O documento discute a mudança de papéis entre professores e alunos com o uso de tecnologias. Professores devem ser guias que orientam os alunos, enquanto os alunos se tornam pesquisadores responsáveis por seu próprio aprendizado. Isso requer que os alunos se tornem mais autônomos e responsáveis, ao invés de dependerem passivamente dos professores.
2. Não são as tecnologias em si que me interessam,
mas suas possibilidades de uso com base numa
concepção de ensino que dê margem a uma
maior liberdade (e consequente responsabilidade)
aos alunos e aos professores. Esse enunciado
poderia incluir a expressão "que dá margem", mas
isso poderia parecer pressupor que essa
concepção já é posta em prática
generalizadamente, o que talvez não seja o caso.
3. Dizer "que dê margem" pode induzir a pensar que
essa até agora misteriosa concepção de ensino-
aprendizagem de que vou falar pode não dar
margem a uma maior liberdade, o que não me
parece o caso. Dizer “que dá margem” é contar o
fim do filme; dizer “que dê margem” é duvidar da
afirmação ou querer correr um risco. Duvidar de si
mesmo é ser professor? Espero tê-los inquietado,
induzido a imaginar que raio de concepção será
essa e em que difere da ainda vigente.
4. Marc Prensky criou as expressões “nativos
digitais” e “imigrantes digitais”, para designar
quem nasceu antes de surgir a Internet e aqueles
que já nasceram com ela e não podem passar
sem ela, ou melhor, que não concebem o mundo
sem ela! Ele mesmo seria um "imigrante", mas
uma reflexão mais ampla o faria ver que ele talvez
seja mais um "mestiço digital", categoria que criei
a partir de Prensky e na qual me situo.
5. O nativo digital tem suas apreciações, percepções
e ações moldadas pelo ambiente digital? Ele
parte dessa "matriz" para transpor
duradouramente suas disposições para atividades
fora do ambiente digital? Ao que parece, sim, e
basta-nos considerar alguns alunos de 17 anos
que entram na universidade para perceber que
assim é. Isso, como veremos, tem várias
implicações para o ensino -- que hoje já conta
com alguns nativos.
6. Como agem os imigrantes? De modo geral, eles
não têm suas apreciações, percepções e ações
moldadas pelo ambiente digital, nem partem dessa
"matriz" para transpor duradouramente suas
disposições para atividades fora do ambiente digital.
Assim sendo, de certo modo "resistem" ao habitus,
ainda que, como "imigrados", não possam deixá-lo
mais de lado. Mas a sua permanece uma relação
tensa, ou ao menos "insegura", uma vez que não
são nativos.
7. Um mestiço digital compartilha com os nativos a
familiaridade com o habitus, e partilha com os
imigrantes certa reserva, advinda do fato de terem
imigrado mais cedo do que os imigrantes
"normais", mas terem nascido antes do
surgimento do mundo digital, quando já haviam
adquirido modalidades de apreciação, percepção
e ação "analógicas"!
8. Separo os imigrantes dos imigrados: estes últimos são
os que, apesar de si mesmos, tiveram de imigrar. Para
os “assustados”, que são em sua maioria imigrados, e
que mais nos interessam, as tecnologias são quase uma
invasão, ou uma deportação, um país estrangeiro que,
paradoxalmente, os ocupou em vez de ser adotado por
eles. Para os “fanáticos”, em sua maioria nativos, o
mundo digital foi ocupado por eles e lhes pertence, e é
mais real do que o dito real.
9. A resistência às TICs me parece vir, de um lado, do
temor das tecnologias per se, como se
despersonalizassem a relação ensino-aprendizagem.
Não há aí nenhum questionamento da relação
tradicional, não mediada por TICs, sobre se ela é de
fato satisfatória etc., mas o pressuposto de que é
"personalizada" e, portanto, passível de
despersonalização pelas TICs. Assim, a personalização
é considerada positiva em si, sem que se questione sua
natureza; e a dita “despersonalização”, negativa em si,
também sem questionamento.
10. Cabe assim perguntar: há hoje uma parceria
produtiva entre TICs e ensino-aprendizagem? Ou o
ensino apenas "usa", seja de bom grado ou apesar
de si mesmo, as TICs que chegaram ao ambiente
escolar?
Em outras palavras, haverá a busca de uma parceria
da parte dos profissionais de ensino ou eles
simplesmente as aceitam como "um mal necessário"
ou ao menos como "mais um recurso?
11. Afirmei em Internet na Escola (1999), que a Internet
combina "perfeitamente com os novos rumos da
educação por ser adequada à nova relação aluno-
professor, que deve ser centrada no aluno e na
ação deste como sujeito, e que requer do professor
que se torne um companheiro, mais experiente, na
jornada do conhecimento". Não mudei de ideia e, na
verdade, aprofundei essa posição, talvez com
menos idealismo....
