O Barroco no Brasil: características e principais expoentes
1. Surgimento: Europa, meados do século XVI - Brasil, início do século XVII. (Lembrar
que, no Brasil, a literatura barroca acaba no século XVII, junto com o declínio da
sociedade açucareira baiana. Contudo, na arquitetura e nas artes plásticas, o estilo
barroco atingirá o seu apogeu apenas nos séculos XVIII e início do XIX, em Minas
Gerais.)
a) Duração no Brasil: 1601 a 1768 (todo o século XVII e mais da metade do século
XVIII).
b) Obra inauguradora: Prosopopéia, poema épico de Bento Teixeira.
c) Outros nomes para o movimento:
Seiscentismo: em homenagem aos anos de 1600 no Brasil.
Grupo Baiano: no Brasil, o Barroco literário desenvolve-se na Bahia (Salvador).
Gongorismo: em homenagem a Luiz de Gôngora; é também a denominação do
Barroco na Espanha.
2. a) CULTISMO ou GONGORISMO ("como dizer") - É o jogo de
palavras; é o rebuscamento da forma, é a obsessão pela linguagem
culta, erudita. Viram moda a inversão da frase (hipérbato) e o uso
de palavras difíceis.
É o abuso no emprego de três figuras de linguagem: a metáfora, a
antítese e o hipérbato.
O principal cultista do barroco mundial é o espanhol Luiz de
Gôngora. No Brasil, Gregório de Matos.
3. b) CONCEPTISMO ("o que dizer") - É o aspecto
construtivo do Barroco, voltado para o jogo das idéias e
dos conceitos.
É a preocupação com as associações inesperadas,
seguindo um raciocínio lógico, racionalista.
O principal conceptista do barroco mundial é o
espanhol Francisco de Quevedo. No Brasil, padre Antônio
Vieira.
4. TEOCENTRISMO x ANTROPOCENTRISMO - O rebusca-mento da arte
barroca é reflexo do dilema em que vive o homem do seiscentismo (os anos de
1600). Daí as preferências por temas opostos: espírito e matéria, perdão e
pecado, bem e mal, céu e inferno. Tudo isso gera a preocupação com a brevidade
da vida (carpe diem)
Conflito entre corpo e alma. Dividido entre os prazeres renascentistas e o fervor
religioso, o homem barroco oscila entre:
A celebração do corpo, da vida terrena, do gozo mundano e do pecado;
Os cuidados com a alma visando à graça divina e à salvação para a vida eterna.
5.
6. Gregório de Matos Guerra nasceu na Bahia, filho de família
abastada e poderosa, de fortes raízes em Portugal. Fez seus
primeiros estudos no colégio jesuítico da Bahia. Com dezesseis
anos, ingressou na Universidade de Coimbra, onde viria a se
formar em Direito. No ano de 1663, tornou-se juiz, sendo
nomeado para um lugarejo do interior português. Em seguida,
tornou-se juiz em Lisboa, casando-se com a filha de um
importante magistrado e da qual enviuvou em 1678. Retornaria ao
Brasil já com quarenta e seis anos, recebendo a tonsura (ordens
eclesiásticas menores) e assim virando padre. Dois anos depois foi
destituído da condição clerical por levar uma "vida sem modo de
cristão".
7. Poesia religiosa: O exemplo mais conhecido de
sua literatura sacra é o soneto A Jesus Cristo
Nosso Senhor. Numa curiosa dialética
(discussão), o poeta apela para a infinita
capacidade de Cristo em redimir os piores
pecadores, alegando que a ausência de perdão
representaria o fim da glória divina. Trata-se,
pois, de um poema simultaneamente contrito e
desafiador, humilde e presunçoso.
8. A Jesus Cristo nosso senhor
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja* um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
* Sobeja: basta.
9. Poesia amorosa: Exemplo dessa perspectiva é um
dos sonetos dedicados a D. Ângela, provável objeto
da paixão do poeta e que o teria rejeitado por outro
pretendente. Observe-se o jogo de aproximações
entre as palavras anjo e flor para designar a amada.
Observe-se também que, ao mesmo tempo tais
vocábulos possuem um caráter contraditório (anjo =
eternidade; flor = brevidade). Como sugere um
crítico, esta duplicidade de Angélica lança o poeta
em tensão e quase desespero ("Sois Anjo, que me
tenta, e não me guarda.")
10. Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e Anjo florente*
Em quem, senão em vós, se uniformara?
Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
De verde pé, da rama florescente?
A quem um Anjo vira tão luzente
Que por seu Deus o não idolatrara?
Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu custódio*, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo que tão bela, e tão galharda,
Posto que* os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
* Florente: florido.
* Custódio: defesa
* Posto que: ainda que.
11. Poesia obscena-satírica: Na poesia obscena-
satírica, Gregório de Matos não apresenta
qualquer requinte voluptuoso. Sua visão do amor
físico é agressiva e galhofeira. Quer despertar o
riso ou o comentário maldoso da platéia. Por isso,
manifesta desprezo pela concepção cristã do
amor que envolve a camada espiritual.
12. O amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.
13. Se Pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
mas resta agora saber,
se no nome, que me dais,
meteis a flor, que guardais
no passarinho melhor!
se me dais este favor,
sendo só de mim o Pica,
e o mais vosso, claro fica,
que fico então Pica-flor.
14. Poesia satírica: Contra tal ordem de coisas, contra
este novo mundo, que revirou todos os princípios
e hierarquias, que pôs tudo de cabeça para baixo,
que está afundando a sua classe, ele vai protestar.
