- Os homens já vão trazer a sua bagagem. Logo eu
trago o seu jantar. Nhá Nana disse que é melhor o
senhor comer no quarto, hoje.
Na amplidão do quarto, uma mesinha já estava posta.
Toalha, prato, talheres, copo e uma moringa. Um
vasinho de porcelana, com uma flor amarela, coroava a
arrumação.
- Se precisar de alguma coisa, é só chamar pela
Dita. Meu nome é Madalena, mas pode me chamar de
Dita.
O olhar de Garrote pareceu de espanto.
Achou estranho? Mas não ligue, não. Nhá Nana gosta
assim. A cozinheira é sempre Dita, a arrumadeira é
sempre Antônia, a copeira é sempre Maria. Não
importa o nome que elas tenham recebido quando
nasceram.
Mas qual é o nome delas de verdade? Se vou ficar aqui,
preciso saber.
O nome da Antônia é Amélia e o da Maria é Jurema.
Mas o Nhozinho não precisa saber disso, não. Pra todo
mundo, elas são Antônia e Maria, assim como eu sou
Dita, porque é assim que Nhá Nana quer.
Garrote sacudiu a cabeça:
- Quer dizer que minha avó é como o Velho San-
tinho? Gosta de mudar o nome das pessoas?
Dita sorriu.
- Não. Nhá Nana só manda na vida e na morte da
gente. No nome quem manda mesmo é o Velho
Santinho.
Depois do jantar, estranhando a cama, começava a
primeira noite da nova vida do garoto. O que ela lhe
reservava?
A noite no Encantado pareceu-lhe muito mais
barulhenta do que qualquer noite na cidade. Os grilos e
os sapos, junto com os latidos incessantes daquela
matilha de cães vagabundos que rondavam a fazenda,
eram muito mais irritantes do que as buzinas e
brecadas da cidade grande, às quais Garrote já estava
acostumado.
"Não sou Garrote... Sou Caramujo...", pensava o rapaz,
estendido na cama. "Sou Caramujo, ninguém vai mudar
o que eu sou. Eu sou eu, eu sou eu, sou Caramujo..."
Onde estava ele? Que fazenda era aquela? Quem era
aquela velha que forçava uma mulher a chicotear o
próprio filho? Que velha era aquela que fazia açoitar
uma criança faminta que tinha roubado apenas um
pouco de doce? E por que, por que o nome de Mariana,
de sua Mãe Mariana, não mais podia ser pronunciado
no Encantado? Sem a mãe, Mariana, e sem o pai, ele
tinha ficado só. Sentia até saudade da escola, dos
colegas, que ele não tentara transformar em amigos.
A solidão doera no seu peito. Mas, agora, naquela
fazenda, naquela colmeia do inferno comandada por
cruel abelha-rainha, ele começou a sentir que poderia
haver algo ainda pior do que a solidão.
"O que vai ser de mim nessa fazenda? Eu tenho de dar
um jeito de fugir daqui..."
Mas como? Pegar um dos cavalos e sair cavalgando na
direção de onde? Um pouco de dinheiro para um ônibus
ele tinha, mas como pagar uma passagem de avião?
Como viajar de avião sem a autorização de algum
adulto? E, se conseguisse voltar para São Paulo, para
onde iria? Para a casa de tia Alzira, que tinha deixado
tão claro que não queria saber dele? Para onde ir?
"Como se faz para fugir do inferno?"
Pela janela aberta, a noite de lua crescente enchia o
quarto de estrelas. Parecia que eram elas que
cricrilavam em lugar dos grilos, que coaxavam em lugar
dos sapos, que uivavam em lugar dos cães.
"Sou Caramujo!", balbuciou o garoto para os grilos, para
os sapos, para os cães e para as estrelas antes de
adormecer.
Capítulo10
Lá estava o Velho Santinho, iluminado pelas primeiras
luzes da manhã que ainda não nascera por completo.
A vida no Encantado começava de madrugada, e
Garrote logo percebeu que não era possível fugir àquela
regra, assim como a todas as outras regras daquela
fazenda, implantadas pela natureza, pela tradição, mas
principalmente pela vontade férrea de Nhá Nana. A
prestimosa Dita-Madalena já o havia acordado e
oferecido uma farta refeição da manhã, que o rapaz
pouco provou.
- O que me diz, Garrote? - ria-se o velho, meio sentado
na sela de um alazão recém-escovado. - Vai deixar que o
Sol te pegue de cueca? A essa hora todo o povo do
Encantado já está de chapéu na cabeça e traseiro na
sela, garoto. Venha. Nhá Nana mandou te levar pra
conhecer a fazenda. Trouxe aqui a sua montaria. Não
tenha medo, é um cavalinho maneiro, que não derruba
ninguém.
Velho Santinho segurava pela rédea um cavalo
pequeno, fosco, de cor e idade indefinidas. Garrote
lembrou-se da mãe, que levara para a cidade a paixão
por cavalos adquirida no Encantado. Nhazinha
Mariana. Mariana. Mãe Mariana. Mãe. Morta agora,
mas em vida transmitindo ao filho a paixão pelos
cavalos, levando-o ainda pequeno para aprender a
montar, a não ter medo, a amar os cavalos. Ora, aquele
Garrote não era para cavalos pequenos, velhos, foscos e
sem cor.
Apeie.
O que disse? - espantou-se o Velho Santinho.
Por favor, Velho Santinho. Apeie.
O velho desceu lentamente do cavalo. Com um salto,
Garrote agarrou as rédeas e cavalgou o alazão. Meteu
os calcanhares dos tênis na barriga do cavalo, puxando
ao mesmo tempo as rédeas. O alazão empinou e pateou
o ar, relinchando.
- Cuidado, Garrote! Tá maluco? Esse bicho te der-
ruba!
Garrote fincou novamente os calcanhares no cavalo,
manobrou habilmente as rédeas, fez o alazão voltear e
deu um galope curto em direção ao cerrado.
- Ei! Aonde vai, Garrote?
O garoto fez uma curva e galopou de volta, travando as
rédeas quase em cima do velho.
- Velho Santinho, a minha montaria é esta. Se
quiser, monte o outro.
O velho riu tão alto que teria acordado qualquer um, se
ainda houvesse algum preguiçoso no Encantado.
- Quem diria! O Garrote sabe montar feito gente
grande! Parece até a Nhazi...
Calou-se, como se a proibição de citar o nome da mãe do
Garrote fosse uma mordaça.
- Pareço quem, Velho Santinho?
O velho fez que não ouviu a pergunta. Ainda rindo,
abraçou-se ao pescoço do cavalinho fosco.
- Meu coitado! Te enjeitaram, cavalinho! Pois vai
ser sua a honra de conduzir o maior cavaleiro do
mundo!
Montou e apontou para a frente.
- Vamos lá, Garrote. Tenho muito pra mostrar, e
você tem muito pra aprender. Venha!
Lá se foram os dois. Se Garrote desse uma olhada por
sobre o ombro para a casa-grande, veria um vulto muito
atento por trás das cortinas de uma janela.
Capítulo11
- Por que você não quis falar o nome de minha mãe?
Os dois cavaleiros já estavam em plena manhã,
levantando a poeira da imensidão do Encantado.
A vegetação, às vezes verde e exuberante, às vezes
pardacenta e seca, repetia-se o tempo todo. Numa área
extensa, a floresta erguia-se mais alta e toda verde.
- Isso é o Cerradão, Garrote. Aí tem mais água e a
floresta cresce que é uma beleza!
Por todos os lados, áreas desmatadas sucediam-se, com
incontáveis cabeças de gado pastando as gramíneas
gordas, um capim tão delicioso para os bois quanto uma
torta de morangos para o garoto.
Outras áreas apresentavam extensões degradadas, com
um aspecto sujo.
- Veja, Garrote. Nesta parte nem mais mato cresce.
Não serve nem pra pastagem. É terra esgotada. É
voçoroca. A erosão é pior que praga! O pessoal tem de
levar o gado pra longe e...
Garrote viu o peão preparar um cigarro de palha com
todo o carinho. Enrolar cuidadosamente e lamber a
borda da palha com uma língua sarrenta de fumo.
O cigarro foi-lhe estendido em silêncio. Um silêncio
carregado pela expectativa da diversão.
Era uma prova? Garrote olhou para o Velho Santinho,
que desviou a vista, subitamente preocupado com uma
nuvem inexistente.
Uma prova! Os boiadeiros queriam descobrir se um
rapaz com ares de garoto mimado de cidade tinha a
coragem de enfrentar um fumo forte daqueles. E se
levaria aos lábios uma palha lambida pela língua de um
peão desdentado.
Uma prova? Pois que fosse. O garoto não haveria de dar
parte de melindroso. Pegou o cigarro, aceitou a chama
de um fósforo estendida por duas mãos em concha e
sorveu longamente a fumaça. Foi como se um punhado
de farelos de vidro lhe escorresse traqueia abaixo, indo
incendiar-lhe os pulmões. Tudo voltou explodindo,
exigindo um acesso de tosse. Mas Garrote cerrou os
dentes, e tudo que se permitiu foi uma grossa lágrima
que ficou parada na beira da pálpebra, a brilhar.
- Você não pode desobedecer uma ordem, mas pôde
interromper o castigo brutal que Nhá Nana tinha
ordenado. Por que essa diferença?
O Velho Santinho balançou a cabeça:
- Garrote, Garrote, você precisa aprender o jeito
que é o mundo do Encantado. É um mundo com as suas
regras, com a sua organização. Um mundo que todos
nós já aprendemos a entender...
Não. Garrote não podia entender aquele mundo. Mas
largou as rédeas do cavalinho e os dois retomaram a
marcha. Agora mais lenta, mais ressabiada, mais
encabulada até.
A paisagem sucedia-se quase sempre plana como um
disco, e os cavalos só vez por outra subiam elevações
leves, quase imperceptíveis. Volta e meia, o velho fazia
uma parada para que os dois bebessem água dos cantis,
sem desmontar, enquanto suas montarias
aproveitavam para enfiar as cabeças na gramínea, para
um rápido lanchinho.
- Você é um bom menino, Garrote. - Velho Santinho
retomou a conversa, algum tempo depois: - Você está
roído por dentro sem saber por que a sua avó renegou a
própria filha, não é?
Garrote apertou os lábios e não respondeu.
- Nhazinha Mariana! - o velho pronunciou
lentamente cada sílaba. - Eu não tenho medo de dizer o
nome dela. Eu só tenho prazer em dizer o nome dela.
Foi uma... uma filha para mim. Foi uma mãezinha para
o povo do Encantado. Eu a ajudei a montar o seu
primeiro cavalinho. Ah, era um coitadinho como este
aqui. Eu me lembro...
Garrote olhava, tentando compreender. O velho riu da
seriedade do garoto.
- Com quem você aprendeu a montar do jeito que
você monta, Garrote? Com a sua mãe? Então foi com o
Velho Santinho que você aprendeu, porque tudo que ela
sabia fui eu que ensinei!
Suspirou. Pensou um pouco, calado, procurando
palavras para dizer o que tinha de ser dito, e continuou:
- Acho que você nunca vai saber direito por que
Nhá Nana quer esquecer a filha. Nunca ninguém
saberá. Um dia, a menina... Ah, que mocinha linda que
ela estava! Apaixonou-se pelo seu pai, um moço de
estudo, da cidade, e foi-se com ele. Nunca mais ouvimos
falar dela. No começo chegavam cartas, que Nhá Nana
mandava queimar sem abrir...
Queimar cartas, proibir, mandar a própria mãe
chicotear o filhinho, na frente de todo o mundo! Que
espécie de mulher é Nhá Nana, Velho Santinho?
Nhá Nana não é uma espécie de mulher, Garrote. Nhá
Nana é o chefe!
Capítulo12
Um grupo de boiadeiros descansava procurando as
raras sombras das árvores retorcidas do cerrado.
- Vamos falar com aquela gente, Garrote. Eles vão
ficar contentes de conhecer o neto de Nhá Nana.
Garrote segurou o braço do velho.
- Não, Velho Santinho. Não diga que eu sou neto
dela. Diga apenas que sou um sobrinho seu que veio
visitá-lo. Quero falar com eles sem a sombra da velha a
nos perseguir.
- Seja do seu jeito, Garrote. Ah, seja do seu jeito...
Quando os dois chegaram junto do grupo, um naco de
fumo de rolo passava de mão em mão entre os homens.
Cada boiadeiro cortava um pedacinho, alisava uma
tirinha de palha de milho com a lâmina de um canivete,
picava o fumo bem miudinho, espalhava na palha,
enrolava e selava com a língua como se fosse um
envelope.
- Eh, Velho Santinho! Chegou bem na hora da
paradinha pra um palheiro!
O Velho Santinho sempre chega na hora, pessoal! - riu-
se o velho, apeando do cavalo.
E onde foi arranjar essa montaria? - troçou um deles. -
Ou o Velho Santinho não agüenta mais cavalo novo?
O velho cavaleiro rebateu a brincadeira, fingindo
seriedade, mas com um ar de troça:
- Está pra nascer o cavalo que possa comigo. Do
jeito que não botou barba o homem que me enfrentará!
Todos os boiadeiros riram, exibindo um verdadeiro
desfile de dentes solitários e cacos amarelecidos. Havia
muita simpatia pelo velho, e logo a dupla viajante
estava entre os homens, que riam de tudo o que o Velho
Santinho dizia.
Emprestei o alazão aqui para o meu sobrinho. Quero
ver se ele se acostuma com cavalo de homem.
Seu sobrinho? Ouvi dizer que o senhor tem muitos
filhos espalhados pelo mundo, mas sobrinho eu não
sabia de nenhum. Ainda mais um garotão de cidade
como esse aí! - riu-se um dos peões.
Pois agora está sabendo - respondeu rápido o velho,
baixando os olhos para esconder a mentira.
Então puxe uma palhinha com a gente, Velho Santinho.
E o garoto aí, aceita um palheiro?
Garrote viu o peão preparar um cigarro de palha com
todo o carinho. Enrolar cuidadosamente e lamber a
borda da palha com uma língua sarrenta de fumo.
O cigarro foi-lhe estendido em silêncio. Um silêncio
carregado pela expectativa da diversão.
Era uma prova? Garrote olhou para o Velho Santinho,
que desviou a vista, subitamente preocupado com uma
nuvem inexistente.
Uma prova! Os boiadeiros queriam descobrir se um
rapaz com ares de garoto mimado de cidade tinha a
coragem de enfrentar um fumo forte daqueles. E se
levaria aos lábios uma palha lambida pela língua de um
peão desdentado.
Uma prova? Pois que fosse. O garoto não haveria de dar
parte de melindroso. Pegou o cigarro, aceitou a chama
de um fósforo estendida por duas mãos em concha e
sorveu longamente a fumaça. Foi como se um punhado
de farelos de vidro lhe escorresse traqueia abaixo, indo
incendiar-lhe os pulmões. Tudo voltou explodindo,
exigindo um acesso de tosse. Mas Garrote cerrou os
dentes, e tudo que se permitiu foi uma grossa lágrima
que ficou parada na beira da pálpebra, a brilhar.
Ninguém riu, porque a expressão do rapaz não
convidava à gozação.
- Já mostrou seu sobrinho pra Nhá Nana? -
perguntou um boiadeiro quase tão baixote quanto um
menino.
Lutando contra o engasgo, Garrote não perdeu a deixa:
- Nhá Nana? Quem é Nhá Nana?
Por um segundo, ninguém respondeu, pois para eles
aquela era uma pergunta sem cabimento. Não lhes
passava pela cabeça a existência de alguém que nunca
tivesse ouvido falar em Nhá Nana. Quem conseguiu
inspirar-se primeiro para uma resposta foi um
boiadeiro que usava óculos, acessório estranho para um
peão.
- Nhá Nana? Eh, garoto, você deve ter vindo de
muito longe. Nhá Nana é Nhá Nana. É tudo isso, é
muito mais. É essa terra onde se pisa, é a farinha que
se come, é esse gado que se engorda. É tudo. É a nossa
vida. E também há de ser a sua, se você ficar por aqui.
Garrote insistiu:
- Mas de que jeito é ela? Ela é má? Ela é boa?
O boiadeiro, acocorado, com a palha entre os lábios,
pegou um punhado de terra e foi deixando que o pó
vermelho escorresse lentamente por entre os dedos.
- Nhá Nana é igual a esta terra. É boa quando ali-
menta uma roça de mandioca que a família da gente vai
comer. É boa quando deixa o capim fresco crescer pra
engordar o gado. Mas é também ruim quando entra pelo
nosso peito soprada pelo vento. É ruim quando esconde
a jararaca pronta pra matar...
O boiadeiro baixinho deu uma risada silenciosa. Boca
aberta, poucos dentes e nenhum som. No fim da risada
muda, comentou:
- Depende do jeito que se olha...
- Eu nasci e me criei aqui, garoto - continuou o de
óculos. - O vento já soprou um bom pedaço do En-
cantado pra dentro do meu pulmão, e eu já escarrei
outro tanto. Mas nesse tempo todo eu não precisei
entender o que é essa fazenda, ou quem é Nhá Nana.
Isso tudo é a minha vida, e eu tenho de vivê-la do jeito
que ela é.
Garrote, fazendo-se de distraído, soltou outra
provocação:
- Então Nhá Nana é como uma mãe?
O boiadeiro levantou subitamente a cabeça e olhou
fixamente para o rapaz, parecendo ter ouvido uma
heresia. Através das lentes grossas que mais pareciam
fundo de garrafa quebrada, seus olhos pareciam
surpresos.
- Como uma mãe? Não. Como uma mãe, não. Nhá
Nana é Nhá Nana. Nada tem a ver com mãe.
O baixote, com uma alegria desdentada, mudou o rumo
da conversa:
- Eh, Velho Santinho. Sabe por que a gente deu
essa parada?
- Pra puxar um palheiro?
Também. Mas eu disse aqui pra eles que tinha uma
surpresa.
É mesmo - ajudou o boiadeiro míope. - E quando é que a
gente vai conhecer essa surpresa?
- Agorinha mesmo. Vejam só.
O baixinho foi até um dos cavalos e abriu um embornal.
Com cuidado, tirou lá de dentro a tal surpresa. Era um
rádio. Um radinho de pilha comum, desses bem baratos.
- Fui buscar ontem mesmo, na loja do Nhonofre, lá
na vila. Ele disse que eu posso pagar mês que vem. Não
é uma beleza? As crianças vão adorar, lá em casa! E a
mulher, então, nem se fala!
Lentamente, como se manipulasse uma bandeja de
cristais, volteou-se e suspendeu o radinho, exibindo-o
com orgulho. Seu dedo destreinado lidou um pouco com
os controles e logo o grupo todo sorria ouvindo os
acordes de uma música sertaneja, uma letra triste, que
falava de um boiadeiro abandonado pela mulher
amada.
... eeume casei com ela, na lei, na religião...
Para aquele grupo, porém, o som do radinho era uma
novidade alegre, e eles riram feito crianças em um circo.
- Eh, eh! - comemorou um deles. - Isso merece mais
que um palheiro!
Levantou-se, abriu um alforje pendurado ao lado da
sela e tirou de lá uma garrafa. Arrancou a rolha e
serviu-se de um gole farto, que fez subir e descer três
vezes um pomo-de-adão muito grande para aquele
pescoço magro.
- Eeeh! - brincou o baixinho, depositando o rádio
sobre uma pedra, ainda ligado. - Faça rodar a cachaça,
que a gente também é filho de Deus!
... e a mulher que eu tanto amava, com ardor e emoção...
A garrafa passou de mão em mão até voltar para o
boiadeiro que a oferecera. O homem estendeu-a na
direção do Garrote:
- É a sua vez, sobrinho do velho. Sirva-se. Velho
Santinho estivera calado o tempo todo.
Coisa difícil de acontecer. Olhou para o falso sobrinho e
riu sua gargalhada:
- Ah, Garrote! Será que já está teso pra mandar
uma lambada dessa pela goela?
O garoto ficou vermelho. A fumaça do fumo de rolo
ainda lhe queimava os pulmões, mas ele não haveria de
arrepiar, do mesmo modo que não arrepiara há pouco.
Levou o gargalo aos lábios e jogou a cabeça para trás,
empinando a garrafa como uma corneta. Mas, com a
língua, arrolhou o gargalo e fingiu que bebia.
... e a marvada me enganava justo com o meu irmão!
Devolveu a garrafa com um fingido ah de satisfação, e
passou o braço enxugando a boca, como se tomar
cachaça fosse para ele um costume corriqueiro.
- Seu sobrinho vai longe, Velho Santinho - riu-se o
boiadeiro de óculos, retomando a garrafa.
O velho riu, balançando a cabeça:
Vai longe? Pra onde é que ele vai? Virar homem? Quer
dizer que pra virar homem precisa atochar o pulmão de
fumaça e cair de bêbado pelas estradas?
Modo de dizer, Velho Santinho... - desculpou-se o peão. -
Ah, modo de dizer...
O velho e o menino já estavam de novo montados
quando uma nuvem de poeira trouxe outro cavaleiro
para unir-se ao grupo. Era um peão que Garrote vira na
noite anterior, em frente à casa-grande do Encantado.
- Bom-dia, Nhozinho Garrote - cumprimentou o
peão, tirando o chapéu.
O boiadeiro baixinho estranhou toda aquela cerimônia
com o sobrinho do velho:
- Nhozinho?! Esse sobrinho seu está merecendo
todo esse respeito, Velho Santinho?
O boiadeiro recém-chegado arregalou os olhos:
- Sobrinho do velho? E nada. Esse é o menino
Garrote, o neto de Nhá Nana.
