2. Já não sei em que data estamos.
Lá em casa não há calendários e na
minha memória as datas estão
todas misturadas. Me recordo
daquelas folhinhas grandes, uns
primores, ilustradas com imagens
dos santos que colocávamos no
lado da penteadeira. Já não há
nada disso. Todas as coisas antigas
foram desaparecendo. E sem que
ninguém desse conta, eu me fui
apagando também....
3. Primeiro me trocaram de quarto,
pois a família cresceu. Depois me
passaram para outro menor ainda
com a companhia de minhas
bisnetas. Agora ocupo um desvão,
que está no pátio de trás.
Prometeram trocar o vidro
quebrado da janela, porém se
esqueceram, e todas as noites por
ali circula um ar gelado que
aumenta minhas dores reumáticas.
Mas tudo bem...
4. Desde há muito tempo tinha
intenção de escrever, porém
passava semanas procurando um
lápis. E quando o encontrava, eu
mesma voltava a esquecer onde o
tinha posto. Na minha idade as
coisas se perdem facilmente: claro,
não é uma enfermidade delas, das
coisas, porque estou segura de tê-
las, porém sempre desaparecem.
5. Noutra tarde dei-me conta que
minha voz também tinha
desaparecido. Quando eu falo com
meus netos ou com meus filhos não
me respondem. Todos falam sem
me olhar, como se eu não estivesse
com eles, escutando atenta o que
dizem. As vezes intervenho na
conversação, segura de que o que
vou lhes dizer não ocorrera a
nenhum deles, e de que lhes vai ser
de grande utilidade.
6. Porém não me ouvem, não me
olham, não me respondem. Então
cheia de tristeza me retiro para
meu quarto e vou beber minha
xícara de café. E faço assim, de
propósito, para que compreendam
que estou aborrecida, para que se
dêem conta que me entristecem e
venham buscar-me e me peçam
perdão …Porém ninguém vem....
7. Quando meu genro ficou doente,
pensei ter a oportunidade de ser-lhe
útil, lhe levei um chá especial que
eu mesma preparei. Coloquei-o na
mesinha e me sentei a esperar que
o tomasse, só que ele estava vendo
televisão e nem um só movimento
me indicou que se dera conta da
minha presença. O chá pouco a
pouco foi esfriando……e junto com
ele, meu coração...
8. Então noutro dia lhes disse que
quando eu morresse todos iriam se
arrepender. Meu neto menor disse:
“Ainda estás viva vovó? “. Eles
acharam tanta graça, que não
pararam de rir. Três días estive
chorando no meu quarto, até que
numa manhã entrou um dos
rapazes para retirar umas rodas
velhas e nem o bom dia me deu.
9. Foi então quando me convencí
de que sou invisível...Parei no
meio da sala para ver, se me
tornando um estorvo me
olhavam. Porém minha filha
seguiu varrendo sem me tocar,
os meninos correram em
minha volta, de um lado para o
outro, sem tropeçar em mim.
10. Um dia se agitaram os meninos,
e me vieram dizer que no dia
seguinte nós iríamos todos
passar um dia no campo. Fiquei
muito contente. Fazia tanto
tempo que não saía e mais ainda
ia ao campo!
11. No sábado fui a primeira a
levantar-me. Quis arrumar as
coisas com calma. Nós os
velhos tardamos muito em
fazer qualquer coisa, assim que
adiantei meu tempo para não
atrazá-los. Rápido entravam e
saíam da casa correndo e
levavam as bolsas e
brinquedos para o carro.
12. Eu já estava pronta e muito
alegre, permaneci no saguão a
esperá-los. Quando me dei
conta eles já tinham partido e
o auto desapareceu envolto
em algazarra, compreendí que
eu não estava convidada,
talvez porque não coubesse no
carro...
13. ...Ou porque meus passos tão
lentos impediriam que todos os
demais caminhassem a seu
gosto pelo bosque. Senti claro
como meu coração se encolheu
e a minha face ficou tremendo
como quando a gente tem que
engolir a vontade de chorar.
14. Eu os entendo, eles vivem o mundo
deles. Ríem, gritam, sonham,
choram, se abraçam, se beijam. E
eu, já nem sinto mais o gosto de
um beijo. Antes beijava os
pequeninos, era um prazer enorme
tê-los em meus braços, como se
fossem meus.
15. Sentía sua pele tenrinha e sua
respiração doce bem perto de
mim. A vida nova me produzia
um alento e até me dava
vontade de cantar canções
que nunca acreditara me
lembrar.
16. Porém um dia minha neta
Laura, que acabava de ter
um bebê disse que não
era bom que os anciãos
beijassem aos bebês, por
questões de saúde...
17. Desde então já não me
aproximo deles, não quero lhes
passar algo mal por minhas
imprudências. Tenho tanto
medo de contagiá-los !
Eu os bendigo a todos e lhes
perdôo, porque...
18. “Que culpa tem os pobres
de que e u m e
t e n h a
t o r n a d o
i n v i s í v e l ?”