12. Alguns nativos acham simplesmente que o que está
na Internet pode ser copiado e colado como se
fosse um texto seu! Ao mesmo tempo, não haverá
"autoria" no fato de não haver dois nativos que
copiem as coisas na mesma ordem nem as mesmas
coisas? Não poderíamos incluir a seleção entre as
habilidades autorais? Ou ao menos partir disso para
trabalhar tanto a questão de evitar o plágio como a
de assumir uma posição autoral? O que isso nos
impõe?
13. Como se sabe, o ambiente escolar (em todos os
seus níveis) tem uma longa tradição de instituição
de práticas vinculadas à produção de discursos,
tanto docentes como discentes, que são parte
integrante dele, em vez de vincular-se com outras
práticas discursivas; são os chamados “discursos
escolares”, produzidos com o fim de promover e
avaliar a aprendizagem escolar. Hoje, usam-se
também exemplares reais (no âmbito de gêneros),
mas o problema é como se usam.
14. A tecnologia é por definição “burra”. Porque
nenhuma tecnologia é capaz de determinar - por
si só - o sucesso de um empreendimento, e
menos ainda se for um empreendimento de
ensino-aprendizagem, que envolve complexas
interações que vão dos estilos de ensino e de
aprendizagem dos envolvidos a questões
institucionais e de imagem social e histórica dos
papeis de aluno e de professor – um espectro que
vai do subjetivo estrito ao “espírito de época”.
15. As sociedades modernas, um dia unificadas (por
bem ou por mal) hoje vivem (por bem ou por mal)
uma situação de fragmentação, de diversidade,
de reconhecimento de que não há um único
padrão seguir. Se isso de um lado desestabiliza,
de outro abre horizontes assustadores ou
recompensadores, a depender da atitude. Temos
hoje de ultrapassar a ideia de “aceitar as
diferenças” e/ou de “acolher a diversidade” para
chegar à ideia, mais justa, de que “somos todos
diferentes”.
16. “Aceitar as diferenças” e “acolher a diversidade”
supõem um padrão de igualdade a partir do qual se
define o “diferente”, que é sempre “o outro”, o “não-
eu”.
Reconhecer que “somos todos diferentes” é
reconhecer que (1) não há um único padrão e
talvez nem haja padrão fora a ética (2) cada
pessoa tem suas necessidades e seu ritmo; (3) o
processo de ensino-aprendizagem tem de respeitar
essas diferenças irredutíveis e adaptar-se a eles.
17. Além de permitir que o professor também aprenda
com o aluno, a Internet facilita a motivação deste,
promovendo o trabalho em grupo e a troca
dinâmica de informações com os colegas. A
Internet facilita a atual tarefa do professor - a de
guia da aprendizagem, em vez de transmissor do
conhecimento -, e permite ao aluno um contato
mais direto com o mundo, o que atende a mais uma
necessidade atual: o da experiência direta como
modalidade de aprendizagem mais propícia ao
desenvolvimento da capacidade de resolução
criativa de problemas.
18. Pode-se assim dizer que, como transmissora de
conhecimentos, a Internet é bem mais eficiente do
que qualquer professor. Mas, como profissional
que, enquanto aprende com seus alunos, é capaz
de guiá-lo na filtragem do que há de relevante na
Internet e principalmente no processo de
construção de conhecimentos, todo professor pode
ser bem mais eficiente do que qualquer recurso de
mera transmissão. Logo, o papel do professor é o
de coach, um orientador, não treinador.
19. É ajudar a ver, a construir, acompanhar num
processo complexo de autoformação, de
autoevolução, na qualidade de aluno eterno e de
companheiro mais experiente que promove a
descoberta e construção pelos alunos de conceitos,
de saberes, de subjetividade relacional. Para isso, o
professor deve aprender a colocar toda e qualquer
tecnologia a serviço da proposição aos alunos de
desafios que os levem a se tornar pessoas mais
complexas, mais capazes, mais conscientes, mais
cidadãs.
20. Há uma dessimetria constitutiva na interação
professor-aluno. Mas isso não implica uma
hierarquia em termos do valor de cada pessoa; os
papéis são socialmente distintos, mas os sujeitos
que os ocupam são fundamentalmente iguais. Na
verdade, não há a rigor ensino como ação de um
agente sobre um paciente, este passivo e aquele
ativo, mas sim “autoformação”, que pode receber a
contribuição da “co-formação”, ou seja, o contato
entre pares em que um deles é mais experiente
num dado plano.
21. Mudam os papéis de professores e alunos. Os
alunos, que antes se limitavam a ouvir e tomar
notas, passam a ensinar a si mesmos, com a
orientação dos professores. Daí a real necessidade
de usar ferramentas que os ajudem a aprender. O
papel do aluno passa a ser de pesquisador, de
usuário especializado em tecnologia. O professor
passa a ter papel de guia e de orientador. Ele
estabelece metas para os alunos e os questiona,
garantindo o rigor e a qualidade da produção da
classe.