O sangue subiu à cabeça do baixinho. Transfigurado,
correu para o cavalo do Velho Santinho, agarrando-lhe
as rédeas:
- Que brincadeira é essa, velho? Está mangando
com a gente? Fazendo a gente falar, pra depois tudo ser
soprado no ouvido de Nhá Nana?
... à nossa mamãe querida tenho de pedir perdão...
Quem respondeu foi Garrote, lá do alto do alazão:
Ninguém está brincando com ninguém. Foi minha a
idéia de me passar por sobrinho de quem eu não sou. O
Velho Santinho não tem nada com isso. E ninguém vai
falar nada pra Nhá Nana.
Mas, Nhozinho - protestou o de óculos -, o senhor é neto
dela!
Garrote fez o alazão girar, impaciente.
- Eu não sou senhor. E não sou neto de ninguém.
Não sou nem mais filho de ninguém. Não tenho nada
com Nhá Nana, nem com o Encantado, nem com vocês.
Eu sou eu e não tenho nada com nada, nem com
ninguém!
Saiu a galope. O Velho Santinho olhou sério para os
boiadeiros, balançou a cabeça e tocou o cavalinho na
direção do garoto.
... pois sem nem pensar na vida, garrei firme do facão, e
cravei no peito dele bem fundo no coração!
Atrás, ficou o grupo surpreso e mudo, sem saber o que
pensar. A modinha se encerrava com caprichados
acordes de viola, enquanto a dupla cantora repetia o
estribilho.
...e cravei no peito dele bem fundo no coração!
Capítulo13
Galoparam em silêncio por um bom tempo. Mas logo o
velho guia retomou a tagarelice como se tivesse
esquecido a ousadia do rapaz ao encerrar a discussão
com os boiadeiros. Velho Santinho liderava a marcha e
fazia Garrote conhecer um pouco mais da fazenda. A
cada novo córrego, a cada nova pastagem, a cada grupo
de habitações humildes dos agregados, Garrote era
apresentado pela língua do velho, mas as imagens
falavam por si sós.
Na beira de uma área de cerradão, um alvoroço chamou
a atenção do Garrote e deu para o garoto ver de relance
um grupo de porcos grandes, peludos, correndo entre as
árvores retorcidas e raramente reve-lando-se no meio
do capim muito alto.
- São os queixadas, Garrote. Eta, porções brabos! Mal
dá pra ver no meio do capim-flecha. Estão correndo pra
água. Isso do Chapadão é molhado de rio que não acaba
mais! Olha lá, naquele meio. Veja como a mata fica
mais bonita. Aquilo é um brejo só! Se duvidar, um
desses daí vai acabar no bucho de uma jibóia!
Mais adiante, Garrote avistou um grupo de peões
cortando uma cerca de arame, derrubando os mourões e
tangendo uma manada de cavalos para dentro de um
viçoso milharal.
Nhá Nana acabou de comprar essa terra, Garrote -
explicou o Velho Santinho. - Olha o Encantado
crescendo!
Ela quer comprar todas as terras do mundo? -
perguntou o rapaz, com ácido na voz.
Não - riu-se o velho. - Ela só quer comprar as terras do
vizinho! Ah, ah! E sempre vai ter alguma terra de
vizinho pra comprar, não é? Ah!
De repente, o alazão mancou e, mesmo sem olhar, os
dois já sabiam que o cavalo havia perdido uma
ferradura.
- Ora, veja - riu-se o velho. - A sua cavalgadura
perdeu o tamanco. Vamos até à casa do Cipriano, que é
logo ali. Você precisa ver o jeito com que ele sabe cuidar
das vacas de leite! Parece que são filhas dele, de tanto
mimo! Ele deve estar no trabalho, mas lá tem tudo o
que eu preciso pra consertar o seu alazão. Monte no
meu cavalo que eu vou a pé, levando o seu pela rédea.
- Não, Velho Santinho. Eu levo o cavalo e vou a pé.
- Então vamos a pé os dois. Ah, você conhece aquela
história do velho e do menino que iam levando um
burro pra vender na feira? Pra que o burro não
chegasse cansado e perdesse preço, os dois foram a pé,
levando o burro pela rédea. Daí passou um homem que
veio logo palpitando e dizendo...
A língua solta do velho surpreendeu o rapaz ao ouvir
que uma fábula criada há mais de dois mil anos
estivesse impregnada até no cerrado goiano:
Eu já conheço essa história, Velho Santinho.
Menino sabido...
O velho cavaleiro desmontou e os dois foram
caminhando sobre o barro seco do cerrado, cada um com
sua montaria pela rédea.
- Está vendo que mundão, Garrote? - continuou o
Velho Santinho. - Não é de dar orgulho? Isso tudo está
na sua família há gerações! Você não é só neto de Nhá
Nana: é neto desse cerrado inteiro!
Garrote nada respondeu. Ia mudo, de cabeça baixa e
com as sobrancelhas franzidas, pelo brilho do Sol e por
seus pensamentos. O que era o Encantado? Que vida
seria a sua, perdido naquela fazenda que parecia não
acabar mais?
- Eta, Garrote enfezado! - gozou o Velho Santinho. -
Perdeu a língua?
O passo do rapaz apressou-se e ele não desviou a vista
do chão.
- Eu não quero ser neto de ninguém. Eu não pedi
pra ser neto de ninguém.
O velho riu gostosamente:
- Tem um monte de coisas que a gente não pede pra
acontecer, mas acontecem do mesmo jeito, Garrote. A
gente não pede pra nascer, mas nasce. A gente não pede
pra morrer, mas morre. Todas as coisas importantes da
vida acontecem porque querem acontecer. A gente só
controla as coisas miúdas. E o destino, é assim mesmo.
Garrote parou e cravou os olhos no velho:
Eu não quero isso, Velho Santinho. Eu não quero essas
coisas que já vêm prontas. Eu vou fazer o meu destino
do jeito que eu quero que ele seja!
Ora, ora! Isso é que é um Garrote dos bons. E olhe que
muita gente daria um olho pra ter o seu destino:
herdeiro do Encantado, o maior pedaço de chão do
Planalto Central!
- Herdeiro?! Disso aqui?
- É claro, Garrote. Você nunca pensou nisso? Nhá
Nana era filha única e teve só uma filha também, a
Nhazinha Mariana, sua mãe. E você não tem irmãos,
não é? Por isso, o Encantado está esperando pra ser
seu. O Garrote do Encantado, o Encantado do Garrote!
Garrote não havia pensado nisso. Desde que chegara ao
Encantado, toda a atenção do garoto estava voltada
para um enorme esforço de sobrevivência, de
resistência, sem saber direito a que, nem para quê. Só o
que ele sabia é que, de algum modo, estavam querendo
mudá-lo, transformá-lo, forçá-lo a alguma coisa que ele
desconhecia, mas detestava mesmo sem conhecer.
- Lá está, Garrote. A morada do Cipriano.
Capítulo14
Ao contrário do que previra o velho, Garrote percebeu
que havia não só um, mas dois homens adultos no
grupo que os recebia. Além desses, uma mulher, muitas
crianças, muitos cachorros, muita festa. A acolhida era
tão gentil, tão efusiva, que o fazia sentir que aquelas
pessoas poderiam ser uma pausa para suas
preocupações.
Uma garota, com um sorriso cândido, centrou o olhar do
rapaz. Na certa era a mais velha do grupo da filharada,
talvez pouco mais nova do que o rapaz da cidade
grande.
Velho Santinho! Mas que honra, receber o senhor nesta
casa de pobre! - cumprimentou um dos homens, um
boiadeiro que trazia no olhar a pureza de uma criança.
Este é o Garrote, menino de São Paulo - apresentou o
velho, sem dizer de quem o apresentado era neto. - Este
é o Cipriano, esta é a Nhá Zeza...
Apesar de tantos filhos, o casal residente não era velho,
embora sua aparência fosse bem castigada pela vida
dura de agregados daquela fazenda sem fim.
Este é o... ora se não é o Valdomiro, lá da Fazenda da
Ponte Lavrada!
Bom ver o senhor com saúde, Velho Santinho -
cumprimentou o homem com cara de desânimo, tirando
respeitosamente um chapéu surradíssimo.
O Cipriano e a Nhá Zeza estão recebendo muitas
visitas, hoje, Garrote! - e continuava a desfiar
apresentações e apelidos. - ... este pulando ali é o
Cabrito, aquela é a Ritinha...
"Ritinha? O nome dela é Ritinha?", pensava Garrote,
sem desviar o olhar da menina. "Um nome simples...
um nome com o jeitinho dela..."
... o de dedo no nariz é o Caroço. De tão miudinho e
tinhoso, o pessoal cismava de chamar essa cria de
Piolho. Mas piolho só serve pra coçar e pra matar com a
unha - comentou o velho, rindo e esmagando um ácaro
invisível entre as unhas dos polegares. - Mas esse
menino vive fazendo caroço com o que tira do nariz e foi
assim que eu batizei ele. Caroço está mais do jeito, não
está?
Tira o dedo do nariz, Caroço! - advertiu Nhá Zeza,
confirmando a aceitação do apelido.
- ... aquela menorzinha é a Desaparecida. Por
vontade de Nhá Zeza o padre batizou a menina de
Aparecida, mas ela é tão magrinha que o melhor mesmo
é chamar de Desaparecida! Ah, ah!
Velho Santinho desfiava os nomes e apelidos daquela
penca de crianças como se todos fossem seus afilhados.
- A casa é sua, Velho Santinho - oferecia Cipriano. -
O alazão perdeu a ferradura? Pode deixar que eu tenho
uma do jeitinho que ele precisa. É só um minu-tinho,
um minutinho...
Acompanhado por Garrote, pelo velho e pelo homem
apresentado como Valdomiro, Cipriano remexeu no
meio das tralhas de um paiol logo ao lado da casa e
encontrou a ferradura certa para o casco do alazão.
Dobrou a pata do animal, apoiou-a na coxa e começou a
pregar os cravos com muita habilidade.
Que vagabundagem é essa? - troçou Velho Santinho. -
Isso lá é hora de um peão do Encantado estar em casa,
no meio das mulheres, dos pirralhos e das galinhas?
Não troce comigo, Velho Santinho - respondeu Cipriano,
reforçando as palavras com marteladas na ferradura. -
Estou no campo desde as quatro da manhã. Voltei mais
cedo pra esperar o Valdomiro aqui, que veio pra levar a
Manchinha pra Ponte Lavrada. Naquele fazendão terá
muita serventia uma vaca igual a essa. E eu decidi
vender...
- A Manchinha? - espantou-se o velho. - Você vai
vender a Manchinha? Mas não foi você mesmo quem
disse que aquela bezerra ia mudar sua vida? E, agora
que ela virou uma leiteira dessas, você vai se livrar
dela?
Cipriano soltou a pata ja ferrada do cavalo e limpou o
suor com o braço. O alazão bateu a pata várias vezes no
chão duro, como a experimentar o novo calçado.
- Disse sim, Velho Santinho - respondeu o homem
com uma expressão desalentada. - Eu disse que a vaca
ia mudar minha vida e tinha certeza disso. Mas,
depois...
Os três adultos acocoraram-se no terreiro.
- Pra comprar a Manchinha, eu e a velha
sacrificamos tudo que a gente tinha. As crianças
passaram ainda mais pobreza do que já vinham
passando. Mas eu consegui juntar o necessário pra
comprar essa bezerra.
Os olhos inocentes do peão brilharam:
- E ela cresceu, engordou, ficou essa beleza que é a
Manchinha. E o meu sonho cresceu junto com ela.
Eu achava que ela era um começo, que era só mais um
pouco de sacrifício e eu podia ter uma criação só minha.
E que depois... Ah! Depois eu ia conseguir comprar uma
terra!
Voltou os olhos molhados para os amigos:
- Eu não queria muito. Uma terra pequena, longe,
onde as crianças pudessem crescer com a plantação e eu
pudesse acabar a vida trabalhando. Será que é pedir
muito? Será que é sonhar muito? Um palmo de chão
que a gente molha com o suor da vida e onde a gente se
enterra feliz depois de morto?
Com o seu ar de desânimo, o boiadeiro Valdomiro falou,
revirando o chapéu nas mãos:
- Vai ver é mesmo... Esse é o sonho de todos os
peões, de todos os agregados do mundo inteiro. Um
pedaço de terra! Qual o quê! Por mais longe que seja
essa terra, por mais miúda que seja, esse é um sonho
sem jeito...
Velho Santinho não admitiu o rumo derrotado para
onde a conversa ia sendo levada:
- Que é isso, gente? O que é que é sem jeito?
- Nossa situação... - explicou Valdomiro. - Isso não
tem jeito mesmo. É tudo sempre a mesma coisa:
trabalho e mais nada. Nada muda...
Velho Santinho rebateu alto, rindo como sempre:
- Ora, se não mudou até agora, não quer dizer que
não vá mudar nunca. Quer dizer que não mudou ainda!
Cipriano passava a mão pela cara, enxugando o sonho e
acreditando no futuro, apesar de tudo.
E... não há de ser nada. Com o dinheiro da Manchinha,
pago tudo o que devo e vou dar uma alegria das grandes
pra velha e pras crianças: vou comprar uma televisão!
Uma televisão?! - Velho Santinho dobrou-se, às
gargalhadas, batendo com as mãos nas coxas. - Isso sim
é coisa sem jeito, Cipriano! Pois você não sabe que
precisa eletricidade pra fazer funcionar a televisão?
Nem na casa-grande do Encantado tem eletricidade. Ou
você vai pedir a Nhá Nana que puxe eletricidade só pra
sua casa?
Precisa de eletricidade? - a decepção deixou lívida a face
do peão. - Precisa mesmo? Quer dizer que eu não posso
comprar uma televisão?
Capítulo15
Garrote afastou-se da conversa dos três homens. Com a
garganta seca da poeira do passeio, sentiu sede e
caminhou lentamente para a sela do cavalo onde
estavam os cantis.
Sentiu um toque de levinho em seu braço:
- Quer água?
Era a voz da menina mais velha, que o Velho Santinho
havia chamado de Ritinha. Olhou sisudo para ela e
assentiu com a cabeça.
- Quero sim. Obrigado.
Delicadamente, a menina conduziu o rapaz para um
poço coberto por tábuas enegrecidas. Levantou duas
delas e manejou habilmente uma corda, içando um
balde de madeira todo calafetado com betume. Uma
cuia estava pendurada por uma cordinha à beira do
poço. Ritinha encheu-a e ofereceu-a a Garrote.
Beba. É fresquinha.
Obrigado.
Garrote bebeu de olhos baixos, fugindo ao calor do olhar
da menina, que o fitava, curiosa.
Obrigado - disse sério, devolvendo a cuia.
Obrigado, obrigado, obrigado - remedou a menina
sorrindo, e como era lindo aquele sorriso! - Você só sabe
dizer obrigado?
Hã... desculpe...
A menina levantou a mãozinha e tocou-lhe o rosto:
- O que é isto no seu olho? Está roxo...
- Nada... eu machuquei. Mas já está sarando...
Garrote se sentiu perturbado pela intimidade do
toque da menina e desviou a conversa.
- Seu pai vai vender a vaca, não vai?
Ritinha começou a andar lentamente para longe da
casa. Sem se dar conta, Garrote a seguiu.
Vai sim.
E você? Não fica triste com isso?
Claro que não. O pai sabe o que faz.
O que o perturbava tanto naquela menina? Garrote
comparou-a com as meninas do seu colégio. Todas
tratadas, cabelos sedosos, peles delicadas, dentes
perfeitos, cheias de perfumes e roupas da moda. Ele
tinha aprendido que aquelas eram lindas. Mas
Ritinha... Seu vestido era um pano sem forma e sem
cor, seus cabelos eram endurecidos pelo vento do
cerrado, sua altura era pequena, seus olhos...
Ah, os olhos negros de Ritinha! Tinham vida, tinham
troça, tinham tudo dentro deles. E eram eles que
olhavam confiantes para Garrote. Como ela podia ter
tanta confiança, se ele não tinha nenhuma?
- O pai sabe o que faz. Ele trabalha muito e a gente
ajuda no que pode. Logo ele vai tirar a gente daqui.
- E pra onde vocês vão?
- Não sei. O pai que sabe. Pra longe. Uma terra
longe. Lá, a gente vai ter muitas vacas como a
manchinha, vai poder plantar. A gente vai ter até uma
televisão, sabia?
Garrote desviou o olhar dos olhos negros da menina.
Lembrou-se do peão Valdomiro dizendo que aquele era
um sonho impossível. À frente dos dois, a imensidão do
cerrado pareceu uma penitenciária sem grades, que
mantinha todos os peões condenados à prisão perpétua.
E a trabalhos forçados. Uma condenação eterna, sem
alternativas, sem amanhã, sem esperanças.
- Me fale de São Paulo.
A menina colocou sua mãozinha miúda sobre a mão do
Garrote. Uma onda morna emanava daquele corpinho
moreno. A menina fazia parte do cerrado tanto quanto
aquelas árvores retorcidas e aquela terra vermelha. Só
que, nela, o cerrado sorria.
- São Paulo? - respondeu ele, evasivo. - É aquilo mesmo.
Uma cidade igual às outras.
- Ah, você não quer me contar!
- Desculpe. Conto sim. O que você quer saber?
- Aqueles prédios todos. Me conte. Eu vi numa revista.
- Contar o quê?
- As pessoas moram lá dentro mesmo?
- É claro que moram.
- Uma casa em cima da outra?
- É, acho que é isso mesmo. Uma casa em cima da
outra.
- E fica todo mundo lá dentro? As gentes, os porcos, os
cachorros e as galinhas?
- É claro que não. Só as pessoas.
- Ué! E onde fica a criação?
- Não fica. Não pode ter criação em apartamentos.
Ritinha ficou decepcionada. Não podia admitir a
possibilidade de que alguém pudesse viver sem pelo
menos um galinheiro e alguns cachorros.
- Diga uma coisa: de que jeito é que as pessoas que
moram nas casas de cima sobem até lá?
- Sobem pelo elevador.
- O que é isso?
- É igual àquele balde que você puxou lá do poço. É
uma caixa grande onde as pessoas entram e um motor
puxa para cima por uma corda de aço.
Ritinha sorriu de novo:
- Ah, você está caçoando comigo. Gente não é que nem
água de poço!
- Não é brincadeira não, Ritinha. É assim mesmo.
A menina calou-se por um momento. No horizonte do
cerrado, seus olhos construíam arranha-céus
imaginários, cheios de gente sendo içada por enormes
baldes.
- Você nunca foi à cidade? Nunca viu um prédio? -
perguntou Garrote.
- Não. A gente só vai à vila, de vez em quando. Eu gosto
de ir. Principalmente quando tem festa na igreja.
Deu uma risadinha travessa, mostrando que lhe vinha
à memória alguma gostosa lembrança das quermesses
da vila. Depois, retornou à confiança que tinha no pai:
- Mas o pai vai tirar a gente daqui. E as festas do
lugar pra onde a gente vai vão ser mais divertidas
ainda. O pai trabalha muito, ele é muito esperto, sabia?
Não tem doença de gado que ele não saiba cuidar. E é
valente, ainda por cima! Imagine que ele é capaz de
tirar berne até de touro bravo! O bicho fica tentando
chifrar, mas depois sai bem satisfeito sem a chupação
dos bernes e dos carrapatos...
Garrote podia imaginar, sim. Imaginava e mal podia
acreditar que um peão analfabeto, que nem sabia que
televisão precisa de eletricidade, pudesse agir como um
verdadeiro veterinário.
- Seu pai é esperto sim, Ritinha...
- Se é! Ele sempre fala que um dia a gente vai ter
uma terra só nossa. Aí a gente vai poder passear,
conhecer outros lugares. Eu quero conhecer Brasília e
viajar de avião. E você?
O garoto tomou um susto ao ver-se incluído no rol
daquelas pobres criaturas, para quem a vida se resumia
ao pó do Encantado e à vastidão daquelas paisagens.
- Eu? E-eu também...
- Eu não vou ter medo, sabia? - afirmou a menina
naquele seu jeitinho delicado.
- Medo de quê?
- De viajar de avião. Minha mãe diz que tem medo,
que o avião pode cair. Mas não cai, não. Avião é feito
pássaro, e pássaro não cai.
Garrote sorriu com a comparação e trouxe o assunto
para a terra:
O Encantado deve ser muito longe da escola, não é?
Como é que você vai à escola?
À escola? - espantou-se a menina, arregalando os
grandes olhos negros para ele. - Que escola? Aqui
ninguém vai a escola nenhuma!
- Não? Nem você, nem seus irmãos?
- Não.
- Mas por quê?
A menina não respondeu. Em vez disso, abaixou-se,
pegou um graveto e desenhou na terra.
- Mas eu sei escrever meu nome. Olhe só.
O rapaz leu RITA escrito no chão, em letras de fôrma.
- Agora você - convidou ela, estendendo-lhe o graveto.
- Eu o quê?
- Agora você escreve o seu nome.
- Meu nome?
- É. Por quê? Você não sabe escrever o seu nome?
Os lábios de Garrote tremeram. Sem nada responder,
apontou a varinha para o chão. Mas deteve-se por um
instante. O que iria escrever? Eduardo? Caramujo?
Ou... Garrote? Bom, ele havia sido apresentado como
Garrote à família de Cipriano. Até àquele momento, o
garoto havia odiado a imposição do apelido, mas de que
adiantaria lutar contra isso naquele momento?
Usando também letras de fôrma, escreveu seu nome na
terra.
- Puxa, que nome grande o seu! - observou Riti-nha.
- Maior do que o meu. O que está escrito?
- Está escrito... GARROTE.
- Garrote... - falou a menina, saboreando o nome. -
Garrote... Igual bezerro de três anos. São danados esses
garrotes. Loucos pra atacar a gente. Depois viram
touros. E você? Vai virar touro também?
