Consequências
Todos me julgavam. Apontavam, riam, humilhavam. Viam-me como uma mancha
nas tribos adolescentes. Pensavam que era um nada, mas agora eu deixei minha
marca. Agora eles vão se lembrar de mim. Tudo bem que não será como herói, mas
irão se lembrar. E já que o cargo de herói está ocupado, ficarei com o de vilão.
Na outra cidade, a vida era perfeita. Tinha amigos, meus pais me amavam, meu
nível intelectual era respeitado, eu era idolatrado. Ninguém se atrevia a me
questionar. Afinal, quem dava aula aos professores? Quem foi aceito numa
universidade aos dez anos? E quem criou um software aos doze?
E então meus pais começaram a se desentender. Brigas sem motivo tornaram-se
freqüentes em nossa casa. Até que o que eu mais temia aconteceu. Deram entrada no
divórcio e meu pai mudou-se para a capital.
Com a separação, minha mãe sofreu não sei qual transtorno mental. Passou a
culpar-me pelo ocorrido. Da mãe mais atenciosa transformou-se na mais ausente.
Chegava em casa tarde, na maioria das vezes bêbada, não se importava com meu bem-
estar, alterava a voz pelo menor descuido, ameaçava castigos e surras, era como se me
odiasse.
Não suportei e fui morar com meu pai. A diferença de ambientes seria drástica.
Pelo menos eu não precisaria morar sozinho naquela casa enorme. Sem muito pensar,
apanhei a mochila. Nem ao menos despedir-me. Era o primeiro passo para me tornar
um vilão. Logo, minha mãe é a primeira responsável.
Na casa de meu pai, não precisei explicar-lhe nada. Apenas disse que moraria com
ele. Uma semana depois e eu já freqüentava a Washington High School. Era uma
escola grande com todos os tipos possíveis de alunos. Contudo, eram poucos os que se
chamavam de NERD’s. Seis no máximo. A Washington estava mais à frente do que o
meu antigo centro de estudos. Quando cheguei, estavam próximos do período
avaliativo.
Eu não costumava assistir às aulas. Tudo o que os professores falavam eu já sabia
e ainda estava acanhado para retrucar ou corrigir alguma informação falsa.
Muitas garotas que se achavam no dever de dar-me as boas vindas vieram me
alertar sobre as provas. Eram difíceis, muitos perdiam em quase todas, ninguém
alcançava as notas máximas e eu não freqüentava as aulas. Iria me dar mal.
Tranqüilizei-as.
As provas acabaram e eu estava satisfeito. Durante a divulgação das notas, as
meninas pediram para ver meu boletim e ficaram boquiabertas. A escola inteira
tomou conhecimento das notas máximas que consegui. Perguntavam-me como
conseguira aquilo. Alguns espalharam que os professores me protegeram, outros que
eu roubara o gabarito. Foi aí que as coisas pioraram.
Os boatos tornaram-se críveis e grande parte dos alunos me olhava atravessado.
Ao passar, sentia a raiva e, por vezes, o ódio sobre mim. Somente duas garotas
anfitriãs, Jane e Michele, voltaram a falar comigo para perguntar-me se era verdade.
Eu dizia com veemência que não, eu apenas era dotado de um super cérebro.
Acharam-me arrogante, mas tentaram serem minhas amigas. Pelo menos, era
isso que eu pensava. Pediam ajuda com as matérias, chamavam-me para passeios,
freqüentavam minha casa. Eu as retribuía na mesma moeda, sendo que às vezes
negava os convites e enfurnava-me no quarto para ler ou desmontar alguns
computadores.
Passei meses assim. Suportando brincadeiras, humilhações públicas, ameaças. Via
grupos de cinco ou seis cochichando e sabia que eu era o assunto. Eles adoravam falar
de mim, de como eu era idiota e inútil, sempre puxando o saco dos professores, me
matando de estudar e deixando de cumprir com o Carpe Diem. Quando me
aproximava, aumentava a voz na tentativa de que eu ouvisse e revidasse.
Ao entrar na sala de aula – a essa altura eu voltara a freqüentar às aulas, para
tentar amenizar as histórias -, ouvia as musiquetas cantadas em coro e acompanhadas
de batuques. O tema central era, como sempre, o meu jeito de retardado. Sentava
num canto e alguns olhavam para mim, cuspindo palavra por palavra. As canções eram
bem elaboradas e demoravam a acabar. Professores entravam e eles continuavam a
cantar.
Era comum encontrar caricaturas minhas nas paredes da escola. Normalmente, eu
estava com cara de maluco e uma montanha de livros ao redor, ou estava numa orgia
com as professoras e o diretor. Aquilo me deixava perturbado, mas eu não
demonstrava a ninguém.
Sempre soube esconder muito bem os sentimentos. Considero-me um
dissimulado. Podia estar eufórico por dentro e um tedioso por fora, se a ocasião
pedisse. Podia ter perdido toda a família, mas, se eu quisesse, poderia ser o mais
alegre dos seres.