22. Em nossos dias, o que se exige do professor, para
além do “domínio” de suas áreas de saber e de
capacidades de ensino, é que ele seja um parceiro
mais experiente que:
Orienta e guia
Cria metas e questiona - Projeta o processo de
aprendizagem
Descreve o contexto
Estabelece critérios de rigor
Garante a qualidade
23. O professor deve promover a autonomia, o
protagonismo, dos alunos. Isso exige mudar a(s)
mentalidade(s). Como criar autonomia em meio a
uma estrutura que faz os alunos esperarem
professores "tia" ou "tio"? “Mestres” dotados de
um suposto saber, julgado transmissível como
conteúdo, ou autoritários, inseguros, paternalistas.
Minha geração lutou pela autonomia. A de nossos
atuais alunos por vezes parece ter desistido disso.
Será porque ser livre impõe responsabilidade?
24. Mas essa responsabilidade é a única maneira de
aprender. Professores não ensinam; eles expõem o
saber aos alunos e estes dele de apropriam, ou não, à
sua própria maneira.
Claro que não se renuncia ao papel de parceiro mais
experiente. Mas a principal função dos professores é se
tornar inúteis. Quanto menos os alunos precisam deles,
tanto mais eficientes terão eles sido!
Isso é assustador para os professores-transmissores e
os alunos receptores!
25. Trava-se essa batalha contra alguns inimigos, que,
simplificando, chamo de o "vale nota?" e o "não vai
dar aula?". O primeiro é a mentalidade bancária,
behaviorista: o que não é “pago” não tem valor! O
segundo, a ideia do professor como transmissor:
aula é sempre o professor falando - usando a voz,
giz, lousa eletrônica, PowerPoint ou o que for!
E os alunos passivamente anotando. Ser passivo é
manter-se na zona de conforto. E o professor tem
de tirar os alunos dela.
26. Não há nada errado nesse tipo de aula. Em certas
situações, ela é necessária e suficiente – desde
que o professor seja bom expositor. Mas, sem
“colocar a mão na massa”, não se aprende,
embora se possa ser aprovado. Só que ser
aprovado sem aprender é ser reprovado, é “rodar”,
sem se dar conta. Logo, aprender é
responsabilidade dos alunos quando lhes é
oferecida autonomia. Ser autônomo é ser também
responsável. E isso assusta!
27. Sempre se paga um “preço” na vida, profissional e
pessoal: seja porque se fez algo ou porque se
deixou de fazer. Logo, cabe-nos escolher o motivo
pelo qual vamos pagar. Só erra quem tenta fazer
algo. Quem não tenta já fez a opção errada. Não
fazer pode ser uma opção. Mas esta tem de ser
resultado de re-flexão, de “fletir de novo”, “olhar
outra vez” (Rauber), e não de desistência. Uma
coisa é calar por tática ou estratégia; outra bem
distinta emudecer (ou deixar-se emudecer).
28. Promover a apropriação e co-criação de
conhecimentos/sentidos, o que supõe
naturalmente não haver um detentor do saber,
mas orientadores dotados de maior ou menor
habilidade, dos saberes possíveis numa dada
sociedade num dado momento histórico (claro que
há o que se pode chamar de “verdades
universais”, como a caracterização da tortura
como ação condenável, mas não é esse nosso
foco).
29. Voltada para favorecer a criação de cidadania por
meio da promoção da responsabilidade pela
própria aprendizagem, em parceria com o
professor. Ela não só aceita como busca
promover a inovação, a contestação, a atitude
crítica e a reflexão constantes, desestabilizando a
posição do professor, sem no entanto privá-lo de
sua posição constitutiva de parceiro mais
experiente num dado plano
30. O que determina a eficácia da aula não é o que se
usa, mas como se usa. Um professor que nem
sabe ver seus emails está num mundo alheio aos
de seus alunos. Além disso, o papel da didática e
da pedagogia na escola me parece ser a
dissociação entre quem cria os recursos didáticos e
os profissionais que os usam, ou seja, não é
possível um profissional de didática e de pedagogia
trabalhar com matérias específicas sem entender
delas nem um especialista não saber usar esses
recursos.
31. Quanto menos necessário se faz o professor,
tanto mais autônomos terão se tornado seus
alunos. E as tecnologias da informação podem
ser uma utilíssima ferramenta (no sentido
vigotskiano do termo). Creio firme e
fundamentadamente que - com ou sem
tecnologias da informação - só se ensina por se
ser quem se é - e não o que se é.
32. Ficaentão, inevitavelmente, duas
perguntas como "conclusão" desta fala.
Em vez de alguma resposta superficial
e/ou momentânea): Como professores,
que sujeitos queremos ser? Como
sujeitos, que professores queremos ser?