Riu-se cristalinamente da própria piada.
Acompanhando a risada, naquele momento uma
revoada de periquitos passou por eles, fazendo alarido.
- São os tuins. Vão pra água. Tuim gosta das
sementes de tudo o que nasce na água. Venha. Vamos
lá.
Garrote seguiu a menina, que corria como uma corça,
volteando as pedras e seguindo um caminho que levava
ao rio, na rota dos periquitos.
A corrida dos dois era ladeada por uma vereda de
buritis, tão florados de amarelo que fazia o rapaz sentir-
se em um corredor de algum palácio de sonhos, forrado
de ouro. Seus tênis afundavam em uma relva verde
forte, fofa como um tapete real.
Capítulo16
Era um braço pequeno de rio mas, protegido por pedras
grandes, lisas como lajes, formava um recanto fresco,
úmido, cheio de verdes, de musgos e samambaias, uma
bênção em meio à secura do cerrado. Correndo pelas
pedras, a água livrava-se do pó vermelho e ficava mais
clara que água de piscina. Era um ambiente totalmente
diverso dos chapadões do cerrado. Uma densa floresta,
com árvores muito mais altas, mas que, humildemente,
só erguiam suas copas para o céu depois de seus galhos
curvarem-se como saca-rolhas, como se fizessem
mesuras e salamaleques aos jovens visitantes.
- Vamos! - convidou a menina. - Você vai gostar dessa
água!
Garrote parou, hesitante. Ia dizer que não tinha roupa
de banho, ia dizer que...
Não houve tempo. Rindo, arrulhando junto aos
periquitos por entre as taboas, Ritinha arrancou o ves-
tido e jogou-se nuinha no rio.
Sem pensar, Garrote despiu-se também e mergulhou
atrás dela.
A água fresca envolveu-o em um abraço, dissolvendo o
pó que o rapaz acumulara cavalgando toda a manhã.
Garrote sentiu-se limpo, de um modo que jamais se
sentira antes.
A água chegava-lhe aos ombros. Para Ritinha, não dava
pé. Mas a menina nadava em volta do convidado, como
um cachorrinho, rindo, mergulhando e aparecendo logo
em seguida, em outro ponto do rio.
Veio por trás e empurrou a cabeça do Garrote para
baixo. O rapaz mergulhou, deu uma cambalhota dentro
d'água e agarrou a menina pelos ombros.
A pele que suas mãos tocavam estava fresca como as
águas.
Garrote abraçou-a, apertado, por um momento, e em
seguida empurrou-a também para dentro da água.
A menina ressurgiu ainda rindo, gargalhando,
brincando, fazendo troça, distribuindo alegria, tentando
plantar esperança no coração de Garrote.
Ritinha deu duas braçadas em direção à margem.
Sentindo a terra sob os pés, foi saindo do rio.
O Sol a iluminava em cheio. O cabelo negro, escorrendo
pelas costas, pingando, chegava quase à cintura.
Garrote olhava aquele corpinho nu, dourado pelo Sol,
como se jamais tivesse visto algo tão lindo na vida.
Saiu também lentamente da água. Só então deu-se
conta de que também estava nu. Deveria sentir-se
envergonhado, deveria correr para cobrir-se. Só que não
sentia nada disso. Parecia-lhe a coisa mais natural do
mundo estarem ali os dois, ele e Ritinha, nus sob o Sol
do Planalto Central.
Pela primeira vez, desde que fora chamado ao gabinete
do diretor do colégio para saber da morte dos pais,
Garrote sentiu-se relaxado. Nesse mundo maluco, no
meio de tanta pobreza, será que havia uma esperança?
Uma esperança morena, bronzeada, dourada, que sorria
para ele e que agora rodava em corrupio, secando-se ao
Sol, girando a farta cabeleira negra, espalhando
confiança, tentando mostrar que a vida pode ter
sentido?
A menina parou de girar, arquejante. Calada agora,
olhou o rosto do rapaz.
Garrote aproximou-se dela.
Muito perto. A água do rio, evaporando-se da pele de
Ritinha, perfumou-lhe o olfato.
Muito perto. Colocou as palmas das mãos
delicadamente nos ombros da menina.
Muito perto. Puxou-a para si. O rosto de Ritinha elevou-
se e os olhos negros o encararam com um narizinho
empinado para a frente. Haveria uma ponta de sorriso
ainda?
Muito perto. Garrote dilatou as narinas, sorvendo
profundamente o perfume do corpo de Ritinha.
Muito perto. Envolveu-a suavemente num abraço.
Sentiu seu corpinho nu junto ao seu. Os pequeninos
seios de encontro a seu peito.
O envolvimento o impedia de pensar em seus
problemas, em seus medos, em sua ansiedade. Naquele
instante, Ritinha ocupava cada pedacinho do seu
pensamento. E deixava o resto de fora.
Beijou-a. Primeiro a pontinha do nariz, depois o rosto, a
testa, os olhos. Beijou com ternura os lábios molhados.
Ritinha desvencilhou-se delicadamente. Correu para o
vestidinho e vestiu-o com um só movimento, por cima
da cabeça. Com graça, enfiou os dedos das duas mãos
atrás da nuca, puxando os cabelos molhados para fora
da gola do vestido.
Sem conseguir desviar o olhar, Garrote vestiu-se
também.
Nada mais disseram. Ritinha pegou o garoto pela mão e
os dois caminharam lentamente de volta.
Garrote lembrou-se das palavras da menina: "Avião não
cai não. Avião é feito pássaro. “E pássaro não cai.”
De mãos dadas com ela, ergueu os olhos para o céu.
Para o céu do Sol, para o céu dos aviões, para o céu dos
pássaros, para o céu dos anjos chamados Ritinha...
Ritinha e Garrote, Garrote e Ritinha. De mãos dadas,
olharam juntos para o céu do Planalto Central, como a
contemplar enormes pássaros de prata, cujo destino era
permanecer para sempre voando. Sem cair jamais.
Como os sonhos. Como a esperança.
Capítulo17
O Sol já estava alto quando os dois voltaram para a
morada de Cipriano.
Dona de casa diligente e organizada, Nhá Zeza tinha
arrastado uma mesa tosca para o terreiro e não podia
permitir que os visitantes continuassem viagem sem
almoçar.
Faço questão, Velho Santinho. O que a gente tem de
comer é de pobre, mas nem Cipriano nem eu nunca
deixamos ninguém montar a cavalo de barriga vazia. O
que é da gente é do senhor.
Ah, não precisava se incomodar, Nhá Zeza... - e o velho
fez a cerimônia de praxe.
Garrote sabia que o velho trouxera um farnel para os
dois almoçarem no campo, durante o passeio. Mas,
como o Velho Santinho, percebeu que qualquer recusa
seria uma ofensa.
- Imagine, sair sem almoço! - encerrou a anfitriã,
como era de se esperar.
O velho olhou para os cabelos molhados do rapaz
e depois seus olhos foram até à cabeleira da Ritinha,
que umedecia as costas do vestido. Não disse nada.
Nhã Zeza trouxe para a mesa pratos de barro com um
angu de farinha de peixe, milho torrado e um tipo de
pão pesado, ainda quente do forno à lenha. Uma
moringa continha água quase tão fresca quanto se
tivesse saído de uma geladeira, e uma jarra de barro
mostrava a brancura de um leite cheiroso, espumante,
talvez o último presente da Manchinha.
Foram distribuídos pratos de plástico e canecas de
alumínio, quase todas já bem amassadas.
Tudo estava muito limpo e cheirava bem. O ar cheirava
bem e, em suas narinas, ainda morava o perfume
natural da pele molhada de Ritinha. O que estava
acontecendo? Será que ele podia deixar que aquela
visita o fizesse esquecer-se de sua única saída, que era
fugir daquela colmeia infernal na primeira
oportunidade?
Não. Era preciso manter a cabeça no lugar. E sentou-se
em um caixote do outro lado da mesa onde estava
Ritinha. A menina ficou com as crianças, ajudando-as a
comer.
A refeição que Dita lhe oferecera pela manhã já estava
longe, e Garrote comeu com vontade.
Esvaziados os pratos, Velho Santinho trouxe os cavalos
pela rédea. O dia de trabalho continuaria para os donos
da casa e Valdomiro tinha de levar a Manchinha
embora. E ele tinha de continuar apresentando o
Encantado para Garrote.
Obrigado, Cipriano - despediu-se o velho. - Isso foi
almoço de rei!
De rei não foi - respondeu modestamente o caboclo. -
Mas foi de coração.
Volte sempre, Velho Santinho - convidou Nhá Zeza. - O
senhor sabe que a casa é sua.
Garrote montou e deu uma última olhada para a
casinha de Cipriano. No meio do grupo que acenava, lá
estava a menina. Ritinha, sorrindo feito criança,
recheada de esperanças e fé no futuro.
Sentiu-se um velho. A menina esperava muito mais da
vida do que ele. Tinha amigos, tinha pais, tinha
esperança.
Ele não tinha nada.
Capítulo18
Garrote atiçou o alazão, procurando distanciar-se logo
do calor do olhar de Ritinha. Voltou os olhos para trás e
ainda viu a figurinha da menina, já distante, a acenar
para ele.
Voltou-se para o companheiro:
Velho Santinho, a filha do Cipriano disse que nunca foi
à escola. Nem seus irmãos. Por quê?
Nenhuma criança do Encantado vai à escola, Garrote -
respondeu o velho, muito sério.
- Por quê?
- Porque Nhá Nana não quer. Quem nasce no
Encantado só tem um destino: trabalhar no Encantado.
Pra que precisam saber ler? Pra que aprender a
escrever?
O lábio inferior do Garrote tremia. O garoto não podia
entender um absurdo daqueles.
- E você acha isso certo, Velho Santinho?
Sem responder, o velho picou o cavalinho e galopou, à
frente do Garrote.
O rapaz havia aprendido mais um pouco como viviam
aquelas pessoas na fazenda de Nhá Nana. Sem escola!
E ocorreu-lhe que ele, o novo Garrote, ficaria também
sem escola. Como ele iria continuar os estudos? A morte
dos pais havia interrompido até mesmo a conclusão de
sua oitava série. E em seguida? Ah, pelo jeito só lhe
restava a universidade empoeirada do Encantado para
cursar! E a reitora era uma velha demente, especialista
na pedagogia do açoite...
"Tenho de fugir daqui..."
Cavalgaram durante toda a tarde. Aos poucos, Garrote
percebeu que o velho cavaleiro liderava uma cavalgada
em espiral, que havia começado próxima aos limites da
fazenda e cujo vértice seria o retorno à casa-grande.
Papagaios, araras e capivaras, veados-campeiros e
tamanduás, rios e arroios, matagãos intocados e terra
pelada, pastagens e voçorocas, bois e cavalos, carneiros
e cabras, pequizeiros retorcidos, palmitais sem fim e
moitas de flores tantas que Garrote nem mais
perguntava o nome. Mas o velho fazia questão de
nomear:
- Este é o barbatimão, ali é o pau-santo. Veja que lenho
forte! Isso dali é a sucupira, madeira cara, que está se
acabando de tanta mobília que os estrangeiros adoram
ter em casa. Ali é o pau-terra... Olha aquela moita de
indaiá! Todo mundo gosta de indaiá num jardim, não é?
Me disseram que até nas ruas da cidade grande eles
plantam esses indaiás pra enfeitar... Olha ali a
catuaba... Veja só: esses araçazeiros estão carregados.
Quer comer araçá? Nunca comeu? Ei, olha lá o
caracará! Eh, gavião esganado! Já, já vai mergulhar e
levar um curiango desses pro papo dos filhotes. Ah!
Plantações só uma ou outra hortinha para consumo
próprio em volta dos casebres dos boiadeiros, olhos
verdes perdidos no vermelho sem fim.
Não se planta nada no Encantado? - perguntou o
garoto.
Claro que se planta! - riu-se o Velho Santinho. -O milho,
a mandioca, o feijão e até o arroz que você come brota
aqui, nesta terra, Garrote!
Não. Eu digo plantação pra vender. Todo este Estado
está enriquecendo com uma porção de produtos
agrícolas como a soja, o milho e o algodão!
Ufa! Você aprendeu bastante coisa na escola lá da
cidade grande, hein, Garrote?
Estou falando em agricultura, Velho Santinho! -insistiu
o rapaz.
O velho desfez a risada.
- Isso não. Nhã Nana sempre diz que plantação só
dá dor de cabeça e bedelho estranho enfiado no
Encantado. Tem de chamar gente pra botar produtos na
terra, tem de espalhar veneno pra perseguir a saúva, o
cupim e o gafanhoto, tem de comprar máquinas que só
teimam em encrencar. Logo, isso tudo aqui ia ficar
cheio de gente metida a sabichona, querendo dar
palpite na vida do Encantado. E isso Nhá Nana nunca
ia permitir, Garrote!
O rapaz balançou a cabeça, desolado:
- O que ela não iria permitir, Velho Santinho? O
progresso, é?
O velho cuspiu de lado, com desprezo, desviando a
conversa da determinação da senhora do Encantado
para sua própria pessoa:
- Disso eu nunca precisei. Com o gado não precisa
ninguém de fora com idéias destrambelhadas, que
ninguém entende. Minha mãe dizia que eu aprendi a
montar antes de aprender a andar. Afinal, andar pra
quê? Andar e correr é trabalho de cavalo, menino! Upa!
E cutucou o cavalinho, à frente do rapaz, retomando o
passeio e encerrando a conversa.
Capítulo19
Terminada a longa apresentação dos domínios de Nhá
Nana para o rapaz, a noite já se apresentava colorida
quando os dois cavaleiros chegaram de volta à avenida
de terra que separava as casas dos agregados e
conduzia à casa-grande do Encantado, logo após o
majestoso pequizeiro.
Cavalgando a trote, sem pressa, foram ultrapassados
por um galope apressado. Era a figurinha encou-raçada
do Carne-Seca, que travou as rédeas da égua castanha
ao chegar à varanda onde Nhá Nana já estava de pé,
imponente, à espera do capataz.
Garrote e Velho Santinho logo se aproximaram.
- E então? - perguntou a voz seca de Nhá Nana. O
homenzinho desmontou e encolhia-se dentro
de sua armadura de couro ao aproximar-se humilde,
mas triunfante, do sopé da varanda.
- É claro que fiz do jeito que a senhora mandou,
Nhá Nana. Trouxe comigo.
O rapaz viu que Carne-Seca estendia alguma coisa para
a velha. O capataz percebeu que era observado e, por
sobre o ombro, virou a caveira sorridente para o rapaz:
- Hoje de manhã passei na venda do Nhonofre e ele
me contou que o Tampinha tinha comprado isso aqui,
Nhozinho Garrote. Contei pra Nhá Nana e ela me
mandou buscar.
Velho Santinho e Garrote agora sabiam o que era
aquele objeto estendido para a senhora do Encantado: o
rádio de pilha do baixinho.
Nhá Nana, impassível, continuou:
- E deu-lhe o dinheiro?
A cabeça escaveirada voltou-se pressurosa para a
mulher:
- Dei sim. Disse que a senhora tinha mandado, e
dei pra ele direitinho o que ele tinha de pagar pra
Nhonofre. Mas nem precisava, me desculpe o palpite...
Nhá Nana não se alterou:
- Não pedi nem preciso de sua opinião. Faça o que
mandei fazer com isso aí.
Aceitando a ordem como se fosse um garotinho
convidado para uma brincadeira excitante, Carne-Seca
ergueu o braço e jogou o radinho no chão, com força. Em
seguida, com o tacão da botina, passou a pisoteá-lo,
alegremente. Mesmo depois que a caixinha frágil já não
passava de cacos de plástico e metal, Carne-Seca ainda
saltitava sobre os destroços, como se dançasse.
O rosto de Garrote empalideceu. O que era aquilo? O
que estava acontecendo?
Lentamente, Nhá Nana rodeou todo o terreiro com o
olhar. Além do menino, do velho e do capataz, havia
mais algumas curiosidades em volta. E a mulher falou:
- Aí está. Ninguém aqui no Encantado precisa de
notícias. Aqui nada acontece de novo. Nada muda. Tudo
é do jeito que sempre foi. Tudo é e continuará sendo do
jeito que é.
Garrote olhou para o Velho Santinho. O companheiro
estava imóvel sobre o cavalo e sua expressão, recortada
na contraluz do entardecer, nada dizia. A boca do rapaz
abriu-se, ia falar, mas a sombra autoritária falou
primeiro:
- Santinho, espero que você tenha mostrado um
pouco do Encantado para o meu neto. Ele terá tempo
para conhecer tudo. A vida inteira. Antônia, prepare
um banho quente para o Garrote. Logo mais, ele e eu
vamos jantar juntos na sala grande.
Com um repelão, voltou o corpo e desapareceu pela
grande porta da casa.
Antes que a curiosidade dos agregados se dispersasse,
Carne-Seca levantou a voz, ameaçador, de chicote
apontado como uma espada, girando o corpo para que
todos ouvissem:
- E se alguém precisar de música, que cante, mas longe
dos ouvidos de Nhá Nana! Ou, se preferir, vai ouvir
aqui a minha música...
E - chlept! - deu uma lambada no couro da calça com o
chicote.
... e cravei no peito dele, bem fundo no coração...
Capítulo20
O rapaz não comentou as ordens da avó, que, desde que
ele havia chegado ao Encantado, só falava dele sem lhe
dirigir a palavra.
Entrou na casa-grande e, sem esperar pela água que
deveria estar sendo esquentada pela pobre Amélia, que
tinha de ser chamada de Antônia, tomou um longo
banho na água fria do chuveiro. Vestiu-se, atravessou a
imensa sala e entrou na cozinha. Era quase tão grande
quanto a sala e um fogão à lenha acrescentava alguns
graus ao calor do cerrado.
Lá estava a boa Madalena, a que deveria ser chamada
de Dita, ultimando um farto jantar.
Nhozinho Garrote! - surpreendeu-se a cozinheira. - A
janta já está quase pronta. Nhá Nana espera o senhor
lá na sala grande.
Não vou jantar lá, Ma-da-le-na. - Garrote escandia as
sílabas, como se pronunciar o verdadeiro nome da
cozinheira fosse uma espécie de desaforo para a avó. -
Diga a ela que vou comer aqui mesmo, na cozinha.
Assustada, a mulher desapareceu na direção da sala.
Logo voltava, com os olhos arregalados, sem
compreender a possibilidade de alguém descumprir
uma ordem da chefe, mesmo que esse alguém fosse o
neto, o herdeiro do Encantado. Silenciosamente,
preparou a mesa da cozinha para o jantar do rapaz.
Madalena-Dita cozinhava bem, é claro que cozinhava
bem. Mas Garrote olhou para o imenso bife de filé
mignon, bistecas de porco, arroz, feijão, e sua mente
desviou-se, retornando à casa de Cipriano e ao angu de
farinha de peixe oferecido por Nhá Zeza. Para ele, a
perícia culinária da cozinheira do Encantado perdia
para o tempero simples da mulher do peão. O que
faltava no tempero do Encantado? Amor, talvez?
Como é possível viver aqui, Madalena? - perguntou ele.
Desculpe, Nhozinho... Não entendi... - respondeu ela.
- O que está acontecendo no Encantado?
- Acontecendo? Nada está acontecendo, Nhozinho.
Como Nhá Nana disse, tudo aqui é do jeito que sempre
foi...
Mais tarde, na cama, olhando as estrelas num céu
escuro que cobria de beleza aquela terra da loucura,
Garrote murmurava para si mesmo:
- Como vou escapar daqui? Eu não tenho nada com
isso... Quero sair daqui... Não tenho nada com esse
Encantado, não tenho nada com coisa nenhuma... Eu
sou eu. Não quero ser mais nada... Eu sou eu... sou eu...
Capítulo21
A noite tinha começado em pesadelos e Garrote sonhou
com um castelo assombrado por uma abelha-rainha e
um demônio encouraçado que açoitava crianças e
destruía brinquedos. Mas, à medida que se
aprofundava, o sono foi levando a imaginação
adormecida do Garrote para um sonho colorido, onde
havia um velho alegre, às gargalhadas, sempre preo-
cupado com ele, e uma pequena fada morena que
desenhava letras na areia com sua varinha de condão.
Um cocoricó mais alto perturbou o devaneio. O garoto
acordou. Estava escuro como breu. Olhou no relógio e
viu que ainda estava longe a madrugada que haveria de
arrancar da cama todos os empregados daquela
fazenda.
Fugir...
Para escapar dali, ele precisava aprender as trilhas
invisíveis daquela fazenda. Talvez fosse possível
cavalgar até o ponto por onde passava o ônibus e
alcançar Brasília. Mas, o que seria dele em Brasília,
sozinho?
Balançou a cabeça, desolado. Mas logo sacudiu
novamente a cabeça, desta vez com decisão. Mesmo que
seu plano fosse impossível, apegar-se a ele, planejar,
poderia mantê-lo alerta. Ou, pelo menos, poderia
manter sua cabeça erguida.
"Preciso resistir..."
Decidiu sair sozinho, sob a proteção do Encantado
adormecido.
Para não fazer qualquer ruído pela casa, pulou a janela
do quarto para o terreiro e caminhou sorrateiramente
para o curral.
Com o olhar já acostumado à escuridão, conseguiu
distinguir a sombra do valente alazão que o levara no
passeio da véspera. Não dava para buscar a sela na
cocheira sem despertar alguém. Mas aquele rapaz tinha
sido ensinado pela mãe a cavalgar em qualquer
circunstância. O cabresto e as rédeas estavam
pendurados no mourão do curral. Foi só enfiar o arreio
pelo focinho do animal, ajustar o cabresto entre seus
dentes, abrir a porteira, montar em pêlo e sair a trote
cauteloso pelo terreiro.