E era isso o que eu fazia. Ao invés de revoltar-me com insultos e mentiras,
mostrava-me indiferente a tudo. Observava com atenção, baixava a cabeça e saia.
Procurava não lhes dar mais motivos para gozações.
O problema é que o pote de reservas estava quase cheio. Se os meus 16 anos
tivessem sido tranqüilos, ele nem estaria na terça parte. Mas os últimos sete meses
foram repletos de motivos para utilizar a reserva sentimental. E é sabido o modo como
uma pessoa fica quando suas emoções transbordam e vêem à tona. Ela não tem
controle sobre si mesma e suas ações são impensadas.
Meu comportamento começou a mudar. Eram reflexos do meu interior. Apenas
algumas gotas que pingavam fora do pote. Eu estava mais nervoso, dava respostas
ríspidas a qualquer um, evitava contato com outras pessoas, na volta da escola vinha
sempre sozinho. Jane e Michele pareceram perceber minha mudança e cheguei a
pensar que me evitavam.
Mais duas semanas e pronto. Os risos, desenhos e músicas nesse período estavam
no ápice. Como eu disse, o ser não tem domínio sobre si. Mesmo se o tivesse, eu faria
a mesma coisa. Já estava disposto a deixar a minha marca e provar que eu não era
inútil.
Durante a semana, tracei o plano, estudei todas as variantes e extirpei as
probabilidades de erro. Comprei o que precisava e certifiquei-me que a aula de sábado
à noite estava confirmada. Ela seria indispensável.
Antes de ir para a aula, pus tudo na mochila e deixei um bilhete para meu pai. O
conteúdo do mesmo só ele terá acesso. Escondi num lugar que ele não freqüenta para
que só o encontre depois do fim.
Cheguei à escola e verifiquei as outras salas. Vazias. Somente metade da minha
turma e um professor. Tudo correria bem, mas confesso que fiquei meio
decepcionado. Pretendia ter uma platéia maior, no mínimo a turma completa. Sentei-
me ao fundo, como sempre, e o Sr. John escreveu as fórmulas químicas, que, por
acaso, eu já sabia de cor. Respirei fundo.
Levantei-me e fui falar com o professor. O plano precisava acontecer cedo e sem
demoras, para que os outros pais não desenfiassem do horário e procurassem pelos
filhos, resultando no fracasso da minha marca, pedi para ir ao banheiro, mas nem
atravessei a porta. Aproximei-me e tranquei-a.
Os olhares confusos voltaram-se para mim quando saquei a arma e apontei para o
assustado Sr. John. Pobre funcionário público. Deveria ter se aposentado mais cedo.
Mandei-os pôr os celulares sobre a mesa e seguirem para o canto da sala. Uma garota
se negou a largar o aparelho, mas depois concordou:
- O que acha se, ao invés de apontar para o velho, eu te elegesse para modelo e
atirasse em você? Seria bem divertido, não é mesmo?
Ela soltou um gritinho histérico e seguiu com os outros. Claro que eu não iria
atirar. Seria uma morte muito fácil e eu estaria saindo do meu plano. A morte deles
estava preparada, dentro da minha mochila. Se eu tivesse mais tempo ou dinheiro,
faria algo mais sofisticado. Porém essa simplicidade era satisfatória.
Escolhi Jane para ser minha assistente. Mandei-a pegar a corda na mochila,
amarrar os pulsos de cada um e organizá-los de modo que formassem uma fila indiana.
Ela relutou, mas ninguém diz não por muito tempo quando se tem uma arma na nuca.
Terminado isso, amarrei-a no fim da fila.
É incrível como no final todos nunca tiveram culpa de nada, as brincadeiras eram
inocentes e as verdadeiras vítimas são as erradas. As dezenove criaturas à minha
frente berravam desesperadamente, na inútil tentativa de me fazer retroceder. Eles
não faziam por mal, era só brincadeirinha, inveja por eu ser tão inteligente. Não, não
era!
Eu sabia o que eu passara nos últimos meses. Quem sofria tudo calado era eu, não
eles. Apenas se preocupavam em manter a fachada de mocinhos ou rebeldes sem
causa, enquanto eu via-me afundando sempre mais. Bando de hipócritas,
manipulados, estúpidos, fúteis! Verdadeiras aberrações da natureza! São eles que
mancham a perfeição humana com a podridão de seus corpos e almas!
Antes de começar pra valer, fiz um breve discurso sobre o motivo e importância
de estar fazendo aquilo. Basicamente foi um resumo do que já contei. Depois, apliquei
em cada um uma solução paralisante. Não era forte, apenas para impedi-los de causar-
me algum empecilho. Separei os cinco primeiros da fila e posicionei-os de frente para
os outros, sentados em cadeiras. Apliquei-lhes outra substância, esta para inibir a voz.