O protesto dá-se através da linguagem poética,
transformada quase sempre em caricatura, ofensa,
praguejar, explosões de um cinismo cru e sem
piedade. O gosto do poeta pelo insulto leva-o a
acentuar os aspectos grotescos dos indivíduos e
do contexto baiano.
15. A cada canto um grande conselheiro,
Quer nos governar cabana e vinha, *
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um freqüente olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para a levar à Praça e ao Terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.*
Estupendas usuras* nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Cabana e vinha: no sentido de negócios particulares.
Picardia: esperteza ou desconsideração.
Usuras: juros ou lucros exagerados.
16.
17. Nasceu em Lisboa e veio menino (seis anos) para
a Bahia com seu pai, alto funcionário da Coroa.
Estudou no colégio dos jesuítas, onde brotaria
sua vocação sacerdotal, ordenando-se aos 26
anos. Em 1640, prega o seu audacioso sermão
Contra as armas de Holanda. No ano seguinte, já
reconhecido, volta para Lisboa, tornando-se o
grande pregador da Corte. Entre os seus
aficionados, encontrava-se o jovem rei D. João
IV. A pedido dele executou várias funções
políticas e diplomáticas.
18. Crítica aos pregadores cultistas: No conhecido
Sermão da Sexagésima, fulmina a linguagem
rebuscada e defende a argumentação clara e
harmoniosa. O principal alvo de sua crítica são os
pregadores cultistas, com seu artificialismo e seu
gosto exagerado pela antítese.
19. “O pregar há de ser como quem semeia e não como quem
ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas. Não
fez Deus o céu em xadrez de estrelas como os pregadores
fazem o sermão em xadrez de estrelas. Se de uma parte
está branco, da outra há de estar negro; se de uma parte
está dia, da outra há de estar noite; se de uma parte dizem
luz, da outra hão de dizer sombra; de uma parte dizem
desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não
havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas
hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário.
Aprendamos do céu o estilo da disposição e também o das
palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas.
As estrelas são muito distintas e claras. Assim há de ser o
estilo do pregador, muito distinto e muito claro.”
(Fragmento do sermão da sexagésima)
20. Temas religiosos: O interesse pela existência
cotidiana da Colônia e pelo futuro histórico de
Portugal não impedem Vieira de desenvolver uma
oratória estritamente religiosa, onde as questões
da morte e da eternidade avultam a todo
momento.
21. “Duas coisas a Igreja prega hoje a todos os mortais: ambas
grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas
uma de tal maneira certa, e evidente, que não é necessário
entendimento para a crer; outra de tal maneira certa, e
dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar.
Uma é presente, outra futura. (...) E que duas coisas enigmáticas
são estas? Pulvis es et in pulverem reverteris. Sois pó e em pó
vos haveis de converter. Sois pó é a presente. Em pó vos haveis
de converter é a futura. (...)
Ora suposto que já somos pó e não pode deixar de ser, pois Deus o
disse; perguntar-me-eis, e com muita razão, em que nos
distinguimos os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós
também somos pó. Distinguimo-nos, os vivos dos mortos,
assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado,
os mortos são pó caído; os vivos são pó que anda, os mortos são
pó que jaz.”
(Fragmento do Sermão de Quarta-feira de Cinzas, pregado em Roma, no ano de 1672)
22. O Olhar sobre a Vida Concreta: Inúmeros outros
sermões desse padre jesuíta partem de alusões
religiosas para comentar criticamente aspectos da
sociedade brasileira ou portuguesa, mostrando
sua profunda relação com a vida pública.
Implacável inimigo dos corruptos, fulminou-os
no Sermão do bom ladrão, apresentado diante de
D. João IV, em 1655.
23. “Não são só ladrões - diz o Santo - os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para
lhe colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles
a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a
administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os
pobres. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam
debaixo de seu risco, estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes
furtam e enforcam. Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu
que uma grande tropa de varas (juízes) e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões e
começou a bradar: "Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos." Ditosa Grécia que tinha
tal pregador! Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um
carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter roubado uma
província.”
(Fragmento do Sermão do bom ladrão, apresentado diante de D. João IV, em 1655)
24. A Questão do Escravismo: A ambigüidade de Vieira é visível
no problema da escravatura. Como intelectual e homem de
ação envolve-se na luta em defesa dos índios contra os
colonos que desejavam aprisioná-los. É odiado pelos
grandes proprietários que o tem como o maior inimigo.
Contraditoriamente, não manifesta o mesmo ardor contra a
escravidão de africanos, chegando a requerer a substituição
dos escravos índios por negros. No entanto, ao ver as
torturas e humilhações aplicadas aos últimos no Brasil, é
tomado de ira santa, atacando os senhores rurais e
comparando os sofrimentos dos cativos ao sofrimento de
Cristo.
Embora isso hoje pareça hipocrisia ou ideologia justificatória
do escravismo, na época tal pregação tinha um fundo
sentido subversivo porque conferia aos escravos uma
condição humana (em oposição á desumanidade dos
senhores) e oferecia-lhes um passaporte para a eternidade,
negada aos que os brutalizavam.
25. “Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos
e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando
em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos,
os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apontando para
o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos
atadas atrás, como imagens valíssimas da servidão e espetáculos de extrema miséria. Oh
Deus! Quantas graças devemos à Fé que nos destes, porque só ela cativa o entendimento
para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos contudo vossa justiça e
providência! Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas
não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e
morrem com os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os aquenta o mesmo sol? Que
estrela é logo aquela que os domina tão triste, tão inimiga, tão cruel?”
(Fragmento do Sermão Vigésimo Sétimo)