Atrás de si, pareceu-lhe ouvir o ruído de um outro trote,
mas devia ser dos outros cavalos que haviam ficado no
curral, nervosos pela saída do alazão.
Agachou-se sobre o pescoço do cavalo e ficou
murmurando carinhos para acalmá-lo e impedir que ele
relinchasse. Bastava atravessar a rua que separava as
casinhas dos empregados da casa-grande, ladeada pela
longa vereda de buritis, e ultrapassar o grande
pequizeiro retorcido da entrada, e ele poderia galopar à
vontade. Só faltava mais um pouquinho...
- Aonde vai, Garrote?
Da escuridão maior causada pela copa pesada da
árvore, vinha a voz gostosa do Velho Santinho. Garrote
sofreou o animal. Danado de velho!
Você não dorme, é, Velho Santinho? - perguntou
irritado o rapaz.
Pelo jeito, quem está sem sono é você. Eta Garrote
tinhoso! O pessoal do Encantado ainda está pegado no
ronco e lá vai você, o cavaleiro da escuridão! Nessa hora
nem quem tem de tirar leite das vacas acordou ainda,
menino!
Mas eu e você acordamos, não é, Velho Santinho? Pois
saiba que eu quero cavalgar um pouco sozinho - disse
Garrote, quando notou que, sob a sombra do pequizeiro,
havia também um cavalo enci-lhado. Não era mais o
cavalinho fosco da véspera. Era um baio novo e arisco,
bom de corrida, pelo jeito. -Por favor, não quero que
venha comigo.
Pois então não vou, Garrote. Pode deixar. Hoje não
estou com vontade de sair sem café da manhã pra
tomar banho de regato...
Banho de regato?! Do que está falando, Velho Santinho?
Nada... Não estou falando nada. Bom passeio, Garrote.
Cuidado pra não se afogar. Tem homem que se afoga
nesse tipo de banho... Ainda mais homenzinhos
tinhosos feito algum que eu conheço...
O rapaz açulou o alazão e saiu a galope. Velho danado!
Capítulo22
Como se fosse um motorista de táxi ao qual o
passageiro informa o endereço, o alazão conduzia o
garoto cerrado afora, na direção da casa humilde de
Cipriano.
"Talvez Cipriano me ensine o caminho para fora
daqui... Ou mesmo a Ritinha..."
Aquele destino ficava longe da casa-grande e quase
duas horas tinham de ser gastas até lá. Assim, a luz do
Sol já banhava o cerrado quando o rapaz ouviu mais um
cumprimento:
- Oi, Garrote!
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De Punhos Cerrados Pedro Bandeira

  • 1.
  • 2. Ilustração de capa: Áxel Sande P E D R O B A N D E I R A ROCCO JOVENS LEITORES
  • 3. Capítulo1 Olha lá o Caramujo... Sempre na dele, né? É... Esse garoto não está nem aí... Ele é assim... Ao passar pelo corredor do colégio, Caramujo não ouviu a conversa sussurrada entre duas alunas. Mesmo que tivesse ouvido, fingiria não ouvir. Ele era assim. Caramujo... Esse apelido é bem do jeitinho dele. Quem foi que inventou? Sei lá... Acho que já veio pra essa escola com o apelido junto. Quieto, sempre no seu canto, o rapaz nem se importava que o chamassem de Caramujo. Seu pensamento era difícil de compreender. Isolava-se, fechado dentro de si. - Feito caramujo mesmo. Mas eu acho essa casca bem bonitinha... Fechado sim, mas, o que as duas meninas não sabiam é que, nos fins de semana, Caramujo era diferente. Aprendera com a mãe a gostar de cavalos. Mãe Mariana nascera numa fazenda, no cerrado goiano, e mudara-se para São Paulo para casar-se, trazendo consigo a paixão pelos cavalos. Sempre que podia, a mãe arranjava um jeito de levar o filho para algum sítio ou clube hípico que alugasse bons cavalos e não cobrasse muito das visitas. Nesses dias, os dois passavam o tempo montados, com o vento a bater no rosto, ouvindo apenas a respiração ruidosa ou o patear dos animais. Para mãe
  • 4. e filho, era muito mais fácil compreender as manhas e os caprichos dos cavalos do que das pessoas. Uns quinze anos, né? Acho que catorze. Ele aparenta uns dezesseis... Pode ser... - Gozado... Nunca vi o Caramujo batendo papo com ninguém. Ele tem algum amigo? - Acho que não. Acho que não tem nenhum. Os colegas eram colegas, apenas conhecidos, e nenhum deles jamais pudera aprofundar-se na vida dele a ponto de tornar-se algo parecido com um amigo. - Hum... - fez a colega, com ar maroto. - E namorada? Nem pensar! Eu queria saber quem é esse garoto na verdade... Quem ele era de verdade era um problema só dele. Ninguém tinha nada com isso. Sempre isolado, ele nada fazia para mudar o que pensavam a seu respeito. Você sabe o que ele fez no começo do semestre? Não... - Foi na prova de matemática da oitava. Me contaram. Uma prova daquelas lascadas. Um garoto sentado na frente do Caramujo trouxe uma cola. Um papelzinho pequeno, bem-feito, com todas as fórmulas anotadas. Mas pelo jeito estava nervoso e deixou a cola cair no chão, bem à vista do professor. - Ai, já imagino o desastre!
  • 5. - Pois foi. É claro que o professor percebeu. E veio lá do seu estrado, triunfante! - Eu conheço esse professor. É um sádico. Se é! Veio disposto a acabar com a vida do dono da cola. Mas o papelzinho tinha caído do lado de um outro aluno e o professor já veio acusando o colega inocente. O coitado se defendeu, protestou, mas acabou fora da classe e com um belo zero na prova. Mas, e o que tem o Caramujo a ver com essa história? É que, além do verdadeiro culpado, só Caramujo sabia de quem era a cola! Quem te disse? Ele mesmo? Ele disse que tinha visto a cola cair? Ora, o Caramujo nunca diz nada! Mas ele só podia saber! O dono da cola se sentava bem na frente dele! Mas ele podia estar envolvido na prova e não ter percebido nada! Ah, você não conhece o Caramujo... É claro que ele sabia. Mas, como um caramujo, fechou-se na casca. E foi isso que ele fez, quer dizer, que ele não fez: deixou de fazer o que devia ter feito. Tá bom, talvez ele tenha visto tudo mesmo. Mas vai ver ele não queria delatar ninguém... O Caramujo? Nada disso. O que ele não queria era meter-se em confusão. Como sempre, ele fingiu que não tinha nada com aquilo. Ele sempre foi desse jeito. Pra falar a verdade, o Caramujo nunca mostrou que tinha nada a ver com qualquer coisa.
  • 6. Eu acho que mais culpado que ele foi o que estava colando. O que estava colando é que devia ter confessado e assumido a culpa. É. Mas, além da covardia do culpado, só tinha o Caramujo pra salvar o pescoço do inocente. Você está dizendo que o Caramujo é covarde? Sei lá. Os caramujos são covardes? Acho que não. São é fechados mesmo. Pode ser. Mas, se eu achasse um caramujo desses na praia, não jogava de volta pro mar... Capítulo2 - O Caramujo nem é muito bom de bola! Na hora do racha no recreio, acaba ficando em um dos times, só pra completar... O garoto ficava lá pela lateral, entrando nas jogadas quando dava. Preenchia seu espaço calado, fazendo seu papel sem gritar com os outros, sem pedir a bola nem reclamar aos berros, como fazem todos os garotos. E lá veio o ponta do outro time, gingando, ciscando, rápido e confiante em sua própria malandragem. Olhava com o canto dos olhos para o Caramujo, provocando e esperando o momento certo para o drible. Caramujo entrou de leve e, sabe-se lá se por querer ou não, puxou a bola com a ponta do tênis e, ato contínuo, a bola escapou e milagrosamente passou por entre as pernas do adversário. Desequilibrado, o ponta caiu
  • 7. sentado na quadra. Uma jogada involuntária mas, para quem o presenciou, foi um drible espetacular, desmoralizante, que levantou uma onda de gargalhadas entre os alunos que assistiam à partida. Mal ouvindo as risadas, Caramujo já tinha dado a volta no adversário caído e erguia os olhos para descobrir em direção a quem ia livrar-se da bola conquistada com aquela jogada que jamais fizera na vida, quando, por trás, veio a vingança. O ponta erguia-se do chão onde estatelara-se humilhado e girava a perna no ar, num pontapé traiçoeiro. Logo após a agressão, ouviu-se um gritinho de susto e de pena, feminino. Doeu. Doeu como fogo. Caramujo caiu de lado, surpreso, agarrando o joelho ferido, e já o agressor pulava em cima dele. Do chão, o agredido girou a perna boa e acertou violenta sarrafada no agressor. - Sarrafada! O ponta dobrou-se de dor e tombou de novo, com um gemido surdo. - Ahn... E seus companheiros caíram em cima do Caramujo: - Pega! Pega o Caramujo! Antes que pudesse esboçar qualquer gesto de defesa, outro incêndio explodia-lhe no rosto, esmurrado. Se fosse possível, naquele momento teria lembrado do que lhe dizia a mãe:
  • 8. - Quando um cavalo fica agressivo, escoiceia, não adianta gritar nem bater nele. Ele está com medo, está nervoso. Você tem de acalmá-lo, senão ele fica mais nervoso e agressivo ainda... Com os cavalos, bastava treinamento, compreensão e carinho. Não era como no futebol da vida. A fúria adolescente perdia o controle, e Caramujo defendia-se, agitando os braços às cegas, quando apa- receu o bedel: - Parem com isso! Cadê o Eduardo? "Caramujo" no colégio, "Dudu" para a Mãe Mariana, "Eduardo" só na hora da chamada. O Caramujo? É. O da oitava B. Lá. No meio da confusão. O bedel enfiou-se quadra adentro apartando a briga e arrancando Caramujo do agarramento, um amontoado de pernas, de braços e de raiva. Parem com isso, moleques! Meio tonto, Caramujo pôs-se de pé. Eduardo, para a Diretoria, já! Caramujo não disse nada. A culpa não era dele, mas nenhum dos outros jogadores erguia a voz acusando a deslealdade do ponta. De que adiantaria argumentar? Agora seria a bronca do diretor e na certa uma suspensão. Levantou-se, cerrando os punhos para não chorar de dor. Talvez a mesma voz do gritinho agora murmurava,
  • 9. penalizada, vendo o garoto manquitolar na direção do prédio da escola: - Tadinho... Quem seria? Alguma das meninas bonitas da sala? Não ousou olhar. Para ele era mais fácil enfrentar o moleque agressor do que encarar a garota. Depois, talvez, ele sonhasse com ela, à noite, na solidão do quarto. Com ela, com qualquer uma delas. E em casa? Um castigo a mais por ter sido suspenso? Mas nem para a Mãe Mariana ou para o pai ele iria queixar-se da sarrafada desleal do ponta. Sofreria os dois castigos e pronto. Caramujo era assim. Por que o bedel não mandava também o outro para a Diretoria? Mas não perguntou. Ele era assim. Capítulo3 O olho esmurrado estava roxo e já se fechara pelo inchaço quando Caramujo entrou na sala do diretor. Eduardo! O que houve com seu olho? Nada. Eu caí. Está doendo? Não. Naturalmente o diretor sabia o que significava olho roxo em cara de moleque, mas não esticou o assunto. Passou o braço pelos ombros do Caramujo e o conduziu
  • 10. delicadamente até uma cadeira. - Meu filho, sente-se. Precisamos conversar. Meu filho?! Que história era aquela? Tudo o que aquele diretor costumava dizer a quem era enviado à Diretoria era "moleque incorrigível!". Agora ele vinha com meu filho? Havia algo de estranho no ar... - Meu filho, eu pedi que você viesse aqui porque... bem... Pelo jeito Caramujo não havia sido mandado pelo bedel à Diretoria por causa da briga. A razão devia ser outra. Caramujo esperou. - Para mim não vai ser fácil dizer o que eu tenho de dizer. Sabe, Eduardo, os seus pais... eles... O diretor calou-se, como se tivesse esquecido o assunto que tinha a tratar. O rapazinho ergueu o rosto e falou, num fio de voz: Meus pais? Eles não estão em casa. Foram a Santos, assinar não sei o quê. Pois é... Foram a Santos. Eles foram juntos... de carro, não é? Sabe, Eduardo, é difícil... A frente do olho são do Caramujo, a figura do diretor parecia insegura, algo trêmula, como em um filme desfocado. - Eduardo, é terrível... Por dentro do olho fechado, dolorido, uma imagem começou a formar-se e foi ficando nítida aos poucos. - ... um acidente... Asfalto. Ferros retorcidos. Estilhaços de vidro. Sangue...
  • 11. -... uma tragédia... Caramujo quase pôde ouvir a freada longa como o guincho de um porco ao ser sacrificado. O asfalto ia se tingindo de vermelho. Um rio vermelho. Uma cachoeira vermelha. Um mar vermelho cobrindo a estrada, descendo pela encosta, escorrendo pela Mata Atlântica e indo tingir de sangue as águas poluídas do Gonzaga. Trombada. Tromba-trombada. Sarrafada. Sarra- sarrafada, sarra-trombada, tromba-sarrafada... Morte. Agora ele estava só. Capítulo4 Quem era aquela gorda que o abraçava tanto e chorava como quem assiste a final de novela? E aquele que apertava uma barriga imensa contra a sua? E o outro, fedendo a cigarro, que ainda lhe sapecara um beijo babado no rosto? Caramujo não se mexia nem respondia aos votos de pesar que toda aquela gente se achava obrigada a lhe oferecer. Seus olhos, ou melhor, seu único olho aberto estava fixo nos dois caixões, lado a lado, iluminados por velas como num duplo aniversário. Nenhum dos olhos chorava. O garoto estava vazio por dentro. Estava sem a Mãe Mariana, estava sem o pai, estava sem tudo. Onde ir buscar as lágrimas? Se alguém pudesse procurar algo dentro daquele
  • 12. garoto, ele estava certo de que nada seria encontrado. Na aparência, ele estava vivo. Mas estava agonizante por dentro. Mamãe... Mariana... Mãe Mariana... A habilidade para montar, a paixão pelos cavalos... Estava tudo acabado. O pai... Papai... Sempre sem tempo para conhecer melhor o filho. E ele, sem oportunidade de revelar-se para o pai. Agora não haveria mais nada. Nem tempo, nem oportunidade. Caixões separados. Seus pais iriam dormir para sempre em caixões separados. A morte era uma espécie de divórcio. Os caixões. Eram do mesmo tamanho. Pretos, retintos, brilhantes. Tinham os mesmos enfeites prateados. Pareciam a caixa de jóias da mãe, onde o pouco dinheiro só deixava guardar bijuterias. Mas Caramujo nunca tinha visto flores na caixa de jóias. Nem cadáveres. Caramujo ficou imaginando a caixa de jóias cheia de flores pequenas para dar proporção. Violetas ou margaridinhas? E, dentro, o quê? O que caberia na caixa de jóias, toda com enfeites prateados como um caixão? Um rato, talvez? Olhou para o perfil do rosto da mãe, destacando-se só um tantinho acima da borda do caixão. E pensou: "Mãe, levanta daí! Vamos cavalgar, mamãe..." O perfil imóvel, pálido, respondia com o silêncio eterno ao desespero do filho. "Respira, mãe... Faz um esforço! Eu estou aqui... Estou sozinho, mãe..."
  • 13. Naquele instante, a dor e o desespero foram invadidos como se uma revoada de gralhas cobrisse o céu de negro para saquear o interior de sua alma: - Meu queridinho! O que aconteceu com seu olho? Queridinho! Coitadinho de você! Ai, aquela voz irritante só podia ser da tia Alzira, a irmã mais velha de seu pai! Ai, por que ela sempre se enchia tanto de perfume? Por que se perfumar tanto para vir a um velório? E logo o velório do irmão e da cunhada? - Meu queridinho! O que vai ser de você agora, sem papai, sem mamãe? O ambiente estava na penumbra. Caramujo só podia ver silhuetas de pessoas dançando pelas paredes à medida que a brisa da noite balançava a chama das velas. Todas cochichando, que era para não acordar o casal de cadáveres. - Eu adoraria que você viesse morar com a gente, queridinho. Mas o meu marido... Você sabe, não é? Sabe o jeito do Arnaldo... Estava abafado. Lá fora, alguns homens contavam piadas, que é o que fazem todos os homens em todos os velórios. Uma gargalhada externa juntou-se a um soluço fingido ao lado dos caixões. Estava abafado. O cheiro de dezenas de axilas suadas misturava-se ao cheiro de velas, ao perfume da tia Alzira, ao cheiro de flores murchando e a um vago odor ácido que vinha dos caixões. - Acho que você ficará muito melhor com a sua avó.
  • 14. Você sabe, a sua avó Ana, lá no Encantado, lá em Goiás, na Fazenda do Encantado. Que nome lindo, não acha? Você vai ficar "encantado"! Ih, ih, ih... Os cheiros entravam-lhe pelo nariz e a voz irritante pelos ouvidos. Tudo ia juntar-se no estômago, formando um bolo. Sem uma palavra, o rapaz apertava as mãos com tal força, que haveria de ferir as palmas, se as unhas estivessem compridas. - Eu já passei um telegrama para a sua avó. Ih, ih! Você sabe, não é? Naquele lugar atrasado não tem nem telefone! Mas o correio chega na vila próxima. A essa hora, sua vovó já deve ter recebido meu telegra-minha. Sua vovó vai cuidar muito bem de você. Esteja sossegadinho, queridinho... Caramujo deixou tia Alzira falando sozinha e correu para fora, nauseado, à procura de ar puro e isolamento. Escondido sob a escuridão de uma árvore nos jardins do velório, o garoto enfim conseguiu transformar a náusea em lágrimas. Chorou baixinho, sozinho, tão sozinho... Capítulo5 "Atenção, passageiros do vôo 5123 com destino a Curitiba, Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires: queiram dirigir-se ao portão 12 para embarque e boa viagem..." No saguão de espera do aeroporto, uma palmeira
  • 15. raquítica e duas dúzias de pontas de cigarro estavam enterradas numa floreira ao lado do banco onde se sentava Caramujo. À sua frente, um homenzinho não sabia se lia um jornal ou cuidava da malinha de executivo que trazia sobre os joelhos. "Se essa malinha fosse um bebê", pensou Caramujo, "acho que esse sujeito não se preocuparia tanto..." E com ele? Quem haveria de preocupar-se? Ele tivera pai e mãe. Agora não tinha mais nada. Não sobrara nada. Ele estava indo para onde tinham mandado que ele fosse. Mas nada esperava desse porvir desconhecido. Naquele momento, Caramujo não tinha futuro. "Your attention, please, ladies and gentlemen, passengers of the flight 5123..." Estava sozinho no imenso salão de espera do aeroporto de Cumbica. Ele e mais algumas centenas de pessoas estavam sozinhos, cada uma cuidando de sua vida como se não houvesse ninguém em um raio de dez quilômetros. O motorista do táxi que o trouxera ao aeroporto entregara-lhe um papel: - Você é o Eduardo? A corrida já está paga. Mandaram que eu lhe entregasse este bilhete. Caro rapaz, sua tia irá encontrá-lo no guiché da Varig com a passagem e a autorização para a viagem. Arnaldo
  • 16. A tia não estava no guiché da companhia aérea mas, logo que se identificou, uma funcionária solícita entregou-lhe a passagem e a autorização junto com o segundo bilhete: Queridinho, infelizmente não pude esperá-lo no aeroporto. Mas fique descansado que tudo está em ordem. Sua tia providenciou tudinho. Obedeça à sua avó Ana e não esqueça de escrever de vez em quando para a sua titia, hein? Beijos. Tia Alzira "Até o bilhete fede a perfume!", pensou Caramujo ao amassar os dois papéis e enfiá-los na floreira junto com as pontas de cigarro. Uma gargalhada feminina, clara como champanhe derramando em cristal, ressoou atrás dele. Voltou-se, esperançoso, aguardando a chegada calorosa da Mãe Mariana, para o preenchimento do vazio em que se encontrava. Não havia ninguém. Apenas um grupo de passageiros em alegre despedida. Ninguém que lhe dissesse respeito. Ninguém que preenchesse aquilo que pela primeira vez ele sentia. O que era aquele sentimento? Solidão? Para ele, a existência de Mãe Mariana nunca permitira que ele percebesse a própria solidão. Talvez solidão fosse mesmo aquela nova sensação. Talvez fosse... "Atenção, passageiros do vôo 3502 com destino a Belo
  • 17. Horizonte, Brasília e Manaus: queiram dirigir-se ao portão 9 para embarque e boa viagem..." Caramujo pegou sua bagagem de mão, levantou-se e disse para si mesmo, olhando para um dos alto-falantes: "Para onde eu vou? Para o inferno? Então, adeus..." Foi o avião, foi uma refeição com gosto de plástico, foi uma escala, foi Brasília. Foi um táxi, foi aquela arquitetura de concreto, asfalto e desolação, foi o calor sem oxigênio do Planalto Central. Foi um ônibus, foi a secura vermelha do cerrado, foi o pó que emplastra o cabelo, seca a boca, resseca a alma. Seco, tudo seco, tudo vazio do modo que Caramujo se sentia antes de ser trazido àquele destino. Seco, vazio, árvores retorcidas e esturricadas que mal faziam sombra. Parecia que o Sol estava ao mesmo tempo no nascente, no poente, no Norte e no Sul. Mesmo sacolejando, mesmo com sede, mesmo com pó, mesmo com todo aquele nada em que sua vida tinha se transformado, Caramujo adormeceu. Capítulo6 Rapaz, acorde. Chegamos. Hein? Chegamos onde? Não sei - respondeu o motorista. - Acho que a lugar nenhum. Mas o bilhete que me entregaram na última
  • 18. parada mandava que você desembarcasse aqui. Caramujo não discutiu. Sua vida estava sendo comandada por bilhetinhos. Desceu e aceitou a ajuda do motorista para desembarcar a pequena bagagem. O barulho do ônibus afastou-se até desaparecer, mas a nuvem de poeira vermelha continuou suspensa no ar. Em torno, com a visão meio encoberta pela poeira, Caramujo via uma paisagem única, diferente de tudo o que conhecia. Pequenas árvores de troncos retorcidos e recurvados, de folhas grossas, espalhavam-se esparsas sobre uma vegetação rala e rasteira. Alvoroços de pássaros coloridos sacudiam as copas. Tudo seco e escaldante, manchas de verde pintalgavam moitas e arbustos descorados, como se a natureza só fornecesse água para alguns privilegiados. Ao longe, divisava-se uma mata toda verde, mais extensa, de árvores não muito altas. Além, por todos os lados, áreas imensas sem árvores, cobertas pela mesma vegetação rala e seca, exibiam o gado que ali pastava livre, como inúmeros pontinhos escuros na desolação amarelada. Uma rajada de vento quente levantou mais poeira e entrou-lhe nos olhos. O joelho quase já não doía. O pontapé não pegara tão em cheio quanto o agressor gostaria. E o garoto ficou ali, de pé, com suas bagagens cobrindo-se de poeira, à espera. À espera de quê? Será que ele tinha sido abandonado naquele semideserto para morrer de sede antes de morrer de fome? Que lugar seria aquele? Que vida seria a sua, agora?