- Querem saber por que vão morrer? Pois bem. Eu sei que foram vocês que
criaram e divulgaram os boatos sobre a compra de gabaritos. Parabéns! Foram muito
importantes para a noite de hoje acontecer! Por isso, receberão medalha de ouro.
Prendi medalhas douradas em seus peitos. Em seguida, peguei os sacos plásticos e
a fita adesiva. Pus um saco na cabeça de cada um e a fita adesiva vedava a entrada de
ar, e para que não sofressem muito, tive o cuidado de retirar o ar de dentro dos sacos
antes de vedá-los.
Via-os debaterem-se enquanto o oxigênio ia dando lugar ao gás carbônico.
Estavam sufocando. Em alguns o sangue já manchava o plástico. Pouco depois, a
cabeça dos cinco já pendia para o lado, com os olhos esbugalhados.
Retirei os corpos das cadeiras e coloquei-os um ao lado do outro, deitados, num
lado vazio da sala.
Aproximei-me da fila e peguei mais cinco, duas garotas e três rapazes. Novamente,
posicionei-os nas cadeiras à frente e apliquei o inibidor de voz. Apanhei os fios de aço,
a faca e as tiras de borracha.
- Acho que sabem por que os escolhi, não é? Vocês são ótimos desenhistas e, ao
invés de utilizar esse dom para algo produtivo, passavam o tempo criando caricaturas
bizarras. Algumas eram até engraçadas, sabiam? As orgias, por exemplo. De onde
vinha tanta inspiração? Mas deixemos o papo de vamos à premiação. Por causa da
participação da arte, receberão medalha de prata! Parabéns!
Prendi as medalhas prateadas e amarrei as tiras de borracha no pescoço, na parte
superior, próximo ao queixo. Se prendesse a circulação, haveria mais sangue e o
espetáculo seria mais bonito. Deixei as garotas por último, morreriam mais rápido.
Com a linha de aço cortei os pescoços dos desenhistas; o sangue jorrou no chão. Nas
duas fofas, usei a faca.
Quando o sangue parou de escorrer, o que demorou um pouco, coloquei os
corpos junto aos outros, mas um pouco mais a baixo, tentando simular um pódio. Uma
bela cena, a que os policiais encontrariam.
Recolhi mais três vítimas e repeti o processo. Apliquei o inibidor e peguei a corda e
a lâmina.
- Ora, grandes músicos, cantem alguma canção agora! Vamos, estou esperando!
Foram muito idiotas em desperdiçar talento com cantigas e versos humilhantes. Se
bem que não foram muitos. Pela falta de relevância e esforço, vão ficar com o terceiro
lugar, as medalhas de bronze. Parabéns, mesmo assim.
Prendi as medalhas bronzeadas e amarrei seus braços, com as palmas das mãos
voltadas para cima, nos braços das cadeiras. Fiz cortes profundos nos pulsos com a
lâmina. Não queria que tivessem uma morte lenta, afinal foram pouco importantes,
mas não consegui pensar em outra coisa. Alguns minutos e seus corpos já estavam
sem vida.
Coloquei-os ao lado dos fofoqueiros, na posição onde seria o terceiro lugar.
- Ah, não se decepcionem. Não ficaram entre os três primeiros, mas eu tenho
medalhas para vocês também. Que tal “participação honrosa”? É um belo nome, não
acham? Vocês dois ficavam de cochichos, juntamente com o resto da escola. – A
menina histérica deu mais um grito. – Senhor professor, por que não castigava os
garotos que me maltratavam? E vocês, Jane e Michele, eram só aproveitadoras, não
me ajudavam em nada! Reservei um final tranqüilo para vocês seis. Juro que não
sentirão dor alguma.
Apliquei um veneno letal nos quatro primeiros e agora já estão em outro mundo.
Minhas duas amigas aproveitadoras irão assim que eu acabar de escrever e eu irei em
seguida, mas não com o veneno. Acho que um tiro é mais rápido e chamará a atenção
de algum vizinho, que chamará a polícia. Ela chegará em breve.
Sei que irão condenar-me, julgar-me-ão monstro, assassino, por isso cuidei de
escrever esse relatório, para que conheçam meus motivos. A polícia não perderá
tempo investigando o culpado, muito menos as causas. Esta escola viverá assombrada
pela presença de um aluno que deixou sua marca nas suas paredes. Espero que essa
sala seja vedada. Quem sabe alguém até não poderá fazer um filme com minha
história?
Assim despeço-me de vocês. Queria poder viver para ajudá-los, afinal minhas
pesquisas sobre doenças cerebrais estão bem avançadas. Agora já queimei os registros
e levo comigo a cura para o Mal de Alzheimer. Desculpe, velhinhos, terão de encontrar
outro gênio para salvá-los.
E se quiserem culpar alguém, lembrem-se que eu fui vítima desse sistema social
que oprime e rejeita quem acredita e se empenha no poder da inteligência.
P.S.: pai, o bilhete está sob meu travesseiro. Leia-o e guarde-o só para si.
[Dhay Souza]