  • 19. Mas medo ele não teve. Nem chorou. Ainda que uma lágrima pudesse ser uma bênção líquida no meio daquela secura, daquela desolação. Um vento quente mantinha no ar a poeira que o ônibus levantara ao perder-se na distância, e um zumbido incessante parecia envolver o garoto. Caramujo procurou descobrir de onde vinha aquele zumbido. A poucos metros, viu uma caveira de boi, com seus chifres, meio enterrada no pó. A caveira zumbia. Uma colmeia havia se instalado dentro da caveira, fabricando o mel da morte. O garoto sentiu-se subitamente preso em uma cela imensa, envolvido por um zumbido torturante, sufocado por uma poeira seca que parecia não baixar nunca. E a poeira riu. Bem, dizer que riu seria dizer pouco, porque a poeira gargalhou. O garoto olhou em volta. Aquilo não era só um deserto infernal. Era o verdadeiro inferno, e os demônios já tinham chegado para atormentar-lhe a vida. Só que aquela não tinha sido uma gargalhada demoníaca. Tinha sido a risada mais alegre, mais gos- tosa e franca que Caramujo já tinha ouvido. Aos poucos, a poeira começou a tomar forma, e a sombra escura de um cavalo com sua charrete destacou- se do pó, como se o mais fabuloso dos mágicos resolvesse apresentar seu espetáculo àquela platéia, lotada de vazio, poeira, urubus e carcaças ressecadas.
  • 20. Mas havia também um garoto para assistir à função. E a mágica revelou um velho. O velho do cavalo, o velho da charrete, o velho da gargalhada. De punhos cerrados, ele contra-atacou. - Quem é você? O que quer? Está rindo de quê? De mim? A enxurrada de perguntas jorrou contra o velho como se Caramujo quisesse construir uma barreira de palavras afiadas e atrás dela esconder-se das ameaças que estavam por vir. O velho estava de pé, na boléia da charrete, segurando as rédeas com uma das mãos e batendo com a outra na coxa, para marcar o ritmo incessante de suas gargalhadas. - Ora, vejam só! Teso e tinhoso feito um garrote! E esse olhinho roxo? Ah, invocado e brigão! Eu só queria ver o jeito que ficou o outro que te roxeou desse jeito! - Quem é você? - repetiu Caramujo. - Eu sou aquele que veio para levá-lo ao seu des- tino. É logo ali. Suba, Garrote! De um dia para outro, Eduardo tinha passado de Caramujo a Garrote. Capítulo7 O "logo ali" que o velho tinha dito quando o garoto perguntou onde ficava o Encantado era muito mais
  • 21. longe do que qualquer além que ele pudesse ter imaginado. Por isso, enquanto o cavalinho trotava em direção à Fazenda do Encantado, onde sabia poder encontrar água e algumas espigas de milho para mastigar, aquela estranha dupla tinha todo o tempo que quisesse para aprender a se gostar. Ou a se odiar. - Então é você, não é? - ria-se o velho. - Um garrote, o Garrote! Olhe que não aparecia ninguém da família de Nhá Nana aqui no Encantado desde que Nhazinha Mariana foi pra São Paulo. E novidade, novidade e tanto! Quem diria! Xucro e invocado feito um garrote. Macho e brigão. Ah! Um garrote, o Garrote! Caramujo sentia como se ele fosse um castelo e estivesse sendo invadido por uma horda de hunos às gargalhadas. Por que aquele velho não o deixava em paz? - Meu nome é Eduardo, não é Garrote. Pode me chamar de Caramujo, se quiser. O velho largou as rédeas e fez um ruído com os lábios: - Ptuí! Cara-sujo? Isso não serve pra um machinho como você. Vai ser Garrote mesmo. Pode crer: nome que o Velho Santinho batiza nem o Canhoto consegue mudar. Aqui no Encantado, os touros, os cavalos e as galinhas de botar têm nome inventado e registrado pela língua do Velho Santinho. Só não dou nome no que não vale a pena chamar. O garoto baixou os olhos, percebendo que não adiantava lutar contra a teimosia daquele velho. Ele não sabia
  • 22. como esconder-se de uma gargalhada. Era preciso dizer alguma coisa, desviar a conversa daquela história de Garrote. E você? Quem lhe botou o apelido de Velho Santinho? Ah, de Velho, foi o tempo. De Santinho, acho que já nasci assim, embora meu nome, por gosto de mãe e decisão de pai, seja Santelmo Braz Martim de Oliveira. Nome comprido, não é? Comprido como a minha vida. Mas eu vou viver além do Oliveira. Hei de durar até o último sobrenome da Terra. Hei de acabar no Z e começar tudo de novo pelo A! Passavam ao lado de árvores que protegiam, sob sua sombra, um tipo de capim robusto, que crescia além da altura de um homem. O trote do cavalinho levantava uma poeira vermelha que fazia coçar os olhos do garoto. - Ah! Danada de poeira, não é? Aqui é sempre assim. Isso é o inverno no cerrado. Tudo seco e Sol queimando a cabeça da gente. Nem no verão a chuva adianta. E só ela dar uma estiadazinha que lá vem a poeira de novo! Isso é o talco que Belzebu usa depois do seu banho de enxofre. Você há de se acostumar com a poeira do cerrado do jeito que eu já me acostumei com os meus calos! Ah, ah! O velho falava demais, o garoto ansiava agora pelo silêncio que havia antes de aquele tagarela ter-se materializado à sua frente. - Essa poeira faz parte dos meus ossos, Garrote. Faz parte da minha vida. E há de fazer parte da sua
  • 23. também. A vida de um boiadeiro é isso: poeira e campo aberto. Já comi desse vermelhão pastoreando zebu na Ilha de Bananal e até contrabandeando gado na divisa do Rio Grande. Só não conheço duas coisas na vida: o casamento e o mar. De casamento, ninguém me fale! Filhos eu já tenho alguns, até na Argentina. Mas, casamento! Já pensou, viver ao lado de uma mulher que não fecha a boca um só minuto? A gargalhada soltou-se forte, mas logo virou sorriso e os olhos do Velho Santinho fixaram-se à frente, enquanto as narinas tremiam como se uma brisa marinha subitamente invadisse o cerrado. - Mas o mar... ah, o mar! Eu não hei de morrer antes de ver o mar! Voltou-se para o rapaz e perguntou: - Você já viu o mar, não viu, Garrote? Antes que houvesse uma resposta, continuou: - Você devia conhecer o Rio Grande. Não o Rio Grande de hoje, que está virando um deserto, que está desaparecendo o pampa, que está sumindo o gado, que agora só tem soja. Fez uma pausa, como se pensasse em algo desprezível, e continuou: - Soja! Deixaram de criar comida, deixaram de plantar comida pra plantar soja... - Mas a soja... - É comida? É nada! Soja é comida de cachorro lá na América. Não é comida de gente. Comida de gente é
  • 24. carne e feijão. O boi come de um lado e esterca a terra do outro. A soja come o leite da terra e só descome a miséria das gentes. Nada disso. Você precisava ter conhecido o Rio Grande em que eu vivi. É isso mesmo, já fui boiadeiro da fronteira, já fui boiadeiro de São Borja. Já trabalhei até na fazenda do Homem, sabia? - Do homem? Que homem? - Pois nunca ouviu falar? O Homem de São Borja só tem um, é feito Deus no céu e pai na terra. Getúlio Dornelles Vargas! O velho riu novamente, fazendo com que sua lembrança de um passado histórico se transformasse numa reminiscência fabulosa, divertida. - Você é novo demais, Garrote. Do Homem você só ouviu falar nos livros, não é? Mas eu já tenho o tempo que é preciso pra ter servido à História que você aprende hoje. Sou velho, não sou? Sou mais, sou eterno como o meu nome. Eterno como o fogo-de-santelmo, aquela ilumiúra que o demônio bafeja dos infernos e faz sair pelas covas dos cemitérios nas noites de lua cheia! A risada explodiu de novo e espalhou-se pelo cerrado sem encosta ou parede onde ecoar. - Para todo o mundo eu sou o Velho Santinho. Santinho, o maior de todos os cavaleiros que este país já viu, desde as barrancas do Uruguai até onde o Planalto Goiano vai misturar vermelho com verde na beira da Floresta Amazônica. Se falassem de vaquejada do jeito que falam de futebol, Velho Santinho seria tão conhecido quanto Leônidas da Silva, o Diamante Negro!
  • 25. Aquela voz e aquele entusiasmo eram ingredientes estranhos à vida do Caramujo, que agora era Garrote. - Quem é esse Leônidas? Dessa vez, a gargalhada do Velho Santinho foi ainda mais aberta, mais divertida que todas as outras. Você não sabe nada do passado, não é, Garrote? E está com medo do seu próprio futuro, não é, menino? Você tem muito que aprender com o Velho Santinho. Não te ensinaram nada na escola? De que mundo você veio? Em que ano você estava lá na escola? Quase no fim do primeiro grau. Eu ia para o segundo grau no ano que vem. Segundo degrau? Aqui você não precisa de escada, Garrote! O cerrado é todo plano. Não tem pra onde subir nem pra onde descer! Surpreendendo-se com a própria piada, desta vez, a gargalhada do Velho Santinho soltou-se para estourar os tímpanos empoeirados do cerrado goiano. - Veja, Garrote, estamos chegando. Logo ali é o Encantado! O recém-chegado não riu. Capítulo8 Pesado de frutos que o garoto jamais havia visto antes e com um tronco que parecia ter sido torcido pelas mãos de um gigante, um copado pequizeiro erguia-se
  • 26. formando o marco de uma nova paisagem. A partir da árvore de pequi, começava uma espécie de rua larga, poeirenta, ladeada por uma fileira de buritis pejados de flores amarelas e por casinhas humildes na certa ocupadas pelo pessoal de serviço de uma casa-grande, que se espalhava como um enorme sapo sobre a terra vermelha. O Sol se punha além desse cenário, ofuscando o velho e o garoto que se aproximavam no trote macio do cavalo. Isso tudo é o Encantado? É só o lugar onde dorme quem não tem de passar a noite cuidando do gado, Garrote. O Encantado é muito mais. Todo esse tempo, o cavalinho nos arrastou por cima do Encantado. Aqui o Sol nasce e se põe sem alumiar qualquer outra fazenda! O cavalo ultrapassou o pequizeiro e começou a conduzi- los pela avenida de terra. De cada porta, de cada janela, primeiro cabeças, depois corpos inteiros apareciam para recepcionar o passageiro da charrete. Na certa aquela era uma chegada mais do que anunciada. Uma quantidade inumerável de cães magros misturava-se por todos os lados com galinhas, patos e até uma cabra que, com o úbere estourando de leite, badalava monotonamente um cincerro atado ao pescoço. A charrete avançava contra o Sol em direção à casa. Com os olhos cheios de pó e de luz, Garrote mal conseguia distinguir algumas sombras na varanda. Mas, obedecendo à marcação de uma peça de teatro, as sombras coadjuvantes dispunham-se de modo a
  • 27. destacar a sombra principal. Vestida de negro, lá estava ela. Alta e seca, empertigada e rígida, soberana e altiva como a abelha- rainha daquela colmeia do inferno, coroada por uma cabeleira branca disciplinadamente esticada e amarrada atrás da cabeça. Garrote lembrou-se da caveira que zumbia na desolação do cerrado. De repente, sentiu que o estavam enfiando à força naquela caveira de boi, dentro da colmeia, para ser recebido pela abelha-rainha. E a abelha-rainha só podia ser sua avó Ana. Nhá Nana, do modo que o velho da gargalhada havia falado nela. O Velho Santinho puxou as rédeas e deteve a charrete a poucos metros da varanda. O garoto voltou-se para ele. O velho não parecia com vontade de rir. Seus olhos estavam fixos na cena à frente da varanda. Garrote seguiu-lhe o olhar. O Sol estava por trás da cena e ele só percebia silhuetas imóveis em cima e à frente da varanda. Embaixo, dentro de um semicírculo formado por um grupo de pessoas sem rosto, sem gestos e sem voz, estavam duas silhuetas. Uma mulher, segurando carinhosamente o braço de um menino. Pequeno, bem pequeno, mais pela subalimentação do que pela pouca idade. Uma figurinha montada em uma égua castanha, todo vestido em couro, falou. Voz submissa, mas afiada como um alfanje: - Esse é o Tiãozinho, Nhá Nana. E o filho da Barbina.
  • 28. Foi ele que roubou o doce de abóbora da despensa... A mulher chamada Barbina tremia. O menino Tiãozinho choramingava um choro mudo, cheio de água. - Perdão, Nhá Nana - balbuciou a mãe. - O Tião- zinho é danado. Mas eu posso com ele. Juro que ele nunca mais... A voz da sombra principal despencou da varanda, interrompendo e intimidando: - Você jura? Então está jurado. E o que vamos fazer com ele, mulher? Os lábios de Barbina tremiam, prejudicando a dicção: Eu... ele... a senhora pode dar o castigo agora... juro que ele... Eu? Dar o castigo? Eu não sou a mãe dele, mulher. Cria nova recebe educação é da mãe. Adulto que rouba é problema meu. Cria que rouba é problema da mãe. E você quem deve decidir qual o castigo da sua cria. A pobre mulher olhou para o filho, apertou um pouco mais o bracinho magro e voltou os olhos para a sombra principal: É, Nhá Nana... pode deixar que eu... ele não vai mais... Carne-Seca! - cortou a sombra, dirigindo-se ao cavaleiro. - Ajude a mulher a educar a própria cria! Empreste seu chicote para ela! Garrote olhou com mais atenção para a figurinha montada que falara antes e a quem Nhã Nana agora chamava de Carne-Seca. Era miúdo, com o corpo todo vestido de couro. Apenas as mãos pequenas e a cara
  • 29. ficavam de fora daquela armadura. Seu rosto era exatamente a sua caveira, apenas com dois olhos pequenos e falsos como os de uma boneca, e uma pele fina como um velho pergaminho a cobrir-lhe os ossos. Era tudo ressecado e repuxado, dando a impressão de que aquela figura sinistra estava sempre a rir, a rir de alguém, a rir de todos que, se escapassem da rigidez de Nhá Nana, cairiam no sadismo de Carne-Seca, o ca- pataz do Encantado. Do jeito que tinha caído o menino Tiãozinho, o pobre ladrão de doce de abóbora. A autoridade do Carne-Seca estava no poder que lhe conferia Nhá Nana, e no chicote que nunca lhe saía das mãos: uma tira grossa de uns três palmos de couro, atada a uma tíbia de porco. Mansamente, do alto da égua, estendeu a mão, oferecendo o chicote à mulher, como se lhe fizesse uma gentileza. Barbina tremeu do modo que se arrepiaria se uma lufada de vento gelado tivesse subitamente perturbado a secura do poente no cerrado. Pegou o chicote como se fosse um ferro em brasa. Hesitante, olhou para a varanda. - Estamos esperando, mulher - a voz de Nhá Nana estava carregada de uma cruel suavidade. - Queremos ver se você sabe educar a sua cria... O coração do garoto Garrote acelerou e ele levantou-se na charrete. No meio do círculo, com as lágrimas a escorrer fartas pelo rosto, a mãe começou a chicotear o próprio filho, à frente de todos. Lept, lept...
  • 30. A voz da sombra principal não parecia satisfeita: - Mais forte, mulher! Lept, lept... O molequinho franzino não gritava nem se debatia, como se compreendesse que não era a mãe quem o torturava. A cada chicotada, correspondia apenas um gemido, um gemido doído, baixo, que não vinha da garganta de Tiãozinho, mas do desespero da mãe, que chicoteava a própria alma. Mais forte! Ou prefere que Carne-Seca a ajude a educar direitinho a sua cria? Upa! - fez o Velho Santinho, estalando as rédeas sobre o dorso do cavalinho, que retomou a marcha na direção da varanda. A charrete chegou ao lado da mulher, e o Velho Santinho estendeu o braço, tomando-lhe o chicote e jogando-o de volta para Carne-Seca. Barbina abraçou o filho e os dois desapareceram silenciosamente no meio da pequena multidão. O velho deteve o cavalinho e pôs-se de pé sobre a charrete. Ria alto, como se aquela brutalidade nem tivesse ocorrido, e exibia o garoto que trouxera através do cerrado. Apresentava o rapaz e parecia um mascate apregoando sua mercadoria: - Povo do Encantado, aqui está o Garrote, filho de Nhazinha Mariana. Parece até que a própria Nhazinha Mariana está de volta para o Encantado, não é? Hein? Ninguém vai tirar o chapéu para o Garrote? Hein? A ordem era perfeitamente dispensável. Nenhum dos homens tinha o chapéu sobre a cabeça, mas não era
  • 31. pelo Garrote. Era pela presença da sombra principal. O único que continuava com o chapéu na cabeça era o Velho Santinho. Ao Garrote, pareceu que só o velho tinha esse direito. Parecia ter mais. Parecia ter o direito de interromper uma sessão de tortura ordenada pela sombra principal do Encantado. - Nhá Nana, aqui está o seu neto. Aqui está o Garrote! O garoto desceu da charrete, confuso com a cena brutal que presenciara, aturdido com tantas mudanças, tonto de tantas palavras, e agora também sentindo uma nova emoção: frente àquela sombra, ofuscado pelo Sol, Garrote sentiu medo. A sombra falava e, naquele momento, nenhum outro som se ouviu no cerrado. - Vem cá. A ordem seca como o pó ressoou por todos os lados: vem cá... vem cá... vem cá... O rapaz, sacudindo a poeira das roupas, caminhou até a sombra. Garrote... - murmurou a sombra depois de uma pausa, avaliando o peso do novo apelido do seu neto, que ela nunca conhecera. - Garrote... É claro que fui eu que batizei assim, Nhá Nana -riu-se o Velho Santinho. A voz da sombra endureceu-se. - Pois se é Garrote, vai ser Garrote mesmo. Ouçam todos: este é o Garrote. É o meu neto. Não importa de quem ele seja filho. Não quero mais ouvir o nome de
  • 32. Mariana no Encantado. E isso serve também para você, Santinho! Ao dizer isso, o rosto da sombra virou-se para o velho. Garrote, abaixo da varanda, pôde ver o perfil de cobre da avó recortado contra o céu que, àquela hora, tingia- se da cor da terra do cerrado. Capítulo9 Não viu mais a avó naquela noite. Foi levado para dentro da casa-grande por uma cabocla magra, vestida com um tecido de algodão branco imaculado. Logo depois da porta muito alta, por onde passaria um gigante sem abaixar-se, havia uma sala ampla, na frente ocupada por sofás e poltronas de vime e ao fundo por uma mesa comprida onde se sentariam vinte pessoas. Atrás da mesa, uma vasta janela envidraçada revelava a amplidão do cerrado, já mergulhando na escuridão. Entre os dois espaços, o que sobrava do chão de tábuas caprichosamente enceradas daria para fazer um baile. Só que teria de ser com música ao vivo, pois o rapaz notou que não havia energia elétrica. A casa inteira estava vagamente iluminada por vários lampiões a querosene, espalhados por todos os lados. O ar era tão pesado que ninguém poderia imaginar uma banda ali. "Só se for para tocar música fúnebre...", pensou o Garoto.
  • 33. No meio da sala, à esquerda, outra porta grande deveria dar para a cozinha, mas a moça guiou-o para a porta da direita, que se abria para um corredor, ladeado de mais portas. A moça abriu uma delas e estirou o braço com um lampião, iluminando o interior. Era um quarto amplo, no qual poderiam dormir várias pessoas. - Entre, Nhozinho Garrote. Este é o seu quarto. Acho que primeiro o senhor vai querer tirar a poeira dos ossos, não é? O banheiro fica ao lado, aquela porta ali. E água fria, viu? Não é feito água quente da cidade. Mas... com esse calor... não é? Até que é bom, não é? Se quiser, posso preparar um banho de bacia, com água esquentada no fogão... - Pode deixar. Eu tomo frio mesmo. A moça pareceu aliviada: - Os homens já vão trazer a sua bagagem. Logo eu trago o seu jantar. Nhá Nana disse que é melhor o senhor comer no quarto, hoje. Na amplidão do quarto, uma mesinha já estava posta. Toalha, prato, talheres, copo e uma moringa. Um vasinho de porcelana, com uma flor amarela, coroava a arrumação. - Se precisar de alguma coisa, é só chamar pela Dita. Meu nome é Madalena, mas pode me chamar de Dita. O olhar de Garrote pareceu de espanto. Achou estranho? Mas não ligue, não. Nhá Nana gosta assim. A cozinheira é sempre Dita, a arrumadeira é
  • 34. sempre Antônia, a copeira é sempre Maria. Não importa o nome que elas tenham recebido quando nasceram. Mas qual é o nome delas de verdade? Se vou ficar aqui, preciso saber. O nome da Antônia é Amélia e o da Maria é Jurema. Mas o Nhozinho não precisa saber disso, não. Pra todo mundo, elas são Antônia e Maria, assim como eu sou Dita, porque é assim que Nhá Nana quer. Garrote sacudiu a cabeça: - Quer dizer que minha avó é como o Velho San- tinho? Gosta de mudar o nome das pessoas? Dita sorriu. - Não. Nhá Nana só manda na vida e na morte da gente. No nome quem manda mesmo é o Velho Santinho. Depois do jantar, estranhando a cama, começava a primeira noite da nova vida do garoto. O que ela lhe reservava? A noite no Encantado pareceu-lhe muito mais barulhenta do que qualquer noite na cidade. Os grilos e os sapos, junto com os latidos incessantes daquela matilha de cães vagabundos que rondavam a fazenda, eram muito mais irritantes do que as buzinas e brecadas da cidade grande, às quais Garrote já estava acostumado. "Não sou Garrote... Sou Caramujo...", pensava o rapaz, estendido na cama. "Sou Caramujo, ninguém vai mudar o que eu sou. Eu sou eu, eu sou eu, sou Caramujo..."
  • 35. Onde estava ele? Que fazenda era aquela? Quem era aquela velha que forçava uma mulher a chicotear o próprio filho? Que velha era aquela que fazia açoitar uma criança faminta que tinha roubado apenas um pouco de doce? E por que, por que o nome de Mariana, de sua Mãe Mariana, não mais podia ser pronunciado no Encantado? Sem a mãe, Mariana, e sem o pai, ele tinha ficado só. Sentia até saudade da escola, dos colegas, que ele não tentara transformar em amigos. A solidão doera no seu peito. Mas, agora, naquela fazenda, naquela colmeia do inferno comandada por cruel abelha-rainha, ele começou a sentir que poderia haver algo ainda pior do que a solidão. "O que vai ser de mim nessa fazenda? Eu tenho de dar um jeito de fugir daqui..." Mas como? Pegar um dos cavalos e sair cavalgando na direção de onde? Um pouco de dinheiro para um ônibus ele tinha, mas como pagar uma passagem de avião? Como viajar de avião sem a autorização de algum adulto? E, se conseguisse voltar para São Paulo, para onde iria? Para a casa de tia Alzira, que tinha deixado tão claro que não queria saber dele? Para onde ir? "Como se faz para fugir do inferno?" Pela janela aberta, a noite de lua crescente enchia o quarto de estrelas. Parecia que eram elas que cricrilavam em lugar dos grilos, que coaxavam em lugar dos sapos, que uivavam em lugar dos cães. "Sou Caramujo!", balbuciou o garoto para os grilos, para os sapos, para os cães e para as estrelas antes de adormecer.
  • 36. Capítulo10 Lá estava o Velho Santinho, iluminado pelas primeiras luzes da manhã que ainda não nascera por completo. A vida no Encantado começava de madrugada, e Garrote logo percebeu que não era possível fugir àquela regra, assim como a todas as outras regras daquela fazenda, implantadas pela natureza, pela tradição, mas principalmente pela vontade férrea de Nhá Nana. A prestimosa Dita-Madalena já o havia acordado e oferecido uma farta refeição da manhã, que o rapaz pouco provou. - O que me diz, Garrote? - ria-se o velho, meio sentado na sela de um alazão recém-escovado. - Vai deixar que o Sol te pegue de cueca? A essa hora todo o povo do Encantado já está de chapéu na cabeça e traseiro na sela, garoto. Venha. Nhá Nana mandou te levar pra conhecer a fazenda. Trouxe aqui a sua montaria. Não tenha medo, é um cavalinho maneiro, que não derruba ninguém.
  • 37. Velho Santinho segurava pela rédea um cavalo pequeno, fosco, de cor e idade indefinidas. Garrote lembrou-se da mãe, que levara para a cidade a paixão por cavalos adquirida no Encantado. Nhazinha Mariana. Mariana. Mãe Mariana. Mãe. Morta agora, mas em vida transmitindo ao filho a paixão pelos cavalos, levando-o ainda pequeno para aprender a montar, a não ter medo, a amar os cavalos. Ora, aquele Garrote não era para cavalos pequenos, velhos, foscos e sem cor. Apeie. O que disse? - espantou-se o Velho Santinho. Por favor, Velho Santinho. Apeie. O velho desceu lentamente do cavalo. Com um salto, Garrote agarrou as rédeas e cavalgou o alazão. Meteu os calcanhares dos tênis na barriga do cavalo, puxando ao mesmo tempo as rédeas. O alazão empinou e pateou o ar, relinchando. - Cuidado, Garrote! Tá maluco? Esse bicho te der- ruba! Garrote fincou novamente os calcanhares no cavalo, manobrou habilmente as rédeas, fez o alazão voltear e deu um galope curto em direção ao cerrado. - Ei! Aonde vai, Garrote? O garoto fez uma curva e galopou de volta, travando as rédeas quase em cima do velho. - Velho Santinho, a minha montaria é esta. Se
  • 38. quiser, monte o outro. O velho riu tão alto que teria acordado qualquer um, se ainda houvesse algum preguiçoso no Encantado. - Quem diria! O Garrote sabe montar feito gente grande! Parece até a Nhazi... Calou-se, como se a proibição de citar o nome da mãe do Garrote fosse uma mordaça. - Pareço quem, Velho Santinho? O velho fez que não ouviu a pergunta. Ainda rindo, abraçou-se ao pescoço do cavalinho fosco. - Meu coitado! Te enjeitaram, cavalinho! Pois vai ser sua a honra de conduzir o maior cavaleiro do mundo! Montou e apontou para a frente. - Vamos lá, Garrote. Tenho muito pra mostrar, e você tem muito pra aprender. Venha! Lá se foram os dois. Se Garrote desse uma olhada por sobre o ombro para a casa-grande, veria um vulto muito atento por trás das cortinas de uma janela. Capítulo11 - Por que você não quis falar o nome de minha mãe? Os dois cavaleiros já estavam em plena manhã, levantando a poeira da imensidão do Encantado. A vegetação, às vezes verde e exuberante, às vezes pardacenta e seca, repetia-se o tempo todo. Numa área
  • 39. extensa, a floresta erguia-se mais alta e toda verde. - Isso é o Cerradão, Garrote. Aí tem mais água e a floresta cresce que é uma beleza! Por todos os lados, áreas desmatadas sucediam-se, com incontáveis cabeças de gado pastando as gramíneas gordas, um capim tão delicioso para os bois quanto uma torta de morangos para o garoto. Outras áreas apresentavam extensões degradadas, com um aspecto sujo. - Veja, Garrote. Nesta parte nem mais mato cresce. Não serve nem pra pastagem. É terra esgotada. É voçoroca. A erosão é pior que praga! O pessoal tem de levar o gado pra longe e... Garrote viu o peão preparar um cigarro de palha com todo o carinho. Enrolar cuidadosamente e lamber a borda da palha com uma língua sarrenta de fumo. O cigarro foi-lhe estendido em silêncio. Um silêncio carregado pela expectativa da diversão. Era uma prova? Garrote olhou para o Velho Santinho, que desviou a vista, subitamente preocupado com uma nuvem inexistente. Uma prova! Os boiadeiros queriam descobrir se um rapaz com ares de garoto mimado de cidade tinha a coragem de enfrentar um fumo forte daqueles. E se levaria aos lábios uma palha lambida pela língua de um peão desdentado. Uma prova? Pois que fosse. O garoto não haveria de dar parte de melindroso. Pegou o cigarro, aceitou a chama de um fósforo estendida por duas mãos em concha e
  • 40. sorveu longamente a fumaça. Foi como se um punhado de farelos de vidro lhe escorresse traqueia abaixo, indo incendiar-lhe os pulmões. Tudo voltou explodindo, exigindo um acesso de tosse. Mas Garrote cerrou os dentes, e tudo que se permitiu foi uma grossa lágrima que ficou parada na beira da pálpebra, a brilhar. - Você não pode desobedecer uma ordem, mas pôde interromper o castigo brutal que Nhá Nana tinha ordenado. Por que essa diferença? O Velho Santinho balançou a cabeça: - Garrote, Garrote, você precisa aprender o jeito que é o mundo do Encantado. É um mundo com as suas regras, com a sua organização. Um mundo que todos nós já aprendemos a entender... Não. Garrote não podia entender aquele mundo. Mas largou as rédeas do cavalinho e os dois retomaram a marcha. Agora mais lenta, mais ressabiada, mais encabulada até. A paisagem sucedia-se quase sempre plana como um disco, e os cavalos só vez por outra subiam elevações leves, quase imperceptíveis. Volta e meia, o velho fazia uma parada para que os dois bebessem água dos cantis, sem desmontar, enquanto suas montarias aproveitavam para enfiar as cabeças na gramínea, para um rápido lanchinho. - Você é um bom menino, Garrote. - Velho Santinho retomou a conversa, algum tempo depois: - Você está roído por dentro sem saber por que a sua avó renegou a própria filha, não é?
  • 41. Garrote apertou os lábios e não respondeu. - Nhazinha Mariana! - o velho pronunciou lentamente cada sílaba. - Eu não tenho medo de dizer o nome dela. Eu só tenho prazer em dizer o nome dela. Foi uma... uma filha para mim. Foi uma mãezinha para o povo do Encantado. Eu a ajudei a montar o seu primeiro cavalinho. Ah, era um coitadinho como este aqui. Eu me lembro... Garrote olhava, tentando compreender. O velho riu da seriedade do garoto. - Com quem você aprendeu a montar do jeito que você monta, Garrote? Com a sua mãe? Então foi com o Velho Santinho que você aprendeu, porque tudo que ela sabia fui eu que ensinei! Suspirou. Pensou um pouco, calado, procurando palavras para dizer o que tinha de ser dito, e continuou: - Acho que você nunca vai saber direito por que Nhá Nana quer esquecer a filha. Nunca ninguém saberá. Um dia, a menina... Ah, que mocinha linda que ela estava! Apaixonou-se pelo seu pai, um moço de estudo, da cidade, e foi-se com ele. Nunca mais ouvimos falar dela. No começo chegavam cartas, que Nhá Nana mandava queimar sem abrir... Queimar cartas, proibir, mandar a própria mãe chicotear o filhinho, na frente de todo o mundo! Que espécie de mulher é Nhá Nana, Velho Santinho? Nhá Nana não é uma espécie de mulher, Garrote. Nhá Nana é o chefe!
  • 42. Capítulo12 Um grupo de boiadeiros descansava procurando as raras sombras das árvores retorcidas do cerrado. - Vamos falar com aquela gente, Garrote. Eles vão ficar contentes de conhecer o neto de Nhá Nana. Garrote segurou o braço do velho. - Não, Velho Santinho. Não diga que eu sou neto dela. Diga apenas que sou um sobrinho seu que veio visitá-lo. Quero falar com eles sem a sombra da velha a nos perseguir. - Seja do seu jeito, Garrote. Ah, seja do seu jeito... Quando os dois chegaram junto do grupo, um naco de fumo de rolo passava de mão em mão entre os homens. Cada boiadeiro cortava um pedacinho, alisava uma tirinha de palha de milho com a lâmina de um canivete, picava o fumo bem miudinho, espalhava na palha, enrolava e selava com a língua como se fosse um envelope. - Eh, Velho Santinho! Chegou bem na hora da paradinha pra um palheiro! O Velho Santinho sempre chega na hora, pessoal! - riu- se o velho, apeando do cavalo. E onde foi arranjar essa montaria? - troçou um deles. - Ou o Velho Santinho não agüenta mais cavalo novo? O velho cavaleiro rebateu a brincadeira, fingindo seriedade, mas com um ar de troça: - Está pra nascer o cavalo que possa comigo. Do
  • 43. jeito que não botou barba o homem que me enfrentará! Todos os boiadeiros riram, exibindo um verdadeiro desfile de dentes solitários e cacos amarelecidos. Havia muita simpatia pelo velho, e logo a dupla viajante estava entre os homens, que riam de tudo o que o Velho Santinho dizia. Emprestei o alazão aqui para o meu sobrinho. Quero ver se ele se acostuma com cavalo de homem. Seu sobrinho? Ouvi dizer que o senhor tem muitos filhos espalhados pelo mundo, mas sobrinho eu não sabia de nenhum. Ainda mais um garotão de cidade como esse aí! - riu-se um dos peões. Pois agora está sabendo - respondeu rápido o velho, baixando os olhos para esconder a mentira. Então puxe uma palhinha com a gente, Velho Santinho. E o garoto aí, aceita um palheiro? Garrote viu o peão preparar um cigarro de palha com todo o carinho. Enrolar cuidadosamente e lamber a borda da palha com uma língua sarrenta de fumo. O cigarro foi-lhe estendido em silêncio. Um silêncio carregado pela expectativa da diversão. Era uma prova? Garrote olhou para o Velho Santinho, que desviou a vista, subitamente preocupado com uma nuvem inexistente. Uma prova! Os boiadeiros queriam descobrir se um rapaz com ares de garoto mimado de cidade tinha a coragem de enfrentar um fumo forte daqueles. E se levaria aos lábios uma palha lambida pela língua de um peão desdentado.
  • 44. Uma prova? Pois que fosse. O garoto não haveria de dar parte de melindroso. Pegou o cigarro, aceitou a chama de um fósforo estendida por duas mãos em concha e sorveu longamente a fumaça. Foi como se um punhado de farelos de vidro lhe escorresse traqueia abaixo, indo incendiar-lhe os pulmões. Tudo voltou explodindo, exigindo um acesso de tosse. Mas Garrote cerrou os dentes, e tudo que se permitiu foi uma grossa lágrima que ficou parada na beira da pálpebra, a brilhar. Ninguém riu, porque a expressão do rapaz não convidava à gozação. - Já mostrou seu sobrinho pra Nhá Nana? - perguntou um boiadeiro quase tão baixote quanto um menino. Lutando contra o engasgo, Garrote não perdeu a deixa: - Nhá Nana? Quem é Nhá Nana? Por um segundo, ninguém respondeu, pois para eles aquela era uma pergunta sem cabimento. Não lhes passava pela cabeça a existência de alguém que nunca tivesse ouvido falar em Nhá Nana. Quem conseguiu inspirar-se primeiro para uma resposta foi um boiadeiro que usava óculos, acessório estranho para um peão. - Nhá Nana? Eh, garoto, você deve ter vindo de muito longe. Nhá Nana é Nhá Nana. É tudo isso, é muito mais. É essa terra onde se pisa, é a farinha que se come, é esse gado que se engorda. É tudo. É a nossa vida. E também há de ser a sua, se você ficar por aqui. Garrote insistiu:
  • 45. - Mas de que jeito é ela? Ela é má? Ela é boa? O boiadeiro, acocorado, com a palha entre os lábios, pegou um punhado de terra e foi deixando que o pó vermelho escorresse lentamente por entre os dedos. - Nhá Nana é igual a esta terra. É boa quando ali- menta uma roça de mandioca que a família da gente vai comer. É boa quando deixa o capim fresco crescer pra engordar o gado. Mas é também ruim quando entra pelo nosso peito soprada pelo vento. É ruim quando esconde a jararaca pronta pra matar... O boiadeiro baixinho deu uma risada silenciosa. Boca aberta, poucos dentes e nenhum som. No fim da risada muda, comentou: - Depende do jeito que se olha... - Eu nasci e me criei aqui, garoto - continuou o de óculos. - O vento já soprou um bom pedaço do En- cantado pra dentro do meu pulmão, e eu já escarrei outro tanto. Mas nesse tempo todo eu não precisei entender o que é essa fazenda, ou quem é Nhá Nana. Isso tudo é a minha vida, e eu tenho de vivê-la do jeito que ela é. Garrote, fazendo-se de distraído, soltou outra provocação: - Então Nhá Nana é como uma mãe? O boiadeiro levantou subitamente a cabeça e olhou fixamente para o rapaz, parecendo ter ouvido uma heresia. Através das lentes grossas que mais pareciam fundo de garrafa quebrada, seus olhos pareciam surpresos.
  • 46. - Como uma mãe? Não. Como uma mãe, não. Nhá Nana é Nhá Nana. Nada tem a ver com mãe. O baixote, com uma alegria desdentada, mudou o rumo da conversa: - Eh, Velho Santinho. Sabe por que a gente deu essa parada? - Pra puxar um palheiro? Também. Mas eu disse aqui pra eles que tinha uma surpresa. É mesmo - ajudou o boiadeiro míope. - E quando é que a gente vai conhecer essa surpresa? - Agorinha mesmo. Vejam só. O baixinho foi até um dos cavalos e abriu um embornal. Com cuidado, tirou lá de dentro a tal surpresa. Era um rádio. Um radinho de pilha comum, desses bem baratos. - Fui buscar ontem mesmo, na loja do Nhonofre, lá na vila. Ele disse que eu posso pagar mês que vem. Não é uma beleza? As crianças vão adorar, lá em casa! E a mulher, então, nem se fala! Lentamente, como se manipulasse uma bandeja de cristais, volteou-se e suspendeu o radinho, exibindo-o com orgulho. Seu dedo destreinado lidou um pouco com os controles e logo o grupo todo sorria ouvindo os acordes de uma música sertaneja, uma letra triste, que falava de um boiadeiro abandonado pela mulher amada. ... eeume casei com ela, na lei, na religião... Para aquele grupo, porém, o som do radinho era uma
  • 47. novidade alegre, e eles riram feito crianças em um circo. - Eh, eh! - comemorou um deles. - Isso merece mais que um palheiro! Levantou-se, abriu um alforje pendurado ao lado da sela e tirou de lá uma garrafa. Arrancou a rolha e serviu-se de um gole farto, que fez subir e descer três vezes um pomo-de-adão muito grande para aquele pescoço magro. - Eeeh! - brincou o baixinho, depositando o rádio sobre uma pedra, ainda ligado. - Faça rodar a cachaça, que a gente também é filho de Deus! ... e a mulher que eu tanto amava, com ardor e emoção... A garrafa passou de mão em mão até voltar para o boiadeiro que a oferecera. O homem estendeu-a na direção do Garrote: - É a sua vez, sobrinho do velho. Sirva-se. Velho Santinho estivera calado o tempo todo. Coisa difícil de acontecer. Olhou para o falso sobrinho e riu sua gargalhada: - Ah, Garrote! Será que já está teso pra mandar uma lambada dessa pela goela? O garoto ficou vermelho. A fumaça do fumo de rolo ainda lhe queimava os pulmões, mas ele não haveria de arrepiar, do mesmo modo que não arrepiara há pouco. Levou o gargalo aos lábios e jogou a cabeça para trás, empinando a garrafa como uma corneta. Mas, com a língua, arrolhou o gargalo e fingiu que bebia. ... e a marvada me enganava justo com o meu irmão!
  • 48. Devolveu a garrafa com um fingido ah de satisfação, e passou o braço enxugando a boca, como se tomar cachaça fosse para ele um costume corriqueiro. - Seu sobrinho vai longe, Velho Santinho - riu-se o boiadeiro de óculos, retomando a garrafa. O velho riu, balançando a cabeça: Vai longe? Pra onde é que ele vai? Virar homem? Quer dizer que pra virar homem precisa atochar o pulmão de fumaça e cair de bêbado pelas estradas? Modo de dizer, Velho Santinho... - desculpou-se o peão. - Ah, modo de dizer... O velho e o menino já estavam de novo montados quando uma nuvem de poeira trouxe outro cavaleiro para unir-se ao grupo. Era um peão que Garrote vira na noite anterior, em frente à casa-grande do Encantado. - Bom-dia, Nhozinho Garrote - cumprimentou o peão, tirando o chapéu. O boiadeiro baixinho estranhou toda aquela cerimônia com o sobrinho do velho: - Nhozinho?! Esse sobrinho seu está merecendo todo esse respeito, Velho Santinho? O boiadeiro recém-chegado arregalou os olhos: - Sobrinho do velho? E nada. Esse é o menino Garrote, o neto de Nhá Nana. O sangue subiu à cabeça do baixinho. Transfigurado, correu para o cavalo do Velho Santinho, agarrando-lhe as rédeas: - Que brincadeira é essa, velho? Está mangando
  • 49. com a gente? Fazendo a gente falar, pra depois tudo ser soprado no ouvido de Nhá Nana? ... à nossa mamãe querida tenho de pedir perdão... Quem respondeu foi Garrote, lá do alto do alazão: Ninguém está brincando com ninguém. Foi minha a idéia de me passar por sobrinho de quem eu não sou. O Velho Santinho não tem nada com isso. E ninguém vai falar nada pra Nhá Nana. Mas, Nhozinho - protestou o de óculos -, o senhor é neto dela! Garrote fez o alazão girar, impaciente. - Eu não sou senhor. E não sou neto de ninguém. Não sou nem mais filho de ninguém. Não tenho nada com Nhá Nana, nem com o Encantado, nem com vocês. Eu sou eu e não tenho nada com nada, nem com ninguém! Saiu a galope. O Velho Santinho olhou sério para os boiadeiros, balançou a cabeça e tocou o cavalinho na direção do garoto. ... pois sem nem pensar na vida, garrei firme do facão, e cravei no peito dele bem fundo no coração! Atrás, ficou o grupo surpreso e mudo, sem saber o que pensar. A modinha se encerrava com caprichados acordes de viola, enquanto a dupla cantora repetia o estribilho. ...e cravei no peito dele bem fundo no coração!
  • 50. Capítulo13 Galoparam em silêncio por um bom tempo. Mas logo o velho guia retomou a tagarelice como se tivesse esquecido a ousadia do rapaz ao encerrar a discussão com os boiadeiros. Velho Santinho liderava a marcha e fazia Garrote conhecer um pouco mais da fazenda. A cada novo córrego, a cada nova pastagem, a cada grupo de habitações humildes dos agregados, Garrote era apresentado pela língua do velho, mas as imagens falavam por si sós. Na beira de uma área de cerradão, um alvoroço chamou a atenção do Garrote e deu para o garoto ver de relance um grupo de porcos grandes, peludos, correndo entre as árvores retorcidas e raramente reve-lando-se no meio do capim muito alto. - São os queixadas, Garrote. Eta, porções brabos! Mal dá pra ver no meio do capim-flecha. Estão correndo pra água. Isso do Chapadão é molhado de rio que não acaba mais! Olha lá, naquele meio. Veja como a mata fica mais bonita. Aquilo é um brejo só! Se duvidar, um desses daí vai acabar no bucho de uma jibóia! Mais adiante, Garrote avistou um grupo de peões cortando uma cerca de arame, derrubando os mourões e tangendo uma manada de cavalos para dentro de um viçoso milharal. Nhá Nana acabou de comprar essa terra, Garrote - explicou o Velho Santinho. - Olha o Encantado crescendo!
  • 51. Ela quer comprar todas as terras do mundo? - perguntou o rapaz, com ácido na voz. Não - riu-se o velho. - Ela só quer comprar as terras do vizinho! Ah, ah! E sempre vai ter alguma terra de vizinho pra comprar, não é? Ah! De repente, o alazão mancou e, mesmo sem olhar, os dois já sabiam que o cavalo havia perdido uma ferradura. - Ora, veja - riu-se o velho. - A sua cavalgadura perdeu o tamanco. Vamos até à casa do Cipriano, que é logo ali. Você precisa ver o jeito com que ele sabe cuidar das vacas de leite! Parece que são filhas dele, de tanto mimo! Ele deve estar no trabalho, mas lá tem tudo o que eu preciso pra consertar o seu alazão. Monte no meu cavalo que eu vou a pé, levando o seu pela rédea. - Não, Velho Santinho. Eu levo o cavalo e vou a pé. - Então vamos a pé os dois. Ah, você conhece aquela história do velho e do menino que iam levando um burro pra vender na feira? Pra que o burro não chegasse cansado e perdesse preço, os dois foram a pé, levando o burro pela rédea. Daí passou um homem que veio logo palpitando e dizendo... A língua solta do velho surpreendeu o rapaz ao ouvir que uma fábula criada há mais de dois mil anos estivesse impregnada até no cerrado goiano: Eu já conheço essa história, Velho Santinho. Menino sabido... O velho cavaleiro desmontou e os dois foram caminhando sobre o barro seco do cerrado, cada um com
  • 52. sua montaria pela rédea. - Está vendo que mundão, Garrote? - continuou o Velho Santinho. - Não é de dar orgulho? Isso tudo está na sua família há gerações! Você não é só neto de Nhá Nana: é neto desse cerrado inteiro! Garrote nada respondeu. Ia mudo, de cabeça baixa e com as sobrancelhas franzidas, pelo brilho do Sol e por seus pensamentos. O que era o Encantado? Que vida seria a sua, perdido naquela fazenda que parecia não acabar mais? - Eta, Garrote enfezado! - gozou o Velho Santinho. - Perdeu a língua? O passo do rapaz apressou-se e ele não desviou a vista do chão. - Eu não quero ser neto de ninguém. Eu não pedi pra ser neto de ninguém. O velho riu gostosamente: - Tem um monte de coisas que a gente não pede pra acontecer, mas acontecem do mesmo jeito, Garrote. A gente não pede pra nascer, mas nasce. A gente não pede pra morrer, mas morre. Todas as coisas importantes da vida acontecem porque querem acontecer. A gente só controla as coisas miúdas. E o destino, é assim mesmo. Garrote parou e cravou os olhos no velho: Eu não quero isso, Velho Santinho. Eu não quero essas coisas que já vêm prontas. Eu vou fazer o meu destino do jeito que eu quero que ele seja! Ora, ora! Isso é que é um Garrote dos bons. E olhe que muita gente daria um olho pra ter o seu destino:
  • 53. herdeiro do Encantado, o maior pedaço de chão do Planalto Central! - Herdeiro?! Disso aqui? - É claro, Garrote. Você nunca pensou nisso? Nhá Nana era filha única e teve só uma filha também, a Nhazinha Mariana, sua mãe. E você não tem irmãos, não é? Por isso, o Encantado está esperando pra ser seu. O Garrote do Encantado, o Encantado do Garrote! Garrote não havia pensado nisso. Desde que chegara ao Encantado, toda a atenção do garoto estava voltada para um enorme esforço de sobrevivência, de resistência, sem saber direito a que, nem para quê. Só o que ele sabia é que, de algum modo, estavam querendo mudá-lo, transformá-lo, forçá-lo a alguma coisa que ele desconhecia, mas detestava mesmo sem conhecer. - Lá está, Garrote. A morada do Cipriano. Capítulo14 Ao contrário do que previra o velho, Garrote percebeu que havia não só um, mas dois homens adultos no grupo que os recebia. Além desses, uma mulher, muitas crianças, muitos cachorros, muita festa. A acolhida era tão gentil, tão efusiva, que o fazia sentir que aquelas pessoas poderiam ser uma pausa para suas preocupações. Uma garota, com um sorriso cândido, centrou o olhar do rapaz. Na certa era a mais velha do grupo da filharada,
  • 54. talvez pouco mais nova do que o rapaz da cidade grande. Velho Santinho! Mas que honra, receber o senhor nesta casa de pobre! - cumprimentou um dos homens, um boiadeiro que trazia no olhar a pureza de uma criança. Este é o Garrote, menino de São Paulo - apresentou o velho, sem dizer de quem o apresentado era neto. - Este é o Cipriano, esta é a Nhá Zeza... Apesar de tantos filhos, o casal residente não era velho, embora sua aparência fosse bem castigada pela vida dura de agregados daquela fazenda sem fim. Este é o... ora se não é o Valdomiro, lá da Fazenda da Ponte Lavrada! Bom ver o senhor com saúde, Velho Santinho - cumprimentou o homem com cara de desânimo, tirando respeitosamente um chapéu surradíssimo. O Cipriano e a Nhá Zeza estão recebendo muitas visitas, hoje, Garrote! - e continuava a desfiar apresentações e apelidos. - ... este pulando ali é o Cabrito, aquela é a Ritinha... "Ritinha? O nome dela é Ritinha?", pensava Garrote, sem desviar o olhar da menina. "Um nome simples... um nome com o jeitinho dela..." ... o de dedo no nariz é o Caroço. De tão miudinho e tinhoso, o pessoal cismava de chamar essa cria de Piolho. Mas piolho só serve pra coçar e pra matar com a unha - comentou o velho, rindo e esmagando um ácaro invisível entre as unhas dos polegares. - Mas esse menino vive fazendo caroço com o que tira do nariz e foi
  • 55. assim que eu batizei ele. Caroço está mais do jeito, não está? Tira o dedo do nariz, Caroço! - advertiu Nhá Zeza, confirmando a aceitação do apelido. - ... aquela menorzinha é a Desaparecida. Por vontade de Nhá Zeza o padre batizou a menina de Aparecida, mas ela é tão magrinha que o melhor mesmo é chamar de Desaparecida! Ah, ah! Velho Santinho desfiava os nomes e apelidos daquela penca de crianças como se todos fossem seus afilhados. - A casa é sua, Velho Santinho - oferecia Cipriano. - O alazão perdeu a ferradura? Pode deixar que eu tenho uma do jeitinho que ele precisa. É só um minu-tinho, um minutinho... Acompanhado por Garrote, pelo velho e pelo homem apresentado como Valdomiro, Cipriano remexeu no meio das tralhas de um paiol logo ao lado da casa e encontrou a ferradura certa para o casco do alazão. Dobrou a pata do animal, apoiou-a na coxa e começou a pregar os cravos com muita habilidade. Que vagabundagem é essa? - troçou Velho Santinho. - Isso lá é hora de um peão do Encantado estar em casa, no meio das mulheres, dos pirralhos e das galinhas? Não troce comigo, Velho Santinho - respondeu Cipriano, reforçando as palavras com marteladas na ferradura. - Estou no campo desde as quatro da manhã. Voltei mais cedo pra esperar o Valdomiro aqui, que veio pra levar a Manchinha pra Ponte Lavrada. Naquele fazendão terá muita serventia uma vaca igual a essa. E eu decidi
  • 56. vender... - A Manchinha? - espantou-se o velho. - Você vai vender a Manchinha? Mas não foi você mesmo quem disse que aquela bezerra ia mudar sua vida? E, agora que ela virou uma leiteira dessas, você vai se livrar dela? Cipriano soltou a pata ja ferrada do cavalo e limpou o suor com o braço. O alazão bateu a pata várias vezes no chão duro, como a experimentar o novo calçado. - Disse sim, Velho Santinho - respondeu o homem com uma expressão desalentada. - Eu disse que a vaca ia mudar minha vida e tinha certeza disso. Mas, depois... Os três adultos acocoraram-se no terreiro. - Pra comprar a Manchinha, eu e a velha sacrificamos tudo que a gente tinha. As crianças passaram ainda mais pobreza do que já vinham passando. Mas eu consegui juntar o necessário pra comprar essa bezerra. Os olhos inocentes do peão brilharam: - E ela cresceu, engordou, ficou essa beleza que é a Manchinha. E o meu sonho cresceu junto com ela. Eu achava que ela era um começo, que era só mais um pouco de sacrifício e eu podia ter uma criação só minha. E que depois... Ah! Depois eu ia conseguir comprar uma terra! Voltou os olhos molhados para os amigos: - Eu não queria muito. Uma terra pequena, longe, onde as crianças pudessem crescer com a plantação e eu
  • 57. pudesse acabar a vida trabalhando. Será que é pedir muito? Será que é sonhar muito? Um palmo de chão que a gente molha com o suor da vida e onde a gente se enterra feliz depois de morto? Com o seu ar de desânimo, o boiadeiro Valdomiro falou, revirando o chapéu nas mãos: - Vai ver é mesmo... Esse é o sonho de todos os peões, de todos os agregados do mundo inteiro. Um pedaço de terra! Qual o quê! Por mais longe que seja essa terra, por mais miúda que seja, esse é um sonho sem jeito... Velho Santinho não admitiu o rumo derrotado para onde a conversa ia sendo levada: - Que é isso, gente? O que é que é sem jeito? - Nossa situação... - explicou Valdomiro. - Isso não tem jeito mesmo. É tudo sempre a mesma coisa: trabalho e mais nada. Nada muda... Velho Santinho rebateu alto, rindo como sempre: - Ora, se não mudou até agora, não quer dizer que não vá mudar nunca. Quer dizer que não mudou ainda! Cipriano passava a mão pela cara, enxugando o sonho e acreditando no futuro, apesar de tudo. E... não há de ser nada. Com o dinheiro da Manchinha, pago tudo o que devo e vou dar uma alegria das grandes pra velha e pras crianças: vou comprar uma televisão! Uma televisão?! - Velho Santinho dobrou-se, às gargalhadas, batendo com as mãos nas coxas. - Isso sim é coisa sem jeito, Cipriano! Pois você não sabe que precisa eletricidade pra fazer funcionar a televisão?
  • 58. Nem na casa-grande do Encantado tem eletricidade. Ou você vai pedir a Nhá Nana que puxe eletricidade só pra sua casa? Precisa de eletricidade? - a decepção deixou lívida a face do peão. - Precisa mesmo? Quer dizer que eu não posso comprar uma televisão? Capítulo15 Garrote afastou-se da conversa dos três homens. Com a garganta seca da poeira do passeio, sentiu sede e caminhou lentamente para a sela do cavalo onde estavam os cantis. Sentiu um toque de levinho em seu braço: - Quer água? Era a voz da menina mais velha, que o Velho Santinho havia chamado de Ritinha. Olhou sisudo para ela e assentiu com a cabeça. - Quero sim. Obrigado. Delicadamente, a menina conduziu o rapaz para um poço coberto por tábuas enegrecidas. Levantou duas delas e manejou habilmente uma corda, içando um balde de madeira todo calafetado com betume. Uma cuia estava pendurada por uma cordinha à beira do poço. Ritinha encheu-a e ofereceu-a a Garrote. Beba. É fresquinha. Obrigado.
  • 59. Garrote bebeu de olhos baixos, fugindo ao calor do olhar da menina, que o fitava, curiosa. Obrigado - disse sério, devolvendo a cuia. Obrigado, obrigado, obrigado - remedou a menina sorrindo, e como era lindo aquele sorriso! - Você só sabe dizer obrigado? Hã... desculpe... A menina levantou a mãozinha e tocou-lhe o rosto: - O que é isto no seu olho? Está roxo... - Nada... eu machuquei. Mas já está sarando... Garrote se sentiu perturbado pela intimidade do toque da menina e desviou a conversa. - Seu pai vai vender a vaca, não vai? Ritinha começou a andar lentamente para longe da casa. Sem se dar conta, Garrote a seguiu. Vai sim. E você? Não fica triste com isso? Claro que não. O pai sabe o que faz. O que o perturbava tanto naquela menina? Garrote comparou-a com as meninas do seu colégio. Todas tratadas, cabelos sedosos, peles delicadas, dentes perfeitos, cheias de perfumes e roupas da moda. Ele tinha aprendido que aquelas eram lindas. Mas Ritinha... Seu vestido era um pano sem forma e sem cor, seus cabelos eram endurecidos pelo vento do cerrado, sua altura era pequena, seus olhos... Ah, os olhos negros de Ritinha! Tinham vida, tinham
  • 60. troça, tinham tudo dentro deles. E eram eles que olhavam confiantes para Garrote. Como ela podia ter tanta confiança, se ele não tinha nenhuma? - O pai sabe o que faz. Ele trabalha muito e a gente ajuda no que pode. Logo ele vai tirar a gente daqui. - E pra onde vocês vão? - Não sei. O pai que sabe. Pra longe. Uma terra longe. Lá, a gente vai ter muitas vacas como a manchinha, vai poder plantar. A gente vai ter até uma televisão, sabia? Garrote desviou o olhar dos olhos negros da menina. Lembrou-se do peão Valdomiro dizendo que aquele era um sonho impossível. À frente dos dois, a imensidão do cerrado pareceu uma penitenciária sem grades, que mantinha todos os peões condenados à prisão perpétua. E a trabalhos forçados. Uma condenação eterna, sem alternativas, sem amanhã, sem esperanças. - Me fale de São Paulo. A menina colocou sua mãozinha miúda sobre a mão do Garrote. Uma onda morna emanava daquele corpinho moreno. A menina fazia parte do cerrado tanto quanto aquelas árvores retorcidas e aquela terra vermelha. Só que, nela, o cerrado sorria. - São Paulo? - respondeu ele, evasivo. - É aquilo mesmo. Uma cidade igual às outras. - Ah, você não quer me contar! - Desculpe. Conto sim. O que você quer saber? - Aqueles prédios todos. Me conte. Eu vi numa revista.
  • 61. - Contar o quê? - As pessoas moram lá dentro mesmo? - É claro que moram. - Uma casa em cima da outra? - É, acho que é isso mesmo. Uma casa em cima da outra. - E fica todo mundo lá dentro? As gentes, os porcos, os cachorros e as galinhas? - É claro que não. Só as pessoas. - Ué! E onde fica a criação? - Não fica. Não pode ter criação em apartamentos. Ritinha ficou decepcionada. Não podia admitir a possibilidade de que alguém pudesse viver sem pelo menos um galinheiro e alguns cachorros. - Diga uma coisa: de que jeito é que as pessoas que moram nas casas de cima sobem até lá? - Sobem pelo elevador. - O que é isso? - É igual àquele balde que você puxou lá do poço. É uma caixa grande onde as pessoas entram e um motor puxa para cima por uma corda de aço. Ritinha sorriu de novo: - Ah, você está caçoando comigo. Gente não é que nem água de poço! - Não é brincadeira não, Ritinha. É assim mesmo. A menina calou-se por um momento. No horizonte do cerrado, seus olhos construíam arranha-céus
  • 62. imaginários, cheios de gente sendo içada por enormes baldes. - Você nunca foi à cidade? Nunca viu um prédio? - perguntou Garrote. - Não. A gente só vai à vila, de vez em quando. Eu gosto de ir. Principalmente quando tem festa na igreja. Deu uma risadinha travessa, mostrando que lhe vinha à memória alguma gostosa lembrança das quermesses da vila. Depois, retornou à confiança que tinha no pai: - Mas o pai vai tirar a gente daqui. E as festas do lugar pra onde a gente vai vão ser mais divertidas ainda. O pai trabalha muito, ele é muito esperto, sabia? Não tem doença de gado que ele não saiba cuidar. E é valente, ainda por cima! Imagine que ele é capaz de tirar berne até de touro bravo! O bicho fica tentando chifrar, mas depois sai bem satisfeito sem a chupação dos bernes e dos carrapatos... Garrote podia imaginar, sim. Imaginava e mal podia acreditar que um peão analfabeto, que nem sabia que televisão precisa de eletricidade, pudesse agir como um verdadeiro veterinário. - Seu pai é esperto sim, Ritinha... - Se é! Ele sempre fala que um dia a gente vai ter uma terra só nossa. Aí a gente vai poder passear, conhecer outros lugares. Eu quero conhecer Brasília e viajar de avião. E você? O garoto tomou um susto ao ver-se incluído no rol daquelas pobres criaturas, para quem a vida se resumia ao pó do Encantado e à vastidão daquelas paisagens.
  • 63. - Eu? E-eu também... - Eu não vou ter medo, sabia? - afirmou a menina naquele seu jeitinho delicado. - Medo de quê? - De viajar de avião. Minha mãe diz que tem medo, que o avião pode cair. Mas não cai, não. Avião é feito pássaro, e pássaro não cai. Garrote sorriu com a comparação e trouxe o assunto para a terra: O Encantado deve ser muito longe da escola, não é? Como é que você vai à escola? À escola? - espantou-se a menina, arregalando os grandes olhos negros para ele. - Que escola? Aqui ninguém vai a escola nenhuma! - Não? Nem você, nem seus irmãos? - Não. - Mas por quê? A menina não respondeu. Em vez disso, abaixou-se, pegou um graveto e desenhou na terra. - Mas eu sei escrever meu nome. Olhe só. O rapaz leu RITA escrito no chão, em letras de fôrma. - Agora você - convidou ela, estendendo-lhe o graveto. - Eu o quê? - Agora você escreve o seu nome. - Meu nome? - É. Por quê? Você não sabe escrever o seu nome?
  • 64. Os lábios de Garrote tremeram. Sem nada responder, apontou a varinha para o chão. Mas deteve-se por um instante. O que iria escrever? Eduardo? Caramujo? Ou... Garrote? Bom, ele havia sido apresentado como Garrote à família de Cipriano. Até àquele momento, o garoto havia odiado a imposição do apelido, mas de que adiantaria lutar contra isso naquele momento? Usando também letras de fôrma, escreveu seu nome na terra. - Puxa, que nome grande o seu! - observou Riti-nha. - Maior do que o meu. O que está escrito? - Está escrito... GARROTE. - Garrote... - falou a menina, saboreando o nome. - Garrote... Igual bezerro de três anos. São danados esses garrotes. Loucos pra atacar a gente. Depois viram touros. E você? Vai virar touro também? Riu-se cristalinamente da própria piada. Acompanhando a risada, naquele momento uma revoada de periquitos passou por eles, fazendo alarido. - São os tuins. Vão pra água. Tuim gosta das sementes de tudo o que nasce na água. Venha. Vamos lá. Garrote seguiu a menina, que corria como uma corça, volteando as pedras e seguindo um caminho que levava ao rio, na rota dos periquitos. A corrida dos dois era ladeada por uma vereda de buritis, tão florados de amarelo que fazia o rapaz sentir- se em um corredor de algum palácio de sonhos, forrado de ouro. Seus tênis afundavam em uma relva verde
  • 65. forte, fofa como um tapete real. Capítulo16 Era um braço pequeno de rio mas, protegido por pedras grandes, lisas como lajes, formava um recanto fresco, úmido, cheio de verdes, de musgos e samambaias, uma bênção em meio à secura do cerrado. Correndo pelas pedras, a água livrava-se do pó vermelho e ficava mais clara que água de piscina. Era um ambiente totalmente diverso dos chapadões do cerrado. Uma densa floresta, com árvores muito mais altas, mas que, humildemente, só erguiam suas copas para o céu depois de seus galhos curvarem-se como saca-rolhas, como se fizessem mesuras e salamaleques aos jovens visitantes. - Vamos! - convidou a menina. - Você vai gostar dessa água! Garrote parou, hesitante. Ia dizer que não tinha roupa de banho, ia dizer que... Não houve tempo. Rindo, arrulhando junto aos periquitos por entre as taboas, Ritinha arrancou o ves- tido e jogou-se nuinha no rio. Sem pensar, Garrote despiu-se também e mergulhou atrás dela. A água fresca envolveu-o em um abraço, dissolvendo o pó que o rapaz acumulara cavalgando toda a manhã. Garrote sentiu-se limpo, de um modo que jamais se sentira antes.
  • 66. A água chegava-lhe aos ombros. Para Ritinha, não dava pé. Mas a menina nadava em volta do convidado, como um cachorrinho, rindo, mergulhando e aparecendo logo em seguida, em outro ponto do rio. Veio por trás e empurrou a cabeça do Garrote para baixo. O rapaz mergulhou, deu uma cambalhota dentro d'água e agarrou a menina pelos ombros. A pele que suas mãos tocavam estava fresca como as águas. Garrote abraçou-a, apertado, por um momento, e em seguida empurrou-a também para dentro da água. A menina ressurgiu ainda rindo, gargalhando, brincando, fazendo troça, distribuindo alegria, tentando plantar esperança no coração de Garrote. Ritinha deu duas braçadas em direção à margem. Sentindo a terra sob os pés, foi saindo do rio. O Sol a iluminava em cheio. O cabelo negro, escorrendo pelas costas, pingando, chegava quase à cintura. Garrote olhava aquele corpinho nu, dourado pelo Sol, como se jamais tivesse visto algo tão lindo na vida. Saiu também lentamente da água. Só então deu-se conta de que também estava nu. Deveria sentir-se envergonhado, deveria correr para cobrir-se. Só que não sentia nada disso. Parecia-lhe a coisa mais natural do mundo estarem ali os dois, ele e Ritinha, nus sob o Sol do Planalto Central. Pela primeira vez, desde que fora chamado ao gabinete do diretor do colégio para saber da morte dos pais, Garrote sentiu-se relaxado. Nesse mundo maluco, no
  • 67. meio de tanta pobreza, será que havia uma esperança? Uma esperança morena, bronzeada, dourada, que sorria para ele e que agora rodava em corrupio, secando-se ao Sol, girando a farta cabeleira negra, espalhando confiança, tentando mostrar que a vida pode ter sentido? A menina parou de girar, arquejante. Calada agora, olhou o rosto do rapaz. Garrote aproximou-se dela. Muito perto. A água do rio, evaporando-se da pele de Ritinha, perfumou-lhe o olfato. Muito perto. Colocou as palmas das mãos delicadamente nos ombros da menina. Muito perto. Puxou-a para si. O rosto de Ritinha elevou- se e os olhos negros o encararam com um narizinho empinado para a frente. Haveria uma ponta de sorriso ainda? Muito perto. Garrote dilatou as narinas, sorvendo profundamente o perfume do corpo de Ritinha. Muito perto. Envolveu-a suavemente num abraço. Sentiu seu corpinho nu junto ao seu. Os pequeninos seios de encontro a seu peito. O envolvimento o impedia de pensar em seus problemas, em seus medos, em sua ansiedade. Naquele instante, Ritinha ocupava cada pedacinho do seu pensamento. E deixava o resto de fora. Beijou-a. Primeiro a pontinha do nariz, depois o rosto, a testa, os olhos. Beijou com ternura os lábios molhados. Ritinha desvencilhou-se delicadamente. Correu para o
  • 68. vestidinho e vestiu-o com um só movimento, por cima da cabeça. Com graça, enfiou os dedos das duas mãos atrás da nuca, puxando os cabelos molhados para fora da gola do vestido. Sem conseguir desviar o olhar, Garrote vestiu-se também. Nada mais disseram. Ritinha pegou o garoto pela mão e os dois caminharam lentamente de volta. Garrote lembrou-se das palavras da menina: "Avião não cai não. Avião é feito pássaro. “E pássaro não cai.” De mãos dadas com ela, ergueu os olhos para o céu. Para o céu do Sol, para o céu dos aviões, para o céu dos pássaros, para o céu dos anjos chamados Ritinha... Ritinha e Garrote, Garrote e Ritinha. De mãos dadas, olharam juntos para o céu do Planalto Central, como a contemplar enormes pássaros de prata, cujo destino era permanecer para sempre voando. Sem cair jamais. Como os sonhos. Como a esperança. Capítulo17 O Sol já estava alto quando os dois voltaram para a morada de Cipriano. Dona de casa diligente e organizada, Nhá Zeza tinha arrastado uma mesa tosca para o terreiro e não podia permitir que os visitantes continuassem viagem sem almoçar. Faço questão, Velho Santinho. O que a gente tem de
  • 69. comer é de pobre, mas nem Cipriano nem eu nunca deixamos ninguém montar a cavalo de barriga vazia. O que é da gente é do senhor. Ah, não precisava se incomodar, Nhá Zeza... - e o velho fez a cerimônia de praxe. Garrote sabia que o velho trouxera um farnel para os dois almoçarem no campo, durante o passeio. Mas, como o Velho Santinho, percebeu que qualquer recusa seria uma ofensa. - Imagine, sair sem almoço! - encerrou a anfitriã, como era de se esperar. O velho olhou para os cabelos molhados do rapaz e depois seus olhos foram até à cabeleira da Ritinha, que umedecia as costas do vestido. Não disse nada. Nhã Zeza trouxe para a mesa pratos de barro com um angu de farinha de peixe, milho torrado e um tipo de pão pesado, ainda quente do forno à lenha. Uma moringa continha água quase tão fresca quanto se tivesse saído de uma geladeira, e uma jarra de barro mostrava a brancura de um leite cheiroso, espumante, talvez o último presente da Manchinha. Foram distribuídos pratos de plástico e canecas de alumínio, quase todas já bem amassadas. Tudo estava muito limpo e cheirava bem. O ar cheirava bem e, em suas narinas, ainda morava o perfume natural da pele molhada de Ritinha. O que estava acontecendo? Será que ele podia deixar que aquela visita o fizesse esquecer-se de sua única saída, que era fugir daquela colmeia infernal na primeira
  • 70. oportunidade? Não. Era preciso manter a cabeça no lugar. E sentou-se em um caixote do outro lado da mesa onde estava Ritinha. A menina ficou com as crianças, ajudando-as a comer. A refeição que Dita lhe oferecera pela manhã já estava longe, e Garrote comeu com vontade. Esvaziados os pratos, Velho Santinho trouxe os cavalos pela rédea. O dia de trabalho continuaria para os donos da casa e Valdomiro tinha de levar a Manchinha embora. E ele tinha de continuar apresentando o Encantado para Garrote. Obrigado, Cipriano - despediu-se o velho. - Isso foi almoço de rei! De rei não foi - respondeu modestamente o caboclo. - Mas foi de coração. Volte sempre, Velho Santinho - convidou Nhá Zeza. - O senhor sabe que a casa é sua. Garrote montou e deu uma última olhada para a casinha de Cipriano. No meio do grupo que acenava, lá estava a menina. Ritinha, sorrindo feito criança, recheada de esperanças e fé no futuro. Sentiu-se um velho. A menina esperava muito mais da vida do que ele. Tinha amigos, tinha pais, tinha esperança. Ele não tinha nada.
  • 71. Capítulo18 Garrote atiçou o alazão, procurando distanciar-se logo do calor do olhar de Ritinha. Voltou os olhos para trás e ainda viu a figurinha da menina, já distante, a acenar para ele. Voltou-se para o companheiro: Velho Santinho, a filha do Cipriano disse que nunca foi à escola. Nem seus irmãos. Por quê? Nenhuma criança do Encantado vai à escola, Garrote - respondeu o velho, muito sério. - Por quê? - Porque Nhá Nana não quer. Quem nasce no Encantado só tem um destino: trabalhar no Encantado. Pra que precisam saber ler? Pra que aprender a escrever? O lábio inferior do Garrote tremia. O garoto não podia entender um absurdo daqueles. - E você acha isso certo, Velho Santinho? Sem responder, o velho picou o cavalinho e galopou, à frente do Garrote. O rapaz havia aprendido mais um pouco como viviam aquelas pessoas na fazenda de Nhá Nana. Sem escola! E ocorreu-lhe que ele, o novo Garrote, ficaria também sem escola. Como ele iria continuar os estudos? A morte dos pais havia interrompido até mesmo a conclusão de sua oitava série. E em seguida? Ah, pelo jeito só lhe
  • 72. restava a universidade empoeirada do Encantado para cursar! E a reitora era uma velha demente, especialista na pedagogia do açoite... "Tenho de fugir daqui..." Cavalgaram durante toda a tarde. Aos poucos, Garrote percebeu que o velho cavaleiro liderava uma cavalgada em espiral, que havia começado próxima aos limites da fazenda e cujo vértice seria o retorno à casa-grande. Papagaios, araras e capivaras, veados-campeiros e tamanduás, rios e arroios, matagãos intocados e terra pelada, pastagens e voçorocas, bois e cavalos, carneiros e cabras, pequizeiros retorcidos, palmitais sem fim e moitas de flores tantas que Garrote nem mais perguntava o nome. Mas o velho fazia questão de nomear: - Este é o barbatimão, ali é o pau-santo. Veja que lenho forte! Isso dali é a sucupira, madeira cara, que está se acabando de tanta mobília que os estrangeiros adoram ter em casa. Ali é o pau-terra... Olha aquela moita de indaiá! Todo mundo gosta de indaiá num jardim, não é? Me disseram que até nas ruas da cidade grande eles plantam esses indaiás pra enfeitar... Olha ali a catuaba... Veja só: esses araçazeiros estão carregados. Quer comer araçá? Nunca comeu? Ei, olha lá o caracará! Eh, gavião esganado! Já, já vai mergulhar e levar um curiango desses pro papo dos filhotes. Ah! Plantações só uma ou outra hortinha para consumo próprio em volta dos casebres dos boiadeiros, olhos verdes perdidos no vermelho sem fim. Não se planta nada no Encantado? - perguntou o
  • 73. garoto. Claro que se planta! - riu-se o Velho Santinho. -O milho, a mandioca, o feijão e até o arroz que você come brota aqui, nesta terra, Garrote! Não. Eu digo plantação pra vender. Todo este Estado está enriquecendo com uma porção de produtos agrícolas como a soja, o milho e o algodão! Ufa! Você aprendeu bastante coisa na escola lá da cidade grande, hein, Garrote? Estou falando em agricultura, Velho Santinho! -insistiu o rapaz. O velho desfez a risada. - Isso não. Nhã Nana sempre diz que plantação só dá dor de cabeça e bedelho estranho enfiado no Encantado. Tem de chamar gente pra botar produtos na terra, tem de espalhar veneno pra perseguir a saúva, o cupim e o gafanhoto, tem de comprar máquinas que só teimam em encrencar. Logo, isso tudo aqui ia ficar cheio de gente metida a sabichona, querendo dar palpite na vida do Encantado. E isso Nhá Nana nunca ia permitir, Garrote! O rapaz balançou a cabeça, desolado: - O que ela não iria permitir, Velho Santinho? O progresso, é? O velho cuspiu de lado, com desprezo, desviando a conversa da determinação da senhora do Encantado para sua própria pessoa: - Disso eu nunca precisei. Com o gado não precisa ninguém de fora com idéias destrambelhadas, que
  • 74. ninguém entende. Minha mãe dizia que eu aprendi a montar antes de aprender a andar. Afinal, andar pra quê? Andar e correr é trabalho de cavalo, menino! Upa! E cutucou o cavalinho, à frente do rapaz, retomando o passeio e encerrando a conversa. Capítulo19 Terminada a longa apresentação dos domínios de Nhá Nana para o rapaz, a noite já se apresentava colorida quando os dois cavaleiros chegaram de volta à avenida de terra que separava as casas dos agregados e conduzia à casa-grande do Encantado, logo após o majestoso pequizeiro. Cavalgando a trote, sem pressa, foram ultrapassados por um galope apressado. Era a figurinha encou-raçada do Carne-Seca, que travou as rédeas da égua castanha ao chegar à varanda onde Nhá Nana já estava de pé, imponente, à espera do capataz. Garrote e Velho Santinho logo se aproximaram. - E então? - perguntou a voz seca de Nhá Nana. O homenzinho desmontou e encolhia-se dentro de sua armadura de couro ao aproximar-se humilde, mas triunfante, do sopé da varanda. - É claro que fiz do jeito que a senhora mandou, Nhá Nana. Trouxe comigo. O rapaz viu que Carne-Seca estendia alguma coisa para a velha. O capataz percebeu que era observado e, por
  • 75. sobre o ombro, virou a caveira sorridente para o rapaz: - Hoje de manhã passei na venda do Nhonofre e ele me contou que o Tampinha tinha comprado isso aqui, Nhozinho Garrote. Contei pra Nhá Nana e ela me mandou buscar. Velho Santinho e Garrote agora sabiam o que era aquele objeto estendido para a senhora do Encantado: o rádio de pilha do baixinho. Nhá Nana, impassível, continuou: - E deu-lhe o dinheiro? A cabeça escaveirada voltou-se pressurosa para a mulher: - Dei sim. Disse que a senhora tinha mandado, e dei pra ele direitinho o que ele tinha de pagar pra Nhonofre. Mas nem precisava, me desculpe o palpite... Nhá Nana não se alterou: - Não pedi nem preciso de sua opinião. Faça o que mandei fazer com isso aí. Aceitando a ordem como se fosse um garotinho convidado para uma brincadeira excitante, Carne-Seca ergueu o braço e jogou o radinho no chão, com força. Em seguida, com o tacão da botina, passou a pisoteá-lo, alegremente. Mesmo depois que a caixinha frágil já não passava de cacos de plástico e metal, Carne-Seca ainda saltitava sobre os destroços, como se dançasse. O rosto de Garrote empalideceu. O que era aquilo? O que estava acontecendo? Lentamente, Nhá Nana rodeou todo o terreiro com o
  • 76. olhar. Além do menino, do velho e do capataz, havia mais algumas curiosidades em volta. E a mulher falou: - Aí está. Ninguém aqui no Encantado precisa de notícias. Aqui nada acontece de novo. Nada muda. Tudo é do jeito que sempre foi. Tudo é e continuará sendo do jeito que é. Garrote olhou para o Velho Santinho. O companheiro estava imóvel sobre o cavalo e sua expressão, recortada na contraluz do entardecer, nada dizia. A boca do rapaz abriu-se, ia falar, mas a sombra autoritária falou primeiro: - Santinho, espero que você tenha mostrado um pouco do Encantado para o meu neto. Ele terá tempo para conhecer tudo. A vida inteira. Antônia, prepare um banho quente para o Garrote. Logo mais, ele e eu vamos jantar juntos na sala grande. Com um repelão, voltou o corpo e desapareceu pela grande porta da casa. Antes que a curiosidade dos agregados se dispersasse, Carne-Seca levantou a voz, ameaçador, de chicote apontado como uma espada, girando o corpo para que todos ouvissem: - E se alguém precisar de música, que cante, mas longe dos ouvidos de Nhá Nana! Ou, se preferir, vai ouvir aqui a minha música... E - chlept! - deu uma lambada no couro da calça com o chicote. ... e cravei no peito dele, bem fundo no coração...
  • 77. Capítulo20 O rapaz não comentou as ordens da avó, que, desde que ele havia chegado ao Encantado, só falava dele sem lhe dirigir a palavra. Entrou na casa-grande e, sem esperar pela água que deveria estar sendo esquentada pela pobre Amélia, que tinha de ser chamada de Antônia, tomou um longo banho na água fria do chuveiro. Vestiu-se, atravessou a imensa sala e entrou na cozinha. Era quase tão grande quanto a sala e um fogão à lenha acrescentava alguns graus ao calor do cerrado. Lá estava a boa Madalena, a que deveria ser chamada de Dita, ultimando um farto jantar. Nhozinho Garrote! - surpreendeu-se a cozinheira. - A janta já está quase pronta. Nhá Nana espera o senhor lá na sala grande. Não vou jantar lá, Ma-da-le-na. - Garrote escandia as sílabas, como se pronunciar o verdadeiro nome da cozinheira fosse uma espécie de desaforo para a avó. - Diga a ela que vou comer aqui mesmo, na cozinha. Assustada, a mulher desapareceu na direção da sala. Logo voltava, com os olhos arregalados, sem compreender a possibilidade de alguém descumprir uma ordem da chefe, mesmo que esse alguém fosse o neto, o herdeiro do Encantado. Silenciosamente, preparou a mesa da cozinha para o jantar do rapaz. Madalena-Dita cozinhava bem, é claro que cozinhava bem. Mas Garrote olhou para o imenso bife de filé
  • 78. mignon, bistecas de porco, arroz, feijão, e sua mente desviou-se, retornando à casa de Cipriano e ao angu de farinha de peixe oferecido por Nhá Zeza. Para ele, a perícia culinária da cozinheira do Encantado perdia para o tempero simples da mulher do peão. O que faltava no tempero do Encantado? Amor, talvez? Como é possível viver aqui, Madalena? - perguntou ele. Desculpe, Nhozinho... Não entendi... - respondeu ela. - O que está acontecendo no Encantado? - Acontecendo? Nada está acontecendo, Nhozinho. Como Nhá Nana disse, tudo aqui é do jeito que sempre foi... Mais tarde, na cama, olhando as estrelas num céu escuro que cobria de beleza aquela terra da loucura, Garrote murmurava para si mesmo: - Como vou escapar daqui? Eu não tenho nada com isso... Quero sair daqui... Não tenho nada com esse Encantado, não tenho nada com coisa nenhuma... Eu sou eu. Não quero ser mais nada... Eu sou eu... sou eu... Capítulo21 A noite tinha começado em pesadelos e Garrote sonhou com um castelo assombrado por uma abelha-rainha e um demônio encouraçado que açoitava crianças e destruía brinquedos. Mas, à medida que se aprofundava, o sono foi levando a imaginação adormecida do Garrote para um sonho colorido, onde
  • 79. havia um velho alegre, às gargalhadas, sempre preo- cupado com ele, e uma pequena fada morena que desenhava letras na areia com sua varinha de condão. Um cocoricó mais alto perturbou o devaneio. O garoto acordou. Estava escuro como breu. Olhou no relógio e viu que ainda estava longe a madrugada que haveria de arrancar da cama todos os empregados daquela fazenda. Fugir... Para escapar dali, ele precisava aprender as trilhas invisíveis daquela fazenda. Talvez fosse possível cavalgar até o ponto por onde passava o ônibus e alcançar Brasília. Mas, o que seria dele em Brasília, sozinho? Balançou a cabeça, desolado. Mas logo sacudiu novamente a cabeça, desta vez com decisão. Mesmo que seu plano fosse impossível, apegar-se a ele, planejar, poderia mantê-lo alerta. Ou, pelo menos, poderia manter sua cabeça erguida. "Preciso resistir..." Decidiu sair sozinho, sob a proteção do Encantado adormecido. Para não fazer qualquer ruído pela casa, pulou a janela do quarto para o terreiro e caminhou sorrateiramente para o curral. Com o olhar já acostumado à escuridão, conseguiu distinguir a sombra do valente alazão que o levara no passeio da véspera. Não dava para buscar a sela na cocheira sem despertar alguém. Mas aquele rapaz tinha
  • 80. sido ensinado pela mãe a cavalgar em qualquer circunstância. O cabresto e as rédeas estavam pendurados no mourão do curral. Foi só enfiar o arreio pelo focinho do animal, ajustar o cabresto entre seus dentes, abrir a porteira, montar em pêlo e sair a trote cauteloso pelo terreiro. Atrás de si, pareceu-lhe ouvir o ruído de um outro trote, mas devia ser dos outros cavalos que haviam ficado no curral, nervosos pela saída do alazão. Agachou-se sobre o pescoço do cavalo e ficou murmurando carinhos para acalmá-lo e impedir que ele relinchasse. Bastava atravessar a rua que separava as casinhas dos empregados da casa-grande, ladeada pela longa vereda de buritis, e ultrapassar o grande pequizeiro retorcido da entrada, e ele poderia galopar à vontade. Só faltava mais um pouquinho... - Aonde vai, Garrote? Da escuridão maior causada pela copa pesada da árvore, vinha a voz gostosa do Velho Santinho. Garrote sofreou o animal. Danado de velho! Você não dorme, é, Velho Santinho? - perguntou irritado o rapaz. Pelo jeito, quem está sem sono é você. Eta Garrote tinhoso! O pessoal do Encantado ainda está pegado no ronco e lá vai você, o cavaleiro da escuridão! Nessa hora nem quem tem de tirar leite das vacas acordou ainda, menino! Mas eu e você acordamos, não é, Velho Santinho? Pois saiba que eu quero cavalgar um pouco sozinho - disse
  • 81. Garrote, quando notou que, sob a sombra do pequizeiro, havia também um cavalo enci-lhado. Não era mais o cavalinho fosco da véspera. Era um baio novo e arisco, bom de corrida, pelo jeito. -Por favor, não quero que venha comigo. Pois então não vou, Garrote. Pode deixar. Hoje não estou com vontade de sair sem café da manhã pra tomar banho de regato... Banho de regato?! Do que está falando, Velho Santinho? Nada... Não estou falando nada. Bom passeio, Garrote. Cuidado pra não se afogar. Tem homem que se afoga nesse tipo de banho... Ainda mais homenzinhos tinhosos feito algum que eu conheço... O rapaz açulou o alazão e saiu a galope. Velho danado! Capítulo22 Como se fosse um motorista de táxi ao qual o passageiro informa o endereço, o alazão conduzia o garoto cerrado afora, na direção da casa humilde de Cipriano. "Talvez Cipriano me ensine o caminho para fora daqui... Ou mesmo a Ritinha..." Aquele destino ficava longe da casa-grande e quase duas horas tinham de ser gastas até lá. Assim, a luz do Sol já banhava o cerrado quando o rapaz ouviu mais um cumprimento: - Oi, Garrote!